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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.9 n.16 São Paulo jun. 2004
DOSSIÊ
Maternidade contemporânea: novos significantes, velhos desejos
Contemporary maternity: new concepts, old desires
Rafaela Carine Jaquetti1; Rosa Maria Marini Mariotto2
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
RESUMO
A partir de uma pesquisa realizada no alojamento conjunto de uma maternidade da região metropolitana da cidade de Curitiba, PR, dois resultados encontrados se destacam: no discurso das mulheres-mães entrevistadas, o temor à subtração equiparou-se com a preocupação do saber ser mãe e a amamentação é entendida como ato que garante a elas sua “função de exclusividade” como operação do desejo junto ao filho. E, é na perspectiva psicanalítica, que este trabalho encontra dispositivos teóricos para discutir esses aspectos.
Palavras chave: Psicanálise, Lactente, Amamentação, Desejo.
ABSTRACT
From a study carried out in the joint quarters of a maternity located in the metropolitan area of Curitiba, PR, two results, taken from the dialogue of the interviewed womenmothers, stand out: the fear of having their child stolen was compared to their concern of knowing how to be a mother and breast-feeding was understood as an act that guarantees them their “function of exclusivity” as an act of desire with their child. And, it is in the psychoanalytical perspective,that this paper finds theoretical devices to discuss these aspects.
Keywords: Psychoanalysis, Infant, Breast-feeding, Desire.
“Todo e qualquer bebê humano encontra-se ao nascer em um desamparo primordial – é longo o período de tempo durante o qual o jovem da espécie humana está em condições de desamparo ou dependência. Sua existência intra-uterina parece ser curta em comparação com a da maior parte dos animais, sendo lançado ao mundo num estado menos acabado [...] O fator biológico, então, estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a criança durante o resto de sua vida” Sigmund Freud, 1926
Há pouco mais de um ano a Pontifícia Universidade Católica do Paraná, por meio de seu projeto pedagógico, propiciou a realização de uma pesquisa intitulada “O alojamento conjunto como ambiente facilitador no desenvolvimento psíquico do recém-nascido”. Um parêntese acerca desta proposta pedagógica: os alunos, desde o primeiro ano, fazem estágios curriculares, o que os remete a um lugar de protagonistas no processo de aprendizagem. Este lugar desperta, para alguns, o desejo do saber e, em conseqüência, o de pesquisar. Este artigo propõe a reflexão sobre alguns aspectos levantados na discussão dessa pesquisa.
Durante os meses de março a maio de 2003 foi realizada a coleta de dados no Hospital e Maternidade Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, entidade da Aliança Saúde PUC-PR. Participaram da pesquisa 30 mulheres cujos partos haviam ocorrido nas 36 horas anteriores – amostragem que corresponde a 13,70% dos partos realizados no período. Naquele momento o objetivo era verificar se o alojamento conjunto favorecia a interação mãebebê. Para tanto elaborou-se entrevista aberta que abordava temas como a percepção da mãe em relação a estar junto do filho 24 horas por dia, a interferência do sistema de alojamento conjunto na privacidade da díade, a representação simbólica do filho para a mãe e a existência de um estabelecimento relacional particular entre mãe e bebê.
Durante a análise e interpretação dos dados emergiu do discurso daquelas mulheres-mães um primeiro dado muito interessante acerca da maternidade: o temor à subtração equiparou-se à preocupação do saber ser mãe. Uma parcela significativa de mães, 20%, qualificou o sistema de alojamento conjunto como bom por evitar que seus bebês fossem roubados.
Cabe ressaltar que esse dado é surpreendente, principalmente por ser encontrado num sem-querer. Aspectos que só foram evidenciados a partir do foco sobre o discurso das mães; que encontraram na psicanálise lugar para uma legítima discussão.
Coriat (1997) ressalta que o olhar da psicanálise diferenciase por ser um olhar que lê, que busca no discurso do analisando os significantes que originam e dão conta da imagem apresentada em cena. E é justamente sobre estes novos significantes que emergem da subjetividade materna em nossa contemporaneidade que iremos nos debruçar.
