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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.26 no.27 São Paulo  2018

 

ARTIGOS

 

Multiculturalidade, transculturalidade, interculturalidade

 

Multiculturality, transculturality, interculturality

 

 

Lisette Weissmann1

PUCSP

 

 


RESUMO

Deparamo-nos com um mundo que parece ter expandido os limites de sua geografia, marcado pela tecnologia e a globalização, tendendo para a fantasia de vivermos em um mundo global estruturado como um todo, sem limites de fronteiras que diferenciem países, populações ou culturas. A partir das migrações atuais trabalhamos com os conceitos de multiculturalidade, transculturalidade e interculturalidade. Os termos indicam diversas modalidades de migrar e o trabalho desenvolvido, no país de acolhida, pelos profissionais que os acolhem. Esta pesquisa teórica psicanalítica faz uso de conceitos acunhados por outras ciências humanas (sociologia, geografia, antropologia), para nos auxiliar na definição e compreensão do sujeito atual do século XXI. A discussão baseia-se na Psicanálise das Configurações Vinculares. Essa pesquisa não só caracteriza o migrante, mas apresenta um escopo mais abrangente, já que pretende definir o sujeito da contemporaneidade. Escolhemos o conceito de interculturalidade como aquele que melhor permite descrever o sujeito contemporâneo do século XXI.

Palavras-chave: Migrações, Multiculturalidade, Transculturalidade, Interculturalidade


ABSTRACT

The world seems to have expanded the boundaries of its geography, based on the technology and globalization, trying to carry the fantasy of living in a global world structured, without boundaries that differentiate countries, populations or cultures. Based on migrations we work with the concepts of multiculturality, transculturality and interculturality. The terms indicate different ways of migrating and the work carried out in the host country by welcoming professionals. This theoretical psychoanalytic research uses concepts from other human sciences (sociology, geography, anthropology), to help us in the definition and understanding of the contemporary human being. The discussion is leaded based on Psychoanalysis of Links. This research not only characterizes the migrant but presents a more comprehensive scope since it intends to define the human being in contemporary times. We chose the concept of interculturality as the one that best describes the human being of the 21st century and contemporary times.

Keywords: Migrations, Multiculturality, Transculturality, Interculturality


 

 

Introdução

E Moisés disse ao povo: Lembrai-vos deste mesmo dia, em que saístes do Egito, da casa da servidão; pois com mão forte o Senhor vos tirou daqui; portanto não comereis pão levedado.

Hoje, no mês de Abibe, vós saís.

(BÍBLIA Online, Êxodo 13:3-4).

Desde os tempos imemoriais, o homem tem migrado na busca de mudanças e de transformações. As migrações do sujeito contemporâneo não desenham um processo novo, mas tentaremos caracterizar as migrações contemporâneas do século XXI, visto que o formato se tem modificado, ao longo do tempo.

Na consulta ao dicionário Aurélio, migrações são definidas como "[...] passagem de um país para outro (falando-se de um povo ou quantidade de gente)". E também como "[...] viagens periódicas, ou irregulares, feitas por certas espécies de animais". Vemos como nos seres humanos essa passagem imprime um caráter migrante, transitório, de ruptura e crise.

Milton Santos (2007, p.82) trata das migrações e nos transmite como as mesmas "[...] agridem o indivíduo, roubando-lhe parte do ser, obrigando-o a uma nova e dura adaptação em seu novo lugar. Desterritorialização é frequentemente uma outra palavra para significar alienação, estranhamento, que são, também, desculturização". O autor alude à dor pelas rupturas e às perdas da cultura como âncora e salvaguarda do conhecimento de modos de pensar, agir e inserir-se no social, em um dado território. Isso nos traz um foco na dor individual que implica, já que cada sujeito terá que fazer sua própria adaptação e construir sua própria forma de morar nesses universos cruzados pelas semelhanças e as diferenças, os quais trazem à tona esse trânsito pelo mundo. A perda e o luto serão algumas das fases desse périplo individual, e a psicanálise bem sabe dar conta dessas operações psíquicas e vinculares, sendo essas questões algumas das que aprofundaremos mais à frente. Podemos pensar que, depois do reconhecimento e da perda da cultura própria na terra de nascença, o sujeito consiga reformular uma cultura que faça sentido para ele mesmo, dando conta da nova realidade na qual está vivendo.

De maneira muito certa, Dante Moreira Leite (1954, p.123) salienta que "[...] a participação numa cultura não é obstáculo intransponível para o ajustamento a outra, desde que o indivíduo tenha possibilidade material de adquirir as habilidades exigidas pelo novo ambiente". Vemos como esse trânsito representa um périplo de constante adaptação, entre a cultura própria e as estrangeiras que os sujeitos frequentam. Isso pressupõe um processo psíquico de adaptação e criação de uma cultura própria que dê conta de todo o aprendido e incorporado, assim como do excluído e afastado. Colcha de retalhos de uma história de vida e de trânsito pelos diversos territórios que a permeiam e a acolhem.

Por último, o autor nomeia a psicanálise como a ciência que consegue fazer uma leitura do inconsciente daquilo que os antropólogos estudam como comportamentos explícitos dos indivíduos. Os psicanalistas interpretam a leitura que os antropólogos fazem da realidade.

Nestor García Canclini, ao definir a modernidade, o faz como um movimento de busca de entrada e de saída, o qual os sujeitos que a assumem desenham em uma oscilação entre as tensões da desterritorialização e a reterritorialização: "[...] com isto me refiro a dois processos: a perda da relação 'natural' da cultura com os territórios geográficos e sociais, e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas" (Canclini, 2012, p. 281).

Vemos como a cultura vai se transformando em função dos movimentos da globalização, fazendo cair por terra a noção de cultura coerente com um território e um povo. Alude-se, pois, à transnacionalização dos mercados simbólicos e das migrações, que causam um movimento entre circuitos fronteiriços. Michel Certeau (1981, p.10) afirma que "[...] a vida consiste em atravessar constantemente fronteiras".

