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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.20 no.2 São Paulo ago. 2015
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v20i2p205-225
DOSSIÊ: SOFRIMENTO PSÍQUICO NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA: DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO E DISCURSO SOCIAL
Adolescência, violência e objetos culturais: uma intervenção entre o educativo e o terapêutico no espaço escolar
Adolescence , violence and cultural objects: an intervention between the educational and therapeutic at the school space
Adolescencia, violencia y objetos culturales: uma intervención entre el educativo y el terapéutico en la escuela
Katia Cristina Tarouquella Rodrigues BrasilI; Sandra Francesca Conte de AlmeidaII; Deise Matos do AmparoIII; Adriana Matos Rodrigues PereiraIV
IDocente da Universidade Católica de Brasília, Brasília, DF, Brasil
IIDocente da Universidade Católica de Brasília, Brasília, DF, Brasil
IIIDocente do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil
IVPedagoga. Mestre em Educação pela Universidade Católica de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil
RESUMO
Este artigo apresenta uma análise da experiência de produção em grupo no ambiente escolar de um curta-metragem que pretendeu oferecer dispositivos de apoio narcísico e de expressão para os adolescentes. Trata-se de uma pesquisa-intervenção que utilizou o diário de campo para r egistr o de oito oficinas de audiovisual com quinze adolescentes do ensino médio de escola pública situada em região de vulnerabilidade social e de violência. Concluiu-se que os objetos da cultura transformaram-se em recurso para simbolizar a violência e a angústia. Tais objetos possuem uma função educativa e terapêutica na medida em que são destinados à constituição psíquica do sujeito e seus impasses.
Descritores: adolescentes; violência; cultura; pesquisa-intervenção; psicanálise.
ABSTRACT
This article presents an experience's analysis of production in group in school environment of a short film that had the intention to offer narcissistic support devices and of expression to adolescents. It was developed as a research-intervention that used a field diary to record eight audiovisual workshops with fifteen high school students of a public school located in a region of social vulnerability and violence. It was concluded that these objects of culture became a symbolizing resource for violence and anguish. These objects of culture have an educational and therapeutic function when aimed at psychic constitution of the subject and its impasses.
Index terms: adolescents; violence; culture; research-intervention; psychoanalysis.
RESUMEN
En este artículo se presentan los resultados de análisis de una experiencia de investigación-acción, desarrollada con 15 adolescentes de la ense&nitlde;anza secundaria de una escuela pública ubicada en una región de vulnerabilidad social y violencia. Para la investigación, se creó conjuntamente un cortometraje con la intención de ofrecerles dispositivos de apoyo narcisista y de expresión. A cada día fueron hechos registros de las observaciones de campo en los ocho talleres de exhibición audiovisuales. Se llega a la conclusión que los objetos de la cultura se han transformado en recursos que van a simbolizar la violencia y la angustia. Estos objetos tienen una función educativa y terapéutica a medida que son destinados a la constitución psíquica del sujeto y sus impasses.
Palabras clave: adolescentes; violencia; cultura; investigación-acción; psicoanálisis.
Os adolescentes em situação de vulnerabilidade social e psíquica nos convidam a melhor compreender as transformações na vida familiar e na sociedade e nas instituições sociais na contemporaneidade. Para esses sujeitos e suas famílias, a escola, como instituição social educativa, ainda ocupa um importante lugar nas suas vidas. É na escola que esses adolescentes depositarão suas esperanças e desesperanças em relação ao futuro, como também estabelecerão laços sociais para além da família (Travi, Oliveira-Menegotto & Santos, 2009). Assim, o ambiente escolar pode expressar os desencontros entre escola e sociedade e ser palco das mais variadas expressões de violência, sendo a escola particularmente convocada pela sociedade a colocar em prática dispositivos de acolhimento e de escuta de adolescentes e de intervenção visando à contenção e à ressignificação de atos violentos por meio de objetos culturais.
A passagem pela adolescência implica na revivência do enfrentamento do Complexo de Édipo, na reorganização narcísica e na reestruturação da arquitetura do corpo pulsional (Marty, 2008). Essa passagem, denominada por Gutton (1990) de "arrombamento pubertário", é caracterizada pelo enfrentamento da violência dos processos internos e da vida relacional. No processo de enfrentamento, o adolescente vivencia o conflito entre o prazer e a renúncia em um jogo entre as demandas vindas do mundo externo e de seus conflitos internos, conflitualidade que marca a dinâmica psíquica e relacional. Em algumas situações, a busca pela satisfação imediata, que permita a liberação da angústia, poderá ser uma saída para os conflitos que os adolescentes vivenciam. Alguns desses conflitos vividos na infância entram em ressonância com o arrombamento pubertário e podem precipitar o adolescente em atuações violentas (Marty, 2006; Marty, 2012). As passagens transgressivas ao ato, comportamentos heteroagressivos ou autoagressivos constituem, na contemporaneidade, modos privilegiados de lidar com as ameaças narcísicas invasivas que acometem esse período da vida.
