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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.20 no.3 São Paulo dez. 2015
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v20i3p492-503
ARTIGOS
O pagamento na clínica com crianças ou sobre a noção de responsabilidade em psicanálise
The payment in the clinic with children or on the notion of responsability in psychoanalysis
El pago por el tratamiento en la clínica de niños o sobre la noción de la responsabilidad en psicoanálisis
Cláudia Mascarenhas Fernandes
Psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Diretora clínica do Instituto Viva Infância, Salvador, BA, Brasil.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo discutir a especificidade da noção de pagamento na clínica psicanalítica com crianças. Nessa realidade o dinheiro para a criança e para os pais é lugar de pertinência e envolve duas dialéticas: o sujeito tem a responsabilidade em relação a sua própria posição de sujeito determinado no discurso de quem fala, sejam os pais, seja a criança, além do fato de o pagamento ser realizado pelos pais. Responsabilizar-se pela causalidade, no caso das crianças, é permitir a aparição do sujeito em suas intermitências e reenviar a transferência à filiação parental, como exposto no caso clínico discutido neste trabalho.
DESCRITORES: psicanálise com crianças; dinheiro; responsabilidade; pagamento; sujeito.
ABSTRACT
This paper aims to discuss the specificity of the concept of payment in the psychoanalytic treatment with children. In this reality the money to the child and parents is a place of relevance and involves two dialectics: the subject has the responsibility regarding their own particular subject position specified in the discourse, in the case of the speaker, both parents and child, beyond the fact that the payment is made by parents. To be responsible for causality in the case of children is to allow the appearance of the subject in their intermittences and resend the transference to parental affiliation, as it is discussed in the clinical case of this paper.
INDEX TERMS: psychoanalysis with children; money; responsibility; payment, subject.
RESUMEN
Este trabajo tiene el objetivo de plantear la especificidad de la noción del pago en la clínica psicoanalítica con niños. En esa realidad, el dinero tanto para los niños cuanto para sus padres tiene lugar de pertenencia y envuelve dos dialécticas: el sujeto tiene la responsabilidad por su propia posición de sujeto determinado en el discurso de quien habla, sea los padres o el niño, aun por el hecho de que son los padres quienes realizan el pago. Al responsabilizarse por la causalidad, en caso de los niños, se permite la aparición del sujeto en sus intervalos y reenvía la transferencia de filiación a los padres, como lo presenta en este caso.
PALABRAS CLAVE: psicoanálisis con niños; dinero; responsabilidad; pago; sujeto.
Se o social é o lugar de alienação de nosso desejo de analista, é aí também o lugar mesmo onde é preciso introduzir a "peste". (Poulain, 1970)
Interrogar quanto custa uma análise é afirmar que uma análise custa. A interrogação parece ser em relação ao que custa, ao valor desse custo e ao que decide determinado preço. Mas se a questão por si só já movimenta muito incômodo, como podemos pensá-la com o agravante de uma análise que é paga por terceiros, como é o caso da análise com crianças? E, mais especificamente, que se encontre este tipo de pagamento "negociado" a partir de uma carência financeira da parte de seus pais?
Essas questões atualizam outras, não menos importantes: Qual a relação do tema com a noção de responsabilidade em psicanálise? Pagar de que forma, já que este indivíduo não se encontra em posição de uma possível inserção no mercado de trabalho? Que tipo de pagamento é esse? Será que a questão se restringe em pensar uma possibilidade de pagamento para a criança? Ou é de fato a relação do sujeito com o Outro na clínica com crianças que deve ser pensada para que possamos nos indagar sobre qual é a responsabilidade em jogo no caso da clínica com a criança? Quem paga é aquele que deveria se responsabilizar pelo atendimento? Não seria o sujeito responsável pelo seu próprio sintoma? Como alguém paga pela responsabilidade que outro deve ter em relação ao seu sintoma? Seria o "sujeito de calças curtas" sempre responsabilizado pelo que lhe ocorre? Ou poderia estar isento do que lhe acontece? Ou podemos pensar que o sintoma na criança estaria sempre intrincado ao sintoma dos agentes parentais?
A partir destas indagações, constato que tal situação apenas reitera o fato de que o pagamento, na clínica com crianças, é a ponta de um grande iceberg da relação do sujeito com o Outro. Na clínica psicanalítica com crianças, os pais reais estão, todavia, presentes, e essa presença provoca condições de manejo muito singulares à práxis.
