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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.16 no.1 São Paulo jun. 2011

 

DOSSIÊ

 

Considerações psicanalíticas sobre o tratamento do outro no autismo

 

Psychoanalytical considerations on the treatment of the other on the autism

 

Consideraciones sobre el tratamiento psicoanalítico del otro en el autismo

 

 

Luciana Castilho de Souza

Psicóloga clínica no Epoc – Espace Psychanalytique d'Orientation et de Consultation. Doutoranda em Psicanálise no Département de Psychanalyse de l'Université Paris VIII, França. lucianacsouza@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo busca discutir os avanços teóricos de Rosine e Robert Lefort sobre a clínica do autismo sublinhando, sobretudo a formulação de uma clínica onde não há Outro mediante a apresentação de fundamentos da teoria psicanalítica de orientação lacaniana. Para tal, o estudo de componentes estruturais do autismo torna-se essencial visto que a publicação de Daniel Tammet sobre seu funcionamento subjetivo esclarece elementos fundamentais, a saber: encapsulamento, objetos autísticos, duplos e construção de uma língua própria. Enfim, uma vez que a tentativa da construção de tais componentes pelo sujeito autista opera-se, um tratamento do Outro se torna possível.

Descritores: objeto autístico; tratamento do Outro; autismo.


ABSTRACT

The current article has the aim to discuss the theoretical advances of Rosine and Robert Lefort where there isn't Other based on the fundaments' presentation of psychoanalyses' theory of lacanien orientation. For that, the study of structural components of autism becomes essential due to the discussion of a clinical study case – the recent publication of Daniel Tammet and its subjective functionality – based on fundamental elements such as: self-absorbed, autistic objects, doubles and construction of a single and own language. To conclude, once the construction of such components is tried and done by the person itself, an Other's treatment is possible.

Index terms: autistic object; autism; Other's treatment.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir los avances teóricos de Rosine y Robert Lefort en la clínica del autismo destacando la formulación de una clínica en la que no hay Otro, basada en la presentación de las fundaciones de la teoría psicoanalítica de orientación lacaniana. Así, el estudio de los componentes estructurales del autismo es esencial ya que la publicación de Daniel Tammet y su funcionamiento subjetivo clarea elementos básicos: encapsulado, objetos autistas, duplos y la construcción de un lenguaje propio. Por último, si la construcción de estos componentes por sujeto autista opera, el tratamiento del Otro se hace posible.

Palabras clave: objeto autistico; autismo; tratamiento del Otro.


 

 

Rosine e Robert Lefort: o Outro Real e a não operação do Fort-Da

As pesquisas de Rosine e Robert Lefort, a partir dos anos 60 e, por meio do ensino de Lacan, contribuíram para a construção de uma clínica centrada no tratamento de sujeitos no qual não há Outro, isto é, há um Outro em excesso e sem furo. Do Nascimento do Outro (1980) à Distinção do autismo (2003), o casal Lefort nos apresenta um desenvolvimento teórico-clínico até então inédito no que tange ao ensino de Lacan e a clínica de sujeitos autistas.

Eric Laurent (2007, 2010a, 2010b) nos indica a riqueza desta contribuição e do avanço teórico desenvolvido por tais autores sobre as variações dos usos do significante sozinho como puro gozo, como orientação na clínica do autismo. Seguindo o ensino de Lacan, Rosine e Robert Lefort encontraram na topologia lacaniana os instrumentos que permitem abordar o autismo a partir da formulação não há Outro. Este não há Outro indica um há Outro no seu estatuto Real, ou seja, para o sujeito autista tudo é Real, já que a operação de ausência/presença – Fort-Da freudiano – como inscrição simbólica não opera.

