Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.20 no.2 São Paulo ago. 2015
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v20i2p174-180
EDITORIAL
Sandra Francesca Conte de Almeida
Universidade Católica de Brasília
Freud, em seu texto "O mal-estar na civilização" (1930/1976)1, nos adverte que "o programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado.... A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo" (p. 33).
Na perspectiva freudiana, o mal-estar na cultura é inerente à condição humana, não tendo o sujeito como dele escapar. Trata-se, aí, do preço que o homem tem de pagar para passar do estado de natureza ao estado civilizatório, isto é, renunciar a um quantum de realização pulsional para entrar na ordem simbólica da linguagem e constituir-se propriamente como sujeito de desejo, lá onde se instala uma falta-a-ser impossível de ser reparada. Nessa direção, Freud aponta que o projeto de felicidade do homem se aninha em uma dimensão imaginária e fantasiosa, plena de ilusões, que se alia, contudo, aos ideais da civilização, com a finalidade de protegê-lo de si mesmo (desamparo fundamental, inscrito no corpo e no psiquismo), da natureza e dos relacionamentos com os outros homens.
Para Freud (1930/1976), "as nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas pela nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provem dessa última fonte talvez seja mais penoso do que qualquer outro" (p. 25).
A angústia, sinal de advertência, segundo Freud, frente à ameaça de infelicidade, nos acompanha desde a nossa constituição como sujeito singular, desejante, ao mesmo tempo que sujeito social (segundo a lógica lacaniana O inconsciente é estruturado como uma linguagem e O inconsciente é o discurso do Outro2). Na qualidade de afeto está presente no sofrimento psíquico, que se manifesta sob a forma de diferentes sintomas, inscritos no real do corpo e no psiquismo, na subjetividade, conforme os arranjos fantasmáticos, os traumas, as experiências vividas na história do sujeito, na perspectiva de sua singularidade e das inscrições do que, do discurso, faz laço social.
A infância e a adolescência, construídas e representadas como categorias de pensamento com o advento da modernidade, constituíram-se, ao longo do século XX, em objeto de saber "científico", de caráter universal e a-histórico, e de práticas sociais atreladas ao ideário de progresso e de evolução do ser humano. No bojo dessas concepções, surgiram as representações sociais de criança/adolescente normal, em oposição à noção de anormalidade, caracterizada esta por desvios, distúrbios, transtornos, patologias, atestados em sua "veracidade" por especialistas de diversas áreas, sobretudo médica e psicológica, cujas práticas eram devidamente legitimadas pelo discurso científico, instaurado como significante-mestre da modernidade. O sofrimento psíquico de crianças e adolescentes, sua angústia, seus sintomas e gozo, na esteira de tais concepções e práticas, foram capturados por uma rede discursiva repressiva, normativa e moralizante, cujos efeitos deixam marcas na subjetividade dos sujeitos, justamente por elidir a noção psicanalítica do sujeito do inconsciente, como sujeito de desejo.
O discurso da psicanálise e sua prática clínica se estabelecem no avesso do projeto de normalização/patologização, medicalização e judicialização de crianças e adolescentes, tomados na posição de objeto de gozo do Outro. A psicanálise propõe-se a escutar e a tratar a criança/adolescente-sujeito, na sua singularidade, no caso a caso, quando um e outro se encontram em estado de sofrimento psíquico. A origem desse sofrimento se situa nas vicissitudes da constituição do sujeito no campo do Outro, isto é, no campo da alteridade simbólica, nas configurações dos laços sociais que crianças e adolescentes estabelecem com as figuras parentais (e suas imagos), seus substitutos e representantes, seus semelhantes (o pequeno outro), conforme a estreita e íntima relação entre o que é geneticamente transmitido e o que é influenciado pelo meio social, segundo apontam os estudos em epigenética, e na posição subjetiva do sujeito frente ao falo, à castração e ao desejo.
