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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008
DOSSIÊ
Sobre o conceito de dislexia e seus efeitos no discurso social
The concept of dyslexia and its impact on social discourse
Acerca del concepto de dislexia y sus efectos en el discurso social
Rejane Rubino
Fonoaudióloga, membro do Serviço de Patologia da Linguagem da Divisão de Ensino e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (DERDIC/PUCSP) e docente da Faculdade de Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RESUMO
O objetivo deste trabalho é refletir sobre a divulgação maciça que o conceito de dislexia vem recebendo na mídia nos últimos anos. Tomando como ponto nevrálgico o pressuposto da especificidade implicado no conceito de dislexia, este trabalho discute as posições veiculadas por esse discurso no que diz respeito à problemática mais abrangente das dificuldades na aquisição da leitura e da escrita pela criança. O trabalho discute ainda a premissa de que a presença de uma discrepância entre a inteligência e o desempenho na leitura indica uma dislexia.
Palavras-chave: dislexia; dificuldade específica na leitura; leitura; maus leitores
ABSTRACT
This paper takes a critical look at the enormous amount of media coverage dedicated to the concept of dyslexia in recent years. It examines the "assumption of specificity" which is inextricably linked with the concept of dyslexia and discusses its consequences regarding the larger issue of poor readers. It also points out some problems with the widespread view that poor readers who show high intelligence form a cognitively and neurologically different group (the dyslexic group).
Keywords:dyslexia; specific reading disability; reading; poor readers
RESUMEN
El objetivo de este trabajo es reflexionar acerca de la divulgación masiva que el concepto de dislexia há tenido em los médios em los últimos años. Tomando como punto central el postulado de especificidad implicado em el concepto de dislexia, este trabajo discute las posiciones vehiculadas por esse discurso en lo que respeta a la problemática más genérica de las dificultades en adquisición de lectura y escritura por el niño o niña. Este trabajo problematiza también la premisa de que la observación de una discrepancia entre el desempeño en lectura y la inteligencia indica una dislexia.
Palabras clave: dislexia; dificultad especifica en la lectura; lectura; pobres lectores
Nos últimos anos, a dislexia tornou-se um tema recorrente nos jornais e revistas dirigidos ao público em geral. As afirmações contidas nessas reportagens, com pequenas variações, são quase sempre as que se seguem. A dislexia é um distúrbio que chega a atingir 15% da população mundial, mas, ainda assim, continua sendo um distúrbio desconhecido para muitos pais e professores. A dislexia é um transtorno de aprendizagem hereditário e sem cura, que acarreta uma falha nas conexões cerebrais, principalmente nas regiões responsáveis pela leitura, pela escrita e pela soletração. As dificuldades causadas por esse transtorno podem ser melhoradas em até 80% desde que sejam diagnosticadas o mais precocemente possível e tratadas de forma adequada. Numa sala de aula com 30 alunos, é provável que entre três e quatro alunos sejam disléxicos. Quando não são diagnosticadas, as crianças disléxicas enfrentam sérias dificuldades na aprendizagem e ficam desmotivadas e abaladas em sua auto-estima. Os disléxicos têm inteligência acima da média, apesar de seu desempenho escolar sugerir o contrário. As pessoas disléxicas mostram-se mais criativas e têm idéias inovadoras que superam as das pessoas não-disléxicas, uma vez que elas tendem a ativar outras áreas do cérebro para compensar as suas dificuldades. Personalidades célebres como Albert Einstein, Thomas Edison, Walt Disney e Agatha Christie eram disléxicas. Os portadores de dislexia têm direitos especiais assegurados por lei, podendo contar com um período de tempo estendido para realizar as provas escritas (ou ainda, fazer as provas oralmente) e usar livremente uma calculadora. Alguns profissionais entrevistados nessas reportagens afirmam que os testes para detectar a dislexia deveriam ser obrigatórios nas escolas, uma vez que a taxa de pessoas afetadas pelo distúrbio é muito grande. Nessas reportagens, professores e pais são incentivados a considerar como sinais de alerta uma vasta gama de sintomas - como desatenção, lentidão na aprendizagem da leitura, desinteresse pelos livros, letra feia, demora em copiar as lições da lousa, troca de letras na escrita, entre muitos outros que poderiam indicar um quadro de dislexia. Não surpreende, portanto, que um número cada vez maior de crianças chegue aos consultórios e serviços de saúde, às vezes antes mesmo de completarem 7 anos de idade, com uma suspeita de dislexia formulada pelo professor ou pela própria família.
