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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008
DOSSIÊ
É possível falar de um desejo "primitivo" de escrever?
Is it possible to talk about a "primitive" writing desire?
Hasta que punto es posible hablar en terminos de un deseo "primitivo" de escribir
Gérard Pommier
Professor da Universidade de Strasbourg, França
RESUMO
O artigo apresenta a idéia de que o impulso na direção da escrita responde a uma pressão psíquica, articulada no"desejo de escrever". A escrita provê uma solução particular para a divisão subjetiva: uma reconciliação, ao menos provisória, com um corpo de gozo do qual o sujeito está desde o início exilado. Nesse sentido, trata-se de um desejo de escrever que é primitivo, visto que explicita a escrita do próprio inconsciente. Sustenta a idéia de que a invenção da escrita é uma necessidade de estrutura. Trata-se de recuperar, pela via pulsional, através de um meio visual o que foi perdido pelo viés da voz. O artigo discute ainda a noção de representação, para tratar, em ordens distintas as condições de representação do corpo e do sujeito.
Palavras-chave: desejo de escrever; pulsão; representação; gozo
ABSTRACT
The hipothesis presented in this article is that the willing to write answers a psychic pressure that expresses itself in the "desire to write". The writing sustains a particular solution to the subjective division: it is a reconciliation, even if temporary, with the body of enjoyment to whom the subject is exiled, since the beginning. In this sense, it is a primitive desire to write, as it makes explicit the writing of the inconscient. The text sustains that the invention of the writing is a structure's necessity. It refers to a need of recovering of what was lost through the voice, through the pulsional way, by a visual media. And discusses the concept of representation to be able to present, in distint waysm representational conditions of the body and the subject.
Keywords: desire to write; pulsion; representation; enjoyment
RESUMEN
Presentamos la idea de que el impulso en direccion a la escritura responde a una presion psiquica, articulada en el deseo de escribir. La escritura implica una solucion particular a la division subjetiva: una reconciliacion provisoria con un cuerpo de goce del cual el sujeto esta desde siempre exiliado. en este sentido se trata de un deseo de escribir primitivo una vez que explicita la escritura del inconsciente mismo. sustentamos la idea de que la escritura es una necesidad de estructura. tratamos de recuperar por la via pulsional y atraves de un medio visual aquello perdido gracias a la voz. discutimos la nocion de representacion para asi tratar diferentemente la representacion del cuerpo y del sujeto.
Palabras clave: deseo de escribir; pulsion; representacion; goce
Ainda bem pequenas, sem que ninguém lhes peça, as crianças já adoram desenhar e também,com muita depressa, querem escrever. É possível crer que são movidas pelas pressões pedagógicas de seu ambiente, que deseja dar a elas essa possibilidade, dentro de sistemas escolares mais e mais coercivos; pode-se também pensar que as crianças querem somente identificar-se aos adultos e entrar em um mundo no qual é difícil se referenciar sem saber ler e escrever, mas o que acontece é o contrário, o impulso na direção da escrita responde a uma pressão psíquica interna. Aliás, assim como acontece na entrada da criança na fala, não se trata, propriamente falando, de aprendizagem. Existe um "desejo de escrever", do mesmo modo que existe um gozo da escrita. Disso são testemunhas as obras de inúmeros escritores para os quais, desde a mais tenra idade, a literatura é não somente um meio de viver, mas a própria vida. Precisam escrever diariamente. E se seus livros permanecem desconhecidos, paciência. De resto, o número de obras publicadas é diminuto, comparado à profusão de escritos que seus autores guardam para si.
Em nenhum outro lugar a relação à escrita é tão evidente quanto em certas formas de loucuras, nas quais a prática cotidiana da escrita mitiga a violência das tensões internas. Como é muitas vezes o caso, essa dimensão patológica não faz senão exteriorizar um movimento latente em cada sujeito: existe um impulso para a escrita que reconcilia o sujeito com ele mesmo, no sentido de que ela provê uma solução particular para sua divisão; uma reconciliação, ao menos provisória, com um corpo de gozo do qual ele está desde o início exilado. Existe, nesse sentido, um desejo de escrever que não é uma espécie de desejo entre outros, a título de sublimação, mas um desejo de escrever de certo modo primitivo, visto que explicita a escrita do próprio inconsciente. Certamente, tem-se a impressão de que a escrita é uma elaboração tardia, uma vez que a criança só a adquire em uma idade bastante avançada quando o essencial da dramaturgia edipiana já foi encenado e porque a humanidade permaneceu amplamente iletrada durante o essencial de sua história. Não resta senão a escrita do inconsciente ou, ainda, o hieróglifo, "escrita dos deuses", escrita do sonho, que orienta desde sempre o desejo do sujeito. Entre os yunnan, na China, os xamãs da etnia Naxi dizem que, no começo, suas leis e seus rituais eram registrados em faixas de pele de porco, até que um dia tiveram fome e comeram-nos. Desde então, suas tradições são somente orais.
