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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.15 no.2 São Paulo dez. 2010
ARTIGO
O corpo e o gozo na constituição do sujeito
The body and the enjoyment in the constitution of the subject
El cuerpo y el goce en la constitución del sujeto
Paula Werner SeveroI; Maria Lúcia de Araújo AndradeII
IMestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. paulawsevero@usp.br
IIProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Coordenadora do Laboratório Sujeito e Corpo do Departamento de Psicologia Clínica. araujoml@terra.com.br
RESUMO
Este trabalho teve por objetivo estudar a constituição do sujeito e seu corpo, assim como os momentos de maior probabilidade de fixação em um tipo de gozo e suas consequências para este corpo. Na constituição do sujeito, a presença do Outro, da linguagem e do desejo, função da mãe ou cuidador, é o que possibilita ao bebê advir como sujeito desejante, como corpo simbolizado e com um imaginário que lhe das condições para intercâmbio entre real e simbolico. O Outro é também objeto de gozo, um gozo necessário para a vida e perigoso sob certas circunstâncias.
Descritores: sujeito; constituição; corpo; gozo; Outro.
ABSTRACT
This work aimed to study the constitution of the subject and body as well as the moments of greatest probability of fixation in a kind of enjoyment and its implications for the body. To constitution of the subject, the presence of the Other, the language and desire, function of the mother or caregiver, is what makes the baby come as a desiring subject, as symbolized body and with an imagenary that allows him to make an exchange between the real and the symbolic. The Other is also the object of joy, a joy necessary for life and dangerous under certain circumstances.
Index terms: subject; constitution; body; joy; Other.
RESUMEN
Este trabajo tuvo como objetivo estudiar la constitución del sujeto y su cuerpo, así como los momentos de mayor probabilidad de fijación en un tipo de goce y sus consecuencias para este cuerpo. En la constitución del sujeto, la presencia del Otro, del lenguaje y del deseo, función de madre o cuidador, es lo que permite que al bebé venir como un sujeto deseante, que simboliza el cuerpo y con un imaginario que le da las condiciones para el intercambio entre lo real y lo simbólico. El Otro es también el objeto de goce, un goce necesario para la vida y peligroso bajo ciertas circunstancias.
Palabras clave: sujeto; la constitución; el cuerpo; goce; Otro.
A questão do corpo e do gozo tem sido cada vez mais discutida na psicanálise lacaniana na última década. Muitas críticas recaíram sobre a psicanálise lacaniana, principalmente, em sua primeira clínica, ou seja, antes dos Seminários Real, Simbólico e Imaginário, Mais ainda e O sinthoma. Isto ocorreu devido a grande ênfase dada por alguns estudiosos de Lacan na questão do Simbólico, dos significantes em detrimento aos conceitos de Real e Imaginário. No entanto, Lacan nunca deixou de lado a questão do corpo, assim como outros psicanalistas de sua época como Dolto e Mannoni. Neste artigo pretendemos, portanto, fazer um estudo acerca do gozo e do corpo na constituição do sujeito.
Dentre as diversas formas de se entender o desenvolvimento humano, gostaríamos de ressaltar duas: uma delas é a da Psicologia, com autores como Piaget, Gesell, entre outros e, a outra, a partir da Psicanálise. Falaremos aqui da constituição do sujeito para psicanálise lacaniana e outros autores dessa linha; no entanto, para que fique clara a distinção, faremos uma breve comparação. Embora essas duas formas de se estudar o crescimento e formação do sujeito sejam diferentes, notamos, por meio de sintomas psicomotores, ou seja, os que envolvem a psique e o corpo, que há uma dinâmica entre eles.
Piaget (1983) se ocupa do estudo do desenvolvimento cognitivo intelectual da criança. O processo de conhecimento para ele se dá entre o indivíduo e o objeto, dependendo de ambos. Seu trabalho indica que em cada idade o indivíduo tem uma forma específica de lidar com o meio; esta forma é determinada por uma estrutura mental característica e de-terminante de uma forma de raciocínio. Para o autor, não existe uma cronologia fixa nos estágios, apenas uma ordem para estes estágios.