Freud, em seu artigo Além do princípio do prazer (1920) nos indica a incidência do simbólico sobre o corpo. O autor fornece alguns indicativos clínicos ao observar seu neto, Ernst de 18 meses, jogar com objetos. O famoso jogo da bobina realizado pela própria criança consiste em lançar longe dela uma bobina ligada a um fio. A criança pode assim pegá-la e relançá-la. Neste movimento, Freud surpreende-se ao ver Ernst experimentar certo prazer ao lançar este objeto fora de sua vista ao invés de experimentar tal prazer justamente quando o objeto aparece. No decorrer do jogo, Freud observa a criança emitir dois sons diferentes: o-o-o e Da. O primeiro grito, Fort, significa partir e o segundo, Da, significa . Assim, "o jogo completo seria desaparecimento e retorno"1. Uma nota de rodapé esclarece em seguida a presença de um espelho. Assim, na ausência da mãe, a criança joga fazendo desaparecer e reaparecer sua própria imagem no espelho e emite ao mesmo tempo os mesmos sons durante o jogo da bobina. No retorno de sua mãe, Ernst emite o-o-o, ou seja, "a criança encontrou durante sua longa solidão um modo de se fazer desaparecer"2. Ora, o que podemos sublinhar a partir desta observação freudiana seria que a bobina representa a imagem especular, já que Ernst estabelece uma relação dual com o pequeno outro, seu semelhante.

Uma última nota de rodapé nos fornece outra informação, a saber: a criança, com a idade de cinco anos e nove meses, a partir do falecimento de sua mãe não manifestou nenhuma tristeza, Trauer. Sabemos que Freud introduz neste artigo o jogo do Fort-Da visto que ele questiona sua primeira elaboração sobre o princípio do prazer na qual o aparelho psíquico seria dominado pela satisfação. Tal jogo leva Freud a analisar diferentes experiências de desprazer repetidas pelo sujeito inúmeras vezes. Em outras palavras, quando Ernst experimenta o desaparecimento de sua mãe, ele sente prazer em reiterar esta ausência pelo viés de objetos que ele faz desaparecer e aparecer.

Assim, resta um tipo de traumatismo a repetir, experiência desprazerosa que leva Freud a concluir a existência de uma compulsão de repetição além do princípio do prazer. O autor adiciona que esta compulsão consiste em algo de mais originário que o próprio princípio do prazer. Deste modo, Freud dá um passo a mais ao abordar a compulsão de repetição além do princípio do prazer, devido ao questionamento de sua teoria da libido introduzindo o conceito de pulsão de morte para além dos fenômenos clínicos. A descrição do Fort-Da elucida não somente o que há além do princípio do prazer, mas também o acesso da criança à ordem simbólica com a dimensão da perda que essa última implica. Segundo Freud, a bobina representa a mãe, essa introduzida no jogo logo que Ernst repete o vai-e-vem da bobina. Tal fenômeno não será sem consequência para a criança, já que esta experiência é traumática. O jogo inaugura assim, uma inscrição simbólica, momento constitutivo de causação do sujeito.

Ao partirmos do primeiro ensino de Lacan, sabemos que o jogo do Fort-Da inscreve-se numa ordem simbólica. Não se trata apenas do desaparecimento ou do aparecimento da mãe, presença/ausência, mas sim do fantasma do próprio desaparecimento da criança estabelecendo concomitantemente a primeira manifestação de linguagem, já que o jogo acompanha-se de uma vocalização. Se tivermos a representação, o objeto real não é necessário, ou seja, no que tange ao uso do significante na neurose a materialidade do objeto não é necessária contrariamente ao que se observa na psicose no qual o uso do significante presentifica a materialidade do objeto. É justamente neste ponto que a elaboração da presença e da ausência numa noção estrutural do sujeito repousa. A ausência da mãe reenvia à criança seu próprio desaparecimento, como a experiência do espelho nos mostra. Assim, esta imagem que aparece é justamente a da criança que se reconhece no campo do Outro.

