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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. v.28 n.1 São Paulo jun. 2008

 

HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

 

"Testes ABC": origem e desenvolvimento

 

"ABC Tests": origin and development

 

 

Carlos Monarcha 1

Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara

 

 


RESUMO

Este artigo reconstitui a origem e o desenvolvimento dos "Testes ABC", dispositivo destinado à verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e escrita, e considerado capítulo essencial da obra psicológica de Manoel Bergström Lourenço Filho.

Palavras-chave: Lourenço Filho, Testes ABC, Leitura e escrita.


ABSTRACT

This essay presents the origin and development of the "ABC Tests", device destined to verify the necessary maturity for learning the processes of reading and writing, considered to be an essential chapter of the psychological work of Manoel Bergström Lourenço Filho.

Keywords: Lourenço Filho, ABC Tests, Reading and writing.


 

 

Próprio das décadas de 20 e 30 do século XX, o chamado "movimento de testes" introduziu e aperfeiçoou, nos meios científicos nacionais, as técnicas de avaliação e de prognóstico mediante utilização de provas breves e objetivas. Para o contemporâneo do movimento na época, o eminente Antonio Carneiro Leão, os testes psicológicos concretizariam o "sonho dourado da pedagogia" -a formação de classes homogêneas conforme velocidade de aprendizagem e de classes especiais para os então designados, retardados mentais e bemdotados de inteligência. Naquelas décadas, consolidou-se a voga das medidas psicológicas destinadas a elucidar os problemas no ensino na época.

A bem da verdade dos fatos, vivencia-se um fenômeno novo, a saber: a escola de massas. O caso do Estado de São Paulo é um dos mais ilustrativos; com efeito, entre 1907 e 1930, a matrícula geral evolui de 61.512 para 356.292 alunos, o número de classes saltou de 1.828 para 8.129 unidades, conforme estatística de 1930, coordenada por Lourenço Filho, à frente da Diretoria Geral da Instrução Pública no Estado de São Paulo.

De modo geral, presenciava-se a evolução crescente da matrícula escolar, ainda que insatisfatória, acompanhada de aumento de gastos públicos, o que se exigia aumento da eficiência e do rendimento do sistema educacional.

Nesse sentido, um sem-número de intelectuais envolveu-se com a problemática da educação escolar e a eficiência administrativa; movidos por convicções sociais e culturais, desempenhavam o papel de experts em medidas psicológicas, ao produzirem testes com seus manuais de aplicação e publicações congêneres. Ocorreu, então, uma profusão de ações orientadas por valores práticos e sociais, contribuindo para legitimar a Psicologia Objetiva como campo de saber academicamente pertinente e socialmente relevante.

O primeiro manual de aplicação foi de autoria de Medeiros e Albuquerque (1924), intitulado Tests: introdução ao estudo dos meios científicos de julgar a inteligência e a aplicação nos alunos. Essa primeira publicação brasileira do gênero, substituindo dois manuais portugueses em circulação nos meios nacionais -Escala de pontos dos níveis mentais das crianças portuguesas, de Luisa Sérgio e António Sérgio (1919), e Lições de pedologia e pedagogia experimental, de Faria de Vasconcellos (1923).

Na seqüência, eram publicados os seguintes títulos: O movimento dos testes: estudo dos testes em geral e guia para realização do teste Binet-Simon- Terman, de Baker (1925); Testes: escola experimental – testes mentais, testes de escolaridade e programa de testes, de Maranhão (1950); Teste individual de inteligência: fórmula de Binet-Simon-Burt adaptada para o Brasil (Alves, 1928), Os testes e a reorganização escolar (Alves, 1930), e Testes de inteligência nas escolas (Alves, 1932).