O desejo de escrever procede da própria escrita inconsciente na forma de um retorno do recalcado. Como se vai explicar, certo acontecimento traumatizou o sujeito que, para existir, teve que recalcá-lo sob a forma de "representações de coisas" ou de "traços mnêmicos" que o acompanharam. São essas representações recalcadas que retornam nos sonhos sob a forma de uma escrita quase ilegível a partir do momento em que o sujeito está consciente delas, já que, justamente, ele vai de novo recalcar o que não quer saber. Trata-se da experiência que cada um pode fazer quando isso se revela: a lembrança desses sonhos evapora-se de forma mais ou menos rápida. Aliás, esse retorno do recalcado que aparece nos sonhos não é feito para ser lido. Não se trata de uma mensagem. Ele testemunha, antes de tudo, um esforço do sujeito para se desembaraçar daquilo que o traumatizara. O sonho explicita de certa maneira a dinâmica geral do inconsciente, quer dizer, aquela da repetição. A repetição não é uma formação do inconsciente suplementar, que se junta ao lapso, ao ato falho, ao sintoma etc., ela testemunha a passagem de uma posição passiva (o traumatismo sofrido) a uma posição ativa (a cena é revivida sendo dela o sujeito, e não o objeto). Eis por que a própria escrita não mais aquela escrita recalcada por um sujeito do inconsciente que busca sem grande esperança desembaraçar-se do traumatismo repetindo-o, mas a escrita propriamente dita, desta vez consciente pode ter um efeito de liberação. Essa tensão do sujeito rumo à reconciliação com ele mesmo resume o desejo de escrever, desejo irmão nesse caso do desejo do sonho; da mesma forma que o esquecimento dos sonhos é a regra, existem fortes inibições à escrita. Será que o sujeito quer verdadeiramente desembaraçar-se do que o faz sofrer? No fundo, ele se agarra a seus sintomas bem mais do que imagina!
O desejo de escrever responde a uma compulsão: a compulsão à repetição, Wiederholungzwang, que obriga o sujeito a transpor diferentes graus, se ele pretende existir face ao desejo do Outro. De saída, ele experimenta uma compulsão a falar; depois, uma compulsão a desenhar, a representar, e, enfim, em função dessa relação à representação gráfica, uma compulsão a escrever. A fala, de imediato, está em uma relação "primitiva" de avesso e direito com a escrita do inconsciente. O que se passa, com efeito, no primeiro dia? Uma criança grita, sua mãe escuta-a e, sem compreendê-la, introduz aí a razão de sua própria falta, que, aliás, havia feito com que ela desejasse ter essa criança. Ela se angustia e se precipita para dar à criança alguma coisa para dizer a verdade, não importa o quê: o que se pode dar em tal idade, de início? Seguramente, o alimento. E a criança, ela também sem compreender, sabe que através dessa coisa está o jogo de uma demanda que a ultrapassa, que poderia prevalecer, caso não se opusesse a ela.
O grito da criança terá sido o desafio de um enigma, e essa voz que constitui seu único bem, próprio ao seu ativo1 terá sido equivalente a essa coisa que lhe é ofertada, e que ela aceita talvez passivamente, mas que deve também recusar, se quiser existir como sujeito, sem ser tragada pela imensidão da demanda materna. Como é possível aceitar e recusar ao mesmo tempo? É exatamente esse o dilema que traz o primeiro golpe dos traumatismos subjetivos.É o motivo central do desamparo, Hiflosigkeit, do lactente que, para viver, deve recusar seu amor maior e, desse modo, liga-se a ele para sempre. Esse primeiro traumatismo subjetivo está inteiramente contido na divisão do grito entre o som e o sentido. Desse traumatismo, o sujeito nada quer saber, ele quer recalcá-lo por causa do próprio amor, quer dizer, do reconhecimento subjetivo do qual ele tem necessidade mais que tudo. E como o instante do choque do enigma vem acompanhado de certo número de sensações; elas é que serão recalcadas, completamente destacadas de qualquer sentido, uma vez que esse sentido é incompreensível (é a significação do phallus); por exemplo, a sensação de certa luminosidade, o toque de um tecido, um odor etc., formarão as primeiras representações de coisas recalcadas. Não é a pulsão em si que é recalcada, mas os representantes da pulsão (sensoriais). Em seguida, essas imagens vão se sobrepor umas às outras à maneira dos hieróglifos egípcios, e isso à medida que os traumatismos subjetivos se acumulam. O enigma escapa à criança, mas as representações de coisas lhe pertencem. E a criança passa a maior parte de seu tempo a sonhar com essa escrita que pode dominar, em outras palavras, que pode repetir e, graças a ela, tentar controlar os traumatismos passando de uma posição passiva (o enigma suportado) a uma posição ativa, a do sonhador que alucina de fora aquilo de que ele quase foi o objeto alucinado.