SER MÃE E TER UM FILHO: O ROUBO DE BEBÊS
No texto sobre a feminilidade, Freud (1933) trabalha com a idéia de que desejar ser mãe e desejar ter um filho são construídos em tempos diferentes. Desejos estes que carregariam toda a história fantasmática infantil tecida pelo ser humano ao longo de sua existência. Dessa forma, ainda na fase pré-edipiana, a menina construiria o desejo de ser mãe, fruto do processo de identificação com a mãe originária, do tempo anterior à castração e movida por um amor obstinado. A realização deste desejo seria ilustrada pelas brincadeiras de boneca, em que a menina dramatiza o papel de mãe.
Já no Édipo, a menina construiria o desejo de ter um filho. A figura da mãe passaria a funcionar, após a descoberta da diferença anatômica entre os sexos, na condição daquela a quem falta alguma coisa, de quem a menina herdou esse mal e de quem, portanto, conviria se afastar. A menina põe-se em busca daquilo que preenche o desejo materno. É nessa nova organização, agora sob os efeitos da castração, e numa atmosfera de profunda hostilidade à mãe, que a menina formularia a fantasia de ter um filho com o pai, sendo este o único capaz de repor o que lhe falta – por meio do filho –, pois já havia feito a mesma reposição para sua mãe, a maior rival.
Considerando essa tese, pode-se dizer, que o filho viria, muitas vezes, preencher o vazio, acelerando o processo de luto. Não é apenas, porém, a fenda produzida pela falta estrutural que leva uma mulher a desejar um filho, mas outros vazios, deixados pelas perdas ao longo da vida (como abortos, morte de alguém próximo, perdas profissionais, etc.). Esse filho poderia ainda ser idealizado, mascarando ou compensando a solidão, a pobreza, a ausência de planos, perseguindo a ilusão da completude.
Inicialmente, é necessário deter-nos sobre o que vem a ser a maternidade e quais processos psíquicos estão aí implicados. Recorremos novamente a Freud para tentar responder a estas questões: “Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo... o indicador digno de confiança constituído pela supervalorização... domina sua atitude emocional” (Freud, 1914, p. 5). Desta maneira a perfeição atribuída ao filho funciona como um renascimento do narcisismo abandonado pelos pais – é o amor pela imagem de si mesmo. A criança é então inatingível, herdeira de toda satisfação possível, o lugar que assegura aos pais o ponto mais sensível de seu sistema narcisista: a imortalidade do ego. “O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior” (1914, p. 7).
Garcia Roza (2001) denota que é em sua relação com o filho que a mulher, exatamente pelo seu tipo narcísico de escolha, pode estabelecer um amor objetal completo. A criança por ela gerada, por ter sido parte de seu próprio corpo, dá lugar a um amor objetal completo, apesar de, uma vez gerada, passar a consistir em um objeto externo.
Aí é interessante pensar que o narcisismo está ligado diretamente à questão da morte subjetiva, uma vez que paralisa o sujeito numa imagem ideal: dificilmente o filho real atenderá à demanda imaginária materna. Sendo assim, o nascimento de um filho tanto encarna a realização de um ideal quanto reatualiza a falta estrutural – já que sem ela não haveria desejo de ter um filho. Sobre isto Garcia Roza (2001) diz que o objeto do desejo é um objeto perdido, uma falta, e que esse objeto perdido continua presente em sua negatividade, procurando realizar-se por meio de uma série de substitutos que formam uma rede contingente mantendo a permanência da falta. Acrescentamos ainda Lacan, que afirma ser o desejo “um elemento que está necessariamente em impasse, um elemento insatisfeito, impossível, não reconhecido” (1964, p. 73).
Assim, ter um filho desperta sempre na mãe essa ambivalência entre ter nos braços seu objeto a e ter nos braços esta “coisa” que vai sempre lembrá-la de sua existência faltante. Neste degrau é que se encontra o desejo inconsciente de subtração. É evidente na mãe a presença simultânea, em sua relação com o mesmo objeto (bebê), de tendências, de atitudes e de sentimentos opostos, fundamentalmente o amor e o ódio – conforme conceituam Laplanche e Pontalis (2001).