Ao considerar que o adolescente vivencia uma força pulsional que busca alvo e direcionamento, investiga-se, neste trabalho, como os objetos culturais podem contribuir para a canalização dessa força e se tornarem um instrumento de criação para o adolescente, que se encontra em um novo tempo de reorganização de sua subjetividade e de exigências pulsionais diferentes daquelas da infância.
Birraux (2012) considera que o trabalho do jovem púbere consiste em encontrar o objeto e admitir suas qualidades sexuadas e subjetivas distanciadas dos objetos incestuosos. Nesse movimento, o adolescente busca apoio nos objetos culturais, situados no duplo recurso dos polos materno e paterno. Na primeira vertente, do lado materno-sensorial, Birraux situa os odores, a música, os ritmos e os sons, o tato, o gosto e as cores, tudo que passa pelos "rituais de criação" veiculados ou não pela linguagem e que se inscrevem no corpo: são objetos poéticos. Do lado do polo paterno, encontram-se os objetos que têm como função inscrever na civilização, porque pressupõem o distanciamento do corpo materno, o recalque pulsional e a sublimação: são instrumentos de simbolização e de acesso ao simbólico, que tecem um banho de civilização a partir de uma linguagem comum.
Assim, os objetos da cultura assumem a função de contribuir com a canalização da violência interna antes que ela se torne um campo livre para as manifestações de violências atuadas. As passagens ao ato podem ser tentativas de recurso à simbolização, atacando a cultura e a civilização em busca de um espaço para o jogo entre o mundo interno e o mundo externo. Essas experiências podem se manifestar no espaço escolar por meio de ações violentas que vão desde a autoagressão e a heteroagressão até as pichações, a destruição do patrimônio escolar e pequenas incivilidades. Contudo, o adolescente poderá ressignificar simbolicamente, por meio de objetos da cultura, aquilo que nele se encontra transbordante, como o medo, a angústia, a sexualidade, de modo que é no objeto, ou graças a ele, que a pulsão pode atingir suas metas (Laplanche & Pontalis, 2001).
Um exemplo do processo de canalização da pulsão do adolescente, por meio de objetos da cultura, foi apresentado por Aberastury (1983). A autora destacou a importância das atividades realizadas com desenhos em um processo criativo com os adolescentes, afirmando que a imagem é fugitiva e que o desenho a retém e a imobiliza. Assim, é graças à capacidade de recriar objetos da cultura por meio de imagens permanentes que se revela uma nova forma de lutar contra a angústia da perda. Outro exemplo transformador para o adolescente, com o recurso da cultura, foi exposto na pesquisa de Moreno (2003), que apresenta uma reflexão sobre a importância do hip-hop como movimento social e de expressão artística, que promove o autoconhecimento da experiência de raça e classe social, raramente encontrado fora desse objeto específico da cultura. O autor aponta que a escola também poderá ser um espaço de entendimento e de apropriação cultural e subjetiva para o adolescente, em relação a sua origem e a suas experiências individuais e coletivas.
Portanto, os objetos da cultura podem se constituir em dispositivos de mediação entre o que está ao mesmo tempo dentro e fora do sujeito, se situando, no âmbito da intervenção, entre o educativo e o terapêutico na medida em que oferece ao adolescente possibilidades de criação e de (re)significação, no registro do simbólico, no campo da linguagem, que o distancia dos atos de violência e da impulsividade.
O educativo, o educar, propriamente dito, é compreendido, aqui, no sentido amplo de inscrição do sujeito no simbólico, na filiação e no reconhecimento do pertencimento a uma cultura. O terapêutico é concebido como o processo pelo qual surgem novas significações e ressignificações no contexto histórico e subjetivo do sujeito, isto é, uma intervenção cujos efeitos incidem sobre a configuração psíquica do sujeito, suas vicissitudes e sintomas (Almeida, 2015).
