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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.3 São Paulo  1997

 

ARTIGO

 

Produções significantes: o desenho e a escrita de uma "menina"

 

 

Daniela Waldman TepermanI; Ilana Katz Zagury FragelliII

IPsicóloga; membro da equipe do Lugar de Vida
IIPsicóloga; colaboradora do Lugar de Vida no Projeto Educação Terapêutica em atendimento individual

 

 

Há um tempo em que o sujeito ainda não selou sua estrutura. É um tempo no qual pode-se pensar em uma intervenção na direção de sua constituição. Um tempo fundamentalmente diferente daquele em que a estrutura do sujeito já está decidida e é a partir desta diferença que a intervenção precisa ser concebida.

Em outras palavras, a partir do pensamento estruturalista, e se quisermos assumir qualquer coerência com esse, precisamos ter claro que há o tempo em que o sujeito se estrutura, há o tempo em que são feitas as primeiras inscrições no aparelho psíquico. Há o tempo da infância, em que o sujeito deve se apropriar das marcas significantes inscritas pelo Outro.

Dizer que a infância é o tempo da constituição da estrutura, ou da "estrutura sem selar", como sublinha Coriat (1997), não nos furta a possibilidade de construir uma hipótese diagnostica a respeito dos pequenos que são trazidos ao tratamento.

O diagnóstico na infância assume uma importância radical no sentido em que, ao se dar sobre um tempo de estruturação, pode reconhecer a direção que esta toma e dar à intervenção clínica a possibilidade de agir no tempo mesmo da formação da estrutura, e quem sabe, mudar seu rumo, ou ao menos, alicerçar sua rota.

Desse modo, no Lugar de Vida, trabalhamos com uma hipótese diagnostica. Esta é formulada no decorrer do tratamento e é suscetível a modificações a partir do mesmo. É importante que seja assim, que possamos rever a hipótese diagnostica a partir dos efeitos do tratamento, ao mesmo tempo em que esta é fundamental na direção deste último. Como propomos o diagnóstico na infância, se lá ainda não foi selada a estrutura do sujeito?

Começamos a responder essa questão citando o título de um livro organizado por Laznik-Penot (1991): "O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas." Aqueles que se aventuram por suas páginas possivelmente concordariam que não poderia ser outra a marca na sua capa. Seus autores explicitam toda uma série de questões que, levantadas a partir da clínica com crianças autistas, ensinam aos psicanalistas os meandros, e por que não dizer, os tempos da instalação do circuito pulsional, explicitam a delicadeza dos primeiros encontros com o significante e seus efeitos e falam dos impasses e tropeços que podem ocorrer no tempo pré-especular, nos primórdios da instalação do sujeito.

Sabemos que a neurose, a psicose e o autismo (1) ' designam modos particulares de efeito do significante no corpo do infans. Se pudermos nos debruçar sobre esse modo, em cada caso, poderemos atuar sobre seus efeitos.

Passaremos a discutir os efeitos do significante no corpo de uma criança a partir das inscrições mais primordiais que, através da escuta, pudemos localizar e sobre elas intervir. Sibele - nome que escolhemos para nos referirmos a esta criança - é atendida na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida há trás anos, desde os seus seis anos de idade. Freqüenta as atividades grupais da montagem e, recentemente, iniciou um atendimento individual em educação terapêutica. Sua mãe, além de freqüentar o grupo de pais, é escutada individualmente por um profissional que chamamos de "referência" e que, muito resumidamente, é o responsável por coletar os significantes aos quais cada família é sensível.

Esse artigo é uma síntese realizada por dois profissionais que escutam Sibele e que, por sua vez, estão sustentados pela rede de escuta que a instituição produz.

Inicialmente, o que nos chamou a atenção em Sibele foi o fato de que ela se movimentava ininterruptamente. Quando as mãos seguravam algo, os olhos já estavam em outro lugar. Sibele não olhava, não fixava a visão, seu olhar nos atravessava (havia uma evitação ativa). Era um olhar indireto; ela reagia virando-se ou afastando-se quando uma pessoa se aproximava, o que demonstrava que percebia quando era observada.

Em relação ao olhar de Sibele neste primeiro momento, é interessante o comentário de Jerusalinsky (1993) sobre o olhar do autista: "O autista tem algo que eu chamo de 'alerta indireto' ou 'vigilância oblíqua'. Um autista não olha diretamente, mas ele está sempre vigilante da posição do outro para manter a distância necessária para recompor incessantemente a posição de exclusão que lhe garante sua condição de ser". O autor, ao fazer esta reflexão, poderia muito bem estar descrevendo Sibele neste primeiro momento.