Temos, para a psicanálise, uma disjunção entre desenvolvimento biológico e constituição do sujeito embora um possa influenciar o outro, não há sobredeterminação biológica, nem um conceito de evolução diacrônica da subjetividade. Não é necessário que a criança tenha um desenvolvimento pleno biológico para que esta se constitua como um sujeito desejante. Dessa forma, a deficiência neurológica ou motora não são impossibilitantes. A constituição do sujeito segue a lógica inconsciente, ou seja, a lógica da linguagem, mas nem por isso exclui sua relação ao corpo. O corpo é tratado por Lacan, sob três diferentes óticas, o Real, o Imaginário e o Simbólico. Esses três aspectos nada mais são do que a própria estrutura do sujeito, ou seja, o nó borromeu.
Veremos agora como podem se relacionar o corpo e o sujeito da linguagem no processo de desenvolvimento do indivíduo.
A partir do nascimento, o bebê sai de um ambiente de homeostase e saciedade para um meio hostil, onde sua vida depende de outra pessoa, ou seja, aquele indivíduo que possui os objetos de desejo da criança, como o leite, o toque, a voz e a linguagem; essa posição é exercida normalmente pela mãe ou cuidador. Nesse momento, a criança se aliena ao Outro, ou seja, à linguagem. O Outro é um "lugar", posição, a qual confere a função de potência nomeadora. Este lugar, na instância psíquica do sujeito, pode ser ocupado por pessoas e até mesmo objetos. No início, o bebê depende apenas de sua percepção e seus reflexos corporais, ou seja, do choro, do reflexo de sucção do seio, entre outros. Aos poucos o Outro, vai nomeando seu choro, sua dor, sua fome e seu próprio nome, que o diferenciará da mãe. Assim, os movimentos que eram instintuais, se transformam em voluntários e pulsionais; a criança passa a demandar por carinho, presença, cheiro na tentativa de baixar sua tensão, seu desprazer e obter prazer. A criança passa do automatismo corporal para o início de sua constituição subjetiva (Jerusalinsky, 1999).
Lacan (1998a), em seu Seminário 11, ao retomar as teorias freudianas da sexuação infantil, em que o corpo do bebê é erogeinizado e representado através da mãe, contribui teoricamente e enfatiza que essa transição não é tão fácil assim. A alienação do sujeito a linguagem é necessária, mas não é a única opção. Para Lacan, a escolha pela linguagem é uma escolha forçada; a criança tem que se decidir por seu ser, ou seja, permanecer em um gozo que não admite falta nem mudança no ambiente, ou pela linguagem, que irá instaurar nela uma falta, um desconforto que ela lutará por tamponar. O termo escolha forçada se deve ao fato de que a criança não tem consciência dessa escolha e mal pode saber as consequências dela, ou o que ela significa, ela tem e não tem essas opções.
Em nenhuma das escolhas a criança deixará de perder algo, se ela se mantém fora da linguagem, ela perderá a vida como sujeito (Lacan, 1998a). Estes casos são raros, mas podem ser identificados claramente em alguns casos de autismo, onde a criança não se comunica nem se apega aos pais, ou outras pessoas e não suporta mudanças no ambiente. É frequente que estas crianças também não sintam dor, pois não foi nomeada esta sensação em seu corpo. (Kupfer, 2000)
Kost (1995) utiliza a figura topológia da Banda de Moebius para situar o "sujeito" autista, que para autores como Kupfer, Jerusalisky, Laznik e Kost, se encontra fora da linguagem. Desvinculado-se da utilização usual desta figura topológica, Kost (1995) situa o ser antes do corte do significante, como uma banda de Moebius, figura onde dentro e fora se tornam um só, ou seja, o ambiente faz parte do bebê, seu corpo não é fechado pela boca e ânus; eles não fazem borda. Dessa forma, o significante possibilita também uma primeira separação corporal do bebê com sua mãe e com o ambiente, mesmo sua imagem do corpo permanecendo fragmentada e com algumas regiões mais erogeinizadas que outras (Kost, 1995).