Vamos precisar de que forma, entre a voz que vai tornar-se posteriormente o material da fala, graças ao amor e a escrita do inconsciente há justo uma relação "primitiva" de avesso e direito. A fala recalca constantemente a escrita do inconsciente, essas alucinações de hieróglifos, de imagens superpostas alinhadas à infância, que retornam nos sonhos. Fala e escrita solicitam-se mutuamente; por exemplo, a escrita de um lapso ressurgindo em uma falha da fala.
Por que essas alucinações de representações de coisas ressurgem com tanta insistência? Por um lado, como já se disse, a fim de repetir, de passar de uma posição passiva a uma posição ativa. Por outro lado, já que o recalcamento representa uma perda importante do gozo do corpo e mesmo um tipo de exílio , perdemos o nosso corpo de gozo quando nos tornamos seres falantes. Ao falar, esquecemos o que nos é próprio. Eis o motivo do incômodo que vai nos compelir a representar; e depois, a desenhar e, enfim, a escrever. Falando, perdemos uma parte do gozo do corpo, aquela que realizaria o desejo do Outro materno. Para retomar exatamente os termos de Freud, as "representações de palavras" recalcam as "representações de coisas", de tal modo que, como conseqüência, o desejo do sujeito consiste em recuperar esse gozo perdido, desde o início pervertido pelo desejo do Outro. O desenho busca recuperar o que a fala perdeu. Uma criança muito pequena procura, desde que o possa, desenhar, representar no papel essa parte dela mesma da qual está exilada. Quando se examinam os desenhos de crianças de uma mesma faixa etária, há entre eles grandes semelhanças: com efeito, trata-se de representações do corpo psíquico que são, nesse sentido, homólogas.
Uma vez traçados no papel, esses desenhos não são estáticos, ganham vida. A criança inventa sobre eles uma história que não reproduz a fala, mas busca restaurá-la, idealizar as faltas de sua própria vida: os desenhos repetem, mas buscando reconciliar o sujeito com as privações de sua existência. Os desenhos vivem, estão na origem de uma mitologia singular para cada um, ainda que ela possua características generalizáveis a todos os seres falantes. As ficções desenvolvem, assim, de modo condicional, suas próprias histórias, que duplicam idealmente a vida de cada criança.
Contudo, existe um limite superior à representação pelo desenho. Com efeito, a criança encontra um obstáculo intransponível quando deve se representar não como corpo (ela o faz desde o início), mas como "sujeito". Como sujeito, ela escapa, por definição, à representação, uma vez que é a partir dessa instância subjetiva que ela recalca as representações, buscando recuperá-las fora de si: essa é a própria definição de sujeito dividido. Como representar sobre o papel esse sujeito, mas, sobretudo, sem representá-lo como corpo? É aqui que a invenção da escrita, começando pela escrita do nome próprio, impõe-se como uma necessidade de estrutura, da mesma forma que a criança não se reconhece no espelho senão quando é chamada por seu nome. Justamente seu nome não faz parte da imagem e permite que ela se veja... do exterior, de algum modo. Nos desenhos de todas as crianças constata-se que as primeiras letras ou as "pseudoletras" que escrevem são as de seu nome próprio. É a sua assinatura, elas dizem.
