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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.1 São Paulo  2010

 

DOSSIÊ
EXPERIÊNCIAS INCLUSIVAS

 

Acompanhamento terapêutico, sua criação em uma montagem institucional de tratamento e as ofertas de laço social1

 

Therapeutic accompaniment, its creation in an institutional treatment framework and the offering of social bond

 

Acompañamiento terapéutico, su creación en un montaje institucional de tratamiento y las ofertas de lazo social

 

 

Maurício Castejón Hermann

Psicanalista e Acompanhante Terapêutico – AT, docente do Curso de Formação em Acompanhamento Terapêutico da Universidade Metodista de São Paulo. mauhermann@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo relata um momento da história institucional da Associação Terapêutica – Lugar de Vida, quando a instituição se debruçou frente ao projeto de criação do Acompanhamento Terapêutico (AT) como dispositivo de tratamento às psicoses infantis. Desde uma leitura da equipe acerca de um impasse presente em um caso clínico, reconheceu-se a necessidade de indicar o AT, bem como redesenhar o projeto terapêutico do caso, o que desembocou em uma profícua parceria com um CECCO (Centro de Convivência e Cooperativa) da cidade de São Paulo.

Descritores: acompanhamento terapêutico; instituição de tratamento; psicose; CECCO.


ABSTRACT

This article adresses a moment in the institutional history of the Therapeutic Association – Lugar de Vida, when it developed the project for the Therapeutic Accompaniment (TA) creation as a technique for the treatment of childhood psychoses. From our team's reading of an impasse present in a clinical case, we recognized the need to recommend the TA, as well as redesign the therapeutic project of the case, which led to a rewarding partnership with a CECCO (Portuguese acronym for Convenience and Cooperative Center) in São Paulo.

Index terms: therapeutic accompaniment; treatment institution; psychosis, CECCO.


RESUMEN

Este artículo relata un momento de la historia institucional de la Asociación Terapéutica Lugar de Vida, cuando la institución se inclinó frente al proyecto de creación de Acompañamiento Terapéutico (AT) como dispositivo de tratamiento de las psicosis infantiles. Desde una lectura del equipo acerca de una dificultad presente en un caso clínico, se reconoce la necesidad de indicar el AT, bueno para rediseñar el proyecto terapéutico del caso, lo que desembocó en una útil asociación con un CECCO (Centro de Convivencia y Cooperativa) de la ciudad de São Paulo.

Palabras clave: acompañamiento terapéutico; institución de tratamiento; psicosis; CECCO.


 

 

A Associação Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica2 incrementou sua montagem institucional de tratamento às psicoses infantis ao inserir o Acompanhamento Terapêutico (AT) como dispositivo de tratamento. Tal passo realizado pela instituição está em conformidade com a proposta de Kupfer (2000), ao incluir no debate sobre a educação a contribuição da psicanálise. Desse modo, a autora, entre outras reflexões, problematiza a educação como oferta de laço social para crianças com graves comprometimentos emocionais, a ponto, inclusive, de sustentar uma aproximação da noção de sujeito do inconsciente frente a essa oferta de laço, ao invés de tomar essas mesmas crianças como objeto colocado frente ao outro.

A perspectiva aqui adotada é a de que o AT se configura como um dispositivo clínico que almeja, entre outros, aproximar o sujeito psicótico às ofertas de laço social. Desse modo, a hipótese clínica é a de que essa aproximação produz efeitos importantes no tratamento (Hermann, 2005).

A reflexão que esse artigo abordará segue essa vertente acima citada, porém, ao invés de tomar a escola como instituição, será abordada uma experiência em um Centro de Convivência e Cooperativa (CECCO) do município de São Paulo, cuja montagem institucional oferece uma primorosa oferta de laço social. Trata-se aqui de uma experiência clínica de uma adolescente psicótica, aqui denominada Angelina3, que se beneficia dessa proposta de intervenção.É nesse contexto que surge o AT, capaz de oferecer, a seu modo, sustentação de alguns adolescentes ante uma oferta de laço social. Mas sua proposta de intervenção não se justifica, somente, pelo que se entende como potência clínica do AT. Pretende-se, a partir do procedimento ético denominado prática entre vários, também criar parcerias de tratamento em outros espaços institucionais caracterizados como instituições de tratamento.

* * *

A profissional de referência de Angelina percebeu que algo não ia bem. De um lado, Angelina já tinha alcançado 11 anos, já era uma pré-adolescente, o que resultaria em extrapolar o limite de idade que a instituição determinava, na época, para o tratamento dessas crianças. De outro lado, percebeu-se também que Isolina, sua mãe, não se mantinha mais comprometida com o tratamento da filha como estivera antes.

Houve um acontecimento importante que chamou a atenção da profissional de referência de Angelina. Após um período de sucessivas faltas, a paciente apareceu na instituição para participar de um passeio, junto com outras crianças. Foi nessa circunstância que ocorreu uma fala importante de Angelina: "Sabe, eu gosto muito de você. Eu gosto muito de vir aqui, na USP". Essas palavras foram importantes, pois vieram a reforçar, ainda mais, a hipótese de que havia algum tipo de dificuldade, por parte da mãe, em dar cabo ao tratamento da filha.