Lacan (1998a, p. 196) diz "Tudo surge da estrutura do significante. Essa estrutura se funda no que primeiro chamei a função do corte, e que se articula agora, no desenvolvimento de meu discurso, como função topológica da borda". A criação da borda, que diferencia dentro e fora, é resultante do corte instituído pelo significante, o qual pode ser representado pelo corte na banda de Moebius, um corte longitudinal irá transformar a figura em uma banda com borda. O interessante desta figura é que se fizermos mais um corte nela, ou seja, a introdução de um segundo significante, S2 (significante referente a entrada da função paterna), ela irá se tornar duas bandas, ou seja, dois círculos enodados, o que incidirá no sujeito como uma divisão entre consciente e inconsciente, que veremos mais para frente (Kost, 1995).
Para que este processo se dê, é necessário que a mãe ou outra pessoa, neste lugar de Outro, deseje a criança; é necessário que a criança realize a presença do objeto a, objeto causa de desejo posição esta que não deve se manter por muito tempo(Lacan, 2003). É somente por meio desse desejo que a mãe terá disposição para dar toda a atenção necessária ao bebê.
Ao passo que o sujeito se assujeita ao desejo do Outro, ele se aliena à linguagem, essa alienação depende da percepção do sujeito de uma falta, ou seja, sua primeira castração, a partir da separação sujeito do corpo da mãe. Esta falta percebida no sujeito a partir da perda de um objeto, ou seja, da mãe como uma parte pertencente a ele, a perda do objeto autre (outro) lhe causará o desejo do desejo do Outro. Esse seu assujeitamento e tentativa de satisfação dos desejos do Outro o levará a uma identificação ao falo, ao objeto que pretende satisfazer esse desejo e que, portanto, denota ao mesmo tempo falta e completude, e gerará a questão: Sou ou não sou o falo para minha mãe? Esta questão diz respeito a sua busca pelo elo imageticamente tido e perdido, ou seja, a tentativa de retorno ao UM, unidade/completude com sua mãe, o qual é impossível de se alcançar. Assim, o desejo do sujeito será o desejo do Outro. O Outro é, para o sujeito, portador de todos os objetos de satisfação. Ele se torna um objeto fálico e, assim, dá acesso ao gozo fálico (Lacan, 1999a, 1998b).
"O sujeito só sobrevem como Um ali onde o Real no sentido do infinitamente pleno é afetado por uma falta. Modifiquemos os termos mais uma vez e digamos: se o real é o lugar onde tudo é possível, o sujeito do inconsciente nasce, precisamente, ali onde se ergue o obstáculo de uma impossibilidade." (Nasio, 1993, p. 83).
O que se perde do Real é a Coisa, a Coisa como objeto perdido faz um furo neste gozo, nesta plenitude do Real. A Coisa, ou Das Ding,é um termo freudiano, desenvolvido em seu texto Projeto para uma Psicologia Científica (Freud, 1996a, p. 89) para nomear algo inominável. No primeiro encontro do sujeito com o outro, ele se depara com uma parte apreensível, representada do outro e com uma parte inapreensível, o estranho. Esta Coisa é o que vai orientar o sujeito, pois a Coisa falta, este encontro é eternamente buscado pelo sujeito, pois se refere a um tempo mítico de seu passado, onde não existia a falta... a falta da Coisa.
Para Levin (2003, p. 52), o Outro que vai criando no corpo enquanto "Coisa", buracos, bordas, protuberâncias, tatuando, deste modo, um mapa corporal, produto do desejo do Outro, cria-lhe uma falta no corpo, uma maneira, uma forma de que lhe falte algo. Estas faltas primordiais geram uma queda deste corpo "coisa", "carne" puro real, que ao cair reencontra-se sujeito ao Outro. Estas marcas, estes modos de que falte algo no corpo, transformam-no num corpo erógeno e simbólico.