O nome próprio é ainda mais adequado à representação do sujeito "fora do corpo" visto que se trata do nome do pai. A criança apodera-se de seu nome por ocasião do conflito edipiano: trata-se do nome de seu pai, no sentido em que esse nome lhe foi dado em nome do pai. Essa tomada do nome é correlativa ao complexo de Édipo: ela "mata" seu pai no momento em que se apodera de seu nome, e a culpabilidade desse assassínio interdita o gozo da mãe. Esse assassinato do pai é justamente o que não é representável no desenho, a não ser imediatamente acompanhado de seu renascimento sob a forma da assinatura, que assegura a filiação ao totem assassinado. O rei está morto, viva o rei. Nesse sentido, a escrita é um tipo de reconhecimento do pai, e ela tem também, de partida, um sentido sagrado. Ao mesmo tempo, contudo, essa escrita é formada a partir de representações visuais das quais ela recalca o caráter pictural, não sem preservar consigo a potência da imagem, quer dizer, um gozo potencial (que pode inibir a formação de letras e, portanto, a aprendizagem da escrita). O nome próprio é então a chave da escrita que, a partir do desenho, encaminha as representações de coisas para a literalidade. Encontra-se um testemunho desse encaminhamento na invenção histórica da própria escrita, que de início foi pictográfica, por imagem, antes de ganhar um sentido fonético para cada sílaba, para ser, enfim, alfabética. As crianças seguem o mesmo caminho.
O resumo do que se deu foi rápido, e é preciso retomar agora duas etapas importantes desse caminho rumo à escrita. Antes de qualquer coisa, a escrita não reproduz, de forma alguma, a fala. Com efeito, a fala recalca o gozo das representações de coisas, enquanto a escrita, ao contrário, busca recuperar esse gozo perdido de que o sujeito está exilado: é isso que motiva o desejo de escrever. Mas isso não é tudo, porque a escrita busca recuperar por um meio visual o que terá sido perdido pelo viés da pulsão vocal. Os instrumentos pulsionais da perda e da reconquista são muito diferentes e acarretam importantes conseqüências sobre a lateralização do corpo, assim como sobre a orientação da escrita sobre uma superfície,da esquerda para a direita (ou o contrário). É preciso, então, retomar agora, de forma mais detalhada, o processo da perda (oral) e da reconquista (visual), cujo resultado mais surpreendente é a lateralização do corpo: todos os seres humanos tornam-se canhotos ou destros, enquanto, por ocasião do nascimento, as duas metades do corpo são funcionais. Esse processo se consuma quando a oralidade dispersa encontra sua pontuação escópica no espaço.
Desde o início da vida, "oralidade" comporta um duplo sentido: por um lado, "oral" significa pela voz; por outro lado, "oral" remete à amamentação. Essas duas significações estão ligadas, uma vez que o grito da criança funciona como um apelo ao qual a mãe responde alimentando-a. A significação dessa resposta é traumática, como se disse, e os sons tomam um sentido, visto que se tornam significantes para a criança, na medida exata da repetição desses traumatismos, de tal modo que a oralidade dos sons (que serve para o reconhecimento subjetivo) vai recalcar a significação da oralidade (da amamentação). Trata-se de um movimento importante, porque uma vez consumado esse processo, a criança não terá respondido à demanda materna; conseqüentemente, permanece em dívida com relação a sua mãe, e a pulsão vai retornar sobre seu corpo como um bumerangue, executando um laço daí em diante autônomo, de dentro para fora e, depois, de fora para dentro, e isso graças à culpabilidade por não ter satisfeito a demanda. Instaura-se um ritmo pulsional indefinido desse movimento de rejeição e de retomada.
É preciso observar agora uma das características do ciclo pulsional concernente à voz, que não se escande mais de qualquer maneira. O momento ativo da voz marca-se graças à consoante: ela desfere um "golpe de glote" e se denota graças a seu grau de abertura: a consoante mais fechada é o "m", que forneceu sua universalidade à palavra "mamãe", a única que subsiste da linguagem bebê em todas as línguas. A consoante é o ato desse sujeito que, mais tarde, assinará com seu nome seus primeiros desenhos. Nesse sentido, a consoante é "paterna". Quanto à vogal, ela se pronuncia de boca aberta, pode-se vocalizá-la, mas ela reentra, tão logo sai do corpo: é uma amiga do gozo materno, uma cúmplice da intrusão dessa demanda que põe o sujeito em posição passiva. Essa observação tem sua importância no que diz respeito às primeiras escritas alfabéticas nas quais somente as consoantes se escreviam, enquanto as vogais eram proscritas (não foi um problema técnico que impôs esse interdito). Do mesmo modo, observa-se nas crianças disléxicas que as sílabas invertidas giram em torno das consoantes que formam sua armadura, seu ponto fixo espacial.
