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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.37 no.92 São Paulo jan. 2017

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

Ética da misericórdia: associações com a psicologia

 

Ethics of mercy: associations with psychology

 

Ética de la misericordia: asociaciones con la psicología

 

 

Geraldo José de Paiva1

Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Misericórdia é termo religioso e filosófico, e encaixa-se no conceito de ética. Seu correspondente em Psicologia, em alguma medida, é o perdão. Como termo religioso, procurou-se sua origem no hebraico e no grego. Na discussão filosófica do termo, são aduzidos Aristóteles, Sto. Tomás de Aquino, Espinosa, Schopenhauer, Nietzsche e Comte-Sponville. Como comportamento, misericórdia inclui percepção, emoção, sentimento e atitude, e discute-se sua relação direta com a Psicologia. Por último, em dimensão filosófico-teológica, considera-se a contribuição de Jon Sobrino, para quem a misericórdia não se limita às "obras de misericórdia", mas exige mudanças estruturais, inclusive no papel da Universidade.

Palavras-chave: misericórdia; emoção; atitude; psicologia; filosofia; ética.


ABSTRACT

Mercy is a religious and philosophical term, and can relate to ethics. In Psychology, it corresponds, in some measure, to forgiveness and pardon. As a religious term, its origin can be found in Hebrew and in Greek. To the philosophical discussion of the term contribute Aristotle, Aquinas, Spinoza, Schopenhauer, Nietzsche and Comte-Sponville. As a behavior, mercy includes perception, emotion, sentiment and attitude, and its direct relation to Psychology is discussed. Finally, its philosophical and theological dimension is strongly presented by Jon Sobrino, for whom mercy does not limit itself to the "works of mercy", but demands structural changes, among which changes in the role of the University.

Keywords: mercy; emotion; attitude; psychology; philosophy; ethics.


RESUMEN

La misericordia es un término religioso y filosófico, que encaja en el concepto de ética. Su correspondiente en la Psicología, en cierta forma, es el perdón. Como un término religioso, se buscó sus orígenes en hebreo y griego. En la discusión filosófica del término, que se aducen Aristóteles, Sto. Tomás de Aquino, Spinoza, Schopenhauer, Nietzsche y Comte-Sponville. Como un comportamiento, la misericordia incluye la percepción, la emoción, el sentimiento y actitud, y se discute su relación directa con la psicología. Por último, en la dimensión filosófica y teológica, se considera la contribución de Jon Sobrino, para quien la misericordia no se limita a "obras de misericordia", pero si exige cambios estructurales, inclusive en el papel de la Universidad.

Palabras clave: misericordia, emoción, actitud, psicología, filosofía, ética.


 

 

A ética da misericórdia entre as várias éticas

Discorrer sobre ética é uma empreitada difícil, objetiva e subjetivamente. Objetivamente, porque se vêm acumulando, ao redor do termo, numerosas denominações que não coincidem em todos os pontos: ética filosófica, ética religiosa, ética da situação, ética de responsabilidade, ética de convicção, ética discursiva ou comunicativa, ética hermenêutica, ética civil, ética da libertação, ética empresarial, bioética, ética altruísta, ética analítica, ética construtivista, e certamente outras, dentre as quais, ética da misericórdia... Subjetivamente, porque uma coisa é discorrer sobre ética, outra coisa é viver segundo uma ética. Em particular com respeito à ética da misericórdia, a dificuldade é acrescida com a referência à misericórdia, sobretudo em sua dimensão prática, que vai além de sua dimensão conceitual. Ainda assim, cabe uma reflexão sobre a ética da misericórdia.