Embora Freud tenha se referido ao tratamento (psicanalítico) como um tipo de pós-educação (1915-1916/1969), ele chegará à conclusão de que se trata de ações distintas (1925/1969). Se ao longo da obra freudiana se pode depreender de sua leitura a existência de uma relação íntima entre o educar e o tratar (o terapêutico), essas ações são distintas e visam a diferentes finalidades, embora possam se beneficiar mutuamente. As especificidades entre o educar e o tratar são claramente definidas por Freud (1925/1969):
Afirma-se no sentido de que o trabalho da educação é algo sui generis: não deve ser confundido com a influência psicanalítica e não pode ser substituído por ela. A psicanálise pode ser convocada pela educação como meio auxiliar de lidar com uma criança, porém não constitui um substituto apropriado para a educação. Tal substituição não só é impossível em fundamentos práticos, como também deve ser desaconselhada por razões teóricas (p. 308).
Nessa perspectiva, as intervenções situadas entre o educar e o terapêutico constituem dispositivos privilegiados no manejo da passagem adolescente.
A adolescência é uma importante etapa de vida em que se consolidam e reforçam os laços sociais banhados por um turbilhão de sentimentos angustiantes e conflitantes, de modo que nesse período o adolescente precisa de um espaço de expressão e de ressignificação de suas vivências. As expressões culturais, como a música, o esporte, a dança, as mídias digitais, o teatro, entre outras, possibilitam ao adolescente passar pelo processo pubertário e pelos desafios subjetivos inerentes à adolescência com menor dano e risco ao seu desenvolvimento e saúde psíquica.
Os objetos da cultura e seu impacto no adolescente são temas de investigação e de interesse de pesquisadores da atualidade, como Magro (2003), Kehl (2004), (Le Breton, 2010), Birraux (2012), Moreno (2003). Esses autores apontam a função da cultura como um modo de canalizar e minimizar o mal-estar do adolescente, convocado, na atualidade, a atender o ideal de juventude denominado de "teenagização" da cultura, segundo Savietto e Cardoso (2012).
Birraux (1994) aponta que a compreensão da adolescência deve ir além das questões biológicas e integrar um tempo de trabalho subjetivo para lidar com as transformações pubertárias e com os enlaces da cultura. É exatamente na busca do eu por um controle daquilo que lhe escapa que nesse momento da vida o sujeito será particularmente convocado a realizar um trabalho psíquico que marca a adolescência como o território da experiência (Cardoso & Marty, 2008). Experiência do estranhamento do novo corpo e de certa suplência de si mesmo, que traz à tona a violência sentida e vivida internamente.
O processo de integrar as transformações pubertárias passa pelo modo como o sujeito irá habitar seu corpo, de modo que, na adolescência, se fazem presentes marcas corporais que sinalizam esse percurso, que vai desde a escolha das vestimentas até o uso de tatuagens e piercings, revelando, segundo Le Breton (2010), a demarcação do corpo em seus próprios limites. O autor lembra que as inscrições na pele, como as tatuagens, estabelecem a fronteira entre o dentro e o fora de maneira vívida e porosa, pois a pele que envolve o corpo é também uma abertura para o mundo, uma memória viva de um corpo que também pode ser um espaço de jogo entre o mundo interno e o mundo externo e que passa a ter um sentido lúdico, como uma forma de resistência em relação ao sofrimento que coloca o corpo no centro das questões adolescentes.
Nessa perspectiva, o corpo assume a função de um objeto transicional, pois é nele que o adolescente irá representar o jogo da sua relação entre mundo interno e externo. Desse modo, as marcas no corpo, como a tatuagem, o piercing e a cor dos cabelos, dentre outras, projetam para o mundo a nova imagem sonhada e imaginada pelo adolescente, que utilizará os recursos corporais na tentativa de mediar seu sofrimento em direção a um novo corpo e a um distanciamento do corpo infantil. Nesse contexto, a pele se torna um amortecedor das tensões de fora e de dentro, sendo ela uma forma de objeto transicional (Le Breton, 2009).
No processo de luto do corpo e da identidade infantil se revela também a agressão, com marcas de uma violência atuada. Drieu (2012) insiste que o agir violento é a busca pela resposta dos adultos que estão ao redor do adolescente, uma necessidade de recorrer ao real, ao traumático, para se sentir existente. Parte desse comportamento é também uma forma de buscar a sustentação do adulto. O autor destaca que o fato de os adolescentes se fecharem em uma economia grupal negativa depende muito das referências grupais de seus pares, da qualidade dos objetos culturais, dos laços institucionais e da importância, nessa fase, de terem um referencial de filiação. Nesse período, é muito comum o distanciamento da família e a busca por seus pares no intuito de interagir, confiar e criar referenciais nos diversos grupos sociais de sua convivência. Tal processo aparece como parte do luto da infância, da perda dos pais e da perda do próprio corpo.