Nesse mesmo tempo, a profissional do Grupo Ponte, responsável por acompanhar Angelina em seu processo de escolarização, viu-se às voltas com a mesma percepção. O processo de escolarização de Angelina continha avanços importantes, mas, aos olhos de Isolina, parecia que nada acontecia.

Em uma reunião da professora de Angelina com a técnica do Grupo Ponte, foram discutidos os pontos seguintes, aqui apresentados para ilustrar esse processo de inclusão escolar. A professora afirmou que Angelina obteve ganhos importantes em seu percurso na escola. Dizia que antes ela perturbava a chamada na sala de aula, pois respondia a cada nome que a professora chamava, mas que havia pouco tempo ela aprendera a esperar somente seu nome para responder "presente" ou "eu tô aqui". Contou também a respeito de um caderno que outra professora dera de presente a outra aluna e, imediatamente, Angelina solicitou que lhe fosse dado um também, o que só pôde ocorrer após o recreio. Nesses dois eventos, percebeu-se outra relação de Angelina com o tempo… Ela pôde esperar sua vez, em vez de se apegar ao imediatismo de "se fazer presente".

Evidentemente, tais ganhos foram frutos de um processo, de conquistas que, se comparadas ao momento inicial de Angelina na escola, denunciam que muito de importante foi construído nesse percurso. O engajamento da professora não pode passar despercebido, visto que se notam vários acontecimentos importantes, tais como sua insistência para que a mãe providenciasse óculos para a filha, as tentativas de Angelina de reconhecer algumas letras, a conquista de amigos na escola, entre outros.

O caso acima ilustra o procedimento institucional da reunião de equipe, oriundo do paradigma institucional francês para a reforma psiquiátrica. A reunião de equipe é considerada momento privilegiado para analisar as marcas que uma inscrição do singular realiza em um contexto institucional ou no coletivo, do qual se espera uma superação dos obstáculos imaginários e que se rompa com a lógica da perpetuação do líder e os decorrentes fenômenos de massa.

"Vocês me dirão que esse trabalho entre vários tem seu fundamento em outro discurso, o discurso analítico, que é o avesso do discurso domestre. É um trabalho que se baseia não sobre o Um do mestre, mas sobre a falta desse Um do Mestre" (Ciaccia, 1998, p. 17).

Ora, o que se busca em uma prática entre vários é a tentativa constante daqueles que estão envolvidos em um caso em descolar-se de um saber instituído, seja ele encarnado em um líder ou em uma ideia comum, ao apoiar-se no não saber – ou deixar-se tocar pela própria castração –, o que impulsiona a um fazer clínico movido pelo desejo, onde, mais uma vez, incide uma tensão entre o tecido institucional ou uma equipe técnica e o desejo singular de cada integrante dessa mesma equipe técnica e sua relação com a clínica.

 

O sujeito, suas tentativas de laço social e a parceria com um CECCO

A experiência clínica de Angelina trouxe elementos importantes para a presente reflexão. Vimos o movimento da instituição diante do impasse advindo da ação do gozo de Isolina sobre sua filha. A partir de uma leitura institucional desse impasse, realizada pela profissional de referência da instituição acerca das sucessivas faltas, além da constatação, realizada pela profissional do Grupo Ponte, de que Angelina desfrutava das ofertas de laço oferecida pela escola, mas, ainda sim, suas ausências eram frequentes, disparou-se um movimento na instituição, de criar o AT como mais um dispositivo de tratamento.

Era necessária uma injeção de ânimo, uma vez que se sabe que, no tratamento das psicoses infantis, um dos pontos nevrálgicos é a ação do gozo da mãe sobre a criança, tal como Lacan nos ensina em seu texto denominado Nota sobre a criança (2003).

Segundo Lacan, o sintoma da criança pode decorrer da subjetividade da mãe, na medida em que a criança é correlata à fantasia que ocupa no psiquismo dessa mesma mãe. Nesse sentido, a criança passa a ocupar o lugar de objeto causa de desejo da mãe: "A distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação (aquela que é normalmente assegurada pela função do pai), deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se torna o "objeto" da mãe e não tem mais outra função senão a de revelar a verdade desse objeto" (Lacan, 2003, p. 369).

Em um dos primeiros encontros, o acompanhante terapêutico foi até a residência de ambas e encontrou Angelina perto do portão da casa, repetindo em alto e bom som: "Cuidado, Angelina; não vai cair, Angelina!". Incrível o efeito dessa saída, que denunciava o discurso de Angelina sobre si mesma, mas que era, na realidade, o discurso de sua mãe. Alguém incapaz de sair sozinha, de subir alguns degraus da escada entre a casa e o portão da rua. Angelina não conseguia entrar no carro sozinha, demandava a ajuda do acompanhante terapêutico para realizar essa simples tarefa, o que ocorreu sob o vigilante olhar da mãe. Ao ocupar o assento do motorista, o acompanhante terapêutico se volta para a mãe e faz um trocadilho com seu nome: "Então, até logo, Isobela". A mãe foi chamada de Bela, significante que não estava presente em seu nome, mas que poderia instaurar uma falta, um resgate para sua feminilidade. A mãe que perdera o marido e que voltara todo o seu interesse para a filha agora se deparava com um convite, o de se aproximar da condição de bela, de feminina, de castrada. Inaugurou-se aí uma tentativa de abrir um espaço para que Angelina pudesse ter um lugar de sujeito, uma aposta para sair do lugar de incapaz para alguma outra coisa, que ainda estava por ser construída.

