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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.7 no.13 São Paulo  2002

 

ARTIGO

 

O fracasso escolar na clínica com crianças e adolescentes1. Educação: entre o impossível e o necessário

 

The student's school failure in the children and teenager's clinic

 

 

Ruth Helena Pinto CohenI; Vera Lopes BessetII

IMestre em Psicologia - UFRJ, doutoranda do Instituto de Psicologia da UFRJ, membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise - RJ
IIDoutora em Psicologia Aplicada - Paris V; professora e psicanalista

 

 


ABSTRACT

O evento freudiano não deixou sem marcas o ato de educar, seja em sua vertente formal, que inclui n ação pedagógica, seja na educação da criança praticada peía família. O próprio fato de aceitarmos intervir, com a psicanálise, em transtornos dessa ordem indica que vislumbramos, de antemão, uma articulação entre o sujeito do conhecimento, descrito pela lógica aristotélica, e o sujeito do inconsciente, efeito da articulação significante do qual a psicanálise se ocupa. Neste texto, abordamos o fracasso escolar em suas relações com os processos psíquicos inconscientes, em sua vertente lógica de funcionamento. Para tanto, partimos da premissa de que as tensões que se originam nas articulações entre o impossível c o necessário podem, através cia inibição de funções cognitivas, traduzir-se em fracasso escolar.

Fracasso escolar; inconsciente; sujeito; psicanálise; educação


ABSTRACT

The freudian event left its marks in the education act, or in the formal orientation, which include pedagogic action, or in the family education. Our acceptance to take a part on that, with the psychoanalysis, shows that is possible an articulation between knowledge's subject, described on the aristotelic logical, and unconscious's subject that results from the significant articulation studied by psychoanalysis. In this text, we approach the student's school failure in its relations with the unconscious psychic processes, in its logical source of functioning. For that, we start from the premise that the tensions which are originate in the articulation between the impossible and the necessary can, through the inhibition of cognitives functions, be expressed by student's school failure.

Student's school failure; unconscious; subject


 

 

A partir da fala de seus pacientes, o fundador da psicanálise encontrou um tipo de saber específico, que emergia dos tropeços dos discursos. Tropeços que apontavam para um dizer para além dos ditos, uma enunciação para além dos enunciados. Saber, que não se sabia a si mesmo, presente também nos sonhos, nos chistes e nos sintomas, saber que trouxe enigmas ao próprio campo do conhecimento científico.

A antinomia entre saber e verdade se impôs como um fato, provocando uma revolução no saber instituído de sua época. A descoberta freudiana, então, funcionou como um corte epistemológico, apontando para a transmissão de um saber característico dos processos inconscientes e delimitando, a partir dessa especificidade, o campo da psicanálise.

Mais tarde, com Lacan, a questão do saber através da lógica do significante encontra seus limites no conceito de gozo - aqui entendido como o que vai além do princípio do prazer. O saber como meio de gozo (Lacan, 1991) tem sua raiz na repetição sob a forma de traço unário, termo extraído do texto freudiano e articulado por este autor em sua dimensão de perda.

Se o evento freudiano não deixou sem marcas o ato de educar, seja em sua vertente formal que inclui a ação pedagógica, seja na educação da criança praticada pela família, que questões podemos extrair desses conceitos para refletir sobre o fenômeno do fracasso escolar com o qual somos confrontados em nossa clínica com crianças e adolescentes? O próprio fato de aceitarmos intervir, com a psicanálise, em transtornos dessa ordem indica que vislumbramos, de antemão, uma articulação entre o sujeito do conhecimento descrito pela lógica aristotélica com o sujeito do inconsciente, efeito da articulação significante do qual a psicanálise se ocupa.

Neste texto, abordamos o fracasso escolar em suas relações com os processos psíquicos inconscientes, em sua vertente lógica de funcionamento. Para tanto, partimos da premissa de que as tensões que se originam nas articulações entre o impossível e o necessário (Cohen, 1999) podem, através da inibição de funções cognitivas, traduzir-se em fracasso escolar.