O automatismo de repetição (Wiederholungszwang) – no lugar de compulsão de repetição, termo freudiano – proposto por Lacan (19561957), consiste na instância de uma cadeia significante, ou seja, de uma autonomia do simbólico e da mortificação do significante que não deixa de ter consequências no corpo do sujeito.

Porém, do que se trata no autismo justamente? O jogo do Fort-Da não opera, já que precisamente o Outro é Real, não barrado, S (A). "Ele é sem equivalente com o significante que falta"3. A ausência da alienação no significante do Outro exclui a identificação, significando assim que o espelho do Outro no estádio do espelho não opera entre i(a) e i'(a). Lembremos que justamente a partir dessa não identificação, já o Outro é Real, o casal Lefort avança e elabora o duplo e sua estranheza no autismo. "Trata-se de um componente fundamental e estrutural no autismo"4. Deste modo, o duplo, ao ir à contra corrente daquilo que se passa no jogo da bobina, consiste na falta da diferenciação entre ausência e presença do objeto, objeto esse que permanece não simbolizado, falta da ausência do Outro. Aqui, a divisão do sujeito não se faz, mas o duplo pode aparecer como uma saída diante deste Outro Real, ou seja, no Real do duplo. É o que mostra os autores a partir do caso de Marie Françoise e Nadia. Este Outro permanece absoluto e Real, não furado e ameaçador.

 

Perspectiva sobre a invenção no autismo

Em seu último livro, os Lefort (2003) expõem questões fundamentais a partir deste Outro massivo como particularidade do autismo articulando os diferentes tratamentos deste Outro, ou seja, a invenção de cada sujeito autista a partir deste puro gozo, gozo como prévio, por meio do estudo da invenção singular, como por exemplo, a de Temple Grandin, a de Donna Williams e a de Birger Sellin.

Neste contexto, a questão que poderíamos colocar seria a seguinte: como esta passagem – de puro gozo à invenção – poder-se-ia operar já que a passagem de S1 a S2 não é possível devido justamente a não operação do Fort-Da? Para poder respondê-la, nos apoiaremos paralelamente na indicação de Eric Laurent (2010) ao considerar o gozo no autismo como um encapsulamento, cápsula esta que pode deslocar-se em direção à construção de uma borda e de uma invenção. Assim, esta invenção dar-se-ia a partir do encapsulamento singular a cada sujeito autista. Dentro da clínica diferencial das psicoses, este gozo diferenciar-se-ia daquele do paranoico no qual é localizado no Outro, Outro em sua versão maligna, assim como daquele do esquizofrênico no qual é localizado no próprio corpo despedaçado.

Ao retomarmos a obra lefortiana, daremos seguimento ao estudo de adultos autistas que puderam testemunhar, por meio de publicações, suas próprias invenções. Tais testemunhos são publicados, sobretudo nos países anglo-saxões, por sujeitos autistas, inclusos sob a categoria nosográfica de Síndrome d'Asperger como extensão do autismo.

 