O rol de títulos evoluiu rapidamente, com a publicação de Infância Retardatária: ensaios de Ortofrenia, do professor da assim denominada Escola de Débeis do Hospício do Juqueri, de Norberto de Souza Pinto (1928), com prefácio de Lourenço Filho e Sud Mennucci; O método dos testes: com aplicações à linguagem no ensino primário, de Bomfim e colaboradores (1928); Estudo psicotécnico de alguns testes de aptidão (Pernambucano, 1927) e Ensaio de aplicação do test das 100 questões de Ballard de Pernambucano e Barreto (1930); e Testes, de Scarameli (1931); Exame psicológico da criança, de Radecka (1930); Testes ABC, de Lourenço Filho (1933); Alunos-problemas nas aplicações dos testes ABC, de Nascimento (1934); Testes: bases psicológicas da Escola Nova, de Cavalcanti (1935); e Tests: como medir a inteligência dos escolares, Rocha & Andrada (1931); As palavras de um destes últimos autores, Andrada, são significativas para expressar o espírito da época:

Muito haveria que dizer sobre as vantagens, no ponto de vista social, em que se conhecerem e classificarem as mentalidades infantis. Limito-me, portanto, a apenas lembrar que esta classificação constitui o fundamento de toda a organização de ensino que pretenda o nome de científica, bem como de todas as obras de assistência e proteção a menores com finalidades profiláticas quanto ao crime e à loucura. Toda a eficiência do ensino deriva, pois, da organização de classes homogêneas, sem o que não será satisfeita uma das necessidades mais essenciais deste ensino que é forçosamente de preparar o maior número de alunos no menor prazo, para beneficiar a totalidade da população infantil que cumpre educar. (p.11-12).

Nesse quadro de entusiasmo fremente, a Psicologia assim designada, Objetiva, ganhou alta visibilidade nos meios científicos e administrativos nacionais, inserindo-se em definitivo no meio escolar. Assim, institucionalizou-se o "movimento de testes", capitaneado por figuras do porte de Lourenço Filho, Ulisses Pernambucano, Manoel Bomfim, Waclaw Radecki, Clemente Quaglio, Helena Antipoff, Isaias Alves e outros.

Desde os anos de 1920, as teorizações e experimentações de Lourenço Filho colocavam-no ao lado tanto dos críticos da Psicologia clássica, com suas teorias sobre as chamadas faculdades da alma, quanto da psicofísica do século XIX. Para os críticos, a fragmentação analítica da vida psíquica não media a capacidade geral dos sujeitos; mais além, a aparelhagem pesada e complexa dos laboratórios implicava dispêndio de tempo, a presença de experimentadores hábeis e o inconveniente causado pela realização de exames em pequena escala.

Sua primeira incursão no campo do método de testes e medidas ocorreu no início dos anos 20 do século passado, quando ainda lecionava na Escola Normal de Piracicaba, interior paulista, conforme podemos ler no artigo Estudo da atenção escolar, publicado na revista Educação. Bem mais tarde, ao assumir as roupagens de historiador da Psicologia, ele escreveria na terceira pessoa:

Nesta corrente de idéias, M. B. Lourenço Filho [...] começa a ensinar psicologia na Escola Normal de Piracicaba, em 1920. Lecionando também num colégio particular, mantido por uma fundação norte-americana, aí toma mais largo contado com livros de psicologia educacional procedentes dos Estados Unidos, e passa a realizar uma série de pesquisas com o emprego de testes, de que publica os primeiros resultados em 1921. (Lourenço Filho, 1955, p.276).

Tal incursão prosseguiria entre 1922 e 1923, quando assumiu a Cátedra de Pedagogia e Psicologia da Escola Normal Pedro II, Fortaleza, Ceará, e reformou o então ensino primário e normal daquele Estado.

A partir de 1925, já na condição de Regente da Cadeira de Pedagogia e Psicologia da Escola Normal da Praça da República, Lourenço Filho destacouse pela difusão de teorias de aprendizagem baseadas no comportamentismo e modelos curriculares de base psicogenética. Nas palavras memoriosas de um ex-aluno:

Lembram-se com nitidez essas aulas magníficas em que muitas vezes se leu e se discutiu Claparède, de cuja primeira tradução para o português Lourenço Filho, por essa época (em começos de 1928), se havia encarregado. Tanto quanto das aulas, e mais talvez, recordo-me das conversações freqüentes no pequeno laboratório de Psicologia ou nos Corredores da velha Escola, nas quais as teorias do jogo, a passagem jogo para o trabalho, a evolução do interesse, a escola sob medida e outros pontos das idéias de Claparède eram expostos pelo professor sempre amigo e sempre disposto a esclarecer as dúvidas que preocupassem os alunos. (Penna, 1949, p.222).