Os impasses do educar, essa tarefa para Freud impossível, ficam bastante explicitados no caso clínico que discutimos adiante. Nele, destaca-se a questão da angústia, assim como os modos de transferência implicados no fazer do educador e do psicanalista diante dos mecanismos inconscientes de uma criança que chegou ao consultório do psicanalista, a partir da queixa de fracasso escolar. Antes de abordarmos a clínica, explicitamos algumas elaborações teóricas que servem de base à nossa reflexão.

 

COM ARISTÓTELES: O IMPOSSÍVEL E O NECESSÁRIO

Aristóteles, filósofo, discípulo de Platão, sentiu fracassar seus esforços de educador com o jovem Alexandre da Macedônia. Este, desde os 13 anos de idade, demonstrou sua vertente ineducável, tomado pelo ardor de seus desejos ou "paixões ancestrais", entendidas por Aristóteles como passividades (pathos). A virtude era vista não como aptidão, mas como um hábito adquirido: o educável. Escapava ao esforço do Mestre poder domar o vulcão que irrompia, rompia e como sujeito barrava o "Outro" do saber.

Apesar de ter abandonado a filosofia para dominar o mundo, Alexandre nutria enorme afeição pelo filósofo, amava-o como a um pai. Talvez possamos inferir que a grandiosidade intelectual do Mestre tivesse um equivalente na grandiosidade do poder unificador das conquistas do imperador, que sustentava financeiramente as pesquisas realizadas no Liceu de Aristóteles. Coabitavam aí poder e saber. Paradoxalmente, também no Liceu, mestres e alunos passeavam juntos pelas alamedas, sendo estas chamadas de "perípatos" e "peripatéticos" aqueles que passeiam - o que deu origem à Escola Peripatética - demonstrando um tipo de relação professor-aluno bastante específica da época, mas que no entanto subsiste até hoje.

Se concordarmos com Durant (1926), diríamos que Sócrates deu a filosofia à humanidade, enquanto Aristóteles foi o precursor da ciência. Este, nomeado por muitos autores como o fundador da lógica formal pelo fato de ter estabelecido regras de raciocínio independentes do conteúdo dos pensamentos, entretanto, utilizava o termo "analítica" para o estudo dessas formas de pensamento (Primeiros e segundos analíticos) (Chauí, 1994).

Temos, em Aristóteles, a definição das proposições lógicas quanto à modalidade em: necessárias; não-necessárias ou impossíveis, e possíveis. Vejamos, em resumo, do que se trata:

• necessárias: proposições cujo predicado está na essência da coisa, fazendo parte de sua substância; exemplo: todo triângulo é uma figura de três lados;

• não-necessárias ou impossíveis: proposições cujo predicado não pode ser atribuído ao sujeito; exemplo: nenhum triângulo é uma figura de quatro lados;

• possíveis: proposições cujo predicado pode ser ou não atribuído ao sujeito; exemplo: alguns homens são justos. Incluem-se nessa categoria as contingentes, campo das ações humanas em sua ética.

 

FREUD: ULTRAPASSAR O PAI

Freud, em Um distúrbio de memória na Acrópole (Freud, 1936), aponta para as críticas da criança ao pai e para o modo como a desvalorização toma o lugar da supervalorização do início da infância. Levanta a hipótese de que a essência do êxito consiste em ter realizado mais do que o pai realizou, o que muitas vezes torna-se proibido. Nesta conexão com algo que se impõe como proibido, a realização de uma tarefa pode tornar-se impossível através da inibição de alguma função.

Esse problema levantado por Freud tem, na hipótese de um autor contemporâneo (Sauret, 1998), o seguinte estatuto: um certo fracasso escolar manteria o sujeito protegido da ameaça que o desejo dos pais pode trazer. Tomando por base essa questão, seria possível supormos que, através de um relativo fracasso, o sujeito se manteria a distância de um lugar ameaçador, que responderia ao desejo dos pais e salvaria, assim, um desejo próprio?

Nesse sentido, o professor, em sua relação com o aluno, poderia encarnar para este o substituto parental, ao qual se dirige a demanda de amor e de cujo desejo a criança precisa, muitas vezes, se defender. Teríamos, então, como conseqüência dessa situação transferencial, o aparecimento da dificuldade de aprendizagem na criança como tentativa de estabelecer uma certa distância do desejo do mestre e de salvaguardar um desejo próprio.