Autismos: Kanner e Asperger

Se em 1943, Kanner descobriu o autismo infantil precoce, em 1944 o austríaco Hans Asperger descreveu o comportamento particular de um grupo de crianças autistas em sua clínica em Viena. O contemporâneo de Kanner sublinha a presença de performances extraordinárias em tais sujeitos, "autômatos da inteligência"5, como consequência de uma originalidade de pensamento segundo nos mostra Harro L, uma das crianças acompanhadas por Asperger em sua clínica pedopsiquiátrica. Sabemos, porém, que o termo autismo aparece pela primeira vez em 1911 por meio de Bleuler. À luz do desenvolvimento da psicanálise freudiana, Bleuler descreve a síndrome dissociativa na psicose adulta, particularmente na esquizofrenia. Neste estudo, o autor emprega o termo de esquizofrenia ao invés de dementia praecox utilizado por Kraeplin em 1896 e considera ao mesmo tempo o autismo como uma perda de contato da realidade em pacientes esquizofrênicos. Diante deste quadro e a partir da nosografia psiquiátrica da época, o termo autismo designa o fato de o sujeito esquizofrênico voltar-se para si próprio em uma forma de fechamento autístico, fechamento este voltado para suas próprias satisfações corporais. Ora, a descrição deste fechamento autístico em sujeitos esquizofrênicos seria uma resposta frente à invasão de gozo do Outro, que aparece aqui no Real do corpo despedaçado. No caso de sujeitos autistas, este fechamento autístico aparece como encapsulamento, encapsulamente como uma saída subjetiva frente ao Outro Real. Todavia, esse encapsulamento pode vir a desloca-se em direção a uma construção de borda, como a construção de duplo(s) e o superinvestimento em certos domínios do saber como são os casos apresentados por Asperger e pela publicação de sujeitos autistas – conhecidos também como autistas de alto nível – em voga nos países anglo-saxões. Justamente, devido ao estudo de tais sujeitos, autômatos da inteligência ou portadores de ilhas de competência, que a nosografia de Síndrome de Asperger é criada posteriormente, como consta atualmente nos manuais de psiquiatria, CID 10 e DSM-IV (1996).

Apesar das descrições patognomônicas propostas pelos manuais supracitados, nossa proposta consiste em retornar à obra do casal Lefort a partir da formulação não há Outro assim como a partir da via aberta por tais autores ao estudar as biografias ou testemunhos publicados pelos ditos autistas de alto nível. Essa clínica do autismo, precisamente clínica dos autismos, nos permite assim enfatizar o tratamento do Outro dentro das vicissitudes encontradas neste tratamento pelo próprio sujeito. Para tal, partiremos da publicação de Daniel Tammet6 e sua singularidade frente ao insuportável do encontro com o Outro Real, a ausência do Outro enquanto barrado.

 

Daniel Tammet: de uma coberta numérica à invenção de uma língua própria

Nascido no leste de Londres em 1979, Daniel Tammet, filho primogênito de uma numerosa família, foi criado entre três irmãs e dois irmãos, entre os quais um autista. Sua vida, composta de detalhes complexos e confusos para o leitor, é constituída de elementos clínicos fundamentais que nos permitem extrair a lógica de seu funcionamento subjetivo, a saber: crises de cólera, encapsulamento autístico, presença de objetos autísticos, invenção de duplos, lógica visual de números e letras, aprendizagem de várias línguas, participação em concursos diversos e por fim a invenção de uma língua própria. Seu reconhecimento mundial dar-se-á por meio do recorde europeu alcançado em 2004, no qual recita 22 514 decimais do número pi sem fazer nenhum erro.

Durantes seus primeiros anos de vida, o cotidiano de Daniel é marcado por consultas médicas sucessivas visto que ele era considerado como "um bebê difícil" devido a seus choros intermináveis e excessivos assim como a dificuldade em dormir.

Em breve não havia mais nem dia e nem noite já que meus pais se organizavam em função de meus choros ... poderia acontecer que por desespero eles me colocassem em volta de uma coberta para me balançar, minha mãe de um lado e meu pai do outro (Tammet, 2007, pp. 25-26, tradução nossa).

Em meio a esse cenário, sua mãe dá à luz uma segunda criança, Lee, momento no qual Daniel começa então a bater sua cabeça contra a parede de forma repetida tendo por vezes crises de cólera insuportáveis, segundo ele mesmo descreve. Neste momento, Daniel entra na creche e seus choros são aos poucos espaçados, devido justamente à sua primeira fascinação por objetos, as ampulhetas de areia. Em seu relato, ele descreve detalhadamente o movimento dos grãos de areia, assim como suas formas em detrimento da presença de outras crianças que ali se encontravam. "Eu era uma criança no meu mundo" (Tammet, 2007, pp. 29-30). Tal encapsulamento nos permite voltar à formulação de Rosine e Robert Lefort (2003) anteriormente desenvolvida no qual o sujeito autista encontra como resposta algo que lhe permite tratar o Outro Real, como Tammet (2007) sublinha no final de seu livro: "Eles (meus pais) não faziam parte de meu mundo" (p. 225).