 

A misericórdia nas tradições religiosas

O tema "misericórdia" parece alheio à Psicologia, e muito mais próximo às tradições religiosas, como, em primeiro lugar, as do monoteísmo (cristianismo, judaísmo e islamismo), e em segundo lugar, ao budismo. De fato, o substantivo "misericórdia" e seus derivados ocupam lugar proeminente nas tradições monoteístas. Cada uma das 114 suratas do Alcorão, com exceção da nona, se inicia em nome de "Alá, clemente e misericordioso". Os livros sagrados do judaísmo e do cristianismo estão repletos não só do conceito, como da palavra misericórdia e derivados. O Manual de Concordâncias da Sagrada Escritura, da autoria de Raze, Lachaud e Flandrin (1916), editado em Paris em 1851, registra 9 colunas de referências à misericórdia e afins. Comparativamente, termos importantes como "Deus", "Cristo", "céu", "alma" ocupam um número menor de colunas, e "misericórdia" só é superada pelo termo "pecado" (10 colunas) e "coração" (12 colunas). No budismo (Masson, 1975), a compaixão (karuna) é uma aplicação, aos seres infelizes e doloridos, da disposição global de comunhão amigável com todos os seres. A compaixão torna supérfluas a sabedoria e a libertação, e é o resumo e o ápice de toda moral e de toda religião. São muitas as misérias dos homens: dores do corpo e do espírito, cegueira, surdez, nudez, medo, aflição, doença, servidão, fraqueza... Os que conseguiram a iluminação devem voltar aos destituídos física e espiritualmente, tornar-se seu tesouro, sua bebida, seu alimento, seu remédio, seu médico, até o desaparecimento da doença. E a ação deve corresponder à constatação da miséria (Masson, 1975). Como o budismo pode ser considerado um método de desapego e de iluminação, sem referência a uma divindade, a compaixão budista pode ser aproximada da ética filosófica. Historicamente, contudo, sobretudo no budismo japonês, foi-se consolidando a atitude de confiança na compaixão de Amida, cuja invocação faz renascer na felicidade mesmo quem merece ir para o inferno (Masson, 1975), e de sua bodisatva, Kannon, a deusa da misericórdia. A compaixão adquire, pois, um caráter religioso, e, nessa modalidade de budismo, a ética da compaixão talvez possa ser tratada como ética religiosa, e não puramente filosófica. Em nosso contexto, porém, abstenho-me de aprofundar a reflexão da compaixão budista, e volto-me para a misericórdia das grandes religiões monoteístas e das grandes filosofias do Ocidente. Aproximar "misericórdia" de "ética", por isso, suscita, no Ocidente, a questão da natureza da ética, a saber, se faz parte da filosofia ou da teologia. Embora a ética seja uma reflexão filosófica acerca do comportamento humano -e disso são provas as contribuições de Aristóteles, Kant (1980), McIntyre (1999), Comte-Sponville (1995), Cortina (2009) e diversos contemporâneos- não há incompatibilidade conceitual entre ética e teologia, uma vez que as religiões indicam o que deve ser feito e o que deve ser evitado e, mais do que isso, associam a indicação a sanções sobrenaturais. Complementarmente, contudo, lembre-se a posição de Habermas, talvez o filósofo contemporâneo mais reconhecido da corrente iluminista, que defende o caráter filosófico da ética na dimensão do conhecimento, mas invoca a religião para levar o conhecimento à prática (Habermas, 2010). Em todo o caso, o termo "misericórdia" é encontrado principalmente em contexto religioso. Por isso, no caso de estudiosos de raízes judaicas e/ou cristãs, é conveniente buscarem-se a origem do vocábulo no hebraico e no grego.

