Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.18 no.2 São Paulo ago. 2013
EDITORIAL
A experiência da diferença nas telas: psicanálise, educação e cinema
A tolerância com o que não é igual ao "si mesmo" cria um novo espaço nas subjetividades. Nesse sentido, a experiência com a diferença nas relações sociais produz uma série de efeitos para os laços, especialmente no que se refere às possibilidades de criação.
A passagem dos preceitos de alteridade à materialidade da lei configura-se um importante dispositivo de regulação da intolerância com a dimensão do outro, isso para além da alteridade produzida em meio à vivência com a diversidade - seja ela sexual, intelectual ou outra.
Nas duas últimas décadas, temos assistido ao tema da diversidade e da inclusão - tanto escolar quanto social - tomar o protagonismo nas agendas das políticas públicas de Educação. Em meio a debates acalorados e alguns avanços importantes, chegamos ao início do século XXI com relevantes propostas de inclusão de meninos e meninas portadores de diferenças no âmbito do ensino regular.
Em se tratando do campo das diferenças sexuais, apesar da recente aprovação pela Comissão de Direitos Humanos da proposta do deputado João Campos (PSDB-GO), autor do projeto conhecido por "cura gay", não devemos negligenciar toda a discussão promovida, nas últimas décadas, acerca da pluralidade de gêneros, das diversas matrizes religiosas, das homofobias, preconceitos de cor, entre outros.
O psicanalista Marcelo Ricardo Pereira, no artigo "Menino-Menina", lembra-nos que Freud (1915-1980), já no início do século XX, assinalava uma importante contribuição ao campo da diversidade sexual. O austríaco dizia que não há feminilidade ou masculinidade pura, nem no sentido biológico, tampouco psíquico. É assim que se distanciava da matriz biológica, inaugurando um pensamento sustentado na dimensão da diversidade, advogando, sobretudo, na direção da causa do Desejo como ancoragem das escolhas de objeto sexual.
Apesar da antiguidade do argumento, a materialidade desses avanços é mais recente e aparece por meio de legislações que protegem os sujeitos dos efeitos da intolerância, tais como as políticas afirmativas que incluem as cotas nas universidades e nos locais de trabalho. De todo modo, e apesar de sua reconhecida importância, a lei não encerra o debate da sociedade acerca dos temas que lhe são caros. As fronteiras imaginárias que historicamente dividem os sujeitos entre normais e anormais do ponto de vista psíquico também não cessam de ensejar controvérsias dentro e fora das telas.
No filme Sabine, documentário feito por Sandrine Bonnaire (França, 2007), a dona da história é a irmã de Sandrine, que, desde a infância, circulou por instituições hospitalares e escolares a fim de encontrar um espaço social passível de suportar a expressão de sua diferença. Como lembram Ângela Vorcaro e Mônica Rahme, no artigo "Ela se chama Sabine...", a tentativa da família de incluí-la em uma escola "regular" tomou o rumo que as políticas educacionais francesas seguiam em meados dos anos 1970, quando foi feita a lei que indicava o sistema misto na composição escolar, ou seja, passou a ser indicada a educação especial no sentido integrador, dando-se em meio à educação comum.
Nessa direção, é bom lembrar que as ideias e intervenções de Maud Mannoni não só revolucionaram os conceitos de deficiência e doença mental na França do período, como também todo o sistema de atendimento clínico-educacional dirigido aos sujeitos, na época, ainda chamados de excepcionais. A psicanalista francesa, filiada ao ensino de Lacan, influenciada por algumas premissas da antipsiquiatria e seduzida pela nascente crítica de Winnicott à medicalização excessiva dos problemas mentais, criou algo diferente para os moldes da época, a École Experimental de Bonneuil-sur-Marne - uma intervenção nas bordas da Saúde e da Educação que pretendeu levar os princípios da Psicanálise a construir um lugar alternativo aos sujeitos que apresentavam quadros psíquicos graves e dificuldades de inserção escolar expressivas.
O artigo de Rose Gurski, Carla Vasques e Simone Moschen intitulado "Psicanálise, Educação e cinema: diálogos possíveis" veicula informações precisas acerca deste capítulo importante do legado de Maud Mannoni no campo da educação especial, além de introduzir o leitor no âmbito da trindade psicanálise, educação e cinema. Entre outras questões, as autoras sublinham que, mesmo a escola sendo uma das instituições sociais mais importantes para a inserção social de uma criança e um jovem, o campo da educação não se reduz ao escolar, pois são muitos os dispositivos da cultura passíveis de realizar outras nuanças da transmissão educativa.