No jogo de forças e busca de prestígio e, naturalmente, busca de poder social, Lourenço Filho revolveu o canteiro de obras deixado por Clemente Quaglio (Patrono da Cad. 31) e Ugo Pizzoli. De fato, assistido por colaboradores -Noemy Marques da Silveira (pelo casamento, Noemy da Silveira Rudolfer, exocupante da Cad. 2), Branca Caldeira, Odalivia Toledo e João Batista Damasco Penna (ex-ocupante da Cad. 18) -trabalhou no Laboratório de Psicologia Experimental da Escola Normal da Praça com a preocupação, entre outras, de padronizar a mensuração da maturidade psicológica, para exame de escolares analfabetos de seis e oito anos.

Os estudos teóricos e experimentais realizados por Lourenço Filho, na memorável Escola Normal da Praça, foram múltiplos e significativos -testes mentais, inquéritos sobre jogos, influência da leitura e cinema, e posteriormente publicados sob os títulos: Contribuição ao estudo experimental do hábito, Um inquérito sobre o que os moços lêem, A moral no teatro, principalmente no cinematógrafo; e Os testes. Simultaneamente, Lourenço Filho anunciou, por inúmeras vezes, a publicação da Revisão da Escala Barreto-Lima e Revisão Paulista da Escala Binet-Simon, fato não concretizado.

Dentre esses estudos, ganhou corpo a investigação sobre a relação entre a maturidade psicológica e as aptidões necessárias à aprendizagem da leitura e da escrita. Para realizá-la, Lourenço Filho e colaboradores submeteram a exames psicológicos os alunos do Jardim de Infância e das Escolas-Modelos anexas à Escola Normal e, depois, do Grupo Escolar da Barra Funda. Dizia ele, ao justificar sua investigação:

Impressionara-nos o fato de haver algumas crianças fracassado na aprendizagem da leitura, no ano letivo anterior, muito embora apresentassem nível mental igual ou superior ao de outras, para as quais o aprendizado se havia dado normalmente, na mesma classe, com o mesmo mestre, e, pois, com os mesmos processos didáticos. Havia um problema de grave importância para a economia escolar. Intentamos resolvê-lo, primeiramente, para verificação de uma possível maturidade da acuidade visual e auditiva, assunto que, dantes, já nos vinha preocupando de modo particular, pelo estudo da fatigabilidade e interesse na atenção escolar. Retomando as pesquisas, na Escola Normal da Capital, em São Paulo, em breve nos convenceríamos de que elas deviam procurar atingir a estrutura íntima de todo o processo de aprendizagem e não se deter apenas na verificação da acuidade sensorial ou de processos isolados. Seria forçoso, pois, planejar uma série de provas sintéticas, ou puramente funcionais, o que fizemos. (Lourenço Filho, 1933, p.36).

Estimulado pela conjuntura intelectual e científica, Lourenço Filho inicialmente divulgou os resultados das investigações nas seções de comunicações da Sociedade de Educação de São Paulo, nas páginas da revista Educação, órgão da Diretoria Geral da Instrução Pública, na Revista de Biologia e Higiene, no Boletim do Instituto de Higiene de São Paulo, e na Escola Nova, órgão da Diretoria do Ensino.

Toda essa atividade experimental expressava um esforço de objetividade científica destinado a organizar a Psicologia aplicada à educação como campo de saber autônomo, dotado de terminologia e meios de investigação próprios; e, naturalmente, disciplina acadêmica capaz de ensinar conhecimentos experimentalmente acumulados, o que de fato concretizar-se-ia.

Logo Lourenço Filho daria a público dois livros fundamentais, os quais exerceriam larga influência sobre as gerações seguintes -Introdução ao estudo da Escola Nova (1930) e Testes ABC para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e escrita (1933). Com esses livros, tornou-se uma das expressões de uma corrente de idéias em vertiginosa ascensão, denominada pela historiografia acadêmica de "movimento da Escola Nova", um movimento disposto a concretizar as bases da educação moderna, nos meios nacionais, mediante integração da pedagogia com campos do saber em franco desenvolvimento: Sociologia, Higiene, Biologia e Psicologia.