Segundo Aberastury e Knobel (1981), as mudanças psicológicas que se produzem nesse período e que se relacionam com as mudanças corporais levam a uma nova relação com os pais e com o mundo adulto. Vale ressaltar, aqui, a importância da família e da escola como apoio narcísico para os adolescentes, pois os adultos presentes nesses espaços são fundamentais na sustentação de fragilidades psíquicas que podem se manifestar em impulsos que, muitas vezes, comparecem sob forma destrutiva.
Sobre esse aspecto, quando Freud (2006/1920) aprofundou o desenvolvimento de sua teoria pulsional, a agressividade pôde ser reconhecida para além de uma força constitutiva, como uma pulsão desligada, pulsão de morte, quando o objetivo é a destrutividade. Nessa direção, a violência como parte do processo de agressividade pode ser utilizada para fins destrutivos em um processo de anulação do outro, enquanto a agressividade é constitutiva, subjetiva, necessária e criativa.
Em relação à particularidade da violência na adolescência, Pietro e Jaeger (2008) fornecem uma importante reflexão, pois indicam que o adolescente pode utilizar a violência para anular o outro ou para obter o espaço do outro. Costa (1986) já havia contribuído anteriormente com essa discussão ao afirmar que a violência é uma ação destrutiva que contém a marca de um desejo com fins destrutivos. Esse desejo pode ser voluntário, deliberado, racional e consciente ou pode ser inconsciente, involuntário e irracional. Costa (1986) complementa:
É porque o sujeito violentado (ou o observador externo à situação) percebe no sujeito violentador o desejo de destruição (desejo de morte, desejo de fazer sofrer); é neste momento que a ação agressiva ganha o significado de ação violenta (p. 30).
Podemos nos indagar como os objetos da cultura e da civilização podem contribuir para que o adolescente possa exercer sua agressividade com fins criativos, que o impulsione ao novo por meio de um espaço de (re)significação daquilo que nele se encontra transbordante.
A função dos objetos culturais na adolescência no espaço escolar
Winnicott (1975) já indicava no início de seus trabalhos a importância das questões relacionadas aos objetos ou fenômenos transicionais e sua relação com a cultura. Sua formulação teórica surgiu a partir de estudos sobre a importância da relação entre a mãe e o bebê que, segundo Baranger (1994), se origina e se inspira nos trabalhos de Klein (1952/1969a; 1952/1969b) sobre objetos internos e externos. Contudo, foi somente a partir dos estudos de Winnicott (1975), por meio de suas observações clínicas, que o autor fundamentou o processo de simbolização a partir da experiência da transicionalidade.
O objeto transicional é aquilo que não faz parte do corpo do bebê e que seria a primeira possessão não-eu. Trata-se de um objeto oferecido ao bebê pelo adulto, como um bichinho de pelúcia, uma fralda ou uma boneca de pano, ou seja, um objeto da cultura que a criança poderá utilizar como consolo para dormir, de modo a minimizar o desamparo diante da separação materna. Esse objeto, cuja função é preencher a falta, traz segurança e conforto diante do sentimento de vulnerabilidade e de medo, uma vez que oferecerá à criança a satisfação e a ilusão de continuidade do aconchego com o corpo materno, diminuindo, assim, as angústias e o sofrimento do bebê diante dessa descontinuidade relacional. Assim, o objeto utilizado pelo bebê é deslocado da função original e, em um movimento de transfor mação do objeto, de modo criativo, lhe permite adquirir características particulares, que lhe são depositadas pela criança (Winnicott, 1975).
Para Winnicott (1975), os objetos transicionais possuem uma relação com o simbolismo, que se inicia na criança entre quatro e seis meses de idade, e apresentam o papel importante de valor simbólico de preenchimento do espaço entre a mãe e o mundo como forma de continuidade do ambiente materno, que remete a criança à segurança da própria realidade diante de um mundo de incertezas:
É verdade que a ponta do cobertor (ou o que quer que seja) é simbólica de algum objeto parcial, tal como o seio. No entanto, o importante não é tanto seu valor simbólico, mas sua realidade. O fato de ele não ser o seio (ou a mãe), embora real, é tão importante quanto o fato de representar o seio (ou a mãe) (p. 19).