Carlos Fortuna e Augusto Santos Silva (2005) remetem a zonas de intermediação para os profissionais que pertencem às terceiras culturas, uma vez que ainda esses sujeitos, em relação com a cultura local, não entram em um relacionamento muito próximo, aparecendo uma relação de estranhamento entre os pertencentes às terceiras culturas e os locais. Os sujeitos das terceiras culturas se comunicam melhor entre eles que com os pertencentes às culturas locais, porém, são equiparados à figura do estranho dentro do social. Aparece aqui uma relação que se baseia na ambiguidade, já que

[...] o estranho é o diverso incógnito perante o qual se suspende qualquer avaliação apriorística. Sem estatuto definido, o estranho ré envia-nos, assim, para uma atitude expectante e tolerante que não se confunde nem com o crédito concedido aos amigos, nem com o descrédito conferido aos inimigos. (Fortuna; Silva, 2005, p.452).

Descrevem, assim, as cidades modernas, nas quais os relacionamentos se dão entre estranhos que têm que se desenvolver, dentro do que eles nomeiam como tolerância cultural, para conseguir uma convivência.

Como resultado das migrações, expatriações, exílios, refúgios, intercâmbios de profissionais e mão de obra qualificada entre nações, surgem vários termos que tentam dar conta da diversidade e da forma de lidar com eles: multiculturalidade, transculturalidade e interculturalidade.

 

Multiculturalidade

O termo multiculturalidade utiliza o prefixo multi, que, no dicionário, indica muito, numeroso. A multiculturalidade implica um conjunto de culturas em contato, mas sem se misturar: trata-se de várias culturas no mesmo patamar. As diferenças ficam estanques e separadas em cada cultura, possibilitando pensar no que os antropólogos chamam a lógica do Um, que só tem uma verdade a seguir e uma forma de pensar o mundo. Aquela forma única não admite contraponto de ideias, nem ser discutida ou questionada. Baseia-se em uma lógica binária, na qual uma ideia é correta e outra é diferente e incorreta, só se complementando ideias similares e tentando se afastar aqueles conceitos que contrariam o pensamento predominante.

A antropóloga María Laura Méndez (comunicação oral) assevera que a lógica do Um supõe uma metafísica monovalente e uma lógica binária, baseada na dicotomia verdadeiro-falso. A autora se refere ao multiculturalismo como conceito que supõe muitas culturas, entre as quais há uma cultura que é hegemônica. Esse conceito se baseia na colonização, em que um povo era conquistado por outro e, por isso, uma cultura aparecia como se impondo frente às outras: a cultura do colonizador tentava apagar a cultura do colonizado. Isso acarreta ainda a generalização e a universalização dos conceitos culturais, porque intentam anular as culturas diferentes, para dar preponderância à cultura colonizadora que exerce o poder. O multiculturalismo está colocado fundamentalmente pelas teorias norte-americanas, nas quais não visualizamos nenhuma preocupação com a descolonização, mas a preeminência de uma cultura como "a certa", exercendo o poder sobre as outras.

Pierre Bourdieu (2000, p.5) menciona o que ele chama de

[...] a nova vulgata planetária que apoia-se numa série de oposições e equivalências, que se sustentam e contrapõem, para descrever as transformações contemporâneas das sociedades avançadas: desengajamento econômico do Estado e ênfase em seus componentes policiais e penais, desregulação dos fluxos financeiros e desorganização do mercado de trabalho, redução das proteções sociais e celebração moralizadora da "responsabilidade individual".

A partir dessa visão do mundo contemporâneo, quando o autor trata de multiculturalismo, ele o associa à política norte-americana, que, junto à globalização, impõe uma definição de mundo com um olhar americano capitalista e individualista, com base no qual se abandonam as particularidades nacionais e peculiaridades históricas de cada povo, para se homologar um mundo homogêneo, regido pelo olhar universalista. Frisa aqui a imposição do multiculturalismo. Menciona as universidades americanas como aquelas nas quais os conhecimentos tentam anular as particularidades sociais e impor uma visão fora do contexto histórico, como aquela que abrangeria todo o planeta. Essa visão do mundo seria veiculada através das

[...] instâncias supostamente neutras do pensamento neutro que são os grandes organismos internacionais. Além do efeito automático da circulação internacional de idéias que, por sua própria lógica, tenta ocultar as condições e os significados originais [...] tende a ocultar as raízes históricas de todo um conjunto de questões e de noções: a 'eficácia" do mercado (livre), a necessidade de reconhecimentos das 'identidades" (culturais), ou ainda a reafirmação-celebração da 'responsabilidade' (individual). (Bourdieu, 2000, p.2).

Assim, o multiculturalismo, o qual tentava designar um pluralismo cultural, acaba sendo confinado como um discurso universitário norte-americano que se apresenta como universal e único, aparecendo como aquela cultura dominadora que prevalece sobre a dominada. Esse discurso acaba encobrindo a submissão globalizada aos mercados financeiros.

Bourdieu (2000, p.2) coloca o conceito de

[...] imperialismo cultural como uma violência simbólica que se apóia numa relação de comunicação coercitiva para extorquir a submissão e cuja particularidade consiste, nesse caso, no fato de universalizar particularismos vinculados a uma experiência histórica singular, ao fazer com que sejam desconhecidos, enquanto tal, e reconhecidos como universais.

Vemos como diversos autores coincidem, no momento de definir o conceito de multiculturalidade.

Canclini (2004, p.14) define "[...] o mundo multicultural como a justaposição de etnias ou grupos em uma cidade ou nação". Nessa apreciação, admite-se a diversidade de culturas, sublinhando as diferenças e propondo políticas relativistas que geralmente reforçam a segregação. Dessa forma, aceita-se o heterogêneo. O autor também reforça que os livros que abordam a multiculturalidade estão geralmente escritos na língua inglesa e provêm dos Estados Unidos e Grã-Bretanha ou de suas ex-colônias, concentrando-se em relações Inter étnicas ou de gênero, assim como na comunicação intercultural, na qual se comparam culturas que persistem como sistemas anteriores e fechados. As críticas ao multiculturalismo focam na predominância de um sistema segregacionista e em versões etnocêntricas, as quais obrigam a reconhecer uma cultura só. Por último, enfoca a diferença entre multiculturalidade e multiculturalismo:

A multiculturalidade, ou seja, a abundância de opções simbólicas, propicia enriquecimentos e fusões, inovações estilísticas, tomando emprestado de muitas partes.