Também circulam na mídia artigos que assumem um tom marcadamente exaltado e alarmista, como é o caso do texto O massacre dos inocentes, de Gilberto Dimenstein, publicado no jornal Folha de São Paulo em 13 de maio de 2007: "Se seu filho ou aluno é esperto, mas tem muita dificuldade de aprender, preste atenção a estas estatísticas de associações psiquiátricas: entre 5% e 17% dos brasileiros sofrem de dislexia, perturbação na aprendizagem da leitura que leva a pessoa a embaralhar letras e números; pelo menos 7% têm, em algum nível, distúrbio de atenção e hiperatividade. Essas porcentagens se traduzem em crianças e adolescentes abatidos em sua auto-estima, marginalizados, chamados de 'burros' por pais e professores. Ou pior, transformados em assassinos, traficantes ou assaltantes. Investigações em várias partes do mundo detectam alta incidência de presos com históricos de distúrbios neurológicos que dificultam a aprendizagem. Em Londres, estima-se que 50% da população carcerária sofra ou tenha sofrido desses distúrbios. O psiquiatra Arnaldo de Castro Palma entrevistou detentos de Curitiba e concluiu que 65% deles apresentavam doenças associadas à dificuldade de aprender.... Não é possível, assim, confiar na consistência de nenhum, rigorosamente nenhum, projeto de melhoria de ensino e de segurança que não leve em conta as questões da saúde psicológica e física no aprendizado."
Nessa formulação maciçamente difundida de que a dislexia é o inimigo oculto por trás de boa parte dos impasses da escolarização, o que fica elidido é que o conceito de dislexia está longe de contar com uma definição e uma caracterização suficientemente precisas, como reconhecem muitos pesquisadores que estudam o problema. Salles, Parente e Machado (2004), por exemplo, indicam que "A definição do conceito de dislexia talvez seja um dos aspectos mais controversos da área. São tantas as nomenclaturas propostas e descrições das características das crianças, que fica difícil saber quando nos referimos à mesma síndrome e quando tratamos de quadros diferentes." (p. 112). Hout (2001), ao comentar a diversidade dos pontos de vista assumidos em relação a esse transtorno, afirma: "Paradoxalmente, apesar de tudo o que tem sido escrito, o principal debate sobre a dislexia continua sendo sua definição, sua própria existência." (p. 17).
Esse cenário justifica uma reflexão sobre os efeitos visados e produzidos pela vigorosa difusão desse conceito no discurso social. Tal reflexão requer que se focalize o conceito de dislexia e o modo como ele vem sendo articulado na história do campo das dificuldades de aprendizagem. Como veremos a seguir, o conceito de dislexia está indissociavelmente ligado ao pressuposto da especificidade. Este é um ponto a ser sublinhado e compreendido, uma vez que dele resulta a introdução de uma divisão no interior da população de crianças que apresentam dificuldades na aquisição da leitura e da escrita. Em outras palavras, a dislexia é uma formulação cuja propagação faz veicular essa divisão. É nesse sentido que se faz necessário refletir sobre as posições que esse discurso transmite em relação ao fenômeno mais geral dos fracassos na aquisição da leitura e da escrita.