Alguns autores (Freud, 1913/1996; Poulain, 1970; Martin, 1997; Slemenson, 2014) já escreveram sobre o dinheiro em psicanálise, porém poucos se detiveram no assunto em relação às vicissitudes da psicanálise com crianças. Não se pode deixar de falar de Dolto (1987), que não negligenciou esse campo, sendo notoriamente, talvez, a autora que mais teorizou na psicanálise com crianças sobre o tema, tensionando a relação sofrimento/desejo de cura/pagamento/responsabilidade e apontando a necessidade de a criança pagar sua própria análise. Ela formalizou o que chamava de "pagamento simbólico" para a criança se responsabilizar pelo seu tratamento. Simbólico porque seria para a criança o símbolo, o representante, de seu desejo de comparecer à sessão. Esse pagamento consistia em cobrar da criança, a cada sessão, uma pedrinha ou um selo velho, como símbolo do seu desejo de se curar. A autora afirmava também que a criança deveria diferenciar o analista das outras pessoas, e que os pais teriam que realizar algum tipo de pagamento por sua causa, como com o médico, a escola, a babá etc. Caso a criança não levasse ou não quisesse pagar, Dolto consideraria que ela não queria mais continuar seu tratamento. Ela tinha como índice para indicação de um trabalho com a criança o próprio sofrimento da criança. Não seria indicativo de atendimento à criança se os pais sofriam ou se a escola se preocupava. A pergunta era: quem sofre? A criança precisava estar de acordo com o trabalho sabendo seus motivos e, sobretudo, admitindo que sofria por alguma coisa ou necessitando mudar algo em sua vida.
Dolto (1989) considerava que no começo do Édipo a autonomia é conquistada pela criança tanto em relação ao receptivo como em relação ao fálico (referindo-se ao feminino e ao masculino), mas isso não deve acontecer com o terapeuta. Por não poder ser o efeito de uma sedução, seria exatamente o contrário. É justamente contra esse efeito da sedução que começou a exigir um pagamento simbólico da própria criança no seu atendimento. Esse efeito contempla a tomada dos lugares paterno e materno por parte do terapeuta caso se compactue com a gratuidade, como os pais assim o fazem em relação ao filho. Portanto, a diferença marcada pelo pagamento simbólico exige da posição do analista que este se abstenha das funções materna e paterna, favorecendo a instalação de uma transferência não incestuosa.
Porém, a justificativa que a autora esclarece como fundamento deste tipo de pagamento é que, cobrar da criança permite que ela possa dar um sinal sobre o seu desejo em vir ao atendimento. A autora relata, inclusive, situações clínicas com crianças bem pequenas que não esqueciam sua pedrinha para pagar a sessão. Caso a criança começasse a não trazê-lo, Dolto entenderia que ela não queria continuar o atendimento e que seria livre para decidir sobre isso, livre para decidir também querer continuar sendo como era e que não queria mudar sua situação. É preciso pagar para poder dizer, afirmava ela.
A exigência de um pagamento simbólico está também relacionada ao estabelecimento de outra lógica que não a do dinheiro, pois enquanto a lógica do dinheiro está colocada numa dialética anal, nas séries complementares (Freud, 1905/1996), a lógica do pagamento simbólico que ela propõe está numa dialética do ser, por estar referida a sua existência como sujeito (Dolto, 1987). O objeto usado para o pagamento simbólico na clínica de Dolto não tem poder de compra, porém representa a possibilidade de se responsabilizar por si mesmo, por seu desejo.