[...] O multiculturalismo, entendido como programa que prescreve cotas de representatividade em museus, universidades e parlamentos, como exaltação indiferenciada dos acertos e penúrias de quem compartilha a mesma etnia e o mesmo gênero, encurrala no local, sem problematizar sua inserção em unidades sociais complexas em grande escala. (2004, p. 22).

 

Transculturalidade

No dicionário, o prefixo trans é associado a uma relação química.

María Laura Méndez nos remete à transdisciplina, como aquele formato no qual as disciplinas ficam em diálogo, apresentando bordas que as diferenciem, mas que são permeáveis, pois conseguem conversar e estabelecer trocas de ideias. A transdisciplina é uma figura na qual as disciplinas não perdem a sua especificidade, interagem e se permitem procurar nas bordas para achar o que lhes é comum e estabelecer encontros possíveis, ou respostas que deem conta de uma situação desde diversos pontos de vista. Propõe um trânsito pelo que é comum, ao mesmo tempo em que estabelece um intercâmbio a partir das bordas, e não se exige que nenhuma disciplina abandone sua perspectiva, nem sua posição. Para instaurar um diálogo, precisam-se de pontos de vista diferentes, porém, para entrar verdadeiramente em diálogo, precisamos poder sair de nosso ponto de vista e ser o suficientemente permeáveis como para escutar o outro e permitir se modificar.

O termo "transcultural" é usado fundamentalmente pela corrente austro-húngaro-francesa de pensamento, que é a etnopsicanálise. Eles combinam um olhar da antropologia conjuntamente com um olhar da psicanálise, ou seja, que trabalham na transdisciplina. Nesse trabalho, a etnopsicanálise propõe a discussão das representações culturais que providenciam um marco na construção das narrativas dos migrantes, cujo propósito é ajudar a estabelecer uma conexão entre o presente e o passado dos sujeitos que migram para outra cultura.

A terapia transcultural baseia-se nos conceitos da etnopsiquiatria fundada por George Devereux (1966). Mais tarde, Tobie Natan (1979) cria o primeiro ambulatório de etnopsiquiatria, na França, no hospital Avicenne em Bobigny, chamado Centre George Devereux, em homenagem ao criador da teoria. Posteriormente, Maria Rose Moro assume a chefia do Centro, em 2001, continuando com o trabalho terapêutico com migrantes na França. A autora relata como tentam criar um diálogo entre a história do paciente, os conflitos internos e os diferentes universos sociais e simbólicos que os atravessam. É uma teoria dinâmica a qual procura uma constante discussão entre o social como contexto simbólico do migrante e sua dinâmica intrapsíquica, e a consequente modificação que apareça a partir do diálogo. Através da mesma, chega-se a renegociar a posição social do migrante.

A terapia desenvolve-se em forma grupal, participando do atendimento a família migrante e um grupo de profissionais (psicanalistas, tradutores, antropólogos, linguistas etc.) que os acolhe. A orientação do trabalho visa a tentar estabelecer pontes entre diferentes universos simbólicos, entre o passado e o presente, entre o espaço interfamiliar e o mundo externo, de sorte a, assim, compreender a particular representação que eles criaram entre a cultura nativa e a cultura do país de acolhimento. Apontam, dessa maneira, uma experiência de conhecimento das diferenças culturais na qual o grupo, de família e terapeutas, possibilita que as experiências de uns e outros se potencializem e enriqueçam. Moro (1998) define a "[...] etnopsicanálise sobretudo como uma pragmática do vínculo e da multiplicidade" (Moro, 1998, p.115).

No encontro com as famílias migrantes, os terapeutas defrontam-se com uma dificuldade de compreensão linguística, das representações culturais e da forma como os migrantes se desenvolvem, no mundo.

A autora sublinha a importância, ao mesmo tempo, da língua materna do paciente e da língua de passagem, o que desenha um trânsito de uma língua a outra, por isso, coloca como tarefa fundamental partir das representações culturais dos migrantes. A possibilidade de falar a língua materna permite uma maior narrativa ao paciente e é um signo de reconhecimento das origens; dessa forma, ao habilitar uma aproximação às raízes, não serão barradas as rotas para conhecer outros mundos possíveis. O uso da língua materna flutua em função da evolução e da elaboração dos conflitos culturais familiares.

No trabalho com os migrantes, apresenta-se um paradoxo porque, por um lado, eles têm medo das diferenças culturais da sociedade que os acolhe e, por outro lado, esse sentimento entra em contradição com a necessidade de serem eles, no exílio, e não viver essa diferença. A possibilidade de aceitar as diferenças culturais como uma diferença criativa enriquece os seres humanos. A etnopsicanálise, como prática psicoterapêutica, tenta desenvolver uma aprendizagem da descentração, a qual propicie aos sujeitos a aceitação de suas produções culturais e psíquicas e de suas maneiras de pensar e viver. Recorrem à capacidade de reconhecer as diferenças, não como um obstáculo que separa, mas como um apelo à complexidade humana que aparece na situação clínica.

 

Interculturalidade

A palavra começa com o prefixo inter, que, no dicionário, é identificado como posição intermediária, reciprocidade, interação, interpondo uma forma de estabelecer uma ponte, uma intermediação, um encontro, para formar uma rede na interculturalidade. Diversas ciências e distintos cientistas têm trabalhado sobre o conceito; tentaremos apresentar alguns, para aqui ensejar a discussão.

María Laura Méndez (2013, comunicação oral) ressalta que, para pensar a interculturalidade, temos que sair da lógica do Um e nos situar na lógica multívoca, a qual pressupõe multiplicidade e devir, e dentro da qual não podem ser feitas totalizações. Essa multiplicidade acarreta sempre diferença e se conforma dentro da heterogeneidade e suas combinações imprevisíveis. Não pode se fazer uma teoria da interculturalidade, porque isso implicaria uma generalização e universalização, o que é impossível. Define a interculturalidade como "[...] uma série de gestos, práticas, que supõem sempre uma situação". Na leitura dos signos que revelem a interculturalidade, podemos nos sentir violentados em nossas representações e modos habituais de reconhecimento. Através da leitura dos signos, enxergaremos outros elementos que fazem parte da situação em relações diversas. A autora concebe toda construção intercultural como uma situação em que a combinação dos elementos é inesperada e complexa. Nomeia o processo como mestiçagem, o que significa falar de uma combinação ou montagem de elementos heterogêneos, em que cada um conserva sua particularidade, dentro da qual permanece a diferença. O conceito representa um diálogo em imanência, em paridade, um diálogo de confiança, criando uma estética de muitas vozes que falam e conversam, se sucedem, se contradizem e, às vezes, também se interrompem. Esse diálogo tem que ser posto em prática, para ter as ideias encarnadas, fazendo-se presentes na pluralidade de pontos de vista, sem que nenhum prevaleça sobre o outro. Na visualização e enunciação das forças de poder se formarão espaços para diferentes processos de subjetivação. A interculturalidade se separa da cultura hegemônica, na procura de diálogos ou gestos interculturais.