Tal tessitura fica evidenciada no artigo de Margareth Diniz. Ao comentar o filme I am Sam no artigo "I am Sam : deficiência mental e relação com o saber", ela discute os conceitos de deficiência mental e das representações sociais que a envolvem. Usando o cinema e a filmografia disponíveis para interrogar diagnósticos fixos e excludentes do sujeito e de sua relação com o saber, o artigo apresenta a definição de deficiência mental em uma perspectiva universal e coteja a diferença entre deficiência mental, debilidade e fracasso escolar na perspectiva da Psicanálise.
Nas narrativas fílmicas, a diferença tem sido alvo das exibições, ora resultando em filmes e documentários que interrogam a produção da exclusão e da segregação, ora no sentido de questionar as representações sociais que segregam e excluem, mostrando instituições totais, tais como as casas de correção e as escolas especiais. Além da crítica às estruturas sociais mais arcaicas, filmes como o Oitavo dia, Meu filho, meu mundo, Meu pé esquerdo e o recentíssimo Colegas contam, cada um a seu modo, as nuanças do cotidiano dos sujeitos que carregam diferenças e daqueles que acabam convivendo com eles, sejam familiares, amigos ou profissionais da Saúde e da Educação.
A sétima arte, além de entretenimento e cultura, tem se estabelecido como um modo de pensar a vida e de apresentar problematizações pertinentes ao convívio social. É assim que clássicos e contemporâneos juntam-se para compor um caleidoscópio de questões fundamentais à formação reflexiva de qualquer sujeito atento às questões de seu tempo.
Para a Psicanálise, as imagens, os estereótipos e os preconceitos constituem fenômenos essencialmente imaginários. O imaginário é o registro daquilo que se congela, da imagem fixada no espelho. Dessa forma, todos temos estereótipos e preconceitos; entretanto, trata-se de refletir acerca do que a sociedade e cada sujeito costumam fazer a partir deles. O problema social começa quando alguns passam a ser estigmatizados e considerados desviantes em relação a um padrão de valor estabelecido. Ao excluirmos a pluralidade e a diferença, rechaçamos a diversidade como potência de criação.
Nesse sentido, apesar da juventude histórica que marca o nascimento tanto da Psicanálise quanto do cinema, várias já foram as tentativas de fazer que os dois campos dialogassem com a Educação. Relação marcada por um viés mosaico por excelência, tais experimentações resultaram quase sempre em um interessante dispositivo polissêmico, produzindo outros e novos sentidos. Não por acaso, neste dossiê, a Educação encontra-se tensionada como um dos elementos de tal trindade.
Pela reunião de textos propostos por psicanalistas, educadores e professores universitários, buscamos exatamente problematizar alguns fios desse mar de questões: como afinal o cinema tem tratado as diferenças? De que modo a Psicanálise pode contribuir com a Educação quando esta se encontra atravessada pelo cinema? De que forma a presença do tema da diversidade sexual nas telas ajuda a ampliar a noção da ética do Desejo? Como a dimensão do que vemos e do que nos olha na tela do cinema pode ter uma função de reconhecimento do dizer do sujeito?
O leitor da Estilos da Clínica, já acostumado à intensa composição de diversidades criativas apresentadas pela Revista, pode, por este dossiê, encontrar-se com o delicado convite de adentrar as telas, deixando-se levar não só pelas projeções, mas também pelos efeitos que a conexão do tripé psicanálise-educação-cinema pode trazer para a discussão acerca do tema das diferenças e, especialmente, no que se refere ao campo do Desejo.
Rose Gurski
Margareth Diniz
Marcelo Ricardo Pereira
* * *
Este número de Estilos inaugura uma nova seção: Textos Históricos. Com esta iniciativa, os editores estão buscando ser fiéis ao espírito que levou à criação da revista, qual seja, o de levar ao leitor produções significativas no campo das articulações da psicanálise com a educação. Essa produção precisa incluir também textos que hoje já são clássicos, mas não puderam, por várias razões, chegar às mãos do leitor de língua portuguesa. Começamos com Zulliger, traduzido diretamente do alemão por Elisabete Mokrejs e Karin Bakke de Araújo. Aguardem: outros virão!
Os editores