O sofrimento psíquico de crianças e adolescentes demanda, frequentemente, intervenções, por parte do analista, que se situam entre o terapêutico e o educativo, sobretudo quando sua constituição psíquica se encontra precocemente em situação de risco, quando a criança se organiza, psiquicamente, de um modo muito particular, que dificulta sobremaneira o estabelecimento dos laços sociais, quando a criança e o adolescente são muito vulneráveis, do ponto de vista psicossocial, com esgarçamentos e rupturas nos seus relacionamentos e, ainda, quando ao longo do seu desenvolvimento se deparam com questões intrasubjetivas e intersubjetivas conflitivas e angustiantes de difícil travessia. Assim, por exemplo, bebês que apresentam indicadores de risco psíquico, crianças/adolescentes autistas e psicóticas, adolescentes com frágeis laços familiares e sociais, adolescentes com passagens ao ato violento, com privação de liberdade ou em liberdade assistida demandam do analista uma posição subjetiva, uma escuta, um tratamento e um enquadre que, via de regra, não correspondem ao modelo de uma análise clássica. Trata-se, aqui, de acolher o sofrimento psíquico dessas crianças e adolescentes e, ao mesmo tempo, do Outro (familiar, institucional, social) inventando e reinventando possibilidades e condições de estabelecimento da relação transferencial analítica, por meio de dispositivos de escuta, de mediação e de tratamento que levem em consideração a singular posição subjetiva dos sujeitos, sua inscrição no discurso social e o desejo do analista. Este irá buscar, no caso a caso, junto com a criança ou o adolescente em sofrimento, "a regra de ouro" pela qual ambos poderão acercar-se do mal-estar que acomete o sujeito e lhe propor uma outra direção, tendo no horizonte a realidade psíquica do desejo.
Os textos que compõem este dossiê apontam, cada um à sua maneira, apoiados em perspectivas psicanalíticas de diferentes filiações teórico-clínicas, que o sintoma não comporta apenas uma dimensão simbólica, uma mensagem ou fala endereçada ao Outro e que pode ser interpretada, isto é, que tem um sentido, que porta uma significação. O sintoma, mesmo "decifrado", comporta um resto, que resiste à significação, e que Lacan designa como gozo, uma satisfação do desejo "às avessas" ou, segundo Freud, uma "satisfação real", para além do princípio do prazer. Neste sentido, o gozo do sintoma regula a relação do sujeito com o Outro, razão pela qual a análise não visa apenas ao sentido do sintoma ou do sofrimento psíquico que ali comparece, mas também aos modos pelos quais o sujeito goza do seu inconsciente.
Os artigos apresentados a seguir discutem alguns dispositivos de mediação clínica/educacional, de orientação psicanalítica, no acolhimento, na escuta e no tratamento do sofrimento de crianças e adolescentes cujos destinos psíquicos têm a ver com a gestão do desejo e do gozo na relação do sujeito com o Outro e com o discurso social.
O artigo de Camila Saboia, "O brincar precoce do bebê como indicador de riscos de sofrimento psíquico", apresenta e discute os resultados de um estudo longitudinal de bebês com risco de autismo, acompanhados entre os 6 meses e os 3 anos de idade, que constatou que a maneira como esses bebês exploram, interagem e respondem a um brincar compartilhado com o outro se diferencia significativamente da de bebês que apresentam um atraso do desenvolvimento psicomotor, sem traços de risco de autismo, e de bebês saudáveis (normais).
A experiência clínica de Saboia com crianças autistas permitiu-lhe observar que naquelas há uma ausência da transição a que se refere Winnicott (entre o brincar primitivo playground - e o brincar simbólico playing), que poderia explicar a presença de objetos autísticos, que surgiriam como uma tentativa da criança de suprir ou amenizar a perda violenta ou brusca do objeto primário. Daí decorre o interesse da investigação: identificar se a qualidade das primeiras manifestações das expressões do brincar do bebê seria, efetivamente, reveladora de traços de um quadro de patologia autística em curso ou em desenvolvimento na criança pequena.