Com Lacan (2009), encontramos uma posição diferente. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954 indica que a equação simbólica que Melanie Klein se referia ao relatar o caso Dick era muito mais uma equação imaginária, pois colocava num mesmo plano projeção (imaginário) e introjeção (simbólico), sem separar real do imaginário e, por sua vez, este do simbólico. Certamente que Dolto fez a diferença entre a equação simbólica das séries complementares e o pagamento simbólico. Propôs a significação de que pedras ou selos não estariam num mesmo estatuto simbólico do que cocô, pênis, fezes, bebê e dinheiro. A diferença apresentada por Dolto entre os objetos da equação simbólica e os do pagamento simbólico é interessante, pois enquanto os primeiros referem ao que pode ser perdido, destacado do corpo, os segundos não. Realmente uma pedrinha ou um selo velho não se enquadrariam num estatuto de perda para a criança, a não ser em casos específicos nos quais seriam elevados a outra categoria, com grande valor imaginário. Além disso, os objetos que representam o pagamento simbólico são escolhidos por Dolto e não fazem parte de um código comum, só podendo ser utilizados, neste sentido, indicados pela analista. Porém, interrogamo-nos a partir de uma leitura lacaniana se os objetos exigidos por Dolto para o pagamento, ainda que toquem o simbólico, não poderiam ter um estatuto muito mais imaginário na medida em que uma pedra representaria o desejo de vir à sessão. Por que a criança teria a necessidade de ter um objeto da realidade que represente a sua responsabilidade e seu desejo? Será que faria parte da transferência imaginária? Seria uma prova de amor da criança ao seu atendimento? Que estatuto é esse dado a coisas exigidas como pagamento?
Dolto exige um pagamento simbólico da existência. Existe aí então uma espécie de condensação entre a responsabilidade dos pais relacionada à equação simbólica, pois pagam em dinheiro (e ela não aceita dinheiro da criança) e a equação da existência, ligada à responsabilidade da criança por seu atendimento. Deste modo, faz-se necessário pensar se não estaria do lado do analista essa necessidade de um pagamento simbólico por se tratar de um manejo difícil da transferência com crianças. Porque não sustentar o atendimento e a vinda da criança pela sua própria transferência com ela? De que ordem é esta transferência e qual a responsabilidade do sujeito a ser provocada aí?
A partir das questões levantadas acima fica claro o que Dolto aponta sobre o pagamento e a noção de responsabilidade, mesmo que de forma aparentemente simplista, principalmente quando se trata da clínica com crianças. Pensando essas questões, este artigo tem como objetivo discutir o pagamento na clínica com crianças e suas especificidades considerando a noção de responsabilidade. Portanto, antes de qualquer discussão sobre o pagamento está a noção de responsabilidade que deve ser trabalhada.
Muitas vezes definida pela filosofia como um sentimento, a responsabilidade, deixa controvérsias importantes quanto à questão da liberdade, pois está sempre definida como a obrigação da pessoa em responder por seus próprios atos, onde a liberdade fundamentaria a responsabilidade. Esta definição seria difícil de ser mantida pela psicanálise por distanciar sua prática de qualquer obrigação moral, muito menos no atendimento à criança, mas não podemos deixar de tomar para o nosso percurso que a responsabilidade se encontra no ato de responder (Mora, 1958).
Portanto, temos que realizar alguns esclarecimentos quanto à noção de responsabilidade para a psicanálise. Se na teorização de Dolto a responsabilidade está relacionada a um livre arbítrio do sujeito, querer vir ou não à sessão, portanto uma assertiva consciente ou pré-consciente, para Lacan (1966/1998b), no texto A ciência e a verdade, está bem claro que a responsabilidade do sujeito aponta justamente para as formações inconscientes, não podendo se falar de livre arbítrio. O livre arbítrio não ocorreria, mesmo que o sujeito seja responsável pela sua posição no discurso.
Quando ele afirma que de nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis, há uma grande diferença com relação à responsabilidade exigida por Dolto em seu pagamento simbólico (aliás, qual pagamento não é simbólico?). Ser responsável pela sua posição de sujeito é afirmar que a invenção, que irá responder ao que supõe ser o desejo do Outro, será sempre do sujeito. O desejo do Outro é uma invenção do sujeito numa relação arbitrária entre uma coexistência de significantes e seu porta-voz inicialmente privilegiado, o agente materno. É verdade que a libra de carne é paga durante toda a vida pelas tentativas do indivíduo de provar sua tese sobre o suposto desejo do Outro, mas no caso de uma criança, será que ela pode chegar a esse ponto de poder arcar com essa noção de esvaziamento do Outro?