Ainda descrevendo Sibele por ocasião do início do tratamento, observamos que falava algumas palavras soltas mas não se dirigia ao outro. Sua fala era ecolálica e as palavras eram pronunciadas com entonação de voz alterada (modalização tonal). Era freqüente que em suas brincadeiras imitasse apresentadoras de televisão cantando e dançando.

Poderia a agitação psicomotora de Sibele ser tomada como um fenômeno elementar característico da psicose? Os fenômenos elementares são manifestações independentes e caóticas das funções psicológicas. Estes se manifestam de modo autônomo em relação ao sujeito, demonstrando uma redução da personalidade a seus componentes mínimos, daí receber este nome (Jerusa-linsky, 1993). O delírio motor equivale ao delírio propriamente dito, encontrado em psicóticos adultos. Observamos em Sibele a manifestação de: delírio motor, ecolalia (fala não governada pelo campo da palavra) e mimese. A imitação das apresentadoras de TV é um exemplo disso. A mimese é uma movimentação imitativa na qual a criança procura construir uma significação, encontrar algum traço em que se reconheça.

A busca de Sibele por um traço que a represente torna-se patente no desenrolar do tratamento. Discutiremos longamente este ponto, que é o eixo do processo de subjetivação desta criança.

Neste atendimento, levando em conta que não há nenhum indício que aponte para uma etiologia orgânica ou genética do quadro apresentado por esta criança, nos questionávamos acerca de seu diagnóstico. Tratava-se de um caso de autismo ou de psicose? O olhar - melhor dizendo: o não-olhar de Sibele nos confundia. No entanto, após dois meses do início do atendimento, o olhar de Sibele sofreu uma alteração visível. Assim, a evolução deste caso, os movimentos-efeitos do tratamento e a posição dos pais foram muito importantes na verificação de uma estrutura, presente nesta criança, levando-nos a levantar a hipótese de uma psicose não-decidida.

 

UM POUCO DA HISTÓRIA

Maria, mãe de Sibele, é quem foi historizando e trazendo os significantes que "falam" de sua família.

Comparecia às primeiras entrevistas queixando-se. Inicialmente, as queixas faziam referência ao corpo. Queixava-se de dores de cabeça, cansaço, gripe, etc. As queixas, somadas ao relato da gravidez e parto de Sibele, levavam-nos a pensar num quadro de depressão no qual as questões a serem formuladas, por não passarem pela palavra, manifestavam-se no corpo desta mãe.

Chamam a atenção os aspectos da posição desta mãe que se atualizam em Sibele. O real do corpo de Maria nos conta a respeito de sua impossibilidade de simbolização. É deste mesmo lugar que Sibele responde ao Outro, quando, como veremos a seguir, responde às emergências subjetivas com o real de seu corpo. Notamos ainda que há uma certa repetição/presentificação em Sibele do riso/gozo da mãe.

Algo que emocionava sobremaneira esta mãe era a referência a seu primeiro filho (neste momento com treze anos, filho de outro companheiro) que entregara para sua mãe cuidar quando este tinha onze meses. Nesta época, Maria trabalhava e tinha que pagar uma creche, "não ligou muito'(2) quando sua mãe o levou. Desde essa época o filho mora com a avó materna no Nordeste. Há algo situado neste primeiro filho da ordem de um luto não resolvido que retorna sempre que mencionado.

 

O PRIMEIRO SIGNIFICANTE: OS LUGARES...

Sibele vive com o pai, a mãe e a irmã mais nova. Todos dormem no mesmo quarto, na mesma cama (Maria relata que pretende construir mais um cômodo para as meninas pois neste em que dormem não há espaço para camas separadas).

Maria passa a narrar diversas situações que explicitam uma certa indiscriminação nesta família em termos de lugares, funções. Relata que certo dia a filha mais nova dormiu em seu lugar na cama. Parece ficar irritada com este episódio, afirmando que o pai permite que isso aconteça e que é muito difícil quando "um fala uma coisa e o outro tira a autorização". Nós nos perguntamos então: Quem é quem nesta família? Quem manda? Quem dorme com o pai?

Às voltas com esta confusão familiar, Maria começa a falar de seu marido. Até este momento, este pai/marido não aparecia em seu discurso. Em Sibele também não observávamos qualquer referência a este. Nem a presença nem a ausência do pai pareciam marcantes. Sua intervenção na vicia de Sibele parecia não ter grande peso. A partir deste momento começa a se delinear, lentamente, a construção de um "lugar" de pai.