Pinheiro (1995), num trabalho de revisão da literatura sobre o tema, afirma que o processo de aquisição da leitura pela criança pode ser afetado por diversos fatores, alguns deles decorrentes de causas não-específicas e outros de dificuldades específicas de leitura (ou dislexia). As causas não-específicas podem ser de origem física, mental, emocional, cultural, sócio-econômica e educacional. Segundo Pinheiro, "as crianças cujo desempenho é afetado por qualquer [sic] desses fatores, exceto aquelas com deficiências mentais severas, embora tenham uma leitura pobre, têm potencial normal para a aquisição dessa habilidade. Entre essas causas não-específicas que dificultam a aprendizagem da leitura, as mais freqüentes são as decorrentes de fatores emocionais e sociais." (p. 107). No outro pólo, a autora indica que "encontramos também em nossas escolas um número de crianças que, aparentemente, apresentam todas as condições para um bom desempenho na tarefa de aquisição da leitura, mas que, surpreendentemente, não o conseguem. Essas são as denominadas crianças com dificuldade específica na leitura (DEL), ou disléxicas. Esse grupo de crianças possui, como principal característica, um nível de leitura que se situa abaixo do que seria de se esperar, levando-se em conta fatores tais como capacidade intelectual, oportunidades educacionais e ausência de problemas neurológicos, físicos ou emocionais sérios." (p. 107).
A diferenciação formulada acima permite ler que a dislexia, diferentemente do que o termo sugeriria, não é um conceito que nomeia ou descreve uma dificuldade na leitura. Trata-se antes de um conceito que recorta o conjunto particular de condições sob as quais, em determinados casos, se observa a dificuldade na leitura ou seja, aqueles casos em que essas condições são entendidas como normais e adequadas. A identificação de um caso de dislexia depende de que o mau desempenho na leitura seja considerado surpreendente em relação às condições que se encontram presentes para uma dada criança. Esse é um ponto a ser ressaltado em relação ao conceito de dislexia: a dislexia é "uma dificuldade inesperada ao aprender a ler." (Shaywitz, 2006). Essa visão, bastante recorrente tanto no campo dos estudos científicos quanto nos trabalhos de divulgação do conceito, orienta o ponto de vista de que o diagnóstico de dislexia deve ser realizado "por exclusão". A passagem a seguir, extraída do site da Associação Brasileira de Dislexia, explicita as razões do diagnóstico "por exclusão": "Outros fatores deverão ser descartados, como déficit intelectual, disfunções ou deficiências auditivas e visuais, lesões cerebrais (congênitas e adquiridas), desordens afetivas anteriores ao processo de fracasso escolar (com constantes fracassos escolares o disléxico irá apresentar prejuízos emocionais, mas estes são conseqüência, não causa da dislexia)." (www.dislexia.org.br).É preciso notar, desse modo, que o diagnóstico de dislexia será, inevitavelmente, um procedimento marcado por uma apreciação subjetiva. Se não há maiores dificuldades na exclusão de fatores causais como uma perda auditiva ou uma lesão cerebral, o mesmo não se pode dizer em relação às ditas causas não-específicas de origem emocional, cultural, sócioeconômica e educacional. Como determinar se uma desordem afetiva se encontrava ou não em jogo num momento anterior àquele em que se realiza o diagnóstico? Como demarcar a linha divisória a partir da qual os fatores entendidos como não-específicos emocionais, culturais, educacionais etc. afetam o desempenho da criança a ponto de serem considerados como "causas" de uma dificuldade na linguagem escrita? É importante ter claro que essa demarcação está implícita no conceito de dislexia, uma vez que será considerada disléxica a criança que enfrenta obstáculos na aquisição da leitura e da escrita apesar de contar com as condições necessárias para tal aquisição. Em outras palavras, é isso o que guiará o entendimento de que tais obstáculos estão presentes em razão de uma dificuldade específica na leitura. Em contrapartida, os maus leitores não-disléxicos serão aqueles que, a despeito da normalidade do seu potencial para a leitura, apresentam um nível de leitura pobre.