O leitor é convidado a percorrer os detalhes da pesquisa, a análise e discussão de seus resultados, cuja contribuição teórico-clínica no campo da intervenção precoce, ou a tempo, e no tratamento/educação de crianças com indicadores de risco de sofrimento psíquico e transtornos globais do desenvolvimento é indiscutível, na medida em que ressalta a importância da qualidade do brincar precoce do bebê e das interações com a mãe na constituição subjetiva da criança.
No artigo intitulado "O fantoche como mediação para os sofrimentos psíquicos", seus autores, Pascal Le Maléfan e Teresa Rebelo, discutem o uso de fantoches como dispositivo psicoterapêutico na mediação de sofrimentos psíquicos de crianças.
São descritas três possibilidades de utilização do fantoche: como elemento central de um dispositivo, com objetivo criativo ou terapêutico; como um elemento entre diversos outros, integrando um dispositivo da relação terapêutica ou psicoterapêutica; ou, ainda, como único vetor de uma relação terapêutica ou psicoterapêutica, que se apresenta como uma possibilidade mais rara. Os fantoches são utilizados em diversos contextos clínicos, como oficinas terapêuticas, grupos terapêuticos com mediação, psicoterapias lúdicas e de orientação psicanalítica, dentre outros dispositivos apropriados às problemáticas em foco.
Os autores discutem, em particular, o uso do fantoche como dispositivo de mediação na psicoterapia com crianças psicóticas, cujo valor terapêutico se encontra na relação metonímica que o sujeito estabelece com o objeto fantoche, na sua fabricação, na sua manipulação, no vestir e na nomeação e, sobretudo, na mediação da relação da criança psicótica com o Outro.
No caso das crianças autistas, chamam a atenção para o fato de que elas têm uma relação específica com um objeto pulsional, em particular: a voz, e que os autistas costumam usar o dispositivo fantoche para usar suas vozes, fazendo falar o seu fantoche.
Os autores concluem que são inúmeros os recursos do fantoche como mediação na relação com o Outro, em psicopatologia clínica, e que a história de seu uso psicoterapêutico é rica em experiências eficazes. A leitura cuidadosa do artigo de Le Maléfan e Rabelo confirma a importância e os efeitos terapêuticos desse dispositivo no tratamento de crianças com graves transtornos de desenvolvimento.
No artigo que assino com Katia C. T. R. Brasil, Deise Matos do Amparo e Adriana M. R. Pereira, nomeado "Adolescência, violência e objetos culturais: uma intervenção entre o educativo e o terapêutico no espaço escolar", apresentamos o relato de uma experiência de produção em grupo, no ambiente escolar, de um curta-metragem que pretendeu oferecer dispositivos de apoio narcísico e de expressão para adolescentes que se encontravam em situação de vulnerabilidade social e violência.
Apoiadas na convicção de que a passagem pela adolescência implica na revivência do Complexo de Édipo, na reorganização narcísica e na reestruturação da arquitetura do corpo pulsional e que essa travessia significa uma espécie de "arrombamento pubertário", caracterizado pelo enfrentamento de conflitos oriundos dos processos internos e da vida relacional, que podem levar o adolescente a atos de violência e às patologias do agir, propusemo-nos a investigar como a mediação de objetos culturais poderia contribuir para a canalização da força pulsional, na adolescência, e se constituir em instrumento de criação e de reorganização subjetiva para o sujeito.
As transformações corporais, os conflitos e as mudanças psíquicas, a agressividade pulsional, as passagens ao ato, as marcas e inscrições corporais, o luto da infância, o luto e distanciamento dos pais, a violência atuada na escola são apresentados e discutidos pelas autoras à luz da psicanálise, como fenômenos que expressam o mal-estar da travessia adolescente. Tais expressões corporais e psíquicas, quando endereçadas ao adulto com um possível pedido de ajuda, carecem de uma intervenção educativa e/ou terapêutica visando à canalização do excesso pulsional e ao apoio narcísico sustentado por pais e professores, de modo a (re)organizar as referências de filiação e os laços sociais do adolescente. Os objetos culturais surgem como recursos mediacionais nessa direção, tendo sido a oferta de oficinas de audiovisual o dispositivo utilizado pelas autoras no trabalho com os adolescentes em situação de vulnerabilidade e risco psicossocial.