E a respeito deste pai, Maria diz: "Ele é preguiçoso, não quer ficar com as meninas... homem só serre para fazer filho e pagar as contas... precisa dar atenção". Diz que conversou sobre isso com as vizinhas e todas disseram que os maridos não dão atenção.

É interessante que Maria vá checar com as vizinhas o que um pai deve fazer. De certa forma, parece desconfiar que há algo que não opera em relação a este pai. Quando lhe diz que "deve dar atenção" parece dizer-lhe que precisa fazer algo mais. Aqui, faz sentido falarmos em função paterna, na qual o pai (ou qualquer outro, desde que exerça tal função) introduz a descontinuidade, o corte, entra como um terceiro na relação mâe-bebê. Observamos que até esse momento a relação de Sibele e sua mãe era binomial, não havia lugar para um terceiro, um Outro. É interessante pensarmos que através da transferência(3) coma instituição, Maria coloca esta última em lugar de terceiro, de um Outro que pode fazer este corte. E é a partir deste lugar que elevemos pensar os efeitos em Sibele.

A dificuldade em colocar "limites" (entenda-se lei, corte, descontinuidade, Nome-do-Pai) é patente nesta família. Vemos aqui, portanto uma mãe queixosa destas filhas "pirracentas" mas que ao mesmo tempo goza com elas. Se, por um lado, percebe que a falta não está colocada para Sibele e que o pai precisa mudar de posição, por outro, ri quando Sibele "pirraceia" o pai. Relata, rindo, que quando o marido chega em casa, "Sibele apronta e ri do pai, parece que faz isso para irritar". Maria não só autoriza este "aprontar" como confirma a filha nesta posição. É curioso que Maria utilize a palavra "autorização", pois. por um lado, ela "autoriza" a "pirraça" e por outro, desautoriza/ não-autoriza a palavra do pai. Como veremos mais adiante, ao contar sobre o nascimento da filha, observamos que ela desautorizou até mesmo a possibilidade de que aquela criança pudesse ser um menino, conforme o desejo do pai.

Este significante: "autorizar" pode ser facilmente associado a uma das tarefas que dizem respeito à função materna, qual seja, a de transmitir/autorizar a palavra do pai. A função materna inclui os três registros: real, imaginário e simbólico. Ao dar à luz à criança, a mãe está incluída no registro do real. Ao constituir o narcisismo da criança, libidizando-a e incrementando concomitantemente o seu próprio narcisismo, opera no registro do imaginário. E, por último, ao transmitir a palavra do pai para seu bebê, a mãe opera no simbólico.

A mãe de Sibele pôde operar nos dois primeiros registros descritos. Sibele, muito possivelmente, foi um bebê libidinizaclo, o significante "menina" - que mais adiante verificaremos estar inscrito como um poss'vel traço em que Sibele pode se reconhecer - parece confirmar esta possibilidade. Agora, parece que esta mãe falha em sua função simbólica, no momento de transmitir a palavra do pai.

 

O REAL DO CORPO

Em poucos meses de tratamento observamos movimentos significativos em Sibele. Conforme relatamos anteriormente, houve uma mudança qualitativa em seu olhar: da evitação ativa a um olhar dirigido, porém titubeante.

A primeira vez que Sibele interagiu com um adulto foi através de um objeto. A coordenadora de uma das atividades se aproximou dela com um fantoche e surgiu aí um pequeno diálogo, no qual Sibele pedia beijos - "dá bejo" -ao fantoche. Foi o primeiro momento no qual Sibele estabeleceu contato, parece que apenas o contato mediado era suportável. Podemos dizer que o fantoche não demanda nada da criança. Sabemos que crianças psicóticas não respondem, não perguntam, não aceitam a demanda do Outro, mais que isso, não a suportam, e é isso que torna seu contato conosco ainda insuportável.

Na semana seguinte a esse episódio, Sibele teve febre. A mãe diz que esta febre deve ter sido "emocional", pois não havia outros sintomas. Parece que o olhar da mãe está reconhecendo um sujeito... A febre é manifestação de um efeito de algo que foi excessivo e passou pelo corpo de Sibele no plano do real, algo que ainda não pôde ser simbolizado. Lembremo-nos de sua mãe que em um primeiro momento trazia suas questões no real do próprio corpo.