Vemos, então, que a suposição central que o conceito de dislexia introduz é a idéia de uma condição particular, diferente, uma alteração de base no potencial para a aquisição da leitura. É isso o que está implicado na expressão "dificuldade específica na leitura". É por essa razão que encontramos na literatura uma série de expressões diferentes empregadas como expressões sinônimas de dislexia, entre as quais distúrbio específico de leitura, dificuldade específica na leitura, dislexia específica de evolução e atraso específico na leitura. Mas, o que significa exatamente dizer que um determinado distúrbio ou dificuldade é "específico"?
Segundo Spinelli (1979), certos autores usam esse termo para indicar a presença de uma alteração neurológica que afeta o desenvolvimento. Outros o utilizam para assinalar que a origem do distúrbio é presumivelmente genética. Mas, na maioria das vezes, aponta esse autor, o qualificativo "específico" é empregado com a intenção de enfatizar as manifestações preponderantes do quadro clínico e, ao mesmo tempo, fazer referência à existência de um fator neurológico por trás dessas manifestações. Desse modo, o uso da expressão "distúrbio específico de leitura", por exemplo, indica a presença de uma afecção neurológica que incide preponderantemente sobre as habilidades de leitura.
Stanovich (1986) afirma que o pressuposto da especificidade subjaz a todas as discussões do conceito de dislexia, mesmo quando isso não é afirmado explicitamente. Diz ele: "trata-se da idéia de que uma criança com esse tipo de distúrbio da aprendizagem tem um déficit cerebral/cognitivo que é razoavelmente específico para a tarefa da leitura. Ou seja, o conceito de distúrbio específico de leitura1 requer que os déficits demonstrados por tais crianças não penetrem demasiadamente nos outros domínios do funcionamento cognitivo....O pressuposto da especificidade está contido em virtualmente todas as definições psicométricas e legais da dislexia." ( p. 384, tradução nossa).
Podemos ver, assim, que o conceito de dislexia carrega em si mesmo uma espécie de "teoria implícita" a hipótese de que os indivíduos disléxicos formam um grupo neurológica e cognitivamente distinto no interior do grupo mais amplo dos indivíduos maus leitores. Parece plausível afirmar que essa "teoria implícita" data das primeiras descrições de casos, realizadas no final do século XIX. A primeira descrição de um paciente disléxico pelo neurologista W. Pringle Morgan, publicada no British Medical Journal em 1896, enfatizava a inteligência brilhante de Percy, um menino de 14 anos que, a despeito de haver freqüentado a escola ou recebido a atenção de um tutor desde os sete anos de idade, não conseguira aprender a ler. A facilidade que o paciente apresentava em relação à leitura dos números e à resolução de exercícios de aritmética chamou a atenção de Morgan, que concluiu que Percy apresentava uma "cegueira verbal", expressão que já vinha sendo utilizada por alguns neurologistas para nomear os casos em que pacientes adultos, com boa visão e inteligência preservada, perdiam a capacidade de ler após sofrerem lesão cerebral. Descrições semelhantes foram feitas, alguns anos mais tarde, por Hinshelwood, que relatou cerca de doze casos de "cegueira verbal congênita". Nesses relatos, Hinshelwood sublinhava sempre o caráter isolado da dificuldade de leitura, ressaltando que se tratava de crianças vivazes e inteligentes.
É importante notar que a história da conceitualização da dislexia pautou-se pela sua suposta proximidade com os fenômenos afásicos, como assinala Launay (1984): "Quando os neurologistas tomaram consciência, em princípios deste século [século XX], da anomalia que consistia na impossibilidade, para uma criança normal, de ler e adquirir a organização da linguagem, pensaram descobrir com isto uma entidade mórbida próxima à alexia ou ao agramatismo descrito no adulto no momento da afasia. O qualificativo de cegueira verbal congênita dá testemunho desta concepção, do mesmo modo que as múltiplas denominações propostas nesta época." (p. 15).