Concordamos com Sauret, para quem o fracasso escolar teria origem na problemática dos pais. Estes tenderiam a conceber o fracasso de seus filhos como deles mesmos, sentindo-se, assim, desvalorizados por suas notas ruins. Sendo assim, podemos apontar para a assertiva de Freud em seu célebre texto sobre o narcisismo (Freud, 1914), quando afirma que os pais tendem a atribuir todas as perfeições aos filhos e a ocultar todas as deficiências deles. Trata-se de "Sua Majestade o Bebê", como outrora os pais se imaginavam.

Se tomarmos o fracasso escolar como uma forma de restrição ligada à renúncia ao êxito, poderemos pensar que esse mecanismo seria uma forma de evitar o conflito do eu com material do isso, entendido como o reservatório das pulsões. Nesse sentido, podemos entendê-lo como ligado à inibição, apoiados na definição que dela faz Freud em seu texto sobre Inibição, sintoma e angústia (Freud, 1926). Neste, ele fala dos casos em que, não se permitindo ter êxito ou lucro em uma determinada tarefa, o sujeito colocaria a inibição a serviço do mecanismo de autopunição. Trata-se de um processo ligado ao severo supereu com o qual o eu evitaria conflito.

A inibição, tal como Freud a define na mesma ocasião, tem uma relação especial com a dinâmica das funções e não implica necessariamente em uma situação patológica, o que seria característica do sintoma. A inibição, para ele, está ligada às funções do eu e pode assumir diferentes formas nas neuroses: inibição sexual, de nutrição, de locomoção ou de execução de um trabalho. O fracasso escolar, como uma forma de limitação imposta ao eu para se proteger da angústia (Angst), vista aqui como sinal de um perigo, poderia ser pensado como a expressão de uma parada do pensamento e da ação (Besset, 2000).

Assim, se, por um lado, inferimos com Freud que impossível seria ultrapassar o pai, por outro lado, o necessário seria exatamente o laço com o pai, o Édipo, a inclusão da interdição como possibilidade de criar um mito individual para o sujeito. Se for necessário um pai para que haja filhos e a interdição para que haja lei, poderíamos ressaltar que o mecanismo de recalcamento está diretamente ligado às premissas da educação e da cultura num sentido mais amplo? Se o material que sucumbiu ao recalcamento é o material que foi esquecido, represado, e pode retornar, a relação do mesmo com o que no sujeito se revela como ineducável parece se impor.

Ao se interrogar sobre as impossíveis tarefas: governar, educar e analisar, Freud apontou para o ideal da educação e para algo que escapa dos discursos e que insiste em suas formações, na repetição inconsciente - o indestrutível desejo. Nessa vertente freudiana, como o professor pode ser interrogado em sua função, levando-se em consideração que há um certo fracasso em toda transmissão de saber? Mas o que se transmite?

Ao observar as investigações das crianças que acabavam se transformando em teorias sexuais infantis, Freud (1908) concluiu que o desejo de saber servia para nada saber do que viam. Essa recusa em saber muitas vezes aparece na criança como uma impossibilidade de entrar em contato com temas que tocam em pontos delicados de sua subjetividade.

Este autor não preconizou a erradicação do mal pulsional como forma de educar, mas apontou caminhos, indicando algumas saídas para a educação necessária. Num de seus textos tardios sobre o tema, encontramos: "As diretivas a favor da aplicação da psicanálise à educação mudaram. Esclareçamos nossas idéias a respeito da tarefa imediata da educação. A criança deve aprender a ter controle sobre suas pulsões. É impossível conceder-lhe liberdade de seguir todos os seus impulsos sem nenhuma limitação" Freud (1932-33, p. 138). A educação necessária ficaria, desse modo, a meio caminho da não-interferência e da frustração. Por outro lado, é ainda o autor que indica como impossível que o mesmo método educativo seja uniformemente bom para todas as crianças.