Mais adiante há um outro episódio significativo. Sibele escapa da sala de atendimento e entra numa outra sala na qual uma funcionária da limpeza lhe pergunta seu nome. Sibele responde algo à funcionária, embora não possamos compreender o que diz. Depois deste episé)dio, retorna à sala e começa a se sentir mal, encolhe-se e vomita. Parece que o contato direto com o Outro ainda lhe é insuportável.

 

O SIGNIFICANTE "MENINA"

No início, Sibele tinha o hábito de desenhar em seu próprio rosto e de fazer rabiscos circulares em folhas de papel. Eoi possível a um profissional reconhecer naquela garatuja o desenho do rosto de uma menina e nomeá-lo. Sibele passou a fazer aquele rosto quando lhe solicitavam que desenhasse uma figura humana. Reconhecia ali a significação atribuída pelo adulto e começou a detalhar mais sua produção. Os rabiscos circulares definiram-se nitidamente: olhos, boca, nariz, orelhas, cabelo, o esboço de um corpo já lhe é possível.

Paralelamente, Sibele foi construindo contorno para seu próprio corpo, riscava-o na pele; procurava-se no espelho, voltava a fazer marcas com caneta ou tinta sobre o rosto. Contornava o rosto, separava com outro contorno a boca, e mais outro risco destacava seus olhos. Nesses momentos diante do espelho um traço passou a aparecer insistentemente na testa de Sibele bem como no lugar correspondente na imagem virtual. Optamos por nos referir a este traço como "cobrinha".

Hoje dispomos de recursos para compreender o que ocorreu na atribuição do significante "menina". Poderíamos nos perguntar o que possibilitou que Sibele se reconhecesse neste significante, ou o que levou este profissional a nomear sua produção com o significante "menina" e no com qualquer outro, como boneca, criança, etc. Começaremos pela primeira parte da questão. Inicialmente atribuíamos "menina" aos investimentos maternos, que consistiam em dedicar-se à roupa, e, especialmente, aos cabelos de Sibele.

Recentemente, Maria - em uma conversa informal - contounos que desconhecia o sexo de Sibele até seu nascimento. No entanto, estava certa de que seria uma menina. Essa certeza se opunha claramente ao desejo do pai: um menino. Este chegou a fazer apostas no bairro onde mora de que o bebê seria um menino. Quando Sibele nasceu - uma menina - cumpriu-se a fantasmática da mãe, que desautorizava o pai como participante desta concepção, "ele não sabe fazer menino", o que situa Sibele como resultado da vitória e do desejo da mãe em contraposição ao desejo expulso do pai. Sibele é filha da mãe. Como veremos mais adiante, a "menina" não tem o nome do pai.

A partir destas informações pudemos ressignificar um ato que Sibele repete insistentemente: cortar os cabelos. Estaria em busca do olhar do pai? Ou contestando o investimento da mãe no objeto menina? Em que cadeia este significante se insere?

O investimento de Maria nos cabelos e vestidos de Sibele vem a confirmá-la no lugar de objeto para o gozo da mãe. Há uma inscrição que situa Sibele fora do campo do autismo mas que a aprisiona na fantasmática da mãe, situando-a neste momento como uma criança psicótica.

Em carta à Jenny Aubry, Lacan formula que uma criança implicada como objeto do fantasma materno, realiza a presença deste objeto, e, ao substituí-lo, cumpre a função de impedir o acesso da mãe à sua verdade, e imprime a exigência de ser protegida. Mas é mesmo Lacan quem marca que há diferentes níveis de subordinação ao fantasma materno: "Em resumo, a criança, na relação dual com a mãe, lhe dá, imediatamente acessível, o que falta ao sujeito masculino: o objeto mesmo de sua existência, que aparece no real, disso resulta que na medida do que ele apresenta de real, acha-se oferecido a um maior suborclinamento no fantasma." (grifo nosso)

No lastro dessa colocação, pode-se entender que nem toda criança implicada como objeto do fantasma da mãe tem como único destino a psicose, pois há uma questão relativa ao grau possível de realização do objeto do fantasma. Ainda assim, presa como objeto deste fantasma, Sibele não tem condições de se apresentar como sujeito barrado.

Não podemos nos esquecer que resta ainda uma questão por responder, ou seja, o que levou o profissional da instituição a perceber, e nomear naquele desenho tão primeiro - já que vieram outros mais elaborados - uma menina. Seguramente trata-se de algo da ordem do inconsciente sustentado na rede de escuta que se constrói nas diversas instâncias da instituição. Em tantas atribuições possíveis, esta ressoou.