Os objetos transicionais são, então, objetos da cultura que são disponibilizados para a criança, que se apropria deles como forma de preencher as lacunas emocionais relacionadas prioritariamente à separação com o primeiro objeto de amor da criança, a mãe. Assim, a fralda, o travesseiro ou um bicho de pelúcia passam a adquirir um novo significado, deixando de ser simples objetos e assumindo o lugar imaginário de substituição do objeto materno.
Winnicott (1975) chama a atenção, no decorrer do seu trabalho, para o fato de que os objetos transicionais não se restringem apenas ao período da infância, mas a todas as etapas vivenciadas pelo ser humano, pois, apesar da união e separação ser uma questão primordial da relação mãe-bebê, o sentimento de vulnerabilidade faz parte do desamparo humano e está presente também em outras etapas da vida. Por isso a busca por algo que preencha e estabeleça o sentimento de proteção é um movimento presente também na adolescência e na vida adulta.
Assim, os objetos culturais ofertados ao adolescente no espaço escolar podem assumir uma função que se situa entre o educativo e o terapêutico, uma vez que o adulto, ao oferecer esses objetos, lhe proporciona a experiência de criação e de mediação entre o mundo externo e mundo interno, possibilitando um espaço de significação e ressignificação de alguns conteúdos ameaçadores, nem sempre conscientes, como elementos da destrutividade e da sexualidade. Portanto, os objetos culturais têm uma grande importância, pois atuam na zona da criatividade e do brincar, e é neste espaço de criação que o adolescente se sente seguro e é capaz de se reconstruir.
É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação. Essa importante característica do brincar será examinada aqui como desenvolvimento do conceito de fenômenos transicionais e leva em conta também o paradoxo que precisa ser aceito, tolerado e não solucionado (Winnicott, 1975, p. 79).
Deste modo, o adolescente vivenciará, por meio dos objetos culturais, uma forma de canalização pulsional de sublimação, mas também de significação. Esses objetos poderão ser apresentados de várias formas, como a escrita, a música, o uso de instrumentos tecnológicos, o teatro, mas, principalmente, em atividades grupais, em que o adolescente poderá ser acolhido, escutado e estabelecer uma relação de troca com seus pares.
Segundo Birraux (2012), os objetos culturais oportunizam o reconhecimento do outro e de sua diferença e permitem às pessoas viver em coletividade, aceitando as regras e construindo laços sociais. Deste modo, a escola tanto poderá desempenhar ações que atendam aos objetivos do processo educativo de adolescentes e jovens quanto ações, intervenções, que poderão assumir uma função terapêutica por meio da oferta de objetos da cultura. Nessas vivências e experiências, o adolescente terá a oportunidade de se colocar no lugar do outro, de viver um papel jamais imaginado ou de atuar em novas situações diante do mundo que o cerca.
O conceito de transicionalidade, segundo Outeiral (2010), possibilitou à psicanálise uma releitura do papel da cultura como uma função positiva, construtiva e criativa na experiência humana e não apenas como um acontecimento ligado aos mecanismos repressivos.
É nessa perspectiva que se pretende apresentar e discutir a experiência da produção de um curta-metragem no ambiente escolar, que pretendeu oferecer um dispositivo de apoio narcísico e de expressão para os adolescentes e, ao mesmo tempo, promover o trabalho psíquico de simbolização. Esta experiência ocorreu em um espaço grupal, pois o grupo permite o trabalho de representação mental por meio das perlaborações intersubjetivas. Sem a pretensão de esgotar a discussão sobre o tema, busca-se abordar, a partir da experiência com o audiovisual no contexto escolar, como este objeto da cultura em particular se constituiu em um recurso para o processo de simbolização da violência e das angústias dos adolescentes.
Método
A pesquisa aqui apresentada se caracterizou como uma pesquisa-intervenção (Ferrari, 2008; Kastrup, 2008), na qual foi utilizado o diário de campo para registro de oito oficinas de audiovisual com adolescentes do ensino médio de uma escola pública da região administrativa do Distrito Federal situada em uma região com população em situação de vulnerabilidade social e atingida pela violência. Par ticiparam da pesquisa quinze adolescentes meninos e meninas com idade entre quatorze e dezessete anos. A pesquisa-inter venção, um desdobramento metodológico da pesquisa-ação, pretende romper com a separação entre conhecimento e ação e promover a iniciativa e a capacidade transformadora dos grupos com os quais se trabalha (Oliveira & Oliveira, 1988). Na pesquisa realizada, alguns passos foram seguidos: imersão dos pesquisadores na escola com os adolescentes e identificação dos problemas de violência e de exclusão social da comunidade em que a escola pesquisada estava inserida; sistematização da proposta das oficinas, que foi apresentada aos adolescentes e reconfigurada levando em conta as sugestões recebidas; análise e interpretação dos dados, que impulsionou o grupo à reflexão e à ação, fomentando o diálogo no grupo de adolescentes; avaliação, que fez parte de todo o processo, pois ao final de cada oficina a experiência era avaliada pelo grupo, o que contribuía para a proposta da oficina de audiovisual subsequente (Thiollent, 1998).