A autora salienta que poderíamos esperar que a globalização trouxesse uma certa uniformidade, mas apresenta um paradoxo, já que o produto é outro, porém, o que tem acontecido são diferenças e desigualdades. Todavia, a interculturalidade não pode propor que uma cultura seja superior à outra, apenas diferentes, em diálogo e em situação. Seria imperioso transitar pela descolonização, para conseguirmos deixar a pluralidade de culturas em paridade, em interculturalidade.

Canclini (2004) salienta que a interculturalidade remete à confrontação e entrelaçamentos, porque se trata de grupos entrando em relacionamento e intercâmbio, entre os quais a diferença estabelece relações de negociação, conflito e empréstimo recíproco, respeitando as disparidades. Esse movimento se deve à desestabilização das ordens nacionais e étnicas geradas pela nova interdependência que a globalização suscita. As fronteiras ideológicas e culturais se desvanecem e incrementam a junção de culturas com um desenho particular. Nas conexões, presta-se atenção às misturas e aos mal-entendidos que circulam nos grupos, para tentar compreender como cada grupo se apropria e reinterpreta os produtos simbólicos alheios. A interculturalidade nos permite tornar mais complexas as situações, dentre as quais as teorias da diferença têm que se articular com as concepções da interculturalidade, entendendo interação como desigual, conexão/desconexão, inclusão/exclusão. A política da diferença traz um equilíbrio interpretativo na interculturalidade. O autor menciona uma passagem do multicultural ao intercultural e o descreve: "[...] a passagem que estamos registrando é de identidades culturais mais ou menos autocontidas a processos de interação, confrontação e negociação entre sistemas socioculturais diversos" (Canclini, 2004, p. 40). Assim, abandona o conceito de multiculturalidade, apoiando o conceito de interculturalidade.

Da mesma forma nos trabalharemos com o conceito de interculturalidade, a fim de dar conta dos migrantes em geral e seu trânsito cibernético, territorial e globalizado. No presente trabalho, não aderimos ao conceito de multiculturalidade, uma vez que implica a preeminência de uma cultura sobre a outra; da mesma maneira, não apreenderemos o conceito de transculturalidade, por se apoiar mais nas culturas e em seus atravessamentos sociais, e menos na intersubjetividade e vincularidade do caso a caso.

Privilegiamos o conceito de interculturalidade, já que apresenta as culturas em conflito e em diálogo, ao mesmo tempo, não tentando obstruir as diferenças e sim fazer com que elas conversem e se entrelacem. Essa ideia do sujeito intercultural, contemporâneo em conflito, é compartilhada pela psicanálise, porque Freud parte do pressuposto de que o ser humano é um ser em conflito, sendo o conflito inerente à vida. A interculturalidade também permite ampliar horizontes, dando lugar às diferenças e apontando ao enriquecimento e mudança contínua. Pensamos que o conceito de interculturalidade se aplica tanto à visão dos sujeitos marcados intersubjetivamente por diversas culturas, quanto ao conceito psicanalítico de sujeito do qual partimos na Psicanálise das Configurações Vinculares. Igualmente, temos em consideração o conceito de ajeno que a teoria das configurações vinculares privilegia, deixando espaço para a negatividade radical que pressupõe aquilo novo que surpreende e é conhecido pelo sujeito vincular no aprés coup das situações novas.

Não temos para o termo ajeno uma tradução literal em português, pelo que usamos o termo ajeno, em espanhol. Se for traduzido como "alheio", pode dar possibilidade a uma má interpretação, pelos vários significados que a palavra tem, em português. O termo, tal como usado aqui, inclui os conceitos de estranho, estranhamento, alteridade, diferença radical. O conceito de ajeno é um eixo fundamental na psicanálise das configurações vinculares, visto que descreve a descoberta do outro no sujeito, como ideia de alteridade máxima e de habilitação para mudanças e abertura para o novo que os vínculos permitem, dentro deles. Segundo Berenstein (2004), "[...] a ajenidad propõe uma bidirecionalidade radical, a qual chamaremos de vincular. Na diferença, cada um propõe ao outro uma ajenidad heterogênea e, a partir disso, haverá uma assimetria irredutível" (Berenstein, 2004, p.64). Salienta, nesse trecho, aquela diferença, impossível de ser transposta, que o outro carrega com sua mera presença.

A teoria parte também do conceito de acontecimento, o qual deixa marcas a posteriori nos sujeitos vinculares, ao se defrontar com situações de novidade e diferença em seu trânsito pela vida. Cremos que o termo interculturalidade abarca todas as características antes mencionadas, as junta e amplia, nos casos de sujeitos expostos a vários contextos culturais.

 

Dos diferentes e desiguais aos desconectados

Para trabalhar a interculturalidade, temos que abordar conjuntamente, em uma trama, as semelhanças, as diferenças, as desigualdades e a desconexão. Tentaremos dar conta desses conceitos e da passagem de uns para outros, em função da realidade do mundo atual, no século XXI.

A desigualdade remete a um registro socioeconômico e à diferença remete a práticas culturais. Canclini (2004) salienta que, muitas vezes, as diferenças culturais se inserem em sistemas nacionais e transnacionais de intercâmbio, para tentar corrigir a desigualdade social.