Surge então, para Lacan (1985) o gozo fálico como resultado da perda do gozo da Coisa, o qual na verdade nunca existiu, está presente apenas no imaginário e é ele que faz com que o sujeito se movimente em busca de algo que possa tamponar essa falta, ele movimento a repetição. O gozo, ao se subordinar ao registro simbólico, paga com uma cota de si. A palavra agora é diafragma do gozo, ao mesmo tempo em que o proíbe opossibilita pela via do desejo. É a interdição do gozo que o torna possível; é na impossibilidade de sua realização, tendo em vista sua falta constitutiva, que o objeto a, objeto causa de desejo, pode tomar forma por meio de objetos concretos e dar alguma satisfação à pulsão. (Lacan, 1985). "O gozo sexual só extrai sua estrutura da interdição.... E só se liga a dimensão do sexual ao transpor essa interdição para o corpo do qual saiu o próprio corpo, ou seja, o corpoda mãe." (Lacan 1971/ 2009, p. 101).
Para Dolto (1996), a comunicação entre a mãe e a criança se dá de duas formas: por meio da linguagem vocalizada, que forma códigos de expressão audíveis, e por meio da linguagem dos gestos e mímicas, que são interpretados como códigos de desejos exprimidos. Esses códigos compartilhados estruturam imagens que são memorizadas, essas imagens podem ser auditivas, olfativas, tácteis e visuais provindas de percepções diversas e, são responsáveis por coordenar uma "espécie de presença do pré-sujeito sutil para ele próprio, que, a partir de então, se exprime por sua pequena massa carnal, tornada simbólica de seu desejo" (p. 246). Essas várias imagens irão constituir sua imagem do corpo, a qual permanece inconsciente, mas se articula com o esquema corporal, esse corpo biológico que se desenvolve no dia a dia. Para a autora, as possibilidades de desenvolvimento psicomotor dependem de cada relação mãe-criança.
"As potencialidades desaparecidas nem sempre provêm de proibições expressas: podem ter simplesmente permanecido fora do código, isto é, fora da função simbólica, que elege algumas delas e não desenvolve outras. As potencialidades do esquema corporal que não são reconhecidas ou convocadas a se exprimir pela mãe não se desenvolvem na imagem do corpo, mas desaparecem. Na verdade, existe aí um processo de recalcamento de potencialidades sensoriais, semelhante ao processo de recalcamento dos afetos ... esse recalcamento das potencialidades não utilizadas na relação mãe-filho é o que, sempre e obrigatoriamente, vicia os dados no jogo do desejo." (Dolto, 1996 p. 246).
Desta forma, uma mãe que não reconheça ou que não consiga perceber algum aspecto do desenvolvimento psicomotor da criança, e dessa forma não o coloca como um código possível de comunicação, pode ter como consequência um recalcamento desta função. A imagem inconsciente do corpo é um conceito criado por Dolto, o qual absorve todas as vivências da criança com seu meio, que, de alguma forma, causaram prazer ou desprazer. Este conceito é de extrema valia para pensarmos os sintomas psicomotores tais como as dislexias, problemas de equilíbrio, de fala, concentração, entre outros. Podemos nos perguntar se é disso que se trata, ou se ao menos, é parte de sua causa.
Aproveitando o ensejo das relações da constituição do sujeito com seu corpo, um retorno às teorias freudianas, dos processos de erogenização do corpo, pode ser útil para se pensar mais aprofundadamente casos clínicos recorrentes.
A sexualidade para Freud está presente na criança desde muito cedo. Ele notou que três regiões do corpo são especialmente excitáveis: a boca/ lábios, a região anal e a genital. Ele notou que crianças ao mamar, não o fazem somente por necessidade, elas sentem prazer na região da boca e, quando não estão mamando, é comum vê-las chuchar o dedo ou outra parte do corpo. Se, por um lado, o não reconhecimento da mãe quanto a um desenvolvimento psicomotor pode fazê-lo desaparecer, sua supervalorização, por outro lado, da mãe ou da criança de uma região erógena, pode provocar uma fixação. (Freud, 1905/1996b).
A fixação é justamente a tentativa de manter aquele gozo do corpo, de forma que tal região esteja sempre estimulada. Para Freud, essa dificuldade em se separar do gozo do chuchar, por exemplo, poderia levar um adulto ao uso de bebidas, cigarros ou até uma supervalorização do beijo. Embora esse tipo de generalização seja perigosa, nota-se que pode ocorrer uma persistência de gozos infantis, substituídos por outros objetos, mas que estão intimamente ligados a relação da criança com a mãe. (Freud, 1905/1996b).