Depois de alguns meses, em um dia de muito calor, o acompanhante terapêutico pediu um copo de água à mãe: "Está muito quente, a senhora me poderia arrumar um copo de água?". Foi possível nesse AT entrar na casa, conhecer o espaço físico, sentar-se à mesa para conversar, para saber melhor como a mãe avaliava o tratamento da filha. Essa circunstância teve grande importância, pois o que o acompanhante terapêutico sustentava era uma aposta em Angelina, para que a adolescente pudesse ter um lugar para si, diferenciado da mãe. A mãe escutava com atenção o que se dizia, ao mesmo tempo em que a filha parecia não suportar essa oferta. Angelina dava socos em si mesma, na própria testa, e chutava a parede. Parecia não querer encarar a oferta de outro lugar. O acompanhante terapêutico foi enfático nesse momento, ao dizer que não era possível Angelina continuar com essa atitude, além de nomear o próprio estranhamento em reconhecer que Angelina não suportara um olhar de aposta sobre ela. Parecia estar fadada ao imperativo superegoico do gozo, em que a compulsão à repetição só fazia mantê-la no lugar de incapaz. Tal circunstância foi importante porque abriu a possibilidade de o acompanhante terapêutico sustentar, diante de Angelina, que não era admissível ela se bater, já que corria o risco de se machucar.

* * *

A quase totalidade dos ATs de Angelina se deu no Centro Educacional Unificado de um bairro da periferia de São Paulo. Trata-se de um espaço bem bonito, com ipês, jardins com azaleias etc. Nesse espaço, localizam-se uma escola pública, uma biblioteca, piscinas, quadras esportivas, um teatro e, entre outros, uma instituição de tratamento da rede de Saúde Mental denominada CECCO (Centro de Convivência e Cooperativa). Encontrou-se nesse CECCO uma parceria importante, de acordo com os recortes clínicos do AT de Angelina.

O acompanhante terapêutico (junto com Angelina) foi visitar um CECCO na expectativa de transitar por um espaço onde a livre-circulação fosse premissa básica, antes mesmo da preocupação em preencher um formulário ou qualquer outro procedimento burocrático. A ideia era encontrar um lugar de portas abertas, em que o acolhimento fosse prioridade absoluta. O acompanhante terapêutico e Angelina entraram no espaço físico da instituição e prontamente foram recebidos por uma psicóloga, Lucila. Angelina se interessou pelos novos visitantes, e ela e o acompanhante terapêutico foram apresentados ao grupo ali presente, que fazia artigos artesanais para a festa de Natal. Ficou combinado que eles passariam a frequentar aquela oficina, o que então configurou um início de projeto terapêutico para esse AT. Havia um lugar para ir e uma estratégia clínica se configurou.

As primeiras idas à oficina de artesanato, que se empenhava nos preparativos para a festa de Natal, foram marcadas pela inserção de Angelina e o acompanhante terapêutico no grupo. Olhares curiosos eram dirigidos a eles, com perguntas constantes sobre um possível grau de parentesco, suas "esquisitices", seu modo pouco usual de permanecer no espaço físico, enfim, houve um certo estranhamento, inclusive por parte de Angelina. Ela, por sua vez, parecia não querer desgrudar do acompanhante terapêutico, pois só suportava estar ali desde que postada ao lado dele. Nunca se arriscava a circular pelo salão nem tentava uma conversa com quem quer que fosse. Lucila, de seu lado, tentava proporcionar um lugar para Angelina, seja convocando-a a participar da conversa, seja ensinando-a a dobrar folhas de uma revista velha para transformá-la em uma miniatura de árvore de Natal. A estratégia do acompanhante terapêutico, nesse momento do tratamento, era tentar abrir brechas para que um terceiro pudesse atravessar a transferência entre ele e Angelina, desestabilizando a simbiose. Seus esforços estavam voltados para um gradual afastamento, para que Angelina tivesse oportunidades de se apropriar das ofertas de laço social ali presentes.

Era tempo de festas de fim de ano, e estava programada uma comemoração no teatro do CEU, aberta à comunidade. Havia pouco tempo entre o início dos ATs e a festa, mas isso não impediu Angelina e o acompanhante terapêutico de participarem de uma coreografia que se realizou no palco do teatro, junto com um grupo de pessoas que já a vinham ensaiando. Estavam lá, dançando para uma plateia, imitando os passos de acordo com o que era possível apreender por observação. Angelina, aquela que era a "incapaz", apresentava-se para uma plateia lotada, com direito a aplausos e atenções. Evidentemente, aquele era o início de uma belíssima parceria de trabalho, coroada no fim do ano com essa apresentação.