Ao pensar as diferenças na cultura, o autor sublinha que "[...] as culturas têm núcleos ou estruturas incomensuráveis, não redutíveis às configurações interculturais sem ameaçar a continuidade dos grupos que se identificam com eles" (2004, p. 55). Precisa-se então do reconhecimento e proteção dessas diferenças, pela importância cultural e política, já que só na marcação de um espaço para as diferenças é que se fazem possíveis a continuidade e a existência das mesmas.

Pierre Bourdieu (1980) constrói uma teoria sociológica que favorece a leitura da diferença a partir da desigualdade, e faz uso da teoria marxista para repensar o materialismo histórico na arte, na educação e na cultura. Pondera a construção das diferenças socioculturais dentro do consumo e faz uso da cultura para compreender as diferenças sociais, dentro da sociologia do poder. As práticas culturais são pensadas no processo de produção e funcionam como seleção que exclui ou inclui, sem que isso seja abertamente enunciado. Para expor a especificidade da diferenciação e desigualdade cultural, o autor constrói um esquema ordenador que nomeia como a "teoria dos campos", na qual propõe situar ao artista e sua obra dentro do sistema de relações que geram as condições de produção e circulação dos produtos, ou seja, no campo cultural. O campo comum é gerado por um produto e as condições históricas que levaram a essa produção. Os campos culturais que estuda são a ciência, a filosofia e a arte. Dentro dos campos, haveria uma luta pelo poder, para ter a supremacia. A diferença se estrutura na forma de usar os bens que cada classe estabelece e como se relacionam com aquelas obras com as quais compartilham um significado estético comum, estabelecido como a estética dominante. Desse modo, a arte organizaria de forma simbólica as diferenças entre classes sociais.

As ideias de Bourdieu ajudam a compreender o mercado interclasses de bens, mas a sociologia pós-Bourdieu, especialmente Sergio Miseli (1972), Claude Grignon e Jean-Claude Passeron (1991), propõem que esta teria que ser reformulada, para incluir os produtos culturais dos setores populares, os produtos independentes não ligados às condições de vida e a releitura que os locais fazem da cultura hegemônica, tendo em conta seus próprios interesses. A questão que se expõe é como dar espaço às culturas populares e suas manifestações simbólicas e estéticas. Dadas as modificações do social, pelos intercâmbios nacionais e internacionais, as inovações tecnológicas e o neoliberalismo econômico, muda-se o sentido do desigual, pois importam as diferenças dentro dos mercados transnacionais, o que acentua as desigualdades. Substituem-se os termos diferentes e desiguais pelos de inclusão ou exclusão.

Fazemos este percurso histórico das teorias, uma vez que pensamos que as mesmas vão se construindo na história, porém, rastreamos o percurso das ideias até chegar aos conceitos anteriormente explicitados de multiculturalidade, transculturalidade e interculturalidade. Canclini (2004) enfatiza que a forma de enxergar o mundo em níveis que se diferenciavam pelas nacionalidades, a que aludia Bourdieu (1980), é substituída agora pelo conceito de rede. Os incluídos aparecem como aqueles conectados à rede, enquanto os excluídos são os desconectados, que ficam fora do mundo conexionista atual. Não prevalece a pertença, porém, a mobilidade, a desterritorialização, o nomadismo, frente aos quais se dá uma oscilação constante entre o global e o local. Aparecem assim, para o autor, duas populações que habitam o mundo: aquelas que têm maior capacidade de se deslocar nos espaços geográficos e interculturais, e aquelas que ficam fixas com imobilidade. Todavia, entre essas duas populações, veem-se relações complementares, já que aqueles incluídos que são nômades e que resultam enriquecidos só conseguem fazê-lo graças aos que ficam excluídos, localizados, se prestando a serem os duplos daqueles que se trasladam.

Vemos como o autor concebe uma nova forma de se distribuir a população e se estratificar, em função de outros parâmetros; agora, o telefone móvel aparece como o grande objeto do mundo conexionista que permite que os incluídos se trasladem, pois sabem que sempre terão alguém excluído que fica como base, na ponta da linha.

A exploração fortalece-se em um mundo conexionista a partir da imobilidade dos pequenos, e graças à duração com que os nômades acumulam mobilidade e multilocalização. O forte é aquele que antes de tudo logra não ficar desconectado e por isso adiciona conexões [...]. Agora o capital que produz diferença e desigualdade é a capacidade ou a oportunidade para se mover, mantendo redes multiconectadas. As hierarquias no trabalho e o prestígio vão associadas, não só à possessão dos bens localizados, mas ao domínio de recursos para se conectar.

Porém, nós estaríamos errados se olhássemos para esse processo de modo linear. Este mundo hipermóvel aumenta as dificuldades para identificar pontos de enraizamento, regras estáveis e zonas de confiança. A autonomia e a mobilidade se obtêm em troca da segurança [...] O capital social tem-se estendido às relações internacionais, deslocando seu eixo das possessões territoriais aos recursos intangíveis de mobilidade e às conexões. (Canclini, 2004, p. 76).

Identifica trabalhadores procurados por ter disposição conectiva e, ao estar conectados pela rede, não terão limite de horário para trabalhar e podem ser alcançados em qualquer lugar e a toda hora. Esse seria o perfil de homem contemporâneo, procurado para trabalhar nas empresas multinacionais.

Os três modelos - diferentes, desiguais e desconectados - têm que ser pensados em conjunção, já que estão fortemente relacionados e são complementares; com efeito, seriam mais bem descritos como diferentes - integrados, desiguais - participantes e conectados - desconectados. Para Canclini (2004), somente pensando na cidadania como forma contrária à exclusão é que pode se pensar no acesso aos recursos que gerariam capacitação aos indivíduos.

O autor sublinha sua hipótese de trabalho, baseada em

a) permitir que os objetos de estudo e ação de cada campo sejam confrontados, quer dizer, desafiados pelos outros com que têm relação...

b) deixar que dentro da globalização emerjam as perguntas da interculturalidade, das fronteiras que não caem ou somente mudam de lugar, das diferenças e desigualdades não diluíveis na globalização. [...] Em um tempo de globalização, o objeto de estudo mais revelador, mais questionador das pseudocertezas etnocêntricas ou disciplinares é a interculturalidade. O científico social pode, através da investigação empírica das relações interculturais e a crítica autor reflexiva das fortalezas disciplinares, tentar pensar agora desde o exílio. Estudar a cultura requer, então, se converter em um especialista das interseções. [...]. Penso em uma investigação das diferenças que não exclua a desigualdade, um trabalho de campo sobre processos empiricamente localizáveis que não os desconecte das redes transacionais, um saber atento à voz dos atores, sem por isso dissimular as condições institucionais que o legitimam ou financiam [...] Fidelidade e ironia". (2004, pp.101, 118).