O dispositivo audiovisual tem um grande significado para o adolescente, pois está presente nos seus meios privilegiados de comunicação e na relação com o mundo contemporâneo. O audiovisual nos tempos de comunicação web, a exemplo do popular YouTube, per mite ao adolescente socializar com várias pessoas virtualmente, pelo vídeo, não mais necessitando de um espaço físico com um projetor, como é o caso do cinema. O espaço, agora, é virtual e une todos os espectadores com suas mídias digitais, que podem ser diretores e roteiristas de suas histórias. Assim, tendo em vista a familiaridade dos adolescentes com a tecnologia de imagens e como ela se insere significativamente em seu cotidiano, o audiovisual foi escolhido, na qualidade de objeto da cultura, como dispositivo de intervenção com os adolescentes.
As oficinas de audiovisual foram conduzidas por uma psicóloga, uma pedagoga um profissional da comunicação especializado em audiovisual e contou com a supervisão de duas psicanalistas. As oficinas foram planejadas e divididas em cinco etapas:
1ª etapa: Oficina de abordagem da temática para a construção do material audiovisual. Essa etapa foi conduzida pela psicóloga e pela pedagoga e teve como objetivo explorar com os adolescentes o tema da violência, identificando suas concepções sobre o fenômeno, por meio de debates fomentados por vídeos e imagens propostos por eles e pelos pesquisadores sobre a temática.
2ª etapa: Oficinas de preparação para a construção do roteiro do curta-metragem. Nesta etapa, conduzida pelo profissional de audiovisual, foi abordada a técnica de construção de roteiro e apresentadas diferentes linguagens narrativas do audiovisual. Ao final, foi proposta a redação de um roteiro na temática da violência, na perspectiva do olhar dos adolescentes.
3ª etapa: Gravação do curta-metragem. Após a finalização do roteiro, o grupo definiu os atores e a gravação do curta se iniciou. Nessa etapa foram necessárias inúmeras repetições da gravação. Uma vez concluída a gravação das imagens com os alunos, realizou-se a edição para incluir o áudio, que foi gravado separadamente.
4ª etapa: Realização do making of. Foram realizadas entrevistas com os adolescentes sobre a experiência das oficinas e a produção do curta-metragem para integrar o making of do curta metragem.
5ª etapa: Apresentação do curta-metragem na escola
Foi agendada na escola uma data para ser apresentado o curta-metragem, produzido pelos estudantes integrantes do projeto, a todos os estudantes do ensino médio da escola, e posteriormente foi feita a inscrição do curta em um festival de cinema da cidade1.
Resultados e discussão
Nos relatos dos adolescentes, ao longo da intervenção, ficaram evidenciadas as violências sofridas, assistidas e atuadas, tendo o espaço das oficinas permitido a fala e a elaboração simbólica dessa violência, como se pode observar a seguir:
Tenho a impressão, que por acontecer em casa e com pai e mãe, tudo é possível. A violência é justificada pelos laços de família. (Sofia)
Foi uma experiência diferente, pois aqui aprendi várias coisas diferentes sobre a violência, como os vários tipos de violência. (João)
O espaço das oficinas, além de promover o compartilhamento de ideias e de sentimentos no grupo, possibilitou aos adolescentes um pensar sobre a violência e como esta os atingia. Consideramos que os encontros promovidos na escola possuíam um potencial terapêutico apoiado no processo educativo, tal como apontado por Kupfer (2006). Além disso, constituíam um espaço de transicionalidade, tal como identificado em Winnicott (1951/1978). Os objetos e espaços transicionais oferecem uma área neutra entre a realidade interna e a externa, um lugar subjetivo que adquire uma capacidade momentânea para o sujeito se livrar das tensões, das exigências da realidade e, ao mesmo tempo, das do mundo interno. Os objetos transicionais e fenômenos transicionais pertencem ao reino da ilusão, que se inicia como uma experiência do início da vida, mas que não se restringe a ele. Assim, segundo Aletti (2004), é possível ampliar o elenco exemplificativo dos fenômenos culturais que atravessam a relação do sujeito por toda a vida, como as artes, a religião, o viver imaginativo e o trabalho científico criador.