O início do ano seguinte foi marcado por mudanças notáveis. Angelina e o acompanhante terapêutico passaram a frequentar uma oficina de costura, espaço onde se faziam bonecas de fuxico a toque de caixa, para serem vendidas em um bazar. Angelina não conseguia manejar uma linha e uma agulha, mas estava presente, fazendo colagens de feltro em uma capa de caderno. Tinha ali uma tarefa a realizar, em meio a senhoras, adolescentes habilidosas e técnicos da instituição. Ela já suportava ficar mais distante do acompanhante terapêutico. No entanto, eles ainda chamavam a atenção: uma adolescente com um "jeito esquisito" e um único homem espetando a mão ao tentar costurar fuxicos. Perguntas eram constantes, sempre dirigidas ao acompanhante terapêutico, que por sua vez redirecionava os interesses das senhoras para a própria Angelina. "Como ela se chama? Ela tem irmãos? Você é o pai dela?". Em vez de responder as perguntas, o acompanhante terapêutico pedia que elas fossem reendereçadas a Angelina, na tentativa de se afastar ainda mais dela, pois a intenção era a de que Angelina passasse a construir um lugar no grupo, conforme suas possibilidades.

O trabalho seguia a passos firmes, até que veio a notícia de que a oficina de costura teria de mudar de horário, por conta de exigências da prefeitura. Os técnicos responsáveis foram convocados a participar de uma supervisão institucional que ocorria naquele horário. O que parecia uma má notícia revelou-se, na verdade, uma guinada nas estratégias de tratamento nesse AT e suas tentativas de criação de ofertas de laço social. De fato, não haveria mais a constância de um grupo, ponto importante para a condução do processo de tratamento. No entanto, abriram-se novas possibilidades de encontro, o que resultou em um aproveitamento maior do espaço do CEU, além de outro tipo de usufruto do CECCO – não havia mais a constância de um grupo, mas a instituição estava ali, presente, com suas alternâncias, seus fluxos, seu movimento.

Era final do mês de abril, Angelina e o acompanhante terapêutico se aproximavam do CECCO, sempre da mesma forma, ela correndo na frente, ansiosa para entrar em um espaço físico que se tornou bem familiar. Mas era um dia diferente, no qual se promovia uma festa de comemoração para os aniversariantes do primeiro quadrimestre do ano. Esse era o caso de Angelina. Sua entrada foi triunfal, como de hábito, mas o entorno estava muito diferente. Havia mais de sessenta pessoas ao redor de uma mesa, na expectativa de um sorteio organizado por Lucila. Era um sorteio de um quadro, doado por uma usuária, para aqueles que estavam celebrando o aniversário. Angelina rapidamente foi incluída para participar da sorte grande. Lucila lhe ofereceu a possibilidade de retirar o papel do felizardo e, para surpresa de todos, era dela o nome sorteado. Ela ganhou o quadro e, mais do que isso, sustentou seu lugar no sorteio como protagonista, que durou mais de vinte minutos, sem qualquer interferência por parte do acompanhante terapêutico. Ela passou a ser conhecida como a sortuda que ganhou a pintura, ganhou muitos olhares, não saía do salão e, logicamente, não largava do presente por nada. Angelina e o acompanhante terapêutico, ao chegarem em sua casa, causaram surpresa a Isolina, sua mãe: "Mas o que aconteceu? O que é esse quadro?". O acompanhante terapêutico explicou o ocorrido e pediu à mãe que pendurasse o quadro na parede. Angelina teve muita sorte!

Quinze dias depois, houve o almoço de comemoração do dia das mães – o cardápio era lasanha com salada. A equipe estava em polvorosa, tomada pela urgência dos preparativos. Todos estavam ocupados com uma série de providências a tomar. Lucila sugeriu uma visita à cozinha, onde havia umas cinco pessoas atarefadas com os afazeres do almoço. Nesse espaço, existiam travessas e mais travessas de lasanha, uma panela enorme de arroz e bacias de legumes cozidos. Foi impressionante o acolhimento dado a Angelina. O acompanhante terapêutico ficou encostado, em um canto, enquanto ela assistia à confusão da cozinha sentada à mesa. Paula, técnica administrativa do CECCO e extremamente habilidosa, sempre puxava um dedo de prosa, comentando a confusão do dia. Ao perceber que Angelina não iria participar do almoço, não se fez de rogada, e logo lhe serviu um prato de legumes cozidos, que foi prontamente aceito. Enquanto comia os legumes, Angelina assistia aos preparativos da festa, bastante atenta a tudo o que se passava a seu redor.

Havia uma alternância nas cenas ocorridas durante os ATs, já que as festas e eventos não eram semanais. Houve situações em que a instituição estava vazia, estando ali presentes apenas Paula e mais algum outro técnico. Era necessário ousar mais, tentar novas possibilidades de aposta nos recursos de Angelina. Foi quando o acompanhante terapêutico teve a ideia de parar o carro na portaria do CEU, pedir a Angelina que fosse sozinha até o CECCO e esperar na instituição o tempo de estacionar. O trajeto da portaria até o CECCO é de aproximadamente duzentos metros, o que configurava uma enorme extensão, se se pensar que ela tinha pouquíssimas oportunidades de caminhar sozinha. Angelina desceu do carro e conseguiu ir ao encontro de Paula. A primeira vez que isso ocorreu foi um acontecimento importante. A adolescente que repetia para si mesma que devia ter cuidado ao subir a escada de sua casa passou a se deslocar sozinha dentro de um espaço público. Tal acontecimento foi pontuado pelo acompanhante terapêutico, diante de Angelina, Paula e Lucila. Desde então foi sempre assim que aconteceu. Do lado da equipe do CECCO, todos passaram a saber o horário em que Angelina chegaria sozinha ao saguão da instituição.