É exatamente nesse fio (ou intervalo) que caminhamos, entre o impossível e o necessário, na tentativa de investigar o momento lógico em que o fracasso se fixa e pode transformar-se numa solução de compromisso sintomática. Por outro lado, concluímos, com Freud, que não há processo educativo que não deixe um resto pulsional diante do qual o sujeito da cultura sempre sente um certo horror. Temos aí o mais além do princípio do prazer explicitado pela pulsão de morte. Como conseqüência, o isso "mal-educado" deverá ser suportado, sendo o escoamento de seu material viabilizado através de trilhamentos que não produzam maior mal-estar do que aquele inerente à própria cultura.

 

LACAN: UMA LÓGICA DO INCONSCIENTE

As tensões entre o educável e o ineducável nos instigam a pesquisar sobre a lógica do inconsciente ou, se quisermos dizer com Lacan, a lógica do sem-sentido. Este não-senso foi definido por ele como material do Isso que se presta a confusões e que se baseia nos significantes que constituem o sujeito do inconsciente.

Este autor vai trabalhar alguns conceitos da psicanálise através de uma formulação intermediária entre a lógica aristotélica, que é uma lógica da linguagem, e a lógica formal matemática, que é uma lógica da escrita. Verificamos também que, ao utilizar as modalidades necessário e impossível de Aristóteles, Lacan deu a esses conceitos uma aplicação própria. A lógica foi definida por ele como a ciência do real, ou seja, ligada à noção de impossível. Para sustentar o conceito de real como impossível, Lacan encontrou alguns pontos na obra freudiana:

no processo primário do inconsciente, quando a alucinação do seio não dá conta de satisfazer totalmente a fome, instalando na criança um sinal de desconforto. Trata-se do primeiro impossível para o processo primário;

no fato de que o seio que vem ao encontro do bebê não coincide com aquele que ele alucina. Trata-se, portanto, de um segundo real, o objeto já irremediavelmente perdido.

Para Morel (1995), Lacan aproxima Aristóteles de Freud. Mais precisamente, o laço necessário com o pai, no contexto do complexo de Édipo, de Freud, à lógica do universal, do todo, baseado no princípio da contradição, de Aristóteles. Ao mesmo tempo, indica que Freud deixou em aberto o enigma da feminilidade e que Aristóteles deixou fora da elaboração de seu silogismo o conceito de não-todo, incluído por Lacan em suas fórmulas de sexuação. O conceito de não-todo de Aristóteles fornece a Lacan, em vários momentos de sua teoria, subsídios para precisar, por exemplo, o lugar da mulher como não-toda, a fórmula do pai - existência de um que diz não à função fálica - e a escolha da estrutura, entre outras coisas. Ao trabalhar o conceito de pulsão em Freud, Lacan (1973) definiu o impossível como real por sua dessexualização, por ser o real o que faz obstáculo ao princípio do prazer.

Se, para Freud, a categoria do "impossível' diz respeito ao "ultrapassar o pai", todavia Lacan (1973) a define como o que é do registro do Real, como o que escapa a toda definição e abordagem pelo Simbólico: "Impossível é o que não pára de não se escrever", estão aí incluídos o objeto a e "A mulher". Este autor opõe a categoria do impossível à do "necessário", definido nesse momento de suas articulações teóricas como "o que não pára de se escrever".

 

PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: DE QUE SUJEITO SE TRATA? UM CASO CLÍNICO

Um menino de 8 anos, após três convites para se retirar de escolas, encontra uma que o suporta. Mesmo sendo aceito, as transferências negativas suplantam as positivas em muitas situações: bate na professora, desafia as autoridades e costuma fazer jogos sexuais com colegas no banheiro da diretora. Freqüentemente, passava fezes nas paredes do banheiro do colégio e fugia da sala de aula, negando-se a executar tarefas. Tinha dificuldades para ler e escrever. Por outro lado, possui enorme habilidade manual, talento para a música, é bastante esperto em suas observações e, quando gosta de alguém, se mostra afetuoso.

Na situação analítica, de início, tentava mostrar o quanto era perigoso e destruidor. Numa sessão onde encenou sua força destrutiva, encontrou um dizer que não esperava:

- "Isso não é você! Não adianta tentar amedrontar-me como você faz com as pessoas. Eu quero te conhecer. E você?"