A região anal é ligada ao controle esfincteriano e ao prazer nesta região. Esse controle adquirido possibilita para a criança um controle do próprio corpo e uma independência com relação à mãe. Antes disso, a criança depende de trocas de fraldas ou de idas ao banheiro acompanhadas pela mãe, ou seja, goza de sua presença e de seu toque. Uma das causas mais frequentes que levam os pais a trazerem seus filhos para o atendimento é a micção noturna, ou a dificuldade da criança de controlar suas fezes, sintomas que podem estar ligados a um gozo da criança. A excitação genital, por outro lado, é muitas vezes punida na infância. A manipulação dos genitais é tida como amoral e, assim, traz também consequências à sexualização da criança e seus modos de gozo (Freud, 1905/1996b).
Um segundo momento que auxilia a criança a formar uma imagem de seu corpo e se diferenciar de sua mãe é o estádio do espelho desenvolvido por Lacan.
A criança, por volta dos seis aos dezoito meses de idade, começa a reconhecer-se na imagem formada pelo espelho, bem como sua mãe refletida e os objetos ao seu redor. Esse momento para a criança é especial e podemos notá-lo por seus gestos e brincadeiras de grande excitação na frente do espelho. (Lacan, 1998b).
Para Lacan (1998b, p. 97), em seus Escritos, o estádio do espelho pode ser entendido como uma identificação, como uma "transformação produzida no sujeito ao assumir uma imagem".
Essa imagem é assumida pelo sujeito antes que possua um controle motriz suficiente para obter independência, antes de qualquer outra identificação com pessoas e antes também que a linguagem lhe restitua sua função total de sujeito. (Lacan, 1998b).
Pode-se designar essa forma de reconhecimento como um eu-ideal, que servirá de base para as próximas identificações. É o início de um "eu", antes da determinação social, o imaginário surge como uma instância de comunicação entre o eu e a realidade. (Lacan, 1998b).
A imagem do espelho não proporciona apenas uma gestalt do corpo completo, da realidade de seu corpo enquanto conjunto em uma imagem que é invertida em comparação a imagem que o bebê tem de seu corpo. O movimento frente ao espelho é constituinte do sujeito enquanto "eu" ( Je). (Lacan, 1998b).
Assim, o corpo, que antes era fragmentado, se torna inteiro, tão inteiro quanto o corpo das pessoas as quais ele pode observar ao seu redor. O corpo é, então, segundo Lacan (1998b, p. 100), "uma armadura enfim assumida de uma identidade alienante", este eu vai agora, marcar com sua "estrutura rígida" todo seu desenlace mental. Até o estádio do espelho o corpo é fragmentado, despedaçado e o reconhecimento deste é de fora para dentro, por meio da visão parcial de seu corpo e dos dizeres acerca deste vindos de outras pessoas. Essa relação com um corpo fragmentado foi constatada em delírios, sonhos e quadros de psicóticos como uma vivência de desintegração agressiva, envolvendo perseguições e paranoias. A partir do estádio do espelho, começa a se formar um eu narcísico, em função das expectativas que o sujeito carrega em relação ao Outro: "Em relação à constituição do sujeito (S), o eu só se interessa por sua imagem especular (mim) porque essa imagem é reconhecida pelo Outro (A), o Outro da linguagem, representado pela mãe, como objeto de desejo ... No vínculo imaginário e narcísico que se estabelece entre a mãe e o infans, podemos dizer que, frente à mãe faltante, a criança se identifica com o falo imaginário para preencher o desejo materno". (Andrade & Soléra, 2006, pp. 90-91).
Temos, portanto, o início da busca infindável do sujeito por ser o objeto fálico da mãe. Como não é possível saber do desejo do Outro, o infans imaginariza, observa as demandas explicitadas pela mãe, tenta satisfazêlas e, se não obtêm êxito, procura formas alternativas de conseguir a atenção desejada. Encontramos na clínica e na literatura sobre atendimentos infantis crianças que, ao perceberem que conseguem carinhos e cuidados extras quando estão doentes, se utilizam deste recurso para se satisfazer, seja de forma consciente ou inconsciente.