 

O conflito intercultural na escola

A problemática citada também atravessa as instituições de ensino, já que elas permanecem como o último lugar social, reduto de encontro de gerações no qual se transmite as gerações futuras aquilo aprendido e construído pelos seus antecessores.

Como coordenadora psicológica de uma escola uruguaia por 16 anos, me defrontei com vários casos de crianças migrantes que traziam a interculturalidade como fator que questionava o médio escolar e não era bem compreendida, nem adequadamente interpretada.

A escola está imersa em uma cultura local e geral e é pensada para ser transmissora das mesmas. Mas quando as várias culturas aparecem nela, as vezes tentam ser apagadas para apelar a uma educação homogênea na qual as diferenças ficam obturadas já que introduzem irrupções ao status quo. Se pensamos na transmissão do conhecimento, não podemos nos subtrair de aceitar e introduzir as diferenças como motor de aprendizagem e como aquela variável que alenta a criatividade e contribui na formação da subjetividade. Só na possiblidade de dar lugar ao diferente, defrontando-nos com as incertezas que o mundo globalizado nos anuncia, é poderemos gerar gerações nas quais a mudança seja um fator predominante e habilitador. O migrante e o diferente trazem ao social, aquilo que atemoriza, Freud já nos falava do umheimlich como aquilo familiar e estranho ao mesmo tempo, porém difícil de considerar na construção de subjetividade.

Usemos um caso clínico para dar maior compreensão ao conceito de interculturalidade.

Carlos vem de Cuba, a família foi acolhida no Uruguai e estão tentando achar um espaço na sociedade uruguaia, país de um pouco mais de três milhões de habitantes, no qual a metade reside na capital: Montevidéu. Uma amostra do patrimônio uruguaio a ser compartilhado por todos é o futebol. No recreio escolar os alunos costumam jogar futebol assim como nas aulas de educação física. Esporte nacional no qual o corpo é colocado em xeque e que transmite o que em Uruguai se nomeia como "garra charrua", fazendo alusão aos índios que moravam nessas terras e que foram dizimados pela invasão espanhola na conquista de América.

A professora de Carlos transmite a psicóloga preocupação pela inserção de Carlos no grupo, tanto nos espaços de lazer na escola, quanto nas aulas de Educação Física. Diz que "ele não sabe jogar futebol. Não compreende o senso da lei e das normas que organizam o jogo coletivo entre pares". Cabe ressaltar que Carlos é um menino de 8 anos, afável, sorridente, carinhoso que tenta entender quais são as normas escolares e a cultura da instituição escolar que abriu as portas para ele. A mãe de Carlos foi citada para tentar desvendar essas dificuldades dele, e nos defrontamos com um grande conflito intercultural, que lido embaixo de outra ótica, poderia ser diagnosticado de forma errada. Celia, a mãe de Carlos, conta que em Cuba o futebol é uma atividade para ser compartilhada nas ruas, as crianças formam bolas com tecidos e papel e jogam todos juntos no espaço social compartilhado. Quando avisada sobre a dificuldade de o filho fazer uma partida de futebol "adequada" aos moldes uruguaios ela fica surpresa. Conta que em Cuba a forma de jogar futebol é altamente comunitária, o objetivo de todos os jogadores é chutar a bola, todos juntos, para tentar fazer um gol. Não existem lugares estipulados para chutar, nem para se posicionar no jogo, a ideia é fazer com que a bola entre no gol e todos possam se sentir ganhadores da partida. Celia fica altamente surpresa quando a psicóloga relata sobre como nas normas locais cada jogador tem um lugar para se posicionar e uma direção para chutar o gol, assim como um proposito individual de bater a bola de um para outro, para depois fazer o gol. Cada jogador tem um lugar designado, no qual permanece durante o jogo e respeita certas normas organizadoras do jogo.

Nos defrontamos aqui com um conflito intercultural que poderia ser erroneamente analisado e interpretado. Desde o ponto de vista uruguaio-ocidental, Carlos não consegue respeitar as leis e seu lugar individual dentro do jogo. Desde o ponto de vista cubano, Carlos faz parte de um grupo social que conjuntamente traça seu objetivo para chegar juntos ao gol e assim sentir a partida ganhada. Será que tem alguma forma de interpretar essa situação que seja a valida e verdadeira? Será que poderíamos diagnosticar Carlos como um menino com dificuldades de adaptação e respeito às leis e a ordem social? Poderíamos confrontá-lo com um diagnóstico de esquizoidia e ou transgressão frente aos limites propostos? Não; estamos frente a um conflito intercultural que de ser explicitado poderia dar compreensão e inteligibilidade as duas culturas que aparecem aqui. Podemos pensar em duas culturas em luta por uma se superpor a outra como a dominadora, ou poderíamos nos aventurar a pensar um diálogo intercultural, onde tenhamos espaço para as diferenças e a possibilidade de nos surpreender frente ao estrangeiro que nos desafia a pensar e sair de nossos conhecimentos fechados e habituais.

O desafio é grande, mas as condições sociais atuais frente as migrações nos desafiam a nos reposicionar e pensar ao respeito. Muitas situações similares estão sendo observadas pelos profissionais que trabalham com a interculturalidade na cidade de São Paulo. Nas escolas paulistas está acontecendo que quando os migrantes se integram e trazem com eles a diferença, o unmeimlich, o novo um conflito se abre frente a incompreensão das diferenças culturais que estruturam a cada sujeito. Pensamos fundamental poder pensar nessas dificuldades porque nos daria uma maior apertura para nos inserir dentro da interculturalidade como modelo mais abrangente, outorgando mais oportunidades dentro da escola como instituição social e cultural.