É possível situar então, na história dos estudos sobre a dislexia, o modo como paulatinamente se delineou a concepção de que este termo teria o propósito de nomear um grupo de indivíduos neurológica e cognitivamente diferentes, um grupo de indivíduos que apresenta uma patologia específica. Vale notar, porém, que, ao lado disso, insinuou-se, ao mesmo tempo, uma outra diferenciação. Como indica Stanovich (1994), as pesquisas sobre os problemas de leitura assumiram, desde os seus primórdios, que os disléxicos eram os maus leitores de inteligência elevada. Na realidade, entendeu-se que era isso o que fazia deles um grupo cognitiva e neurologicamente diferente. O que se pode vislumbrar aí é o modo como o conceito de dislexia acabou por estabelecer uma diferenciação no interior do conjunto dos maus leitores: a diferenciação entre aqueles que apresentavam falhas na leitura, apesar da inteligência normal ou elevada, e aqueles em que as falhas na leitura seriam, por assim dizer, esperadas (ou justificadas), uma vez que se tratava de crianças com inteligência abaixo do normal. Stanovich (1994) mostra que Hinshelwood, em 1917, afirma enfaticamente que cunhara o termo "cegueira verbal congênita" para referir-se, não a todo o conjunto dos maus leitores, mas apenas àqueles que apresentavam alto funcionamento em outros domínios cognitivos. Hinshelwood declara que é uma grande injustiça que as crianças afetadas pela cegueira verbal congênita de tipo puro, uma afecção estritamente local, sejam colocadas na mesma categoria que outras crianças sofrendo de defeitos cerebrais mais generalizados (categoria que, na descrição de Hinshelwood e em consonância com os termos empregados naquela época em relação à deficiência mental incluía os imbecis e os idiotas). Hinshelwood sublinha a necessidade de se distinguir essas duas condições, uma vez que os casos de cegueira verbal congênita podiam ser tratados com sucesso, ao passo que os casos de defeitos cerebrais mais generalizados seriam praticamente irremediáveis.
É possível indicar, então, que o conceito de dislexia introduz pontos de vista que estão longe de ser neutros em relação à problemática das dificuldades na leitura. De um lado, introduz a idéia de que os disléxicos se distinguem dos demais maus leitores porque estes últimos, a despeito de um nível de leitura abaixo do esperado, têm um potencial normal para a aquisição da leitura. De outro lado, assinala que os disléxicos se distinguem dos demais maus leitores porque, em razão da sua inteligência elevada, podem ser tratados com sucesso. É interessante notar que aqui se desenha aquilo que será posteriormente descrito como o "paradoxo da dislexia." (Shaywitz, 2006, p.51 e p.54). Os disléxicos constituem um grupo especial, uma vez que eles são os maus leitores cuja dificuldade resulta de uma alteração de base no potencial para a aquisição da leitura. Ao mesmo tempo, constituem um grupo especial porque são crianças de alto funcionamento em outros domínios cognitivos. Em termos práticos, o conceito de dislexia veicula a idéia de que a criança disléxica é uma criança de grande potencial intelectual, mas com uma inabilidade congênita que faz dela um mau leitor. A difusão maciça dessa idéia visa alertar que a criança disléxica requer uma atenção especial por parte dos educadores, instando-os a lançar mão de recursos e procedimentos capazes de assegurar as suas necessidades do ponto de vista educacional. A pergunta inevitável que vemos surgir aqui é "E quanto aos maus leitores não disléxicos?". Vimos que, paradoxalmente, é do lado dos não-disléxicos que se encontra situada toda a série dos problemas físicos, mentais, emocionais, culturais, sócio-econômicos e educacionais (Pinheiro, 1995), considerados "fatores não-específicos". Como compreender, então, a posição reiteradamente enunciada na divulgação do conceito de dislexia, que poderíamos resumir como uma convocação a que se cuide dos disléxicos? Qual seria o propósito da veiculação insistente da idéia de que é preciso cuidar das necessidades educacionais das crianças que têm uma dificuldade específica de leitura, resultante de uma afecção local? Sem dúvida alguma, a criança disléxica, assim definida, coloca a necessidade de medidas que possibilitem a ela o acesso à leitura e à escrita. Mas o mesmo se pode dizer do conjunto maior dos maus leitores.