Ao criar um curta-metragem, os adolescentes se (re)criaram, tendo sido capazes de encontrar, pela mediação de um objeto artístico-cultural, uma nova forma de colocar para fora, de modo criativo e simbólico, o que os mobilizava internamente.
No artigo "Infância e sofrimento psíquico: medicalização, mercantilização e judicialização", Carlos Mendes Rosa, Lana Veras e Junia Vilhena, referenciados sobretudo pela psicanálise, desenvolvem uma análise crítica em torno de alguns discursos sociais sobre "a(s) infância(s)", na contemporaneidade, focalizando, notadamente, a judicialização, a medicalização e a mercantilização dos primeiros estágios da vida e seus efeitos no modo de funcionamento dos sujeitos.
Os autores constatam que os discursos sobre a infância e a adolescência, na atualidade, não são homogêneos e não se dirigem igualmente a todos os contextos socioeconômicos e culturais. Conforme apontam, o da judicialização se transforma em uma política de vida, que realiza a clivagem da infância, que passa a ser alvo de atenção/controle, recebendo os papéis de "vítima" e "delinquente". O discurso da medicalização rotula como patológicos comportamentos da criança e do adolescente que até há pouco tempo eram considerados normais. O encontro desses discursos, segundo os autores, é costurado pela mercantilização, que transforma as "soluções" em produtos, sejam judiciais ou médicos, para vendê-los.
O texto discute os três discursos sobre a infância, mencionados acima, considerados hegemônicos na contemporaneidade, citando diferentes exemplos em que as subjetividades dos sujeitos são engessadas, nomeadas e estigmatizadas por dispositivos e práticas sociais oriundos dessas concepções: mortes de "menores" negros e pobres por "autos de resistência", privação de liberdade de crianças e adolescentes em instituições de saúde mental, penal e sociocorretiva, diagnósticos médico e psicológico que patologizam comportamentos de ordem familiar, escolar e social, a exemplo do Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade.
Os autores concluem que a sociedade contemporânea está negando às crianças o direito de serem crianças e de terem acesso, independentemente de suas condições psíquicas e sociais, às experiências culturais necessárias ao seu processo de desenvolvimento e de subjetivação.
As reflexões e o aprendizado a que nos conduziram os artigos, que aqui brevemente apresentamos, permitem-nos afirmar suas significativas e relevantes contribuições aos diversos campos de conhecimento abordados (com destaque ao da psicanálise), às práticas educativas e terapêuticas e aos disposi-a tivos de mediação que se endereçam às crianças e adolescentes em estado de sofrimento psíquico.
Convidamos os leitores à leitura e à apreciação dos textos, percorrendo os caminhos epistemológico, teórico-metodológico, clínico e educacional trilhados por seus autores.
NOTAS
1. Freud, S. (1976). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição Standard brasileira das obras psicológicas completes de Sigmund Freud (J. Salomão, trad. Vol. 21, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)
2. "Definições" simplificadas, que se tornaram clássicas e que aparecem em vários textos de Lacan, atestando que o inconsciente transcende a dimensão individual, na medida em que faz laço com a exterioridade do simbólico, da linguagem, dos significantes do Outro. Portanto, o simbólico, em Lacan, está presente tanto no inconsciente (dimensão individual) quanto no discurso (dimensão social, cultural), que o antecede e o constitui como discurso do Outro, estruturado como uma linguagem. Daí o neologismo empregado por Lacan, extimité ("extimidade"), para se referir à "exterioridade íntima" entre o sujeito (do inconsciente) e o Outro.