Este é mais um dos momentos perigosos da infância, em que o gozo pode aparecer e se fixar de forma a impedir um desenvolvimento psicomotor. As doenças somáticas, as dificuldades escolares, entre outras, ao atraírem a preocupação dos pais que por sua vez, podem ter sentimentos de culpa por não conseguirem evitar tal problema do filho, ou, até mesmo, uma carência excessiva de um dos pais que acaba por se colar ao filho e aceitar suas demandas podem criar um ciclo vicioso de gozo, no qual sofrimento e prazer se confundem.
Dolto, embora siga uma linha que diverge das teorias lacanianas quanto à estruturação do sujeito, sempre manteve um diálogo com este e nos traz outras ideias acerca do estadio do espelho, as quais pretendemos introzí-las neste momento.
Por meio do livro "A criança do espelho" de Nasio e Dolto (2008), alguns conceitos puderam ser apreendidos sobre a ideia de imagem inconsciente do corpo introduzida por Dolto.
A criança, antes de se ver refletida em alguma superfície, já sente seu corpo e já tem uma relação com este, a qual foi chamada de imagem inconsciente do corpo. Uma imagem diferente da especular fragmentada de Lacan, uma imagem coesa e de continua formação, é, sobretudo, uma imagem das sensações corporais, das primeiras impressões gravadas no psiquismo infantil através do que é escutado, sentido, visto e assim por diante (Dolto & Nasio, 2008).
O espelho, para a autora, é uma superfície onirrefletidora de toda forma sensível, não apenas do plano-especular, sendo assim existe uma função relacional onde este reflete o ser do sujeito no outro (Dolto & Nasio, 2008).
Enquanto para Lacan o estádio do espelho antecipa, é uma experiência inaugural e primordial, dando uma imagem totalizadora do corpo, fonte de júbilo para a criança, para Dolto, a imagem especular confronta a imagem inconsciente do corpo que esta criança tinha de si, provocando um estado de angústia. A imagem especular, a partir do momento em que frustra as expectativas da criança com relação a seu corpo é castrativa. Essa nova imagem vai assim, modelar e individualizar a primeira (Dolto & Nasio, 2008).
A autora nos alerta, no entanto, que nem sempre essa identificação com a imagem especular é integradora; ela pode despedaçar imaginariamente a criança quando esta se identifica com representantes imaginários do outro como a imagem das pessoas na TV, a qual é sempre cortada. Para Dolto, o narcisismo primário resulta da superação da prova enfrentada da diferença dessas imagens (Dolto & Nasio, 2008).
O estádio do espelho exerce assim uma função de castração da mesma forma que muitos outros momentos lógicos da constituição do sujeito, ela é mais uma que contribuirá para a formação da imagem do corpo. Existe, portanto, uma história dessa imagem (Dolto & Nasio, 2008).
Para Nasio (2009), as imagens não só definem o eu egoico, elas servem para dar suporte ao sujeito em sua relação com o mundo. Existem três componentes básicos da imagem inconsciente do corpo: a básica, que proporciona a certeza de que seu corpo vivo está lastreado, que é amparado por braços ou pelo solo firme; a imagem funcional, que constitui um corpo pululante, ávido por satisfazer necessidades e desejos e; a imagem erógena, onde o corpo é sentido como um orifício se contraindo e dilatando de prazer, com atenção total para a boca ou ânus, quando da utilização destes. O autor salienta que a primeira imagem é a mais importante, pois dá o sentimento de existência e é o local de refúgio para o bebê.
Percebemos sempre uma imagem velada de nosso corpo; isto ocorre pois a percepção de qualquer coisa importante para o indivíduo passa pelos sentimentos de amor e ódio, pelo ressurgimento de emoções infantis, pela presença do Outro e de todos os outros que carrego em mim. Somos regidos por nossas fantasias inconscientes, estas fantasias são constituídas por sentimentos conscientes e inconscientes, nossa história afetiva, a relação com o Outro e nossa própria imagem, isto é, a imagem gravada em minha memória do objeto amado que é posteriormente descoberto. A fantasia é o véu que recobre nossa falta, a falta significante, sexual (Nasio, 2009).