Por encontrar-se atualmente desarmado e sabedor de que aquele espaço é só seu, demonstra saber bem o que isso representa, trancando a porta do consultório com chave e certificando-se de que o pai não o escuta da sala de espera. Após algum tempo de tratamento, apresenta-se de forma menos agressiva, colocando toda turbulência nas brincadeiras e nos jogos, sempre de guerra, descrições ou catástrofes nas famílias de bonecos ou de carros. Costuma ir ao banheiro durante as sessões, colocando o objeto fezes em seu preciso lugar.

Nas sessões, a inscrição da falta faz a regulação do gozo do Outro2 através dos cortes das sessões que, no início do tratamento, eram sempre questionados por ele, nos limites dados pelos jogos e pela disponibilidade de escutá-lo sem valorizar mais ou menos o que é trazido para a analista. Recentemente, descobriu que sabia ler, surpreendendo-se com a leitura de um objetivo num jogo de guerra. Em estado de júbilo, perguntou à analista qual seria a reação de sua professora se tivesse ouvido aquilo? Ao que lhe foi respondido que mostrasse a ela, pois só assim saberia a resposta.

No ambiente escolar, o gozo, aqui tomado como o que excede ao equilíbrio do prazer, fica em desalinho, sem limites ou vias possíveis de escoamento, quando o professor encarna para ele o Outro absoluto do saber. Em outras palavras, o professor encarna para ele o perigoso ideal, que lhe aponta o lugar de insuficiência ou de debilidade. Não saber escrever traduz-se, neste caso, em não querer escrever. "Isso, não cessa de não se escrever". Não escrever é, aqui, equivalente a não saber. Talvez possa, assim, manter-se distante do desejo do Outro.

Atualmente, esse menino encontra-se num momento de mudança de posição subjetiva, que poderíamos indicar, esquematicamente, como a saída da posição de objeto degradado para o Outro à posição de sujeito falante. Numa das últimas sessões, ao brincar de forca, ele põe a analista a decifrar palavras difíceis e tenta enforcá-la através do desenho. Primeiro desenha um olho, depois outro, como se evitasse essa morte. Mas exatamente nesse lugar, do morto que dá as cartas, colocou-se a analista quando o menino retirou de sua mochila da escola uma corda, demonstrando, com riqueza de detalhes, como se morre enforcado, utilizando seu próprio pescoço. Ouviu da analista: "O que mais você pode fazer com essa corda?" Retirou-a do pescoço e amarrou na cintura. "Uma faixa de judô", respondeu. Depois, amarrou a corda no carrinho que transporta o material da escola e disse: "Posso fazer uma alça dando um nó e assim andarei bem longe da mochila".

O menino parece começar a construir seus próprios mitos a partir de um certo recalcamento dos representantes pulsionais. Está aprendendo a ler e escrever. O necessário vai fazendo o escoamento pulsional. O recalque aparece, nesse caso, como condição de acesso ao saber. Esse fato fica explicitado na vergonha de falar de sua enurese e na vergonha que demonstrou quando a mãe, numa sessão com ele e o pai, contou que ele guardava fezes num pote. A explicação dada por ele é que era "para examinar depois".

Foi possível constatar que a aproximação do início das aulas provocou no paciente enormes transtornos. O desejo de "nunca mais estudar" surge em relação à iminência do confronto com situações de conflito: com outras crianças, com suas deficiências de rendimento escolar e com o professor, sem mesmo ainda conhecê-lo.

Lacan (1962) aponta para o estatuto da angústia como fenômeno e enfatiza a relação deste com a função do objeto do desejo. Nesse caso clínico, o aparecimento do sinal de angústia, que ocorre mais fortemente no período em que se aproxima o início das aulas, toma o paciente de sensações que denomina "calores na barriga", sentimentos misturados com saudades do pai, que está longe e que cada vez menos o vê. Diz que para acalmar-se usa um recurso que descobriu sozinho, qual seja, tomar banho e tentar controlar-se. O que faz essa criança angustiar-se e o que significa o retorno às aulas?