Na concepção pragmática de Lourenço Filho, os exames deveriam ser realizados em condições simples, isto é, com o recurso de testes capazes de aferir rapidamente os atributos individuais. Dizia ele:

De tentativa em tentativa, a psicologia experimental logrou obter meios práticos para as investigações necessárias à classificação dos indivíduos, hoje possível sem longo ou penoso trabalho, por meios objetivos relativamente simples. Esses meios são os testes psicológicos, pequenas provas, sob condições bem definidas, e cujos valores significativos só são fixados depois de investigações bioestatísticas. Por eles não só se chega à organização racional de classes homogêneas, ao ensino seletivo e diferenciado (ou "sob medida", como lhe chamou Claparède), mas ainda à classificação científica dos anormais de inteligência, à organização de classes ou escolas para os supernormais, à orientação e seleção profissional, à discriminação dos temperamentos e aptidões especiais. (Lourenço Filho, 1930, p.19).

Nesse momento de entusiasmo transformador, Lourenço Filho orientavase pelas idéias e obras de autores ligados à escola franco-genebrina de Psicologia: Comment diagnostiquer les aptitudes chez les écoliers, de Edouard Claparède (1929), La mesure du développment de l’intelligence chez les jeunes enfants, de Alfred Binet e Theodore Simon (1931), Psicologia experimental, de Henri Piéron (1926), Tecnopsicologia do trabalho industrial, de Léon Walther (1929), Psychologie et pedagogie de la lecture, de Ovide Decroly (1926) e La pratique des tests mentaux, de Decroly e Buyse (1928).

Mas, sobretudo, sua atividade experimental era impulsionada pela presença ativa, no Brasil, de renomados, então denominados "psicologistas", envolvidos com a propaganda da aplicabilidade prática da Psicologia -Piéron, Walther, Simon, Ferrière e o grande Claparède, intelectuais-cientistas dispostos a levar ao encontro da opinião pública os sobrepoderes da Psicologia Objetiva, como podemos observar neste excerto:

Pois bem, a psicologia, ciência da conduta humana, presta reais serviços a um grande número de disciplinas, principalmente sob o ponto de vista das medidas, da avaliação das funções mentais. Assim é que a Pedagogia aproveitou os dados dessa ciência. Entretanto, não é só na pedagogia que a psicologia intervém. No domínio industrial, por exemplo, temos a seleção profissional, a organização psicofisiológica do trabalho, pela qual são obtidos importantes resultados de ordem econômica. Há ainda exemplos notáveis da aplicação dessa ciência no comércio, em matéria de reclames e publicidade. Essa aplicação se faz também na organização militar, e no campo da higiene mental, sob o ponto de vista da ação dos tóxicos e da psicoterapia. Na organização judiciária, também, o concurso da psicotécnica é importantíssimo para a apreciação do justo valor de um testemunho, assunto muito delicado. São ainda notáveis tais aplicações na técnica do cinema, da telefonia, etc. etc. (Piéron, 1927, p.15).

E, de certa forma, tal como Piéron havia feito, Lourenço Filho exprimiu bem essa mesma convicção:

Convém salientar aqui que a psicologia vai deixando de ser especulação filosófica, para constituir ciência natural, ramo da biologia. Obedece, assim, às condições de evolução de toda a ciência. A princípio era a filosofia a totalidade do saber. A própria matemática lá estava, nesse emaranhado primitivo, encantador mas nebuloso [...] Pouco a pouco, se estabelece e se desprende do pensamento filosófico puro. A marcha é a mesma em todas as ciências. A física, a química, a biologia quase que definitivamente separadas da primitiva explicação a priori da vida e o universo. Os ramos mais complexos da biologia, e a mesma sociologia ensaiam-se agora nessa separação definitiva. A psicologia, ciência biológica, já se apresenta, de vinte anos a esta parte, com foros de estudo científico, fundando-se na observação e na experimentação, tanto quanto as ciências naturais e as físico-químicas. (Lourenço Filho, 1930, p.43- 44).

Diferenciando-se de outras medidas psicológicas, os testes "ABC" produziam um "diagnóstico precoce" do nível de maturidade psicológica e um "prognóstico seguro", com relação à aquisição da leitura e da escrita e homogeneização das classes, em decorrência da classificação obtida.

Exames coletivos de base bioestatística, os "testes ABC", nas palavras do formulador, destinavam-se a captar "a criança real em sua diversidade". Para tanto, eram aplicadas oito provas para avaliação das seguintes funções: coordenação visivo-motora, memória imediata, memória motora, memória auditiva, memória lógica, prolação, coordenação motora, atenção e fatigabilidade. Ao quantificar os atributos individuais em categorias -alunos "fortes", "médios" e "fracos" -ele almejava a efetuação de um ensino diferencial.