É importante lembrar que no período em que as entrevistas foram realizadas a mídia veiculava intensamente casos de roubo de bebês. As histórias relatadas eram muito semelhantes: mulheres que se diziam enfermeiras levavam o bebê da mãe sob o pretexto de realizar algum procedimento de rotina e nunca mais voltavam. O caso Pedrinho talvez seja o mais conhecido, apenas a título de rememoração. Este aspecto – veiculação da mídia – surge como um dispositivo cultural essencial que vai ao encontro do desejo inconsciente das mães e que mantém a ambivalência. Daí o surgimento deste novo dispositivo no discurso materno contemporâneo: perder o bebê já não é mais um desejo que se tem, escondido a sete chaves; ele passa a ser um acontecimento comum na sociedade atual. A censura que deveria surgir como “função que tende a interditar aos desejos inconscientes e às formações que deles derivam o acesso ao sistema pré-consciente-consciente” (Laplanche & Pontalis, 2001, p. 64) é desautorizada, e o desejo, subsidiado pela cultura, prevalece.
Além disso, vale refletir também sob o ponto de vista daquele que rouba o bebê, em que parece tratarse de uma maternidade puramente narcísica em que o que vale é o objeto, e não o processo. O árduo caminho percorrido pela mulher até alcançar a maternidade, implicaria quebras narcísicas. No entanto, este funcionamento no estilo “ligação direta” é, aliás, bastante comum nos tempos atuais, em que há uma primazia do objeto imaginário e se busca conquistá-lo pela lei do menor esforço, mesmo que em detrimento de outros. No império do narcisismo há uma dificuldade em se fazer valer uma Lei para todos. Não nos furtamos à idéia de que isso circula desde há muito, a diferença é que girava em torno de um ideal maior – matar em nome de Deus, por exemplo. Agora o ideal é matar ou roubar em nome de si mesmo.
AMAMENTAR: FUNÇÃO EXCLUSIVA DA MÃE
Um segundo resultado relevante da pesquisa trata da amamentação. A maioria das mães, 83%, estava amamentando seu filho. Na análise qualitativa verificou-se que os pontos positivos sobre a amamentação no sistema de alojamento conjunto apontados pelas mães revela fortemente o desejo de amamentar, e não apenas o de suprir as carências nutricionais do bebê. As mães revelam, no discurso, sua função de exclusividade – “Amamentar é uma exclusividade da mãe, qualquer um pode fazer mamadeira” (sic).
Tanto as questões acerca do roubo de bebês quanto da amamentação como função de desejo revelam a subjetividade que vem a se instalar no complexo biológico chamado bebê.
Essa função de exclusividade ao amamentar e o desejo materno de amamentar vão ao encontro da experiência de satisfação, conforme denota Jerusalinsky (2002, p. 56): “O cálido fluir do leite materno” deixa como efeito mais do que a satisfação orgânica da necessidade. Ocorre um registro psíquico desta experiência de satisfação que modificará para sempre a relação do bebê com o estímulo endógeno proveniente da necessidade orgânica. Aqui vale recorrer a Winnicott, citado por Nasio (1995), com a função materna de apresentação do objeto – a apresentação do seio. Essa oferta, do seio, começa com o que Winnicott denomina “primeira refeição teórica”, que também é a primeira refeição real. Dada a extrema imaturidade do recém-nascido, a primeira refeição não assume, a priori, a significação de uma experiência emocional, mas, “em razão de um estado vital na criança e graças ao desenvolvimento da tensão pulsional, a criancinha passa a esperar alguma coisa; e então surge alguma coisa que logo assume uma forma, é a mão ou a boca que se estende naturalmente para o objeto” (1995, p. 186). Durante esta primeira refeição, a mãe apresenta o seio ou a mamadeira no momento em que o bebê está pronto para imaginá-lo, e, portanto, para encontrá-lo. Ao oferecer o seio mais ou menos no momento certo, ela dá ao bebê a ilusão de que ele mesmo criou o objeto do qual sente confusamente a necessidade. Ao lhe dar esta ilusão, a mãe permite que o bebê tenha uma experiência de onipotência. Em outras palavras, durante esse período de dependência absoluta, a mãe, que age de maneira que esteja disponível diante de uma excitação potencial do bebê, permite que este adquira, no decorrer das mamadas, a capacidade de assumir relações estimulantes com as coisas e pessoas. Assim, o ser humano torna-se capaz de experimentar emoções e, pouco a pouco, de realizar ações específicas que propiciem prazer.
O bebê encontra-se absolutamente incapacitado de realizar uma ação específica que cause satisfação – não só por sua dependência física, mas pela falta de um saber previamente inscrito acerca do que lhe convém. Ele requer a ação de um agente externo, que, como indica Freud, não é um “outro qualquer, mas um agente que se coloca em posição bastante prestativa para esse bebê” (1905, p. 8).