 

REPRESENTAÇÃO

A partir desta nomeação Sibele foi traçando um caminho no eixo da representação. Incluiu no desenho da menina a marca que fazia em seu próprio rosto: a "cobrinha". Logo passou a usar este traço para marcar a sua presença na Chamada. A Chamada é uma atividade, realizada todos os dias no Grupo Educacional (um dos enquadres oferecidos pela montagem do Lugar de Vida), que consiste na assinatura do nome feita de próprio punho pelas crianças ao lado daquele que já está escrito em letra de forma pelo coordenador. Kupfer (1997) sublinha: "Não se trata apenas de ensinar a uma criança seu nome e o modo de escrevê-lo, esperando que ela o utilize tão somente em sua comunicação. Aqui, espera-se que o nome represente o sujeito, e se torne um significante, singularizando-o. Ou seja, que o designe, como único personagem a portá-lo."

Também durante as atividades do grupo educacional, quando a proposta era recortar palavras que começassem com a letra A, fomos surpreendidos por Sibele, que, na 'Hora da Chamada' passou a assinar seu nome com uma seqüência de três letras A. Enquanto escreve, ela diz: "Sibele", representando com cada uma das letras A uma sílaba.

Em outra atividade, em que se desenhava o contorno dos corpos das crianças em tamanho natural no papel craft, um dos coordenadores, ao ajudar Sibele a colocar uma roupa no desenho já feito, enfeita a produção com uma longa "cobrinha". Ela toma a caneta da mão do profissional e se põe a cortar cada uma das saliências do desenho, formando então uma longa seqüência de letras A. Desde então, passa a escrever seu nome na Chamada e também a assinar suas produções, mantendo juntas as letras A, encadeadas como fazemos na escrita cursiva.

O processo de aproximação ao universo da escrita realizado por Sibele permite que sejam defendidas algumas hipóteses no âmbito de sua constituição subjetiva. Sibele transformou sua marca em letra. De posse do conhecimento ofertado, que poderia funcionar como mero instrumento para a comunicação, produziu um deslizamento significativo no modo de se representar. No après-coup pode-se entender que, desde os primeiros rabiscos circulares ela já buscava uma forma de representar-se.

O movimento da criança conta que foi produzido algo da ordem de uma inscrição. A partir da escuta, o desejo materno pôde operar para delimitar bordas, fazer cortes com a introdução de significances que se inscreveram no corpo da criança (Stefan, 1991). No lastro desses significantes inscritos, encadeamentos foram possíveis: o desenho e a escrita.

Supõe-se que a escuta da mãe, no primeiro tempo do trabalho, tenha sido fundamental para que Sibele fosse incluída em seu "campo de visão". Àquela mãe foi possível um giro de posição, de maneira tal a incluir essa filha de um modo específico em sua fantasmática. Sibele, agora, pode prosseguir na constituição de sua subjetividade e para tal, o significante "menina" é seguramente um eixo, é um significante central que vai incluindo cada vez mais elementos, que vai se encadeando, pouco a pouco, a novos significantes.

Sibele sempre escreve, escreve em tudo e quase tudo que fala. Em alguns momentos avisa que vai escrever e, com a caneta em punho, diz: "Escrever", e segue silabando as palavras que põe no papel. O resultado de sua escrita é sempre uma coleção de letras A que podem estar mais ou menos organizadas. É importante ressaltar que o que ela escreve sobre a marca da letra A pode não ser o seu próprio nome. No âmbito da leitura, atividade para qual também se dedica, é capaz de ler logotipos e reconhecer marcas.

Até aqui, o trabalho tem como eixo a introdução da diferença no interior da produção de Sibele. Não interessa ensiná-la a escrever pelo artifício da apresentação das outras letras do alfabeto, mesmo que acreditemos em sua capacidade de executar tal tarefa. Por que? Porque acreditamos que não se trata de travar uma batalha para que Sibele saia fazendo da escrita um instrumento de comunicação. Que função teria essa comunicação sem que o sistema de diferenças esteja instituído? Sem que as coisas possam ter a marca de sua singularidade? Sem que o outro possa assumir o papel de interlocutor reconhecido sob a marca de sua singularidade? Interessa-nos então, que Sibele possa usar a escrita como instrumento para situar-se, com o maior grau de propriedade possível, na linguagem.

Parece então que as questões concernentes ao diagnóstico desta criança, no momento em que se encontra, podem também ser discutidas do seguinte modo: o que é AAA? Qual o seu valor? Qual o seu estatuto? Ou de outro modo: que tipo de asserção teve o significante sobre o corpo dessa criança que lhe permite esses desdobramentos?