 

Misericórdia: a origem da palavra

D. Cerbelaud, no Dicionário Crítico de Teologia, de J.-Y.Lacoste (2004), esclarece que a tradução latina de misericórdia, da Vulgata, corresponde ao hebraico "rahamim", plural de "raham", este derivado de "rehhem", o útero da mulher. Em grego encontra-se, por isso, a palavra "splankhna", que se traduz por vísceras. A misericórdia parece, pois, localizada na biologia corporal profunda e lembra o afeto da mãe pela criança em seu ventre. Porém também os romanos conheciam o termo "misericordia" e aparentados, como testemunha Cícero em Pro Murena. O correspondente grego é "éleos", do qual derivam, entre outras palavras, eleemosyne/esmola, em francês "aumône", em inglês "alms". Curioso é o termo francês "aumônier", literalmente "esmoler", que é o religioso que assiste instituições como hospitais, forças armadas e universidades, muitas vezes denominado "capelão". O atendimento misericordioso, por exemplo em hospitais, está por detrás de "Santa Casa de Misericórdia", mais brevemente "Misericórdia", que em francês recebeu o sugestivo nome de Hôtel-Dieu. Aliás, é o comportamento misericordioso que, segundo Stark (1996), explica em grande parte a rápida difusão do cristianismo no mundo greco-romano, por contrastar com o predominante desinteresse dos pagãos pelos fracos e doentes.

 

A misericórdia na Filosofia

A misericórdia, certamente, é uma emoção de pena frente ao sofrimento alheio. É um "sofrer junto", que corresponde à palavra "compaixão". Mas é mais: é a disposição de aliviar ou eliminar o sofrimento do outro, na medida do possível. Misericórdia, portanto, mais que emoção ou sentimento, é disposição para ação, integrando o conceito de atitude. Embora Santo Agostinho afirme que os filósofos estoicos habitualmente reprovavam a misericórdia, pois o sábio não se deixa perturbar (A Cidade de Deus, IX,5), Aristóteles, séculos antes, dedicou ao "éleos" uma discussão na Retórica e na Ética a Nicômaco. A importância de Aristóteles, para o entendimento da misericórdia, reside também na influência que teve em Sto. Tomás de Aquino, o qual moldou por muito tempo esse entendimento na cultura cristã. Define Aristóteles a misericórdia como "certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou penoso, e atinge quem não o merece, mal que poderia sofrer a própria pessoa ou um dos seus parentes, e isso quando esse mal parece iminente" (Souza e Figueiredo 2010). Chama a atenção o componente psicológico invocado pelo Filósofo: não apenas o pesar, mas a percepção de que o sofrimento poderia atingir a própria pessoa ou seus familiares. A misericórdia supõe que as pessoas sejam infelizes sem o merecer, porque se o merecem não há por que receber misericórdia. Ao contrário, a felicidade dos que não a merecem deve provocar a indignação. A misericórdia, ainda, só é possível quando a pessoa não está desesperada, pois o desesperado não está em condição psicológica de considerar a miséria alheia. Em seu tratado das virtudes, Santo. Tomás (Suma Teológica, II-II, q.30) segue de perto Aristóteles, mas estende a discussão à teologia. Em primeiro lugar, discorda de Aristóteles em relação ao status ontológico da misericórdia. Se em Aristóteles a misericórdia é mera paixão, como dor da miséria alheia, em Tomás é uma virtude, enquanto, sem deixar de ser paixão, é elaborada pela inteligência, como desprazer pela miséria de outrem (q.30, a.3), que se desdobra