Para Birraux (2012), o adolescente busca, por seus próprios meios, o conforto em um objeto próximo dos sentidos e do corpo e do qual ele se torna um avatar, de modo que o objeto transicional oferece ao adolescente um suporte para lidar com sua angústia, seu medo e sua insegurança, o que oportuniza não somente lidar melhor com as moções pulsionais e com os conflitos como também a criação do novo.
Assim, ao assistirem cenas de violência nos vídeos propostos, mas também no roteiro do curta-metragem que eles próprios idealizaram e a partir do qual construíram uma narrativa própria sobre a violência, os adolescentes puderam viver a experiência de estar tanto no lugar de agressor quanto no lugar de vítima. Tanto que, durante as oficinas, os adolescentes começaram a questionar o que era ou não violência, e esses questionamentos possibilitaram que a violência pudesse ser pensada a partir de um trabalho psíquico produzido no espaço situado entre o terapêutico e o educativo. Esse espaço potencial de jogo (Winnicott, 1975) permitiu a mediação, pela linguagem e pela representação, de fenômenos vividos nos mundos interno e externo, em um campo de atividade criativa e cultural.
O que caracteriza o pensar é o trabalho realizado pelo aparelho psíquico para dominar as excitações que chegam até ele. Freud (1924/1976) abordou a noção de trabalho psíquico como um processo realizado pelo sujeito no itinerário de acesso a si mesmo e que implica numa alteração da economia mental:
É per feitamente verdade que a psicanálise , como outros métodos psicoterapêuticos, emprega o instrumento da sugestão (ou transferência). Mas a diferença é esta: na análise não é permitido desempenhar o papel decisivo na determinação dos resultados terapêuticos. Utiliza-se, ao contrário, induzir o paciente a realizar um trabalho psíquico que implica uma alteração permanente em sua economia mental (p. 57).
É necessário sublinhar que procuramos articular o pensar na perspectiva de um trabalho psíquico, como um processo ligado à economia psíquica do sujeito adolescente. Segundo a psicanálise, o pensar demanda algumas condições para sua realização, como subordinar o princípio de prazer ao princípio de realidade, por isto é tão difícil pensar, na adolescência, no sentido de um trabalho psíquico que se processa em direção oposta ao agir enquanto passagem ao ato.
Marty (2008) destaca que o ato violento na adolescência pode ser um caminho de busca do prazer fundamentalmente narcísica para esvaziar o aparelho psíquico das exigências de trabalho de ligação e de representação dos efeitos dos traumatismos. Deste modo, o agir se instaura como um instrumento de luta contra a ameaça de desintegração e de destruição do sujeito.
Assim é que a discussão sobre os vários tipos de violência se fez presente nas oficinas, como pode ser observado nos relatos a seguir:
Eu queria falar sobre a violência psicológica, pois este tipo de violência, muitas vezes, não é denunciado. (Fernando)
Se uma pessoa comenta sobre a sexualidade da outra e diz 'fulano é heterossexual' e ele não é, pode se sentir ofendido. (Fernando)
Uma pessoa que passa muito tempo convivendo com a violência psicológica poderá ter depressão, pois irá se ferir internamente. (Sofia)
Você pede para alguém fazer alguma coisa e essa pessoa não faz como você gostaria e então você chama esta pessoa de inútil, burro, imbecil, então esta pessoa começa a acreditar que não sabe fazer nada mesmo. (Ana).
Para Marty (2006), a violência sobrevém em reação à ameaça mobilizada pelo arrobamento pubertário. O adolescente, ameaçado por sua própria condição pubertária, encena fora de si a experiência interna de violência, que lhe parece devastadora. Tal reação se apresenta como um modo de não saber lidar com suas angústias, medos e sofrimentos. Para o autor, compete aos adultos ofertar formas de contenção dessa violência, sendo a oferta de objetos da cultura uma das alternativas. Segundo Marty (2006), "oferecer objetos aos adolescentes para que eles prendam aí a sua violência: a oferta de cultura, de objetos culturais, é essencial e compete aos adultos" (p. 120).
Nessa direção, a produção de um curta-metragem sobre a violência na escola e todo o processo que precedeu a sua construção promoveu no grupo um espaço para pensar as violências a partir de uma criação coletiva, a partir de um curta-metragem, que se impôs como um objeto cultural e que veio alinhavar, para esse grupo, a possibilidade de uma nova significação da violência, a qual, algumas vezes, o adolescente assiste ou sofre de modo passivo e, de outras, de modo atuante.