 

Sujeitos interculturais conectados contemporâneos

O sujeito intercultural faz parte da contemporaneidade, de sua cultura e de seu tempo histórico. As ciências sociais estão nos auxiliando para descrevê-lo e caracterizá-lo. Canclini (2004, p.161) assinala:

[...] as identidades dos sujeitos formam-se agora nos processos Inter étnicos e internacionais, entre fluxos produzidos pelas tecnologias e as corporações multinacionais; intercâmbios financeiros globalizados, repertórios de imagens e informação criados para serem distribuídos a todo o planeta pelas indústrias culturais. Hoje imaginamos o que significa serem sujeitos não somente desde a cultura em que nascemos, mas, desde uma enorme variedade de repertórios simbólicos e modelos de comportamento. Podemos cruzá-los e combiná-los [...]. Os sujeitos vivem trajetórias variáveis, indecisas, modificadas uma e outra vez. Viver em trânsito, em escolhas que mudam e são inseguras, com remodelações constantes das pessoas e suas relações sociais, parece conduzir a uma construção mais radical [...]. As certezas das teorias sobre o indivíduo e a sociedade são postas entre sinais de pergunta pela recomposição das ordens socioculturais que alcançam a todos.

Esses sujeitos interculturais começam a nos habitar a todos, já que sempre estamos atravessados por formas de hibridização entre o tradicional e o moderno, entre o culto e o popular, constituindo-nos como sujeitos mais livres, sem as restrições que antes eram nos impostas pela fidelidade a uma nação, religião, etnia etc.

Por um lado, aumenta a heterogeneidade e as possibilidades de referências para construir nossa identidade, mas, por outro lado, isso cria incertezas. Defrontamo-nos com homens nômades que exaltam a desterritorialização e pensam que, na medida em que os vínculos vão se debilitando, o sujeito sente liberação das ataduras anteriores. Dessa forma, abandonam-se as imagens das pessoas sujeitas a um território fixo, o que aumenta a percepção de um mundo constituído e visualizado em formato de rede.

O autor vislumbra ainda uma tensão entre a exigência de se constituir como sujeitos sumamente flexíveis e a necessidade de se conformar como alguém, com certa especificidade e permanência no tempo. Perguntamo-nos como isso seria possível, porque são duas correntes que circulam na contramão. Essa dupla exigência se transforma em um paradoxo, visto que, neste mundo conexionista, exige de nós sermos suficientemente maleáveis para nos adaptar às situações e culturas, mas, por outro lado, aquele que vive se adaptando e usufruindo novos papéis corre o risco de passar inadvertido e se transformar em alguém desconfiável, por não ter aquela constância que o cerque dentro de uma determinada identidade social.

Os efeitos da globalização também podem ser negativos, sobretudo quando olhamos para os migrantes, dentro do mundo conectado, mas que não têm conseguido se estabelecer; desse modo, a migração aparece contendo mais desenraizamento que liberação, deixando o sujeito exposto a uma situação de vulnerabilidade e solidão, além e aquém do enriquecimento esperado, ao assumir tantos riscos.

Ademais, temos que considerar os migrantes pobres e exilados que lutam por achar uma forma de pertencer, para se sobrepor à violência, gerada pelos estados que os abandonam e os deixam fora do sistema de seguridade social, defrontando-se com uma nova condição, que é a de não poder se manifestar como cidadãos. Aparecem igualmente contradições entre estados nacionais que somente têm competência para legislar localmente, frente ao fluxo de capital global que flui sem regulamento nenhum que garanta a participação dos cidadãos, em nível transnacional. Assim, vemos criar-se um traço antidemocrático, já que o processo de globalização retira dos cidadãos a possibilidade de tomar decisões ativas; ficam isolados diante da interpendência gerada pela globalização que se estabelece entre capital, circulação e consumo de bens. A liberdade para serem sujeitos interculturais se reduz a uns poucos, que são os que administram os grandes investimentos. Dessa maneira, o poder se apresenta como despersonalizado e isso contribui para retirar a identidade da maioria dos habitantes do mundo.

Maria Inês Assumpção Fernandes (2005), salienta como,

[...] atualmente, o mundo de hoje globaliza os lugares e obriga a um rearranjo de fronteiras. Com a reestruturação do espaço cria-se uma nova geografia (econômica, política, etc.) da globalização e há a emergência de uma nova "família de lugares" (Fernandes, M. I. A. Apud: Santos, 1994, p.12). A catástrofe social, no caso de Paris - cidade destruída é metáfora da perda de marcas identificatórias que garantem o laço social, dos sujeitos entre si, com as instituições, nas famílias. O contexto social torna-se incoerente, incompreensível e sem garantias. As regras que governam a interdependência grupal não são mais reconhecidas. As produções culturais, as maneiras próprias de viver, de morar e de pensar, apoiadas nessas regras, fragmentam-se. (Fernandes, 2005, pp.79-80).

Por outro lado, aponta para a necessidade de se estar inserido em um código social, o que faz com que os sujeitos estejam incluídos em uma história, permitindo um trabalho de memória e recuperação daquilo que foi perdido e barrado, para ser recuperado e incluído na cultura dos sujeitos. Perguntamo-nos, junto com a autora, como isso poderia ser feito por parte dos imigrantes que se defrontam com uma perda do cotidiano que os rodeia, a perda da língua que os norteia, o que os deixa em um universo no qual lhes atinge a falta dos códigos comuns que os habilitam a habitar um determinado território, no tempo e espaço. O que se perde na migração é o sentimento de pertencimento outorgado pela habitualidade que dá o morar. A autora salienta como só através do tempo vivido se vai criando um sentimento de familiaridade com o espaço geográfico, paralelamente à experiência de interioridade. Desse modo, o ambiente físico operaria como sustentação da memória, estabelecendo quem somos e de onde viemos, gerando um antes e um depois como uma linha contínua que possibilita ao sujeito se identificar com uma dada cultura e se sentir dela fazendo parte. O morar aparece assim como um sentimento que habilita um pertencimento a um dado espaço, do qual os sujeitos se sentem parte integrante. A autora faz um convite:

Deve-se, portanto, proceder a análises que relacionem a modernidade e a metropolização, a mundialização e a fragmentação do espaço urbano, o que permitiria, quem sabe, o diálogo entre os projetos para a construção dos espaços para a cidade, os projetos da cidade (saúde, educação, urbanismo, cultura) e os projetos de vida. (Fernandes, 2005, p. 80).