Nessa medida, a difusão do conceito de dislexia não parece isenta de conseqüências. Ela introduz um viés em relação à problemática do fracasso na aquisição da leitura e da escrita através da afirmação subliminar de que "os disléxicos são casos diferentes". Não surpreende, portanto, que os mesmos textos de divulgação enfatizem os direitos especiais dos indivíduos disléxicos, conforme mencionado anteriormente.
De acordo com Stanovich (1994), esse viés se faz presente no campo da pesquisa sobre os problemas de leitura desde o seu início. Num artigo intitulado A dislexia existe?, o autor afirma que seria de se esperar que os pesquisadores começassem operando com definições mais abrangentes e teoricamente mais neutras das dificuldades de leitura e, só depois, indagassem se existem maus leitores com perfis cognitivos distintos no interior desse grupo mais amplo. Infelizmente, mostra ele, a história das pesquisas sobre os problemas de leitura está longe de apresentar essa seqüência lógica. Segundo Stanovich, as primeiras definições de dislexia tomaram como fato já comprovado a existência de um perfil cognitivo (e de causação) diferente no interior do conjunto maior dos maus leitores. A dislexia, diz ele, foi definida de uma maneira que, na verdade, serviu para obstruir a investigação empírica dos pressupostos teóricos não comprovados que guiavam a formulação dessa definição. Esse artifício notável foi obtido ao se restringir a definição do termo dislexia à idéia de uma discrepância entre o desempenho na leitura e a inteligência. Assumiu-se que os maus leitores de inteligência elevada eram cognitivamente diferentes dos maus leitores de inteligência inferior e que, no caso dos primeiros, tratava-se de uma etiologia distinta. O termo dislexia foi reservado aos casos em que as crianças mostram uma discrepância significativa entre a sua habilidade na leitura e o seu desempenho nos testes de inteligência. Esse critério foi absorvido pela legislação que orienta as práticas educacionais num grande número de localidades nos Estados Unidos. Além disso, passou igualmente a determinar os procedimentos de seleção dos sujeitos na maior parte das investigações científicas sobre a dislexia. Segundo Stanovich, simplesmente se pressupôs que as dificuldades de leitura não acompanhadas por um rebaixamento intelectual constituíam uma entidade distinta dos outros problemas de leitura.
Para situar essa crítica, é interessante fornecer alguns elementos sobre os pontos de vista sustentados por Stanovich em relação às dificuldades na escrita. Ele considera que, na maior parte dos casos, o que está em jogo é um déficit no processo de codificação fonológica. Afirma que "o precursor da dificuldade de codificação fonológica parece ser um déficit nas habilidades de segmentação da linguagem às vezes denominada consciência fonológica ou sensibilidade fonológica" (p. 586, tradução nossa). Pode-se ver, desse modo, que a posição de Stanovich não se encontra em desacordo com o ponto de vista hoje prevalente em relação à causa da dislexia. Ainda em consonância com as hipóteses explicativas em relação à dislexia, ele assinala que há achados que apontam para uma possível base biológica dos distúrbios de leitura. Vale notar que, a despeito disso, Stanovich questiona radicalmente o conceito de dislexia, por se tratar de um conceito que pressupõe a idéia de um tipo etiologicamente diferente de inabilidade para a leitura associado a coeficientes de inteligência médios a superiores, o que, como ele sublinha, constitui uma suposição não comprovada. Segundo Stanovich, diversos estudos compararam o desempenho de maus leitores com discrepância entre a leitura e a inteligência e de maus leitores que não mostravam essa discrepância e descobriram que ambos os grupos apresentam déficits equivalentes nas tarefas que envolvem codificação fonológica.2 A identificação de crianças com discrepância entre a leitura e a inteligência não permite a identificação de nenhum padrão específico em relação à habilidade de reconhecimento de palavras habilidade que, na visão desse pesquisador, constituiria o indicador mais claro de um quadro de dificuldade de leitura. A conclusão de Stanovich é a de que não existe absolutamente nada que indique que a natureza do processamento no módulo de reconhecimento de palavras seja diferente para os maus leitores que apresentam uma discrepância entre a leitura e a inteligência e para os maus leitores que não a apresentam. O ponto central da sua crítica ao conceito de dislexia reside precisamente na associação desse conceito à presença de coeficientes de inteligência elevados, associação que, conforme ele observa, comparece, numa forma extrema, nos retratos da dislexia apresentados na mídia, que descrevem, quase sempre, uma criança muito brilhante. Stanovich assinala ainda que, "na verdade, esse retrato veiculado na mídia entrou agora no domínio da crença popular, pois há um mito popular de que a dislexia constitui o "sofrimento dos gênios." ( p. 588, tradução nossa).