Didaticamente, podemos então dizer que o corpo real é aquele que sentimos, como a profusão de sensações, desejos e de gozo. "O corpo do gozo é nosso corpo quando sentimos despender sua energia, resistir aos mais extremos sofrimentos, desgastar-se e degradar-se inexoravelmente" (Nasio 2009, p. 76). O corpo imaginário é o corpo que vejo, sua imagem especular como o sujeito pode a apreender, imagem construída a partir do Outro e da história do sujeito, perpassada pela libido e pelo fantasma. E o corpo simbólico é o corpo que nomeio, o símbolo tem o poder não apenas de substituir a realidade, mas sobretudo de modificá-la, até mesmo engendrá-la. "Quando o símbolo, entidade eminentemente formal e abstrata, produz efeitos concretos na realidade, Lacan o denomina de significante". (p. 92) Dessa forma o corpo significante tem o poder de determinar um destino.
É importante ressaltar que, embora o que o sujeito busque seja o prazer e a satisfação, não são estes que moldam o sujeito, que o constituem primordialmente e sim o sofrimento, as inúmeras castrações que sofremos no decorrer de nossa vida. Lacan (1998b) em seu texto "subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano", em seus Escritos, salienta a importância da castração, pois é ela que dá abertura ao desejo, desejo que irá barrar e controlar o gozo; é ele que serve de defesa para não se ultrapassar um limite no gozo. Além disso, a fantasia para Lacan contém uma função imaginária da castração, a negativa do falo, sob uma forma escondida, mas que é reversível em análise. No neurótico, a negativa do falo desliza sob o sujeito barrado da fantasia, favorecendo a imaginação que lhe é própria, aquela do ego, a castração imaginária sustenta o ego forte (ego que nega a castração).
Dolto (1996) classifica cinco castrações simboligênicas, compartilhadas por Nasio (2009): a castração umbilical, a qual sucede ao nascimento, em que a criança perde o meio aquático de sua vida fetal e ganha o meio aéreo; a castração oral, inerente ao desmame, em que a criança perde o seio como parte de si mesma e adquire a capacidade de utilizar a boca e a língua para falar; a castração anal, a qual marca a passagem da dependência motora à autonomia; a castração primária, que ocorre quando a criança descobre que a imagem especular é diferente de sua pessoa e que seu corpo apresenta características sexuadas, se identifica com um dos sexos e; a castração edipiana, a qual é realizada a partir da entrada da função paterna que proíbe/barra à criança fantasiar o parente do sexo oposto como seu parceiro sexual. Nesta castração, a criança perde o prazer de uma fantasia incestuosa e ganha agora o acesso a um novo objeto em consonância com seu desejo.
Para Lacan (1999a), o complexo de Édipo pode ser dividido em três tempos. O primeiro, como já foi dito, é a identificação do sujeito ao falo, ao objeto de desejo do Outro; no segundo tempo, a função paterna deve castrar a mãe de seu objeto fálico e privar o filho deste gozo. Este passo depende da abertura da mãe ao desejo a outra pessoa, terceiro termo que poderá ser ocupado pelo pai ou outro, como portador do falo. Temos então o Nome-do-pai como significante que se sobreporá ao desejo da mãe. No terceiro tempo, a pessoa nesta função paterna, portadora do objeto fálico da mãe, servirá de ideal para o sujeito que irá se identificar a ele numa posição viril de ter o falo. Este modelo é didático e pode variar muito, tanto para a menina, como em casos de homessexualidade, fetichismo e psicose, nos quais não entrarei em detalhes. O amor dirigido ao pai dará possibilidade da dissolução do complexo edípico, apesar da agressividade dirigida a este como rival na conquista de sua mãe. Esta castração provocada pela inscrição do significante do Nome-do-Pai servirá como organizador da rede significante; ele dará agora um lugar a essa criança, a de filho com suas devidas limitações de gozo. É definida uma regularidade das relações do sujeito; nota-se uma conduta mais ou menos constante principalmente ligada ao comportamento sexual. A imago sexual é estabelecida numa constância, há uma repetição para com os objetos sexuais.