na ação possível. Com efeito, a misericórdia é uma compaixão com a miséria alheia, a que nos sentimos obrigados a socorrer, se o pudermos. Esse trânsito da paixão à práxis consta, tradicionalmente, de listas intituladas "obras de misericórdia". Seria a misericórdia a maior das virtudes? Tomás distingue. Em si, é a maior, porque acode à deficiência do outro. Nesse sentido, ter misericórdia é próprio de Deus, e nela se diz que se manifesta ao máximo sua onipotência. Mas quanto à pessoa que pratica a misericórdia, essa é superada, na relação com Deus, pela caridade, ou pelo amor; mas, na relação com o próximo, é a maior, pois ir em socorro do que falta ao outro é próprio de quem está em situação melhor (q.30, a.4). No século XVII, Espinosa (1979) condena, no tratado da Ética, um termo aparentado com misericórdia, a saber, comiseração (commiseratio), traduzida muitas vezes por "piedade" (pity, pitié, dó), por não ser útil ao sábio, que se guia pela razão e procura fazer por amor ou por generosidade o que as pessoas se esforçam por praticar na tristeza, isto é, por dever ou por comiseração. Na interpretação de Comte-Sponville (1995), Espinosa teria entendido por misericórdia essa mesma disposição, porém solícita e alegre. No século XVIII, diferentemente de Kant quando diz que a misericórdia pode ser um desvio da justiça (Sidekum, 2011), um filósofo que tratou da misericórdia como a atitude fundamental do ser humano é Schopenhauer, que via o mundo como um poço de sofrimentos e considerava a compaixão pelo outro a resposta exigida por essa realidade. A compaixão seria, mesmo, a fonte da justiça, da caridade e da moralidade (Schopenhauer, 1995). Schopenhauer influenciou uma corrente de filosofia diametralmente oposta à sua, representada por Nietzsche (1978, a,b). Esse pensador entendia o cristianismo como a fonte da humilhação significada pela misericórdia, que só pode ser oferecida numa relação assimétrica de poder. Considerada tanto em Deus como no ser humano, a misericórdia é, praticamente, segundo Nietzsche, um ato de soberba da parte de quem é superior e está melhor, e de sujeição da parte de quem é miserável. A misericórdia seria, pois, condescendência e desprezo. Outros filósofos, contudo, mantêm uma visão positiva da misericórdia e da compaixão. Entre os contemporâneos, Comte-Sponville, filósofo agnóstico de raiz católica, em seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (1995), que são dezoito1, dedica um capítulo à compaixão e outro à misericórdia. Essa distinção não deixa de ser interessante, pois habitualmente uma é identificada com a outra. Pergunta-se o filósofo por que, em nossos dias, a simpatia, que etimologicamente é o mesmo que compaixão, é vista com bons olhos, ao passo que a compaixão desperta suspeita. Em sua opinião, isso acontece porque se prefere o sentimento à virtude. O sentimento tem-se ou não se tem; a virtude passa por um juízo da razão. Encontra-se, novamente, aqui a distinção psicológica entre emoção/sentimento e atitude. Para Comte-Sponville (1995), a compaixão se move pelo sofrimento do outro, sofrimento imerecido ou merecido, de um outro inocente ou culpado. A compaixão se torna misericórdia quando o outro é culpado. Nessa dimensão fala-se também em perdão, que é o conceito mais utilizado, hoje em dia, nos estudos psicológicos (McCullough et al., 2005), embora não recubra o conceito de misericórdia. Transcrevendo o autor:

"É cessar de odiar, e é essa de fato a definição da misericórdia: ela é a virtude que triunfa sobre o ressentimento, sobre o ódio justificado (pelo que ela vai além da justiça), o rancor, o desejo de vingança ou de punição. A virtude que perdoa, pois, não suprimindo a falta ou a ofensa, o que não é possível, mas cessando de, como se diz, ter raiva de quem ofendeu ou prejudicou. Não é a clemência, que só renuncia a punir (pode-se odiar sem punir, assim como punir sem odiar), nem a compaixão, que só simpatiza no sofrimento (pode-se ser culpado sem sofrer, assim como sofrer sem ser culpado), nem enfim a absolvição, entendida como o poder - que só poderia ser sobrenatural - de anular os pecados ou as faltas" (Comte-Sponville, 1995, p.92).

Comte-Sponville (1995) se pergunta se a pessoa pode ter misericórdia consigo mesma. E responde que sim. De fato, "cometemos faltas demais, uns e outros, somos miseráveis demais, fracos demais, vis demais", e "podemos nos odiar e cessar de nos odiar" (1995: 92s). Nesse ponto é pertinente uma consideração do psicanalista japonês Takeo Doi, conhecido pelos estudos do amae, confiante dependência do amor dos outros, que seria característica da psicologia japonesa. Diz Takeo Doi (1973), em contexto um pouco diferente, que o cristianismo insiste em que amemos os outros, mas descuida da recomendação de que também aceitemos o amor dos outros. No caso da misericórdia, que perdoemos, mas aceitemos também o perdão, seja pelos outros seja por nós mesmos. Nesse particular, lembre-se que o perdão que se recebe dos outros e de Deus não pode alimentar uma culpa doentia, como se se devesse continuar a pedir perdão para continuar a receber misericórdia. Afinal, como dizia Espinosa, a misericórdia é alegre e, como canta a liturgia da vigília pascal, a culpa é feliz...

 

A misericórdia na perspectiva da Psicologia

Se a misericórdia tem a ver, histórica e conceitualmente, com a ética, e se também a Psicologia tem uma dimensão ética, além do Código de Ética dos Psicólogos (entre muitos outros, La Taille, 2010; Drawin, 1985), resta a ver se a própria Psicologia tem relação mais direta com a misericórdia. Essa consideração refere-se não à disciplina da Psicologia, mas à pessoa, que é o sujeito do comportamento ético ou antiético. Com esse esclarecimento, a Psicologia parece-me relacionar-se com a misericórdia tanto por parte dos atendidos pelo psicólogo, como por parte do profissional. Por parte dos atendidos, a Psicologia relaciona-se com a misericórdia enquanto estão a esperar dela a compreensão de suas dores e de seus problemas, uma luz e uma força para lidarem com eles. Nessa perspectiva, os atendidos esperam, do psicólogo, o que conceituamos como misericórdia. Por parte do profissional, enquanto o psicólogo, estudioso do comportamento humano, está ciente de que sua ciência e sua profissão se debruçam, em larga medida, sobre o sofrimento psíquico das pessoas. Esse sofrimento se manifesta mais abertamente no atendimento clínico, mas também se deixa perceber nas relações interpessoais e grupais, na família, na escola, no trabalho e em outros muitos contextos. Uma atitude misericordiosa do psicólogo é uma resposta do profissional a esses múltiplos sofrimentos. A que comportamentos essa atitude pode levar o psicólogo? Em primeiro lugar a estudar a dinâmica psíquica envolta no sofrimento. Como profissional, não lhe cabe atender ao sofredor com recursos financeiros, medicamentosos e semelhantes. Cabe-lhe acorrer ao sofredor com recursos psicológicos que esclareçam a origem, a evolução e a restauração dos males que o afligem. Em segundo lugar, a atitude misericordiosa inclina o profissional a cultivar a empatia com quem atende, empatia tanto mais necessária quanto mais agudo ou estranho o sofrimento. Sem privilegiar a posição da Psicanálise, diria que a misericórdia estimula um tipo de contratransferência. Se essas considerações são mais evidentes no atendimento clínico, as condições das escolas, dos hospitais, dos ambientes de trabalho e, em geral, dos contextos sociais, são, por vezes, de índole a despertar, no psicólogo, o sentimento de compaixão com o sofrimento humano.

 