Como se poderá verificar pelo Guia de Exame, o material é o mais reduzido possível, e a notação, facílima. O exame completo se faz, em média, em oito minutos para cada criança. A equivalência numérica dos resultados permite fixar um score global de todas as provas, e reunir os alunos em grupos menos heterogêneos, ou seja, em grupos de velocidade de aprendizagem muito aproximada, sem atenção e qualquer outra informação que seja o número de pontos. (Lourenço Filho, 1933, p.56).

O autor categorizava os resultados em quatro grupos: dezessete pontos ou mais -previsão de que o sujeito aprenderia a ler e a escrever em um semestre letivo, sem dificuldade ou cansaço; de doze a dezesseis pontos -a aprendizagem realizar-se-ia em um ano letivo; de oito a onze pontos -o aluno aprenderia a ler e a escrever com dificuldade, exigindo ensino especial; de zero a sete pontos -o escolar era tão retardado, que o ensino comum ser-lhe-ia improdutivo. Com tal dispositivo, Lourenço Filho e colaboradores traziam para si as questões concernentes à desigualdade entre os indivíduos, resolvendo-o com recurso aos métodos experimentais.

Ora, a medida na educação é representada pelos testes. Eles não fazem outra coisa senão estender ao trabalho da escola os recursos práticos, reguladores de nossa atividade, já empregadores e reconhecidos como úteis, em todos os outros ramos do trabalho. Aliás, a necessidade da medida, na escola, sempre foi reconhecida pelos mestres. Que pretendemos fazer quando interrogamos os alunos, quando repetimos as provas e exames quando observamos a conduta diversa das crianças, nestas ou naquelas condições? Pretendemos avaliar até que ponto chegaram os alunos na assimilação dos programas, como pretendemos classificar-lhes a inteligência, ou aptidões [...] o que o teste, antes de tudo, pretende é substituir a apreciação subjetiva, variável de mestre a mestre e, nestes, de momento a momento, por uma avaliação objetiva, constante e inequívoca. (Lourenço Filho, 1933, p.12)

Mais tarde, os "testes ABC" seriam utilizados para outros fins: identificação da deficiência mental e de distúrbios na aprendizagem da leitura e da escrita, além da verificação de aptidões. Escrevia a professora do ensino primário, Iracema de Castro Amarante, colaboradora de Lourenço Filho:

Tais crianças de "psicologia polimorfa" necessitam dum ensino também nessas condições perfeitamente ajustável às suas necessidades individuais. O critério de seleção é, portanto, um critério pedagógico que se impõe na organização das classes escolares. Esse critério é o único, como se vê, que permite o desenvolvimento duma classe segundo seu ritmo; o único que nos poderá proporcionar a "escola sob medida" tão sonhada por Claparède. (Amarante, 1931, p.394).

No clamor geral da Revolução de Outubro de 1930, o interventor do Estado de São Paulo empossou Lourenço Filho na Diretoria Geral da Instrução Pública. Pioneiras e inovadoras, suas ações visavam à substituição de práticas pedagógicas e administrativas rotineiras por procedimentos racionais.

No breve período de 1930-31, ele reformou o aparato administrativo e introduziu práticas de ensino com fundamento na psicogênese. É de então a criação do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA), cuja direção foi entregue a Noemy Marques da Silveira. O SPA contemplava quatro seções: medidas mentais, medida do trabalho escolar, orientação profissional e estatística. Esse serviço técnico encarregou-se da aferição dos testes Binet-Simon e de Dearborn, bem como da organização das classes seletivas de 1º. ano com recurso aos "testes ABC"; para tanto, coordenou a testagem de 15.605 alunos analfabetos, matriculados nos grupos escolares da Capital do Estado (cf. Silveira, 1930).

Por sua vez, Alves, à frente do Serviço de Testes e Escalas da Diretoria da Instrução do Distrito Federal, e Helena Antipoff, na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte, aplicavam os testes ABC, visando à sua padronização.

De trajetória exitosa, o manual de iniciação Testes ABC para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e escrita alcançou doze edições, entre 1933 e 1974, totalizando 62 mil exemplares, tendo sido traduzido para o espanhol, sob títulos diversos -Tests ABC para primer grado (Buenos Aires: Kapelusz) e Tests ABC de verificación de la madurez necesaria para el aprendizaje de la lectura y escritura (Buenos Aires: Kapelusz), e para o inglês: The ABC Test, a method of verifying the maturity necessary for the learning of reading and writing, résumé of the book Testes ABC (Philadelphia: Temple University).