Também em relação às bases biológicas do distúrbio descrito como dislexia não há estudos que demonstrem que os indícios biológicos encontrados (nos estudos genéticos, nos estudos de neuroimagem etc.) sejam diferentes nas crianças que preenchem os requisitos de discrepância entre a leitura e a inteligência e nas crianças que não os preenchem. A razão disso, indica ele, está no próprio viés introduzido nos procedimentos de seleção dos sujeitos disléxicos nessas pesquisas.
Ainda esclarecendo a sua posição, Stanovich ressalta que não se trata de contestar a possibilidade lógica de que existam etiologias distintas no interior da população dos maus leitores. Mas, adverte ele, "se existe um grupo de crianças com dificuldades na leitura que possa ser considerado 'diferente' sob os pontos de vista comportamental, cognitivo e genético, parece cada vez mais improvável que este possa ser rapidamente identificado empregando-se a discrepância entre a leitura e a inteligência como um representante dessas diferenças genéticas e neurológicas." (p. 588, tradução nossa). O problema, diz ele, é que ainda está por ser demonstrado que quaisquer causas específicas que possam existir tenham correlação com o grau de discrepância entre a leitura e a inteligência. Ele conclui assinalando que, dado que o termo dislexia implica, equivocadamente, a idéia de que tal evidência existe, o campo dos distúrbios da leitura deveria se perguntar seriamente se não seria melhor que ele abrisse mão desse termo.
Vê-se que a crítica de Stanovich ao conceito de dislexia assenta-se na ausência de demonstrações empíricas de que o déficit no módulo fonológico seja a causa das dificuldades de leitura somente nos casos dos indivíduos com coeficientes de inteligência elevados. Mas é possível problematizar o conceito de dislexia também por uma outra via relativa à associação dessa categoria clínica com a presença de níveis de inteligência normais ou superiores. O ponto central aqui é o dito "paradoxo da dislexia", ou seja, o fato de que os estudiosos da dislexia considerem surpreendente que uma criança se mostre inteligente e, ao mesmo tempo, apresente dificuldades na leitura e na escrita, como se pode ler numa passagem do texto de Shaywitz (2006) em que ela discorre sobre as dificuldades apresentadas por dois pacientes disléxicos: "Você verá como os sintomas aparentemente distintos de Alex e de Gregory problemas com a leitura, terror absoluto quando é necessário ler em voz alta, problemas ao soletrar, dificuldades para encontrar a palavra certa, palavras mal pronunciadas, dificuldade para usar a memória mecânica representam a expressão de um problema isolado, independente. Ao mesmo tempo, você saberá que outras habilidades intelectuais o pensamento, a razão, a compreensão não são atingidos pela dislexia. Esse padrão contrastante produz o paradoxo da dislexia: dificuldades profundas e persistentes experimentadas por algumas pessoas muito inteligentes ao aprender a ler." (p.41).