Mas retornemos à questão da vetorialização da pulsão vocal em laço de fora para dentro e de dentro para fora. Esse circuito infernal da pulsão é vertiginoso a partir unicamente de seu movimento um sujeito não sabe mais onde está, fora ou dentro. Observemos, por exemplo, que uma criança que grita pela boca, escuta-se pela orelha, como se fosse um outro que estaria fora. Assim, ela continua a gritar, uma vez que se escuta. Observemos também que uma criança que escuta outra chorar chora, por sua vez. Trata-se de uma vertigem, e é esse, aliás, o sentido psíquico de vertigem.
É nesse ponto que intervém, muito naturalmente, uma outra pulsão, uma vez que ela corresponde à troca intersubjetiva entre a mãe e a criança: é a pulsão escópica, que vai, de algum modo, fixar a vetorialização da pulsão oral. Uma pessoa se dirige a alguém que vê e, por causa disso, o sujeito disperso por sua própria voz se reencontra na reflexividade do olhar, porta-voz da subjetividade. Uma criança que não é olhada falará talvez, mas, mais tarde. Escuta-se mal aquele que não vemos, sobretudo porque a partir do momento em que a voz permanece dispersa no espaço nós mesmos o estamos. Não é a visão do corpo do interlocutor em geral que se trata, mas, mais precisamente, de seu olhar. Olhar alguém nos olhos é ver seu próprio vazio, porque o olhar do outro faz furo na superfície homogênea das sensações à qual, em primeiro lugar, ele dá sua tridimensionalidade. O olhar da mãe exprime sua própria falta, na qual a criança pode, de saída, reconhecer-se, e é graças a essa reflexividade que se instaura no espaço tempo o regime de uma intersubjetividade (graças a "essa noite que se pode ver no olhar de todo homem", escreveu Hegel).
A criança, portanto, se reconhece como sujeito graças ao outro que, como ela, falta; reconhecimento que é ocasião, sem dúvida, do primeiro sorriso que mais que o riso é o próprio do homem. Contudo, esse reconhecimento que escande o espaço tampo da voz tem imediatamente uma conseqüência incalculável: é possível ver-se como corpo do alto dessa subjetividade exterior ao sensível. O olhar permite que o sujeito veja, a começar por esse estranho "ele mesmo", sempre já excessivamente fálico. Conseqüência incalculável, porque é esse "ele mesmo" que desse momento em diante ele chega a vera distância? É um ele mesmo tal que o percebe no olhar do outro em espelho, de algum modo. Trata-se de uma visão muito "física" (no sentido da física do espelho); visão da qual existe uma delicada metáfora: uma criança pode se ver refletida pequenina na pupila de sua mãe. De fato, não se trata aí de um verdadeiro estágio do espelho? Uma criança que mama está tão pendurada no olhar quanto no seio de sua mãe. Na medida em que um mar de leite arrebata-a pela boca, sua própria imagem lhe é devolvida pelo olhar. Um lactente cuja mãe não o olha não tem sede. Essa imagem devolvida delimita, de início, a oralidade da amamentação, antes de delimitar a oralidade da fala no estágio do espelho propriamente dito.
Sem desenvolvê-la, apenas sublinhamos aqui uma particularidade importante dessa especularidade: é que a imagem que nos é devolvida quando perdemos a nossa é uma imagem nossa vista de frente, mas invertida verticalmente no espaço. Retornamos de nosso exílio, recuperamo-nos conforme uma lateralização obrigatória direita esquerda, que se torna nosso verdadeiro corpo. Como seres falantes, somos obrigatoriamente canhotos ou destros.
Entretanto, o fato de nos apropriarmos de um corpo que será lateralizado não diz ainda por que um dos hemicorpos será privilegiado em relação ao outro (geralmente o lado direito). Para compreender esse fato, basta lembrar que, no movimento de vai e vem rítmico da pulsão, o ir e o vir não têm o mesmo valor. A metade do circuito que é ativa e libera o sujeito será "boa", enquanto a via de retorno na direção do corpo que é passivo e aliena o sujeito será "má". Essa lateralização "boa" e "má" vai se transpor sobre os hemicorpos na hora em que a pulsão escópica vai escandir o processo de subjetivação. É surpreendente que, em todas as culturas, ser canhoto tem sido sempre considerado de maneira pejorativa2.