Na psicanálise existe um grande paradoxo que foi formulado por Freud e por Lacan em relação à responsabilidade que subverte a lógica da relação responsabilidade versus livre arbítrio. O paradoxo freudiano é: como aquele sujeito que não sabe que é habitado por um saber age concomitantemente a isso que não sabe? Logo, deste ato que não sabe, ele é responsável, pois o sabe em outro lugar. Sabemos que Freud sempre falou em escolha de neurose, destacando o determinismo psíquico a partir do inconsciente. Um paradoxo lacaniano também é decorrente dessa concepção: o sujeito age sem saber, mas precisamente desse lugar de divisão ele é responsável. E como pode ser compatível com a prática da análise que o sujeito seja efeito do significante e ainda que o objeto a seja a causa de seu desejo, ao mesmo tempo que se faça aí uma exigência de consentimento ou de decisão?
Há uma premissa lacaniana que diz que se o sujeito é responsável por sua posição de divisão no discurso, é também responsável pelo seu sintoma (Lacan, 1966/1998b). O que está implícito aqui é a escolha que essa posição comporta. O que conta é a posição que o sujeito toma a partir dos seus ditos. Como o sujeito de calças curtas se responsabiliza pelo seu sintoma se este também pode ser sintoma do Outro?
A responsabilidade da criança está diretamente relacionada não somente a seu sintoma, já que parte dele é sintoma do Outro, mas em determinar por meio de seu sintoma a aparição da divisão do sujeito, onde quer que apareça, quer na criança, quer nos pais. A responsabilidade está em marcar buraco no Outro, e desta forma este sintoma é seu, estando diretamente relacionado à escolha que faz diante da demanda deste Outro.
Minha hipótese é que para poder se pensar em responsabilidade do sujeito na clínica com a criança, tem-se que propiciar a aparição do sujeito e de seus atos, já que o sujeito responde a partir do seu não saber, da sua divisão, inclusive de seu sintoma, colocando o Outro parental num lugar de falta. Porge (1986) afirma que o reenodamento realizado na clínica com criança ocorre em momentos de entrevistas em que os lugares de fala circulam e provocam o fading do sujeito. É justamente nesse momento preciso que Lacan relaciona o sujeito da psicanálise com o da ciência, divisão experimentada pelo sujeito como divisão entre o saber e a verdade. Dessa forma, o sujeito que fala é responsável pela sua posição no discurso, porém também ele implica o Outro em sua divisão.
À luz desse debate, pretendo analisar um fragmento de caso atendido em uma instituição que oferece atendimento psicanalítico a pessoas com poucos recursos financeiros.
Tiago tinha oito anos quando sua mãe procurou atendimento para ele. A mãe relatava que ele estava muito mal na escola, que era muito "preocupado" e "desligado". Tiago falava dele e de sua vida, de seu avô paterno, pessoa de quem gostava muito e que tinha falecido fazia pouco mais de um mês. Depois disso, foram morar com a avó por motivos financeiros e ele dormia no lugar de seu avô na cama. Tiago não tinha vontade de estudar e de acordar.
Ressalto duas situações durante os atendimentos: a primeira em que ele começou a se interessar em saber de onde era a analista. Apesar de somente usar a palavra falada, diante dessa interrogação passou algumas sessões fazendo a brincadeira da forca para tentar saber qual seria a cidade em que tinha nascido a analista. A segunda quando começou a falar do pai. Seu pai era contra o atendimento, e durante certo tempo Tiago tentou acertar com a analista uma data para o pai poder ira uma sessão. O pai nunca veio, embora tenham conversado sobre o atendimento, segundo a criança.
As faltas de Tiago às sessões se repetiam no atendimento, tendo acontecido intercaladas a estas duas situações relatadas acima. Em ambas Tiago começava a manifestar algum tipo de interesse, sintoma sobre o qual se queixava sua mãe, a "falta de interesse". Essas faltas foram tornando-se quase que ritmadas, como se pudéssemos dizer: um passo na análise, duas faltas. Proponho pensar que essas faltas eram atos do sujeito, onde mãe e filho eram capturados. Diante das repetições, algo precisava ser feito. As tentativas de interpretações e pontuações foram vãs... escanções? Pensei em encerrar esse atendimento. Falei para ele que não tinha mais condição de atendê-lo porque as faltas só perpetuavam as queixas que a mãe tinha dele e as dele próprio. Depois chamei a mãe e ele permaneceu na sala, como sempre fazia. Num determinado momento em que ela falava sobre a continuidade das dificuldades do filho e o assunto era a descontinuidade nas sessões, ele olhou para a analista e disse que sua falta de vontade e sua falta de concentração eram devidos à morte do seu avô. Ficava o tempo todo pensando nele na sala de aula. Neste instante a mãe fica estupefata, pois nunca conseguira falar da morte do seu pai. A analista falou para ele que quando precisasse voltar poderia telefonar, ou mesmo pedir para sua mãe telefonar para marcar.