Esse novo significante a ser assimilado, ao mesmo tempo em que barra essa união, traz um alívio para a criança, pois neutraliza o desejo do Outro (mãe). O desejo da mãe, segundo Lacan (1992, p. 105), é visto como potencialmente perigoso para a criança, não é algo que se possa suportar facilmente, é um "grande crocodilo em cuja boca vocês estão". O pai, sendo o objeto de desejo da mãe, tira o peso das costas da criança de ter que satisfazê-la sempre. A criança adquire seu próprio espaço, podendo respirar mais tranquilamente. Por meio da linguagem, a criança pode tentar mediar o desejo do Outro, mantendo-o a distância e simbolizando-o cada vez mais completamente.
As memórias, simbolizações que ocorreram nesse período são mantidas inconscientes pela repressão, mas não param de operar influência no sujeito. A pulsão é obrigada a se ligar a objetos substitutivos, conforme as fantasias que passam a dirigir a libido do sujeito. Freud (1887/1996b) define as fantasias como "fachadas psíquicas", as quais obstruem o caminho às lembranças, pois servem para "aprimorar as lembranças e sublimá-las". As fantasias são feitas de restos mnêmicos, ou seja, coisas que foram ouvidas e vistas pela criança e posteriormente utilizadas em suas teorizações a respeito do que acontece a seu redor e consigo.
O recalque (esquecimento) provocado por este período faz um corte definitivo no sujeito; o sujeito é barrado. Assim, temos a divisão entre consciente e inconsciente, O sujeito estará presente sempre que é pronunciado um significante em direção a outro, isto porque a cadeia significante é regida por seu desejo e gozo estruturados por meio da fantasia.
Na primeira infância, temos, portanto, uma vasta gama de marcas corporais obtidas por meio de inúmeras castrações e simbolizações a partir do Outro. Estas marcas farão parte das fantasias de satisfação do sujeito por toda sua vida e darão formas às suas possibilidades de gozo.
"Dizer que nosso corpo testemunha uma alienação a partir da qual o [eu] se constitui significa, portanto, dizer que nossas experiências de corpo fragmentado, de impotência motora e de dependência inicial frente ao desamparo que nos encontramos ao nascer ficam em nós como marcas, não simbolizadas... Essas marcas da ordem do real formam uma 'escrita' que 'insiste' constantemente em entrar na cadeia simbólica, processo onde a angústia tem uma ação marcante". (Andrade & Soléra, 2006 p. 87).
Andrade e Soléra (2006), em artigo denominado "A Deficiência Como um Espelho Perturbador", enfatizam como esses primeiros momentos da criança influenciam sua vida. Esses sentimentos de desamparo e impotência ficam marcados no corpo, e através da repetição, tentam se inscrever, ou seja, tentam obter algum sentido para esta angústia tão primária própria da castração. Esta questão fica evidenciada quando se estuda mais detidamente a questão da deficiência, especialmente as que apresentam características corporais; as autoras, por meio de Fedida e Lacan, explicam a reação perturbadora da visão de deficientes. Esta visão, que elas chamam de espelho perturbador, nos incomoda, é estranha, justamente por nos remeter ao nosso passado, a esses sentimentos de fragmentação e impotência.
Assim como nas deficiências mentais e corporais, os sintomas psicomotores, quando são graves, podem provocar o mesmo efeito, daí o perigo de segregação ou violência nas escolas ou pela sociedade em geral sobre essas pessoas.
A fragilidade humana frente a esses momentos de separação iniciais será sempre relembrada através de outras separações, seja de uma babá, uma professora, uma casa, um brinquedo ou de uma pessoa amada. Não há como ignorar tais momentos, uma pessoa que não conseguiu efetuar uma separação suficiente da mãe, seu primeiro objeto de amor, seu grande Outro, raramente conseguirá se esquivar de produzir sintomas ou prosseguir com sua vida sem grandes sofrimentos (Rufo, 2009).
"A cada vez, a criança tem de se separar de um mundo para poder conquistar um novo. Toda separação é uma provocação de que ela sai crescida e mais humana, uma provação através da qual aprende que é impossível ganhar se não aceitar perder, o prazer da conquista vindo acalmar a dor da perda". (Rufo, 2009 p. 5).
REFERÊNCIAS
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Recebido em setembro/2010
Aceito em novembro/2010