Até este ponto, notamos a conseqüência concernente à invenção da escrita. Há de início a vocalização de significantes, que comporta consoantes e vogais. Essa ligação, em si mesma, recalca o gozo pulsional da voz em prol do sentido (o do reconhecimento intersubjetivo, ou ainda o da demanda de amor). Essa perda de gozo, como se disse, vai buscar se compensar sob a pressão da representação cultural, ideográfica e, depois, alfabética, mas, isso, mudando de pulsão, e passando da pulsão voz à pulsão escópica. O que a pulsão invocante perdeu de um lado, pondo-se a serviço da fala, ela busca recuperar graças a uma outra pulsão, no nível da visão, segundo esse mecanismo generalizado das pulsões que quer que elas se permutem umas com as outras em função de seu alvo comum: a identificação do corpo ao phallus.
No nível da voz, o momento ativo da consoante era privilegiado. Seu "golpe de glote" assegurava a hegemonia do sujeito sobre o gozo vocal assim recalcado, mas esse império da consoante era amplamente amortecido pelo silabismo, uma vez que é impossível pronunciar uma consoante sem emitir ao menos uma vogal ao mesmo tempo. Com a mudança de regime pulsional da escrita, esse papel da consoante aparece melhor. Nos primeiros alfabetos, só a consoante (boa) se escreve, enquanto a vogal (má), é proscrita. Mas são, sobretudo, as próprias letras, os espectros, fantasmas do corpo psíquico, que vão ser lateralizados. As letras que escrevemos são tipos de fotos de nós mesmos. Estamos em uma relação especular com o papel a partir do momento em que escrevemos; como nós, nossa escrita será obrigatoriamente lateralizada. A esse respeito, há pelo menos uma relação estatística entre os problemas de lateralização do corpo e as formas de dislexia. São problemas de espacialização superficialização correlativas à passagem para a pulsão escópica e para seu objetivo, que é recuperar o gozo, e não recalcá-lo, como é o caso da fala.
Naturalmente, para que a superficialização da pulsão escópica na escrita seja eficaz, é necessário ainda que o próprio sujeito esteja já localizado no espaço, mas à exceção da superfície. É isso que fornece seu papel de clave introdutória ao nome próprio. O nome próprio não é, propriamente falando, um significante, uma vez que não se define para um outro significante e que tem apenas uma função de apelo separador, puramente performativa. Assim fixado no espaço, mas fora da superfície, o sujeito que porta um nome orienta sua escrita sobre uma superfície em que ela se lateraliza como "ele mesmo". O nome próprio é o ponto fora da linha, o lugar a partir do qual as letras reviram e fazem superfície, sob a forma de uma escrita. É pelo menos uma condição de possibilidade, uma vez que existe uma angústia de representar a parte de gozo perdido, uma inibição para escrever e que, como o corpo, as letras vão portar os sintomas edipianos que acompanharam a apropriação do nome próprio e a interdição do gozo. Uma metade do corpo foi sacrificada no momento da entrada na fala, e nossas letras vão inclinar-se, para a direita ou para a esquerda, em função da história desse sacrifício. O ato de escrever busca recapturar o corpo a cada letra, mas busca ao mesmo tempo assegurar a vitória do "bom" sobre o "mau", se é possível continuar a empregar um vocabulário tão maniqueísta para sublinhar a dimensão ética, ou ainda sagrada, da escrita.
Como o desejo em geral, o desejo de escrever precede seu objeto. O sujeito deseja muito antes de saber o quê. No fundo, o lactente deseja desde sua primeira alucinação, e o desejo não resulta de modo algum do complexo de Édipo. Dizer que o desejo precede seu objeto significa que não se pode prejulgar que algo vá ser escrito a partir desse desejo. Talvez valha para os mitos, as ficções, a teoria, a poesia. Mas o desejo de escrever terá precedido todas essas formalizações, que são conseqüências contingentes, amplamente tributárias da história de cada sujeito e daquilo que ele busca recuperar, justificar, dominar, através delas, ao menos por um instante sua existência e a legitimidade de seu nome; ele que foi escrito primeiro, e que assinará a última página.■
Endereço para correspondência
E-mail: gerardpommier@free.fr
Recebido em abril/2008.
Aceito em maio/2008.
Tradução: Viviane Veras
NOTAS
1 N. da T. Além dos sentidos evocados mais imediatamente, ligados a ação, operação, atuação, destacamos o sentido que esse termo tem na economia, em que representa os valores referentes a aplicações de patrimônio e de capital; nesse caso, o saldo que lhe terá restado.
2 Por que a direita é universalmente majoritária quando se trata de uma característica culturalmente adquirida? Sem dúvida, por causa da posição intra-uterina dos lactentes, que os conduz a ouvir melhor de um lado, motivo orgânico que serve de ponto de atração para a fixação psíquica ulterior.