Um fator relevante no caso é que, ao mesmo tempo em que o menino melhora seu desempenho na leitura e na escrita, agride as crianças de sua sala tentando esburacá-las com a ponta do lápis ou com os dentes. Diz que não consegue se controlar quando alguém o irrita. A agressividade diante de o pequeno outro especular, o quer dizer?. Lacan, ainda no seminário sobre a angústia, esclarece a presença do objeto na fantasia como algo que não se projeta, que não se investe enquanto imagem especular. Isto, pelo fato de estar no mesmo plano do corpo próprio, do narcisismo primário, ao nível do auto-erotismo ou de um gozo autista.

No texto de Freud sobre a inibição, o sintoma e a angústia (Freud, 1926), encontramos a dimensão tópica da angústia, em que o eu é o lugar onde o sinal de um perigo toma corpo. Esse heim, que significa lugar ou casa, é estranho e precisa ser destruído na constituição do corpo próprio desse menino. Se o eu é um outro, como afirma Lacan (1978), seguindo Rimbaut, ao referir-se ao estádio do espelho, nesse caso clínico, ao se constituir, a subjetividade toma a forma da agressividade - o eu ou um outro. Na lição de 5 de dezembro de 1962 do seminário sobre a angústia, Lacan (1962) postula que A (Outro), situando a função reflexiva do espelho, desvaneça diante desse objeto que eu sou - disso que eu me vejo -, o que apoiaria a hipótese da tentativa de separação com esse Outro através da agressividade.

Inúmeras questões poderiam ser abordadas nesse caso, mas chegamos ao momento de concluir, corte necessário na delimitação do que nos interessa ressaltar nesse contexto.

 

CONCLUSÕES

Os termos educação e psicanálise delimitam áreas do saber, que relacionam disciplinas voltadas para a intervenção com crianças e adolescentes enquanto sujeitos em processo de estruturação. Dinamizar a interdisciplinaridade através das discussões teóricas e clínicas, que auxiliem na interface desses dois campos de atuação, parece ser um meio eficaz na viabilização de uma educação possível e de uma psicanálise no mundo. É a partir da suposição de que a educação encontra-se no nível de tensão entre o impossível e o necessário que podemos pensar a criança ou adolescente diante da demanda do Outro social (Família, Escola, Estado).

Se a renúncia pulsional, que opera recalcando os representantes pulsionais, é fruto da educação, entretanto sabemos também que nem tudo pode ser recalcado. Trata-se da insistência do desejo, da barreira exercida pela linguagem à função da fala que expõe a singularidade dos sujeitos, segundo Lacan. São efeitos significantes, frutos de uma lógica própria do inconsciente.

A psicanálise maneja, na transferência isso que escapa, aquilo que, como formação do inconsciente, emerge dos discursos. O educador, ouvinte do discurso consciente, do dito, do enunciado, não tem como tarefa ater-se aos entreditos que apontam para um dizer, como lugar de verdade que, para a psicanálise, é sempre não-toda. Mesmo assim, sabe que é suporte de saber e que, no caso de se identificar com o mestre, fará de seus alunos, produtos de um discurso, objetos pequenos "a", encarnando o resíduo recalcado de uma mestria - Família/Escola/Estado3.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em novembro/2001.

 

 

1 Texto relativo à dissertação de mestrado defendida pela autora e orientada pela co-autora. Refere-se, igualmente, à pesquisa em andamento sobre "A angústia na clínica hoje", com apoio do CNPq e realizada no âmbito do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia do Instituto de Psicologia da UFRJ.
2 No Seminário RSI, de 1974/1975, Lacan elabora o nó Borro me a no, localizando a inibição no registro do imaginário, a angústia no do real e o sintoma no do simbólico. Os gozos são efeitos das interseções: gozo do sentido (l/S), gozo do Outro (R/I), gozo fálico (S/R).
3 O tema é trabalho na tese de doutorado que a autora desenvolve atualmente, sob orientação da co-autora, na Linha de Pesquisa 'Inconsciente e Subjetividade' do doutorado em Psicologia do IP/UFRJ sobre o tema 'Fracasso escolar: uma questão ética e política', com apoio do CNPq.