"a gente queria retratar a violência no ambiente escolar e por ser uma coisa muito normal na escola... e como a gente vem vendo isso muito." (Silvio)
Em outro momento, a situação de testemunho ficou evidente quando Sofia começou a contar uma história familiar em que a violência se repete transgeracionalmente.
Meu tio batia e agredia muito meu primo e este, quando se tornou adulto e teve uma filha e ela cresceu, começou a agredi-la como tinha sido agredido na infância. (Sofia)
Na realização das oficinas, percebeu-se que todo o processo mobilizou as experiências de violência vivenciadas pelos adolescentes, dentro e fora da escola. No entanto, o roteiro construído foi ambientado no espaço escolar e se caracterizou como uma autobiografia ficcional de um adolescente por meio de um testemunho da própria história do personagem principal. É sobre isso a fala de um dos adolescentes, ator do curta-metragem:
Foi fácil representar, pois já aconteceram algumas coisas comigo, então foi fácil de retratar. (Fernando)
O argumento escolhido para o curta-metragem foi a homofobia na escola e o modo como ela intimida e marca o adolescente alvo da violência, mas também como ela polariza agressor e agredido e aponta para a necessidade de proteção dos estudantes pelos professores diante da situação de violência na escola. As falas a seguir ilustram a discussão em torno do argumento:
A gente pensa que só é descriminado e sofre quem é: negro, homossexual, pobre e mulher, mas o Japonês também é. (Cilene)
Existem muitas pessoas que têm preconceito com a homossexualidade, não é só adulto, adolescente também. As pessoas te olham esquisito. (Luiz)
O pensamento do personagem homossexual do curta-metragem, atingido pela violência na escola, refletiu as angústias e preocupações do grupo de adolescentes:
Ele sempre faz isso comigo, ele sempre tira sarro, mas eu acho que de certa forma ele tem razão. Eu acho que eu mereço isso, eu não faço nada de errado e eu não tenho culpa. (Roteiro do vídeo).
A construção do curta-metragem colocou esses adolescentes de modo implicado na temática da violência da sexualidade e nas questões a elas relacionadas. Assim, a circulação da palavra no espaço das oficinas permitiu revelar o impacto da violência na subjetividade desses jovens e pôde ser transformada em arte. A produção das oficinas implicou na evolução do que Winnicott (1975) propõe, que vai na direção dos fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado e deste para as experiências culturais.
Considerações finais
A psicanálise se debruçou, ao longo da história, em uma interlocução com outros campos do saber, interlocução iniciada por Freud e desdobrada por muitos de seus seguidores e estudiosos. No trabalho aqui apresentado, pretendeu-se tecer um diálogo entre a psicanálise e a educação por meio do dispositivo do audiovisual, que como objeto da cultura pôde ser transformado em arte pelos adolescentes. Ao criar um curta-metragem, esses adolescentes se (re) criaram, uma vez que foram capazes de encontrar, pela mediação artística, uma nova forma de colocar fora, criativamente, o que os mobilizava internamente.
As experiências culturais produzidas pelos adolescentes, mediadas por um contexto de proteção e de referências de um adulto que acolha a sua subjetividade, podem se constituir como objetos transicionais fundamentais para a organização psíquica e a mediação simbólica da violência.
São os objetos da cultura, nas suas mais ricas formas de expressão como a música, o esporte, a dança, as mídias digitais e o teatro, dentre outras, que convocam os adolescentes mais facilmente a ligar suas experiências emocionais e afetivas, pois se mostram mais próximos do corpo e ao mesmo tempo estão situados no polo da representação, mesclando experiências poéticas na imagem, nos sons, na escrita etc., e permitindo ligação e suporte para angústia. Nesta perspectiva, se apresentam como objetos de mediação e canalização da violência e podem ser utilizados em vários contextos sociais e institucionais, principalmente no espaço escolar, que tem como função primordial a oferta de elementos simbólicos que inscrevem o sujeito na cultura e em uma dada tradição histórica. Por outro lado, esses mesmos objetos culturais tanto exercem uma função educativa quanto terapêutica, quando esta visa à constituição psíquica do sujeito e seus impasses.
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Recebido em dezembro/2014.
Aceito em abril/2015.
NOTA
1. Disponível em http://festivaltaguatinga.com.br/festivalTagua/11/assista/vote/filme/454.