Responder a essas perguntas amplia a nossa condição de pensar a direção desse tratamento.

Na primeira emergência de AAA nada garantia que essas letras grafadas no papel tivessem um estatuto outro que não o de uma emergência arbitrária que apontasse somente para a aquisição de conhecimento. Porém, para que esse par de letras fosse escrito, um longo percurso foi construído: as marcas sobre o corpo e o desenho de si são indícios deste caminho. Sabemos então que se trata de uma emergência que se encadeia.

Sibele usa AAA para designar a si mesma, e nesse sentido essas letras constituem o significante que a representa. Mas AAA serve-lhe também para escrever outros nomes. Deste modo, e se tomarmos AAA como um significante, podemos entender que a marca de Sibele pode também designar outras coisas do mundo. Caberia aqui o seguinte apontamento: se aquele significante que emergiu como "marca própria" de Sibele pode lhe servir também para designar outras coisas do mundo, ele não tem mais este estatuto de "marca própria". Porém podemos entender que aquilo que emergiu como "marca própria", no eixo da representação, é exatamente o que pode designar qualquer coisa do mundo, devido a sua especial posição na linguagem, que a situa, neste momento, como uma criança psicótica.

É possível pensar que o fato de Sibele designar a si mesma na terceira pessoa, (exemplificado na frase que constrói para pedir material a um profissional: "Cola para Sibele"), é um forte indício de que ela constrói sua identidade na posição de objeto, está atada no nível do enunciado, e que as suas produções se dão num campo especular.

Joel Dor (1995), afirma que a relação do sujeito com o significante convocado em sua nomeação é uma relação de identificação, assim, o sujeito só poderá nomear-se na medida em que se identifique com o significante puro, que é o nome próprio, pois algo da ordem do traço unário deve operar para produzir essa significação. Representar-se por AAA, para Sibele, é inaugurar uma posição de sujeito, mesmo que ainda não barrado, é uma enunciação que corta o plano estritamente objetai. AAA não é um atributo do objeto, é a uma emergência não especular na produção de Sibele. AAA é um significante que a representa.

Entendemos que esse AAA é fruto de uma inscrição feita no corpo dessa criança. Porém, é uma inscrição cuja possibilidade de fazer cadeia é reduzida. Jerusalinsky (1996), utiliza uma imagem bastante interessante. Formula que o elástico simbólico das inscrições recebidas por crianças psicóticas estica pouco. O trabalho que propomos para Sibele tem como ponto de partida essa inscrição marcada em seu corpo e que tem podido estender-se.

Restaria uma pergunta a respeito do fato de Sibele usar a marca AAA que a representa (esse dado se confirma quando escreve tal marca e lê seu próprio nome) para referir-se a outras coisas do mundo. A que esta emergência remete?

Para que Sibele fosse capaz de se curvar ao sistema de pura diferença da língua, falada ou escrita, seria necessário que o significante Nome-do-Pai estivesse operando de tal maneira que permitisse que a repetição se processasse sob o signo da diferença e não mais da equivalência.

E nesta direção que nos interessa introduzir a diferença no interior da produção de Sibele. Entendemos que aquilo que a impede de escrever sob o signo da diferença é a maneira pela qual está posicionada na linguagem.

 

UMA FESTA JUNINA...

Maria recentemente realizou algumas mudanças concretas na família. O termo "concretas" faz referência a algo que ocorre na realidade, mas que não necessariamente, como veremos aqui, passa pelo simbólico.

Não tendo o nome do pai, Sibele é reconhecida apenas como filha de sua mãe. Muito precocemente, por ocasião do nascimento de sua filha, Maria assumiu/registrou-a tomando-a unicamente para si. O reconhecimento de que falamos aqui, não se refere apenas a aspectos legais relativos à paternidade, mas à filiação. Esta ausência de reconhecimento repercute numa ausência de simbólico para Sibele, na ausência do significante Nome-do-Pai.

Maria relata um episódio significativo não só em termos do reconhecimento que se põe em jogo, mas também em termos da inclusão da palavra - ou melhor, do olhar - do pai. Enquanto costurava, as meninas começaram a fazer bandeirinhas de festa junina. Pediram barbante para a mãe, e esta última deixou tudo pendurado para o marido ver. Este episódio é um marco no tratamento de Sibele. O que fica confirmado pelo fato de ela retomar a construção das bandeirinhas em diversos momentos, após muitos meses, espontaneamente. A retomada desta atividade indica não só o reconhecimento que houve ali, mas a busca deste, uma e outra vez. Avaliamos que algo da ordem de uma inscrição ocorreu aqui. Houve também um primeiro momento de entrada deste pai como terceiro, reconhecendo esta filha. Este episódio das bandeirinhas tem seu ponto culminante com a primeira - e por ora única - visita deste pai ao Lugar de Vida, justamente alguns dias depois, por ocasião da festa junina.