É esse padrão contrastante, entendido como paradoxal, que leva os pesquisadores (e também os clínicos) a convocar uma explicação situada no funcionamento cerebral. É esse o raciocínio que comparece desde as primeiras descrições da dislexia. Se a criança (ou o adulto) mostra-se inteligente e, ainda assim, tem dificuldades com a leitura e a escrita, a explicação só pode estar no funcionamento modular da mente/cérebro. É preciso supor a presença de uma "disfunção no sistema de linguagem, especificamente no nível do módulo fonológico." (Shaywitz, p. 44). O argumento colocado em jogo nesse raciocínio é o de que "as capacidades fonológicas não estão relacionadas à inteligência e, na verdade, são bastante independentes dela." (p. 53).
Cabe indagar por que razão a presença de dificuldades no âmbito da linguagem escrita é considerada surpreendente e paradoxal quando se trata de uma criança inteligente. Essa visão parece implicar a suposição de que a única instância capaz de se interpor entre a inteligência e as aquisições/aprendizagens seria o cérebro, com a sua estrutura modular. Será preciso supor, como explicação, uma falha nas conexões neurais (ocorrida durante o desenvolvimento embrionário) sempre que tivermos diante de nós uma criança inteligente e com problemas na linguagem escrita? Isso implica desconsiderar a possibilidade de que a linguagem escrita se preste a construções sintomáticas entendidas aqui como formações de caráter conflitivo. Crianças podem fazer sintomas na escrita, do mesmo modo como podem fazer sintomas na fala ou no aprendizado da matemática, podendo ainda construir outras formações sintomáticas, como fazer xixi na cama ou apresentar um sintoma alimentar. Os sintomas do sujeito podem se mostrar espantosamente localizados e circunscritos, a ponto mesmo de parecerem, às vezes, "caprichosos". Como compreender, por exemplo, um caso em que a criança escreve, mas não lê? Como compatibilizar tal observação clínica à afirmação de que os impasses na leitura decorrem de um déficit na consciência fonológica? Refiro-me aqui a um paciente que chegou à clínica com sete anos e meio de idade, a partir de uma queixa de dificuldade na alfabetização. No entanto, os pais referem, logo na primeira entrevista, que a dificuldade apresentada na leitura chama muito mais a atenção do que a dificuldade observada na escrita. Com efeito, essa criança apresenta um nível de consciência fonológica suficiente para fazer operar o sistema alfabético na sua escrita embora, em certos momentos, oscile entre uma escrita alfabética e uma escrita silábica. Num dado momento das sessões de avaliação em que conversávamos sobre os nomes das pessoas da sua família, ele pergunta "Janaína é G, E, N, A, I, N, A?". O modo como ele soletra essa palavra permite observar, de um lado, que não se trata de uma seqüência de letras memorizada por ele, uma vez que contém erros. De outro lado, esses erros indicam o estabelecimento de correlações entre os fonemas e os grafemas a começar pela suposição de que o primeiro /a/, nasalizado, não seja grafado com a mesma letra que os demais. Como compreender que o impedimento na leitura se mostre tão significativo para essa criança a ponto de impossibilitar que ela leia até mesmo as palavras que ela própria escreveu momentos antes? Não me parece possível avançar no entendimento de observações clínicas como essa sem lançar mão da idéia de sintoma na linguagem escrita como sintoma do sujeito.
Cabe assinalar, a esse respeito, que a circulação maciça do discurso da dislexia propõe uma redução do sujeito ao funcionamento cerebral, que tem como efeito o apagamento de outras leituras clínicas que poderiam colocar em cena essa dimensão do sintoma na escrita. ■
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Endereço para correspondência
E-mail: rejanebr@uol.com.br
Recebido em abril/2008.
Aceito em junho/2008.
NOTAS
1 No original, specific reading disability. Stanovich (1986) esclarece que a expressão reading disability e o termo dyslexia serão empregados por ele de maneira intercambiável.
2 Stanovich refere-se aos estudos de Felton & Wood (1992), Fredman & Stevenson (1988), Share et al. (1990), Siegel (1988; 1989 e 1992), Stanovich & Siegel (1994) e Fletcher et al. (1994).