A misericórdia no contexto latino-americano

No contexto latino-americano atual, principalmente no ambiente da Teologia da Libertação, o tema da misericórdia tem recebido muita atenção, graças ao trabalho teológico de Jon Sobrino, jesuíta em El Salvador, e professor na Universidade Centro Americana daquele país, na qual foram trucidados seus colegas, também jesuítas, no ano de 1989, por um grupo paramilitar. Entre os seis jesuítas assassinados está o conhecido Ignácio Martín-Baró, estudado na Psicologia Social. Sobrino só escapou porque estava na Tailândia, substituindo Leonardo Boff num curso de teologia. Sobrino erigiu a misericórdia como princípio, em sua obra de 1992, "El Principio Misericordia: bajar de la cruz a los pueblos sacrificados". Somente no Brasil, em anos recentes, foram defendidas diversas dissertações relativas a esse "princípio". Entre elas, a de Elcivan Alencar da Costa, 1999, "A identidade cristã à luz do Princípio Misericórdia, na Cristologia de Jon Sobrino", na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); a de Angelo Avelino Pereira, 2007, "Princípio Misericórdia de Jon Sobrino", na mesma Faculdade; a de Rogério Jolins Martins, "O Princípio Misericórdia", 2008, na Universidade São Camilo. Registre-se ainda o livro pioneiro de José Antonio Trasferetti (1999), "Etica da Misericórdia, na luta pela sobrevivência". Sobrino (1992) propõe a misericórdia como um princípio estruturante da realidade, mais ou menos como Ernest Bloch (2005-2006) propunha como princípio a esperança, e Hans Jonas (2006), a responsabilidade. Adverte que se deve entender bem a palavra "misericórdia", que antes de tudo é ação modificadora das estruturas produtoras de sofrimento. Por isso, misericórdia deve ser distinguida das "obras de misericórdia", que não lhe são opostas, mas costumam não reestruturar a realidade social, que as torna necessárias... A misericórdia, portanto, caminha junto com a justiça2. O princípio misericórdia encontra muitos campos de aplicação. Apoiado na Dissertação de Rogélio Jolin Martins, destaca-se um deles, o do ambiente universitário. Os textos de Sobrino apontam para o espaço acadêmico como propício à misericórdia, por ser lugar de des/coberta, de verdade (a/létheia). Des/cobrir a verdade é analisar causas e propor soluções, dissipar a ignorância e combater a mentira, oferecer modelos, com possibilidades reais, para a pessoa e os grupos sociais, para a economia, a política, as tecnologias, a criatividade artística, em benefício da maioria da população, sem voz e sem poder. Se a Universidade tem a ver com a cultura, o saber, o exercício da racionalidade e o preparo profissional, é, igualmente, uma realidade social historicamente marcada, destinada a iluminar e a transformar a realidade em que historicamente se situa.

 

Conclusão

Embora o tema da misericórdia esteja relacionado principalmente com as tradições religiosas, com suas teologias e com a filosofia, também convém à psicologia interessar-se por ele, uma vez que o comportamento misericordioso ou impiedoso diz respeito tanto ao agente como ao recebedor desse comportamento. Destacamos, na dimensão psicológica, o atendimento clínico à pessoa que sofre e, sem tanta ênfase, apontamos como em outras instâncias que não a do consultório, o sofrimento psíquico pode tornar-se presente na família, na escola, no trabalho, nas relações sociais. A sensibilidade do psicólogo a essas situações de sofrimento pode inspirá-lo a um atendimento profissional repassado pela misericórida. Nesse sentido trouxemos à consideração o entendimento de Jon Sobrino relacionado com o papel da universidade em condições de sofrimento da população, enquanto a misericórdia se exerce antes pela clarificação e remoção das causas do sofrimento do que pela remediação de seus efeitos.

 

Referências

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Recebido: 08/03/2017 / Corrigido: 09/03/2017 / Aprovado: 09/03/2017.

 

 

1 Professor Titular Sênior do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Endereço: Rua Moacir Miguel da Silva 366, casa 9 - Jd. Bonfiglioli, São Paulo, SP. CEP 05595-000.
1 Polidez, fidelidade, prudência, temperança, coragem, justiça, generosidade, gratidão, humildade, simplicidade, tolerância, pureza, doçura, boa-fé, humor, amor.
2 Misericórdia e justiça, quando atribuídas a Deus, levantam problemas difíceis, em parte devido à limitação de nossos conceitos de justiça e misericórdia. Alguns têm procurado nas relações parentais uma analogia psicológica, enquanto justiça é inculcado pelo pai, e misericórdia pela mãe. Pesquisas de Vergote e Tamayo têm confirmado esse encaminhamento psicológico (Vergote e Tamayo, 1981).

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