Segundo Jerusalinsky (1996), uma inscrição ocorre quando a mãe diz "não". O que determina o "não" da mãe é a lei à qual ela está referida: a função paterna. As crianças psicóticas recebem certa marca/inscrição - como no caso de Sibele - mas algumas vezes esta não chega muito longe, o elástico simbólico estica pouco. O trabalho realizado no Lugar de Vida consiste justamente em promover/fabricar situações em que este elástico possa ir esticando-se. Agora, além de receber a inscrição, é fundamental o reconhecimento dos pais, como ocorre quando Maria atribui algo da ordem do "emocional" à febre da filha. Ou ainda, quando a mãe reconhece nas bandeirinhas de festa junina uma produção e as guarda para mostrar ao pai.

Embora o pai comece a ter entrada - comece a se delinear um "lugar" do pai - e Sibele venha apresentando alguns momentos de emergência subjetiva, ainda há um longo caminho a ser traçado por essa família, principalmente na construção e delimitação dos lugares, o que fica ilustrado pelo seguinte ato de Maria: Ela nos conta, orgulhosa, que há agora uma cama para Sibele e outra para a irmã em seu quarto (lembremo-nos de que antes não havia espaço para outras camas neste mesmo quarto. Podemos nos perguntar: o que mudou para que agora haja espaço onde não havia?). Trata-se de um ato, o qual revela efeitos do tratamento, efeitos que vão na direção da discriminação dos lugares que cada qual ocupa nesta família. Na realidade, mais adiante, Maria conta que mesmo com uma cama para cada uma de suas filhas, as coisas continuam confusas, e Sibele insiste em dormir em um cantinho de sua cama. Este ato empreendido por Maria não foi suficiente para gerar uma mudança. Provavelmente porque se trata de uma medida concreta, que se traduz exclusivamente na realidade. Faltam aqui a intervenção e o ato simbólico. Trata-se de um desejo consciente da mãe, mas não de uma resposta a um movimento inconsciente. É preciso que esta mãe se pergunte sobre sua parte nisso tudo e se implique.

 

A ESTRUTURA OSCILA

A busca por uma forma de representar-se é acompanhada por uma diminuição ainda maior da agitação em Sibele e pela possibilidade de sentar-se e realizar uma tarefa. Agora, os olhos que vagavam sem endereço podem focalizar o outro.

Nos diversos espaços do Lugar de Vida, Sibele trabalha - como gostamos de dizer - muito. Produz e produz e produz. Solicita materiais, pede fita crepe para pendurar suas produções na parede e reconhece-as no dia seguinte. Observamos que produz na equipe um deslumbramento, certa sedução, com a produção rica e incessante - porém auto-centrada - que apresenta. Nesta produção, não há descontinuidade ou falta. É por isso que marcamos: produz e produz e produz. Sabemos da importância do ponto final em uma frase para que o sentido possa advir. Sabemos que o fim ressignifica o começo, e que o psicótico está posicionado na linguagem como uma frase sem um ponto final. Na realidade, queremos chamar a atenção aqui para o fato de que Sibele, apesar de movimentos preciosos e de toda a construção significante que descrevemos acima, reproduz uma estrutura psicótica ainda em grande parte do tempo, na qual a falta é obturada, não tem lugar. Esta reprodução é concomitante a momentos em que Sibele aciona recursos para lidar com a falta. Os episódios descritos a seguir confirmam esta alternância de posição em Sibele.

Diante da falta, ou seja, em situações em que Sibele é colocada diante do "não" ou da necessidade de espera, há momentos em que apresenta recursos - o referido elástico simbólico se estica um pouco mais. Como ocorreu no ateliê de música, no qual Sibele queria que as coordenadoras trouxessem a televisão para assistir as "muiéres" (vídeo sobre bailarinas) mas acabou aceitando, após o choro e tentativas de obter o que queria, a fita com a música que havia no vídeo. Mas há também momentos em que se desorganiza, chora, e fica impossibilitada de realizar deslocamentos. Mais que isso, conforme aconteceu no ateliê Contar Histórias, na falta do que queria, Sibele aciona uma "braveza", repetindo falas da mãe, ou seja, é atravessada/invadida pelo Outro materno. Ela ouve a mensagem de forma direta, é tomada pelo Outro. Ela se "veste" do Outro e fala deste lugar.