Os dois saíram e fiquei por muito tempo pensando neste caso. Sabemos que a criança está num lugar de contradição e de um cruzamento, que abriga o recalcado ou o foracluído e ao mesmo tempo é o lugar de onde este retorna. Nesse sentido é que, segundo Porge (1986), a análise deve se utilizar de um dispositivo de limites, entre enunciados e enunciações, que pode funcionar nas entrevistas preliminares ou em outro momento da análise. Proponho pensar que neste caso isso ocorria toda vez que havia alguma ausência da criança ou quando eu chamava a mãe no final da sessão do filho, o que significa dizer que nesse jogo de enunciados e enunciações houve um espaço para que, na mãe, "sua parte" pertencente ao filho fosse reenodada de outra forma, permitindo que ela, que não se fazia de mãe para esta criança e sim de filha de um pai morto, pudesse ser invertida. A interrupção da análise foi um ato para que a mãe pudesse buscar um lugar de fala para ela.
Porge (1998) em outro texto refere-se a um tipo particular de transferência do tratamento com crianças: a transferência à la cantonade. Trata-se de conceber que a primeira transferência da criança é com os pais, e quando estes não podem sustentá-la, procuram um analista. Esses pais por algum motivo não conseguem ocupar o lugar de Sujeito Suposto Saber e a criança torna-se persecutória. O problema do seu filho é sempre endereçado a eles. Era o que ocorria com a mãe de Tiago, pois, segundo ela, ele fazia isto para deixá-la preocupada, "de propósito, para tirar-lhe a paciência". O problema na criança vem interromper um saber familiar, e aí os pais não se reconhecem mais. A transferência, então, se rompe. O trabalho do analista seria reenviar a criança à sua transferência com os pais. Nessa última sessão a mãe diz que estava se separando do marido, e começa a relatar os seus motivos. Tiago logo retrucou, dizendo que não gostava quando ela falava assim de seu pai. Porge, por exemplo, afirma que a contribuição social do analista é sua contribuição ao edipismo.
Enfim, o analista deve estar atento a se retirar do jogo no momento em que a transferência da criança já pode ser endereçada novamente aos pais e estes podem fazer cargo dela. Nos tratamentos em que existe algum tipo de vicissitude no pagamento (convênios, instituições, pagamento realizado por um terceiro etc.), a clínica mostra que a carência, se inicialmente financeira, a partir de certo tempo pode ser colocada em outros termos: qual posição este sujeito ocupa em relação ao Outro, como o dinheiro entra na construção do seu fantasma e como pode se movimentar em relação a isso. Inicialmente, posso dizer que é de sua posição em relação a esse Outro (por exemplo, o "social") que está se tratando: lugar de vítima, de infortúnio, de colocar o outro como aquele que está aí sempre como lugar da culpa, e Freud (1913/1996) já firmava em seus escritos técnicos que o paciente reivindica por direito da sua neurose a piedade que o mundo lhe recusou à aflição material, podendo eximir-se então de toda obrigação de combater sua pobreza por meio do trabalho. E com a criança? Ocorre o mesmo?
Quando uma criança é trazida para análise temos dois movimentos: frente ao que supõe ser o desejo do Outro, a criança faz sintomas, inibições ou angústias; e, por parte da transferência dos pais em relação ao filho, a criança já está em posição de exclusão (da linhagem, da posição de criança, entre outras). Não podemos realizar uma leitura sobre a questão do custo da análise sem considerá-lo em três versões: do lado da criança, do lado dos pais, do lado do analista.
Quanto à responsabilidade na clínica, pais e criança devem pagar. Neste caso ficou claro que a posição da criança difere da dos pais em relação ao pagamento. Do lado da criança, o seu pagamento é falar para que algo possa ser dito, abrindo assim a possibilidade de que o sujeito se posicione em relação a sua divisão. Do lado dos pais, as vicissitudes apontadas acima em relação ao pagamento podem impedir a volta de um assujeitamento à transferência com o filho, provocando a manutenção da transferência à la cantonade com o analista (Porge, 1998). Nessas situações, um limite, um corte se faz necessário.