Na falta do instinto no humano, o circuito que leva à ação específica só pode ocorrer por meio da leitura que o agente materno – essa pessoa experiente, como afirma Freud, e esse Outro encarnado, como situa Lacan – realiza, com seu saber consciente e inconsciente, a partir do choro do bebê, por exemplo, tomando este choro como a ele dirigido e outorgando-lhe significação.
A partir de tal percurso, fica situado como a constituição psíquica e o desenvolvimento não são efeito de puros estímulos sensoriais, mas da sujeição destes ao crivo simbólico, à rede significante do Outro encarnado na mãe. É sobre as manifestações reflexas que a mãe pode ancorar a suposição de desejo e de demanda no bebê ao tomar as produções corporais deste como a “fala” de um sujeito a quem ela empresta a palavra. É isto que possibilita aos aspectos constitucionais do bebê (como os reflexos arcaicos) serem sustentados em uma rede significante a partir da qual podem fazer algum sentido. A mãe atribui a autoria da produção do bebê, supondo um sujeito onde havia apenas reações involuntárias.
Dessa maneira, o que opera no bebê não é um automatismo estímulo- resposta, é um circuito de demanda e de desejo, no qual, para além do objeto físico em questão, o agente materno supõe um sujeito no bebê e a este se dirige, fazendo-o destinatário desta mensagem (Jerusalinsky, 2002).
Dolto (1977), citada por Nasio (1995), denota que durante os primeiros meses de vida é necessário que “haja uma única pessoa para servir de relacionamento eletivo do bebê, a fim de que ele se centre em seu próprio interior”. O lactente se constrói por meio das referências carnais e pela comunicação da linguagem. “Ele se escora numa mãe co-ser, num espaço-tempo humanizado por vínculo de co-vivência. Desde os primeiros dias está ligado à mãe pelo olfato e pela voz, que lhe permitem encontrar-se. É o outro que detém a identidade do sujeito, pois é através do outro, isto é, da mãe-nutriz, que o bebê reconhece e se conhece” (1995, p. 212).
Ao permitir que o filho estabeleça com ela uma condição parasitá ria, acrescenta Jerusalinsky (2002), a mãe franqueia ao gozo a ousadia da máscara da repetição: lendo como significantes e estabelecendo o sentido do texto orgânico do filho, ela o ultrapassa, antecipando um sujeito, ao mesmo tempo que estende, instala e atribui à criança a posição indeterminável de um sujeito do gozo. Esta condição parasitária, porém, precisa ser alinhavada por meio do discurso. Há um discurso tecido na prática de articulação significante, tramada pelo saber daquele que agencia a função materna diante de um organismo. Assim, o organismo é dito ser pelo agente materno, ou seja, ser que não sabe dizer, de seu próprio lugar, “eu sou”, mas que é dito de outro lugar, “ele é”.
As reais implicações desses novos dispositivos significantes, como o roubo de bebês, no que tange à constituição do sujeito propriamente dito ainda são desconhecidas – só é possível hipotetizar. Um importante passo, porém, foi dado no desenvolvimento deste trabalho: circular pelos caminhos do desejo materno.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Coriat, E. (1997). Psicanálise e clínica de bebês: A psicanálise na clínica de bebês e crianças pequenas. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios. [ Links ]
Freud, S. (1905). Três ensaios sobre sexualidade. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1972. [ Links ]
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Garcia Roza, L. A. (2001). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. [ Links ]
Jerusalinsky, J. (2002). Enquanto o futuro não vem: A psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. Salvador, BA: Ágalma. [ Links ]
Lacan, J. (1964). O seminário, Livro XI. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1985. [ Links ]
Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (2001). Vocabulário de psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes. [ Links ]
Nasio, J. D. (1995). Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. [ Links ]
Rafaela Carine Jaquetti
rafajaquetti@hotmail.com
Rosa Maria Marini Mariotto
rosamariotto@bsi.com.br
Recebido em junho/2004
Aceito em junho/2004
N O T A
1 Acadêmica do 7º período de Psicologia da PUC-PR.2 Professora e supervisora de Psicologia da PUC-PR, doutoranda em Psicologia na USP, psicanalista membro da Associação Psicanalítica de Curitiba.