Nunca se sabia de antemão o que se encontraria no CECCO. Ocorriam, em certas situações, promessas preciosas de oferta de laço social. Outras tantas vezes, a instituição estava esvaziada, o que convocava Angelina e o acompanhante terapêutico a circular por outros espaços do CEU.

Foi o que ocorreu em um dia, quando eles foram à biblioteca do CEU fazer uma visita. Na entrada, há uma catraca com um balcão, onde as crianças devem deixar suas mochilas e outros pertences para entrarem naquele espaço físico. Gustavo recebeu Angelina com muita atenção, oferecendo-lhe a possibilidade de guardar sua sacolinha repleta de papéis velhos, o que foi prontamente recusado por ela, pois não queria se desgrudar de seu objeto. Gustavo insistiu na regra de funcionamento da biblioteca, contando situações em que crianças e adolescentes aproveitavam para furtar gibis e livros e escondê-los junto com os pertences que carregavam. A regra era clara. Ela não poderia ingressar na biblioteca com mochilas, sacolas ou pacotes nas mãos. Nesse momento, o acompanhante terapêutico se distanciou de Angelina, para propiciar um espaço de diálogo entre ela e Gustavo para a solução do impasse. Alguns minutos depois, Gustavo se volta para o acompanhante terapêutico e propõe quebrar um galho, pois percebera que a recusa de Angelina não era, em absoluto, estratégia para furtar. Nesse momento, o acompanhante terapêutico interveio, não para aceitar o jeitinho proposto por Gustavo, mas para sustentar que existe uma regra a ser seguida por todos. Foi posta a Angelina a questão: "Olhe, ou você deixa Gustavo guardar sua sacolinha ou não pode entrar na biblioteca". Ela optou por não entrar na biblioteca…

No AT seguinte, Angelina entra no carro sem a sacolinha e se volta para o acompanhante terapêutico: "Vamos à biblioteca?". Ela entendeu muito bem o que se passou, realizou suas escolhas, seja a de não se desvencilhar da sacolinha, seja a de ir à biblioteca na semana seguinte. Nessa ida à biblioteca, Angelina conheceu Priscila, atendente, que também se mostrou bastante solícita e atenciosa. Angelina, em seu turno, debruçou-se no balcão e se dirigiu à moça, com pose de menina: "Olá, meu nome é Angelina". Importante salientar a ideia de que ela já não causava estranhamentos, pois era capaz de se incluir em um laço como de fato ela é, uma adolescente com jeito de menina. Entrou na biblioteca, passou os olhos nas estantes de livros e gibis, até pegar algo para folhear. Assim o fez, sentada à mesa, como faz um usuário de um serviço público, usufruindo do acesso sem restrições…

Em função da virada do ano e das consequentes mudanças de horários de oficinas na instituição, foi possível para Angelina e o acompanhante terapêutico voltarem a frequentar uma oficina, agora de reciclagem. Um dia, estava Ivana, assistente social, confeccionando um avestruz com jornal velho e cola caseira. Era uma peça grande, cujo corpo, uma bexiga enorme, fora todo envolvido por pedaços de jornal e cola. Ivana e Paula aguardavam a chegada de Angelina para que ela auxiliasse na execução do avestruz. Em torno dessa tarefa, estavam ela, outros usuários, Ivana e Paula, todos envolvidos e atentos às histórias de Ivana, que revelava os segredos da arte de mexer com cola e jornais velhos. A conversa girou em torno do avestruz, bicho curioso que gostava de esconder a cabeça. O projeto de Ivana consistia em fazer o animal envolvendo um número grande de crianças e adolescentes e, segundo ela mesma, Angelina não poderia ficar de fora, inclusive do concurso para a escolha do nome do avestruz. Os avanços eram notórios, Angelina se incluía na conversa e na realização da tarefa. Ela era responsável por colar a tira de jornal no corpo do avestruz e friccionar o dedo sobre a tira para encorpar o animal.

* * *

Ocorreram muitas outras circunstâncias importantes… No entanto, o que queremos destacar no momento é a qualidade da generosa oferta de laço social apresentada por todos os envolvidos no projeto institucional do CECCO. A questão que se apresenta é: por que levar Angelina a um CECCO? Qual é sua especificidade, naquilo que se refere a sua concepção institucional? E suas oficinas, em que medida poderiam favorecer o tratamento? Essas questões, em certa medida, justificaram a proposta de um projeto terapêutico para o referido caso, ao menos em seu ponto de partida. No entanto, a reflexão se estende para além de uma oficina terapêutica de um CECCO, uma vez que o processo de tratamento de Angelina sofreu uma guinada bastante interessante, no momento em que ela deixou de participar da oficina de costura e passou a transitar pelo território institucional, até retornar para uma outra oficina, a de reciclagem, após um tempo de circulação livre pela instituição.