Na Europa, os testes ABC foram divulgados por Radecka (1932) e por Piéron (1931), respectivamente com Les Tests ABC, pour la verification d’une maturité nécessaire à l’aprentissage de la lecture et l’écriture e Un essai d’organisation de classes selectives par l’emploi des Tests ABC (1931).

A partir da 3ª. e 4ª. edições do manual, a Companhia Editora Melhoramentos optou por acoplar a cada exemplar o material denominado Testes ABC: caixa com cem fórmulas individuais; ou ainda Testes ABC: material completo, que era vendido separadamente, nele constando folhas em branco para registros gráficos das respostas, fórmulas verbais, fichas para anotação dos resultados e fichas de avaliação individual.

Em síntese: dentre as práticas psicométricas destinadas a observar e medir atributos e, sobretudo, prever desempenhos, os testes ABC sobrepujaram as demais práticas existentes, por exemplo, a Escala Métrica de Inteligência Binet- Simon, não só pela eficiência de propósitos e resultados como também pela proeminência intelectual de Lourenço Filho acompanhada pela ocupação de postos nos negócios públicos da nação.

Assentado sobre valores práticos e conceitos operacionais, esse instrumento de apreciação de fatores, atitudes e funções psicológicas valia-se de enunciados de perfeita neutralidade, objetividade e universalidade, ao mesmo tempo em que dava suporte às tomadas de decisão no campo educacional.

Tudo isso advinha de sujeitos dispostos a empunhar o estandarte da ciência e, claro, propensos a levar em conta o máximo de distinções individuais. Seja como for, os "testes ABC", enquanto instrumento de seleção de populações escolares, refletem certamente um dos momentos capitais da Psicologia Objetiva no Brasil.

 

Referências

• Alves, I. (1928) Teste individual de inteligência: fórmula de Binet-Simon-Burt adaptada ao Brasil. Bahia: Ginásio Ypiranga.         [ Links ]

• Alves, I. (1930) Os testes e a reorganização escolar. Bahia: A Nova Gráfica.         [ Links ]

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• Amarante, I.C. (1931) A escola renovada e a organização das classes. Escola Nova, São Paulo, v.2, n.3-4, mar.-abr.         [ Links ]

• Baker, C. A. (1925) O movimento dos testes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas.         [ Links ]

• Binet, A.; Simon, T. (1931) La mesure du développment de l’intelligence chez les jeunes enfants . Paris: Sociedade Alfred Binet.

• Bomfim, M. (1928) O método dos testes: com aplicações à linguagem no ensino primário. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves.         [ Links ]

• Cavalcanti, I. A. A. (1935) Testes: bases psicológicas da Escola Nova. São Paulo: Livraria Liberdade.         [ Links ]

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• Decroly, O. (1926) Psychologie et pedagogie de la lecture, de Ovide Decroly. Paris: Felix Alcan.         [ Links ]

• Decroly, O.; Buyse, R. (1928) Pratique des tests mentaux: Atlas. Paris: Felix Alcan.

• Faria de Vasconcellos. (1923) Lições de pedologia e pedagogia experimental. 2.ed. Lisboa: Aillaud e Bertrand.         [ Links ]

• Lourenço Filho, M. B. (1930) Introdução ao estudo da Escola Nova. São Paulo: Melhoramentos. (Biblioteca de Educação, v. 11).         [ Links ]

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• Lourenço Filho, M. B. A psicologia no Brasil (1955). In Azevedo (Org.) As ciências no Brasil. São Paulo: Melhoramentos. v.2.         [ Links ]

• Maranhão, P. (1950) Teste: escola experimental – testes mentais, testes de escolaridade e programa de testes. (11.ed.) Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 18/02/2008
Aceito em: 02/04/2008

 

 

1Professor Adjunto (Livre-Docente) em História da Educação na Faculdade de Ciências e Letras – campus de Araraquara. Organizador com Ruy Lorenço Filho da Coleção Lourenço Filho, disponível na Internet em www.inep.gov.br. Contato: monarcha@sunline.com.br

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