O fato de, para esta criança, alguns eventos retornarem no real, de nenhuma forma invalidam as conquistas - ainda titubeantes - no campo do simbólico. A estrutura ainda se sustenta de forma precária.

Para concluir, gostaríamos de comentar duas produções recentes de Sibele. Na primeira há uma menina, construída com massinha, que tem cabeça, corpo e membros, além de cabelos e rosto. Esta menina está no centro de uma folha de papel muito enfeitada na qual distribuiu muitas bolinhas coloridas, reproduziu muitas vezes sua marca/assinatura e desenhou cuidadosamente na parte superior da folha as bandeirinhas. Novamente nos aproximamos da época em que se comemora a festa junina. Mas esta não é qualquer ocasião. Sibele traz o tema e se põe a trabalhar. Na outra produção, Sibele desenha bandeirinhas de festa junina no alto de uma folha. Na parte inferior inclui uma menina, e, em seguida, duas outras figuras, dando as mãos para a menina, que ficou ao centro. Abandona o desenho e levanta-se da mesa. É convidada a sentar-se novamente e escrever. Aceita o convite, e com uma caneta - naquele desenho em que já havia uma coleção de bandeirinhas de festa junina e três personagens - escreve A e fala bem baixinho: "pai".

Esta foi a leitura mais recente que Sibele fez da escrita da letra A, e que levou sua mãe a perguntar se estaríamos ensinando Sibele a escrever papai.

Pensamos que ambas as cenas construídas por Sibele fazem uma síntese de seu percurso até o presente momento. Ela percorreu um longo caminho, passando pela construção de sua imagem corporal, pela extensão de uma inscrição, pela construção de uma marca. A festa junina, ainda, remete a um primeiro momento de inserção do olhar-palavra-presença do pai.

Como vimos acima, já nos é possível afirmar, do ponto de vista diagnóstico, que o significante Nome-do-Pai não está operando, pois a repetição de AAA não produziu diferença no interior do sistema, o que permitiria que diferentes palavras fossem escritas sob uma marca distinta das outras. Porém, este dado não é suficiente para que afirmemos que a estrutura já se selou. Ainda não sabemos se esse pai/AAA, que Sibele escreve, e que incide no discurso da mãe, vai operar como uma Metáfora não Paterna, e funcionar como suplência para estabilizar a psicose de Sibele, ou se poderá ainda se instituir como Nome-do-Pai, operando uma mudança de estrutura.

Há ainda um certo percurso a ser traçado e atravessado por toda essa família. Faltam ainda algumas festas juninas...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AUBRY, J. (1986). Duas notas sobre a criança. Publicado originalmente em Ornicar? In: Revista do Campo Freudiano, n. 37. [tradução de Silmia Sobreira para uso interno da Escrita Freudiana, jun. 1986]         [ Links ],

CORIAT, E. (1997). Psicanálise e Clínica de Bebês. Porto Alegre. Artes e Ofcios.         [ Links ]

DOR, J. (1995). Introdução à leitura de Lacan - estrutura do sujeito. Porto Alegre. Artes Médicas Sul.         [ Links ]

JERUSALINSKY, A. (1993). Psicose e autismo na infância: uma questão de linguagem. In: Psicose - boletim da associação psicanalítica de Porto Alegre, ano 4, n. 9.         [ Links ]

JERUSALINSKY, A. (1996). Seminários proferidos no Instituto de Psicologia da USP.         [ Links ] KUPFER, M.C. (1997). Educação terapêutica. In: Estilos da Clínica - revista sobre a infância com problemas, ano 1, n° 2.         [ Links ]

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STEFAN, D. (1991). Autismo e Psicose. In: O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas. Salvador. Álgama.         [ Links ]

 

 

(1) É importante ressaltar que não estamos considerando o autismo como uma classe dentro das psicoses. A discussão dessa questão , de modo algum unânime, não será realizada nesse trabalho.
(2) Os fragmentos grafados em itálico fazem referência a falas textuais.
(3) Para ilustrar como começa a ser delineada a transferência, introduzimos o seguinte exemplo: Maria acredita que se Sibele ficasse sentada, quieta, poderia ir para a escola. Afirma que primeiro é melhor ela vir ao Lugar de Vida, "onde se entende sobre seu problema", para depois procurar uma escola. Espera receber orientação no L.V.