Assim sendo, a presente teorização comportará dois tempos: o primeiro consiste em precisar o alcance terapêutico de uma oficina em um CECCO, bem como o usufruto de Angelina dessa experiência para, em um segundo momento, estender a leitura desse dispositivo de tratamento (oficina em grupo) para a instituição como um todo. Dito de outro modo, é possível conjeturar que um CECCO, seja em uma oficina, seja em seu território institucional como um todo, mantém a especificidade de uma oferta preciosa de laço social para o tratamento possível das psicoses.

Propomos resgatar alguns elementos importantes, tais como alguns breves recortes acerca do paradigma italiano da reforma psiquiátrica, para aí circunscrevê-los no interior de uma oficina, sobretudo para focalizar um aspecto: o modo de coordenação dos referidos grupos, à luz da teoria freudiana dos fenômenos de massa, presente nesses dispositivos de tratamento. Por fim, apresentaremos uma reflexão sobre a ideia de que um CECCO, para além de uma oficina, é um território fecundo de circulação dentro da cidade.

A psiquiatria democrática italiana, pertinente para a caracterização dos CECCOs, leva a pensar que se é a sociedade que produz a loucura e exclusão social, cabe a ela promover estratégias sociais e institucionais de inclusão social. Indagou-se a ligação de dependência entre a psiquiatria, a lei da justiça e a ordem pública, bem como o caráter social daqueles que estavam internados no manicômio e também o estatuto moralizante de uma certa ciência. Tem-se como exemplo o ocorrido em Trieste, por ocasião do desmonte de seu manicômio atrelado à reurbanização dos espaços públicos da cidade.

Segundo Rotelli (1987), a implementação do modelo italiano de substituição do manicômio seguiu alguns passos, tendo como modelo intermediário a experiência inglesa de Cooper, denominada comunidade terapêutica. Ao se constatarem as péssimas condições de vida dos internos, o que se realizou, em um primeiro momento, foi uma revitalização das relações institucionais, que permitiu uma quebra nas antigas cristalizações de relações de poder do médico e/ou técnicos sobre o usuário. Ao se horizontalizarem as relações institucionais, foi possível incluir os pacientes nas diretrizes de seu próprio tratamento. O efeito da adoção dessa estratégia foi o de incluir a dimensão política no tratamento da loucura. Conforme Rotelli, "mais que uma comunidade terapêutica, forma-se um laboratório de tomada de consciência coletiva, no qual a terapia começa a assumir outra face: torna-se um problema de emancipação do sujeito, de forma conjunta, e de desenvolvimento de uma relação crítica entre o coletivo e instituições" (1987, p. 3).

No entanto, a implementação da horizontalização das relações institucionais, conforme a experiência de David Cooper, foi somente um passo intermediário para o avanço da implementação do modelo italiano. As questões de transformação do próprio hospital evidenciaram o aspecto político que sustentara o modelo manicomial que tanto se criticara. Era necessário ir além, pois se observou que as pessoas que ali estavam não eram economicamente desprovidas. Isso levou a uma cobrança, por parte da equipe, a um engajamento das forças políticas no problema, que não mais estaria na doença, e sim na situação de pobreza.

Rotelli aponta que a experiência de Trieste, liderada por Basaglia, foi a mais completa. De início, a equipe trabalhou no interior do manicômio, de acordo com a proposta de horizontalização das relações institucionais. Posteriormente, criou-se um segundo passo, o de estabelecimento da relação entre o interior do hospital e o exterior, no caso, a própria cidade. Assim, a população em geral passou a circular pelo interior do hospital, a participar de festas etc. Em contrapartida, os usuários passaram a ser denominados hóspedes. Nessa troca, começou a se modificar a cultura sobre o hospital e o doente mental. Enfim, a abertura do hospital e o decorrente fluxo de cidadãos e hóspedes permitiram estreitar os laços entre o desmonte do manicômio e os efeitos desse desmonte no projeto urbanístico da cidade. Após alguns anos do início do processo de abertura do manicômio de Trieste, começaram a ser construídos centros externos que acolhiam os usuários de saúde mental em uma dupla demanda: a de tratamento e de apoio social e econômico. E, nesse contexto, formaram-se as cooperativas.

A partir dessas mudanças, foi realizado um referendum para abolir, da lei jurídica, os antigos paradigmas que sustentavam a prática manicomial em prol de uma nova práxis, fundamentada em pressupostos éticos e políticos distintos, tais como o deslocamento de uma visão naturalista da doença mental, com seus critérios cientificistas de desvio a uma norma, para um entendimento do fenômeno mais amplo, em que a dimensão social e política se faziam presentes. Vêse também o deslocamento de uma dimensão restritiva do usuário para uma tentativa de alargamento dos graus de liberdade pessoal. Nesse caso, inclui-se a necessidade de ampliar os espaços de liberdade do usuário, que reverbera na emancipação do espaço onde o mesmo circula. Vale romper com a lógica mecanicista do sintoma e sua remoção ao priorizar a participação em detrimento da tutela; busca-se valorizar as possibilidades e probabilidades, em detrimento da noção de causa e efeito e também recomenda-se priorizar a ênfase na construção de um objeto, em detrimento da ideia de um trabalho sobre um objeto já conhecido e estigmatizado.