Após as ampulhetas de areia, os livros infantis tornam-se então o centro de suas "obsessões". Ele passa horas folheando as ilustrações coloridas, pressionando, por vezes, contra seus ouvidos suas mãos, no intuito de parar os barulhos externos que o perturbavam. Daniel descreve assim as sensações corporais experimentadas a partir de tal movimento como uma forma de "condensação de silêncio". Essa "condensação de silêncio", Daniel encontrará também ao observar seus pais "decifrarem" – ao invés da utilização do verbo ler – jornais, livros e revistas.

Ora, é justamente nesta época que Daniel começa a empilhar sucessivamente livros em torno de seu corpo numa tentativa de construir um envelope corporal. Ele adiciona ainda que o fato de estar coberto por páginas numeradas e letras o permite construir o que ele nominará "cobertura numérica". Podemos apontar aqui a tentativa de construção de uma borda a partir de seu próprio encapsulamento, isto é, a construção de uma "cobertura numérica" a partir da "condensação de silêncio". Neste contexto, os números e letras passam a ocupar um lugar essencial para Daniel. Vale ressaltar que um ponto obscuro permanece para o leitor em torno das circunstâncias que o levou a passar da obsessão das ampulhetas de areia à obsessão de livros. Entretanto podemos acrescentar o fato de que sozinho ao cair bruscamente da escada com um livro pesado ele foi invadido por sensações enigmáticas que o levaram em seguida a visualizar cores ligadas a números e letras. Diante disso, poderíamos deduzir que a tentativa de construção de um envelope corporal, por meio de números e letras, permanece aqui articulada com essa invasão de gozo enigmática como puro Real.

Curiosamente, um elemento importante aparece em seguida no seu relato, a saber: um pesadelo repetido onde ele é devorado por um dragão seguido de seu próprio desaparecimento. Aqui, observamos o encontro com o Outro ameaçador e sem furo. O que corrobora para tal reflexão são justamente as sucessivas construções de duplos e os sucessivos usos de objetos autísticos que Daniel realizará em seguida e durante vários anos permitindo-o tratar este estatuto do Outro. "Eu continuava a ter pesadelos, mas eles se tornaram menos frequentes e menos angustiantes. A gente pode dizer que eu consegui vencer o dragão" (Tammet, 2007, p. 31).

Este uso posterior de outros objetos autísticos e a construção de seus duplos ocorrerão concomitantemente com o uso privado de algumas palavras até a invenção de uma língua própria, o Mänti, língua com mais de mil palavras. Todavia, o uso que Daniel fará das letras e dos números não deixa de ser surpreendente e fundamental em sua invenção singular. Em outras palavras, na tentativa de construir uma língua própria, ele aprenderá vários idiomas no intuito de criar um vocabulário que lhe é próprio. "Criança, eu tentei construir durante vários anos uma língua própria" (Tammet, 2007, p. 180). Fenômeno neologístico por excelência, a procura de uma pronúncia e sintaxe fazem também parte de sua invenção. "Eu nomeei minha língua o Mänti (pronuncia-se "maen-ti".) segundo a palavra finlandesa mânty, pinheiro. Pinheiro significa também "amizade" e "comunidade". (Tammet, 2007, p. 180). Esta construção articula-se a sua impossibilidade de compreender seus semelhantes, visto que ao ouvi-los, Daniel tinha a impressão de que ele estava procurando ao mesmo tempo uma estação de rádio em sintonia com os sons emitidos por estes.