Vemos como a proposta abre a uma mobilidade e possibilidade de mudanças ainda dentro do familiar e conhecido, aceitando um movimento de ir e vir, tanto de habitantes quanto das cidades em si.

Instaura-se, nessa perspectiva, uma circulação que permite um trânsito dentro do ir e vir dos sujeitos, construindo a história do morar e habitar a terra. A autora enfatiza como o morar nômade admite um atravessamento de fronteiras e mobilidade, no tempo; além disso, tem-se a mestiçagem como modelo que recria o antigo no lado do atual, nas culturas das diversas etnias que conformam o modo de viver, fazer e morar nas cidades.

Nas instituições escolares a possibilidade de discutir e trazer para dentro do currículo escolar a interculturalidade dá lugar ao diferente como motor de criação e apertura, tanto para aqueles que nos defrontam a pensar nas culturas, quanto para os locais que conseguem inserir a mudança como um código permanente do mundo contemporâneo, ao qual não podemos nos subtrair. Essas mudanças nos defrontam com a incerteza do mundo atual, dentro do qual precisamos nos visualizar; centrando-nos no fato que essas dúvidas que por sua vez abrem e ampliam nosso mundo e nossa possibilidade de nos inserir nele. A possibilidade de transmissão dessa inclusão da diferença e diversidade nos insere em uma educação própria do século XXI como mundo atual e diferente ao anterior. Não estamos assinalando que se trata de um mundo ou forma de olhá-lo nem melhor nem pior, só diferente; essa é a grande aposta que a interculturalidade traz para nós.

Canclini (2004), enfatiza a necessidade de procura de uma interculturalidade que inclua a continuidade dos pertencimentos étnicos, grupais e nacionais, ao lado do acervo transnacional, pois alega que conhecer significa se socializar na aprendizagem das diferenças e na possibilidade de levar à prática os direitos humanos interculturais. Aceder à diversidade implica a articulação da diferença com a conexão, abrangendo o conhecimento do outro, na aprendizagem de lidar com a sua diferença. A expansão das telecomunicações amplia o conhecimento de diversas etnias, grupos e culturas, ao mesmo tempo em que nos põe em evidência aquilo que não vamos poder partilhar com outros, por serem diferentes. Trata-se de salientar a necessidade de criar um espaço no qual possa se organizar a diversidade, dentro da globalização, para que a mesma não crie desglobalização, na exclusão de alguns e a inclusão de outros mais favorecidos.

Propõe retirar o estigma das diferenças, aceitando a estranheza que o outro gera em cada um de nós e a recusa das diferenças pela deposição, no outro, daquilo que negamos em nós mesmos. Ao nos integrar, apesar das discrepâncias, talvez se propicie a passagem da exclusão à conexão e à intercomunicação, dentro da interculturalidade, o que abriria a possibilidade de maior disponibilidade para conseguir viver com as divergências ao lado das coincidências do sujeito intercultural globalizado.

Fernandes (2005, p. 83) salienta:

Seguindo o pensamento de Kaës (1998) e considerando que nossa Cultura supõe um conjunto de subculturas, podemos construir a ideia de que há, atualmente, uma dupla conjuntura no que se refere ao interesse pela diferença cultural: o movimento mundial de migrações e de intercâmbios econômicos nos quais podemos reconhecer objetivos de conquista e de poder; mas também daquilo que está em jogo nas transformações de todas as culturas (intolerâncias raciais, étnicas, religiosas etc.).

Baseada nessa dupla ancoragem, a cultura conteria tanto aquilo que ela é quanto aquilo que lhe é estranho, desenhando um formato que responde à diversidade cultural, no qual se incluem os elementos próprios e os diversos. Através das migrações, surge uma passagem intensa entre aquilo que é próprio para os sujeitos e aquilo que lhes é estranho, que vem do outro diferente. Desenha-se, assim, um caminho de transformação dentro das culturas pressionadas pelo estranho que o estrangeiro traz, nos diversos pontos da terra.

Os sujeitos que fazem parte dessa determinada cultura se constituem em suas realidades psíquicas, ao mesmo tempo, como um fim para si mesmos e como um fim para os outros, no seio desse conjunto social. Desse modo, essa mobilidade psíquica permitiria um trânsito continuado dentro do conjunto.

Fernandes (2005, p. 86) conclui:

Da capacidade de jogar, isto é, de brincar com sua própria cultura talvez derive a qualidade de confronto com a diferença cultural. A Cultura e a Cidade manteriam sempre o estranho, referência fundamental para sua constituição e para a construção e o funcionamento psíquico das pessoas que nela vivem.

Mantêm, ao mesmo tempo, o idêntico e o estranho.

Cultura e cidade. Esquecimento e desconhecimento do morador: mal-estar de um mundo moderno?

Os sujeitos que chamamos de interculturais vão se compondo na passagem por diversas culturas. Essa experiência institui psiquismo a partir da intersubjetividade, no qual as diversas representações vão se entrelaçando internamente, deixando rastros das várias inscrições culturais. As marcas inscritas pelas passagens por diversas culturas compõem sujeitos com aparelhos psíquicos capazes de integrar o diverso e o diferente do lado do igual e conhecido. Porém podemos pensar sujeitos inscritos e marcados pelas culturas que os atravessaram, ou seja, estruturando o espaço transubjetivo como reservatório de cultura, língua e contextos sociais vividos e marcados como experiências. Pensamos um sujeito com inscrições inconscientes tanto no espaço intrassubjetivo, como no intersubjetivo e no transubjetivo, ampliando desse modo a forma de considerar o sujeito na constituição de sua subjetividade.

Assim fica conceituado o sujeito contemporâneo na intersubjetividade, sujeito entre outros e conformando-se com outros, em um mundo intercultural e planetário, constituindo- se dentro de sua cultura e seu tempo histórico, como sujeito "inter", marcado pelo percurso vital de um mundo sempre em movimento, em um ir e vir, contexto que cria o que poderíamos chamar de subjetividade contemporânea intercultural atual.

 

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1 Psicóloga, Doutora em Psicologia Social USP, Mestrado em Psicologia Clínica PUCSP, Membro do departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Projeto Ponte. Rua Araguari 817 cj 91 Moema SP lisettewbr@gmail.com

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