Desse modo, os CECCOs, de acordo com Lopes (1999), são situados em parques, centros esportivos, praças, entre outros. Eles buscam acolher e catalisar encontros de heterogeneidades. Os CECCOs não atendem a uma única demanda, ao contrário dos CAPs, mas abarcam todas as demandas possíveis entre os usuários, tais como crianças, adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais, enfim, todas as facetas possíveis do humano. A demanda de acolhimento das psicoses é somente mais uma… Nesse contexto, os CECCOs se caracterizam por um perfil cultural em que se promovem a "convivência e o exercício da cidadania em equipamentos sociais públicos, através da arte e do trabalho cooperado, desprovido dos aparatos clássicos de serviços de saúde. (…) Além de introduzirem no imaginário popular uma nova inscrição de saúde e integração, ofereciam (…) indicadores culturais, que nessa nova modalidade intersetorial de executar saúde, se apresentam como balizadores na definição de "qualidade" de vida" (Lopes, 1999, p. 147).

Posto isso, quais as implicações desse paradigma institucional sobre uma oficina realizada em grupo? De que maneira a concepção freudiana acerca do fenômeno de massa permite uma caracterização do referido dispositivo de tratamento? Os coordenadores de oficinas buscam promover fenômenos de massa na condução/manejo dos grupos? Como atrelar a contribuição freudiana de fenômeno de massa quando se busca descrever a natureza dessa oficinaou grupo, vinculada à referida concepção institucional? É possível precisar seu alcance clínico?

Em uma instituição como o CECCO, a problemática do grupo condiz com o propósito de promover o convívio da heterogeneidade e, assim sendo, a demanda de acolhimento da psicose é somente uma entre várias. Acrescentam-se a ela as outras demandas, advindas da alienação oriunda da experiência de violência, do preconceito contra a terceira idade etc. Desse modo, a "organização grupal nesse contexto pode significar um recurso para desvendar a alienação, pois cria um espaço experiencial configurado por identificações em desejos comuns, uma vez que todos podem compartilhar de uma mesma tarefa. Essa forma de integração em grupo possibilitou o desenvolvimento de um fazer desalienante e criativo e um processo que permite a construção de novas formas de vínculo e pensamento, de relação entre experiência, representação e realidade" (Lopes, 1999, p. 151).

As oficinas dos CECCOs se organizam no pressuposto do grupo operativo, cujo expoente é a noção de grupo centrado na tarefa, idealizado por Pichon-Rivière. Segundo Lopes (1999), a interação grupal pela tarefa possibilita trabalhar conflitos e diferenças presentes no grupo a partir do que se pode denominar convivência. No grupo "os indivíduos se reconhecem e se estranham, trocam de lugares e conquistam novos ou velhos lugares modificados. Um processo com a natureza viva, porém não natural, instrumentalizando o exercício de conviver, favorecendo um flagrar-se que amplia repertórios, compreensões e potencialidades individuais e coletivas" (Lopes, 1999, p. 152).

Foi notório o aproveitamento de Angelina, quando ela participou da oficina de costura. Em meio às técnicas de fuxico ou de colagem de feltro em capas de cadernos, Angelina foi constantemente solicitada a responder aos chamados de outros participantes, bem como a responder aos olhares atentos de seus coordenadores. A impossibilidade de se desgrudar do acompanhante terapêutico cedeu terreno a outra condição, a de estar entretida na realização de uma tarefa – que nesse primeiro momento não foi grupal –, mas que lhe permitiu suportar estar ali presente, não mais colada à presença do acompanhante terapêutico, uma vez que havia a mediação de um outro: participantes da oficina de costura, coordenadores, ou mesmo seus cadernos.

No entanto, o momento em que Angelina se deparou com a confecção do avestruz, após (aproximadamente) um ano de AT, seu engate à realização de uma tarefa comum foi precioso, pois nesse momento ela sustentou um lugar próprio, ao prescindir por completo da presença do acompanhante terapêutico. Efetivouse a ação clínica de uma oficina em um CECCO em seu tratamento, quando ela pôde desfrutar o alcance clínico que esse dispositivo de tratamento oferece. Mas, no que mesmo consiste esse alcance clínico? Como, finalmente, caracterizar uma oficina ou um grupo do CECCO? Em que medida a noção de fenômeno de massa, advindo da teoria de Freud acerca do laço social, permite vislumbrar a ação de seus coordenadores, de modo a precisar a finalidade clínica de um grupo ou oficina?

O coordenador de uma oficina de um CECCO rege-se por certo saber quando propõe atividades (de fato, não dá para realizar reciclagem de jornal velho com gasolina). No entanto, esse saber não pode ser absoluto, pois o propósito de uma oficina é a realização da tarefa envolvendo os participantes, para criar os chamados encontros de heterogeneidades. Poderíamos afirmar que o lugar do coordenador é o de transmissão de um certo saber sobre esta tarefa, mas não o de encarnar esse ideal/saber como uma camisa de força, como a única maneira correta para a realização da tarefa.