O pagamento dos custos em dinheiro, numa análise com crianças, deve ser feito pelos pais ou quem ocupe esse lugar. Pois, se pensarmos na dialética do Dom, inicialmente este só é trazido no elemento de certa gratuidade que vem desses cuidadores, do lado do analista, para que o objeto possa mudar de significação, uma demanda que não pode ser atendida. Logo, numa análise com criança, se existe alguma gratuidade, só pode estar do lado dos pais. A reivindicação própria da frustração há que entrar na análise a partir da não resposta a essa demanda de amor por parte do analista, que está a trabalho e ganha para isso, do lado dos pais há que apostar na circulação do Dom, darem ao filho o que não têm assim como receberam.
Em relação ao pagamento do lado dos cuidadores primordiais dessa criança, alguns pontos podem ser destacados: 1) a criança há que contar, eles pagam o preço do o filho conta para eles como cifra, pagam um preço para decifrá-lo; 2) pagam o preço de retirar a criança do lugar do gozo: não se pode fazer o que se quer com um filho; 3) pagam para mostrar o que não têm e buscam no analista a tentativa de relançamento do desejo em relação à criança; 4) a transferência ao final do tratamento tem que retornar para os pais, o que é dificultado caso o analista aceite algum tipo de gratuidade retirando dos pais a competência de retomar a transferência: não podem arcar com o filho.
Já do lado da criança, ela paga: 1) suportando sua condição de dependência do Outro; 2) se responsabilizando pela sua condição sintomática; 3) com seu corpo e sua presença; 4) com suas palavras, seus significantes, suas teorias; 5) por sua condição de criança, aquela que ainda não responde pelo real do sexo e nem por uma escolha objetal de encontro com o outro sexo; 6) por não poder pagar (isso é mais visível quando existem situações que fazem com que, diante da visível melhora do filho, os pais abandonem o tratamento).
O analista paga com os três preços já ventilados por Lacan (1958/1998a) na direção da cura (pessoa, ser, palavras). No caso da análise com criança, o analista, ao pagar com a sua pessoa, também se deixa emprestar à transferência dos pais um pagamento a mais.
Tiago foi o primeiro que me fez começar a questionar esse tipo de inserção do pagamento no atendimento analítico com a criança. Aqui, nesta realidade que não está tão distinta de muitas no Brasil, não só está em jogo o que pode ser chamado de responsabilidade do sujeito no atendimento à criança, mas também a outra noção de responsabilidade que se liga ao pagamento dos pais. Nessa realidade o dinheiro para a criança e para os pais é lugar de pertinência. Se para os pais o dinheiro e o desejo se encontram no ato de responder pelo sintoma do filho, para a criança o dinheiro e o desejo se separam para indagar a sua filiação. Trata-se da tirania da responsabilidade, como se refere Lacan (1966/1998b), também afirmando que para as crianças da burguesia não ha relação entre dinheiro e desejo.
Proponho pensar aqui duas dialéticas um pouco diferentes de como Dolto as pensou: que o sujeito tem a responsabilidade em relação a sua própria posição de sujeito determinado no discurso, no caso de quem fala, sejam os pais, seja a criança; e a do pagamento que é realizado pelos pais que respondem pela possibilidade de se retornar a uma posição transferencial em relação à criança.
O paradoxo é que parece que no caso da criança a responsabilidade se encontraria inclusive numa transferência desta para o Outro, reenviando sua mensagem, devolvendo ao Outro parental sua responsabilidade, sua parte irreconhecível. É assim que Tiago tenta reenodar sua posição, e o analista estaria aí para dar passagem. Responsabilizar-se pela causalidade, no caso das crianças, é permitir a aparição do sujeito em suas escanções e reenviar a transferência à filiação parental.
REFERÊNCIAS
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Endereço de correspondência:
claudia.mascarenhasfernandes@gmail.com
Rua Cassilandro Barbuda, 1007/ 202
41760-110 Salvador Bahia Brasil.
Recebido em fevereiro/2015.
Aceito em julho/2015.