Todavia, tal fenômeno acompanhava-se do processo que ele chama de "sinestésico", isto é, de imagens e de sensações, a saber: o termo ladder (escada) é azul e brilhante, enquanto que hoop (cérebro) é branco e suave. Daniel pode assim memorizar tanto a língua do outro, como sua própria língua por meio de imagens. Justamente o título de seu livro, Je suis né un jour bleu [Eu nasci em um dia azul], recai sob tal processo sinestésico. Sua fascinação pelo estudo de letras e palavras vai de encontro com sua fascinação por números. Lembremos justamente a sua construção inicial de "cobertura numérica" englobando não só as letras como também os números. No que tange aos números acompanhados de imagens, a estes são atribuídos certa vivificação permitindo a Daniel se relacionar com seus semelhantes.

Se um amigo me diz que se sente triste ou deprimido, eu me imagino sentado na cavidade negra de um 6, e isto me ajuda a sentir e a lhe compreender. Quando eu leio um artigo na qual uma pessoa foi intimidada por algo ou alguém, eu me imagino em pé ao lado do número 9 (Tammet, 2007, p. 16).

Ou ainda em relação à data de seu nascimento, ele nos diz:

Eu nasci no dia 31 de janeiro de 1979. Uma quarta-feira. Eu sei porque no meu espírito, o dia 31 de janeiro de 1979 é azul. As quartas-feiras são sempre azuis assim como o número 9 ou o barulho de uma disputa (Tammet, 2007, p. 9, tradução nossa).

Este caso permite verificar a hipótese inicial de um deslocamento do encapsulamento de "condensação de silêncio" e aqui se entende o encapsulamento como gozo, em direção a uma construção de uma borda, a "cobertura numérica" para enfim tratar o Outro, Outro com uma uma língua própria. Neste sentido, atualmente Daniel por meio de seu site internet7 divulga o aprendizado do Mänti e de outras línguas e participa de concursos ou recordes numéricos fazendo assim um uso singular de sua invenção que o vivifica no Outro, Outro por sua vez menos ameaçador. Paralelamente, no ano de 2009, Daniel publica seu segundo livro, Embrasser le ciel immense: Le cerveau des génies [Abraçar o imenso céu: O cérebro de gênios], no qual ele próprio faz a tradução do inglês para o francês juntamente com um outro tradutor e explica ao longo desse livro o seu funcionamento subjetivo por meio dos pressupostos neurocientíficos.

Ora, vemos precisamente o que um sujeito autista pode construir como tratamento do Outro algo que o conduz a um apaziguamento de gozo por meio do superinvestimento de números e de letras, fora da metáfora paterna, mas por meio de uma vivificação no Outro. Ao contrario do que nos propõe o casal Lefort na sua obra intitulada O nascimento do Outro (1980), poderíamos utilizar como título O nascimento para o Outro, como nos sugere Eric Laurent (1981).

 

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Recebido em maio/2011.
Aceito em junho/2011.

 

 

NOTAS

1 Sigmund Freud. « Au-delà du principe de plaisir » (2001), Essais de psychanalyse (A.Bourguignon et al, trads., 2a ed., p. 159). Paris: Editions Petite Bibliothèque Payot. (Trabalho original publicado em 1920).

2 Cf. Sigmund Freud, Essais de psychanalyse, Petite Bibliothèque Payot, 2001, p. 59.

3 Formalização desenvolvida por Rosine e Robert Lefort ao longo de Naissance de l'Autre (1980) sobre o Outro como Real no autismo.

4 Rosine & Robert Lefort (2003). La distinction de l'autisme. Paris: Editions du Seuil, p. 27.

5 Hans Asperger (1988). Les psychopathes autistiques pendant l'enfance (Elizabeth Wagner et al, trad.). Paris: Les empêcheurs de penser en rond. (Trabalho original publicado em 1944).

6 Daniel Tammet (2007). Je suis né un jour bleu (Nils C. Ahl, trad.). Paris: Arènes. (Trabalho original publicado em 2006).

7 (www.optimnen.co.uk/about.php)

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