Cabe ressaltar que os fenômenos de massa ou grupo, descritos por Freud, são inevitáveis nessa modalidade de oficina. Há momentos em que o coordenador oferece certos subsídios para a execução, por exemplo, de um avestruz com jornal e cola. No entanto, podese indicar uma proposição que seria a seguinte: os fenômenos de massa ocorrem na justa medida do coordenador quando ele traz os elementos essenciais para determinada proposta de execução de tarefa. No entanto, recomenda-se um não engessamento nessa mesma posição, ao se deslocar do lugar de líder para aquele que é também mais um, aquele que abre espaço para o engate dos usuários na realização daquilo que foi proposto.

Cabe ao coordenador de oficina de um CECCO abrir espaço para que os usuários tentem mobilizar seus recursos e, dessa maneira, deixar que os erros e acertos de cada um possam ser acolhidos nesse espaço de tratamento. Angelina não era a mais eficiente no trato com as tiras de jornal e cola, mas isso de nada importava… Importava a proximidade com outros participantes da oficina, sua atenção às histórias de Ivana, o contato com os materiais e a forma que o avestruz ia tomando – bem como sua permanência – o que lhe permitiu ser coautora de um objeto que promovia laço social entre os que ali passavam.

A ênfase está posta no encontro de heterogeneidades, na convivência. A participação de Angelina no CECCO teve a função clínica de dar sustentação aos ganhos oriundos do processo de tratamento. No caso específico das demandas de tratamento das psicoses, o CECCO oferece, na qualidade da oferta de seu laço, uma possibilidade de sustentação à estabilização do sujeito psicótico, porque o convite a realizar uma tarefa, seja ela qual for, prescinde das exigências de acerto presentes em uma sala de aula ou um curso profissionalizante.

Foi notório o aproveitamento de Angelina da circulação no território institucional do CECCO no período em que ela não participou de nenhuma oficina. Ocorreram momentos importantes, tais como sua participação no sorteio do quadro, sua presença na cozinha durante os preparativos do almoço do dia das mães, seu trajeto da portaria do CEU até o CECCO sem a presença do acompanhante terapêutico, a degustação de jabuticabas, enfim, circunstâncias que possibilitaram um modo de apropriação daquele espaço institucional, onde ela se fez ser reconhecida e acolhida, não somente pelos técnicos, mas também por alguns usuários.

Apesar de ser um território de passagem, essa experiência pôde demonstrar que o CECCO, mesmo nos momentos em que não ocorre uma oficina, sustenta sua proposta de encontro com as heterogeneidades. É um território de passagem que, paradoxalmente, mantém certa constância. Ao longo do tempo, Angelina conquistou e sustentou vínculos importantes, a ponto, inclusive, de cativar o interesse daqueles que ali circulavam. Ora, cabe destacar a descoberta de Heloisa, ao se surpreender com a rapidez do tempo quando desfrutava a presença daquela menina que construiu um lugar singular, próprio. Dentro da cidade, no interior de um belo parque, o número de pessoas que ali circulam é restrito o suficiente para possibilitar encontros. Ao longo desse percurso, nessa trajetória de AT, muitas outras pessoas cruzaram o caminho de Angelina, o que gerou um efeito surpreendente: uma oferta de laço social no qual foi possível suportar um tanto de suas "esquisitices", que em um primeiro momento eram mais marcantes, mas que depois passaram a ser secundárias, ao não causar mais estranhamento. Impressiona, nesse sentido, os efeitos que uma instituição dessa natureza promove em seus usuários, pois uma vez atravessados pela experiência de circulação nesse território, acabam por incorporar a disponibilidade para com o outro.

 

REFERÊNCIAS

Ciaccia, A. di (1998). De la fondation par UN à la pratique à plusieurs. Preliminaire, 910(1), 17-22.         [ Links ]

Hermann, M. C. (2005). O significante e o real na psicose: ferramentas conceituais para o acompanhamento terapêutico. Estilos da Clínica: Revista sobre a infância com problemas, 10(19), 132-153.         [ Links ]

Kupfer, M. C. M. (2000). Educação para o futuro: Psicanálise e Educação. São Paulo: Ed. Escuta.         [ Links ]

Lacan, J. (2003). Nota sobre a criança. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 369-370). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Lopes, I. C. (1999). Centro de Convivência e Cooperativa: reinventando com arte agenciamentos de vida. In M. I. A. Fernandes et al. Fim de século: ainda manicômios? (pp. 139-169). São Paulo: IPUSP.         [ Links ]

Rotelli, F. (1987). A experiência de desinstitucionalização italiana: o processo de Trieste. Cadernos Polêmicos, 2, 1-16.         [ Links ]

 

NOTAS

1 A presente reflexão é uma parte modificada da Tese de Doutorado intitulada Acompanhamento Terapêutico e psicose – um ArTiculador do real, simbólico e imaginário – defendida no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa.

2 O Lugar de Vida deu início às suas atividades em 1990 como um serviço do Departamento de Psicologia da Aprendizagem do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (PSA-USP). Após dezessete anos de funcionamento, ampliou suas atividades e foi criada a Associação Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica que mantém um convênio de Cooperação Científica com o IPUSP e com o LEPSI – Laboratório de Estudos e Pesquisas Educacionais sobre a Infância (Laboratório Interunidades IPUSP/FeUSP). Mais informações: www.lugardevida.com.br

3 Os nomes aqui presentes são fictícios.

 

 

Recebido em abril/2010.
Aceito em junho/2010.

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