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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.2 São Paulo ago. 2016

https://doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p302-320 

DOI: http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p302-320

ARTIGO

 

O sintoma da criança na história da psicanálise e na contemporaneidade: contribuições para uma prática despatologizante

 

A review of child psychoanalysis and the notion about the symptom: contributions to alternative practices

 

El síntoma de niños en la historia del psicoanálisis y en la sociedad contemporánea: aportes a una práctica despatologizante

 

 

Maíra Lopes AlmeidaI; Joyce Gonçalves FreireII; Caio César Souza Camargo PróchnoIII

IPsicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil
IIPsicóloga. Psicanalista. Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil
IIIPsicólogo. Professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O tratamento de crianças foi possível quando o infantil começou a galgar seu espaço na clínica psicanalítica. Freud inaugurou essa possibilidade, seguido por Anna Freud e Melanie Klein, que clivaram o sintoma em duas compreensões distintas. Assim, revisam-se as concepções históricas do sintoma entrelaçado à questão contemporânea deste como uma desordem, noção que sustenta o paradigma da medicalização e produz, cada vez mais cedo, números altíssimos de crianças utilizando psicofármacos. Problematizamos, assim, as contribuições da psicanálise para essa compreensão hodierna que implica amordaçamento e exílio do sujeito de seu próprio adoecimento.

Descritores: psicanálise; infância; sintoma; história.


ABSTRACT

The treatment of children was possible when the infant started to climb its space in psychoanalytic practice. Freud opened this possibility, followed by Anna Freud and Melanie Klein, who cleaved the symptom in two distinct understandings. Thus, we revise the historical concepts of symptom interlaced to the contemporary matter of that as a disorder, a notion that sustains the paradigm of medicalization and produces increasingly early, very high numbers of children in use of psychotropic drugs. We problematize the contributions of psychoanalysis to understanding the notion of symptom in the current times which gags the person and excludes him/her of his/her own suffering.

Index terms: psychoanalysis; childhood; symptoms; history.


RESUMEN

El tratamiento del niño fue posible cuando el infantil ha comenzado a ganar espacio en la clínica psicoanalítica. Freud inauguró esta posibilidad, seguido por Anna Freud y Melanie Klein, quienes dividieron el síntoma en dos comprensiones distintas. Por ello, se revisan las concepciones históricas del síntoma entrelazadas a la cuestión contemporánea de éste como un trastorno, concepto que sostiene el paradigma de la medicalización e implica cada vez más temprano la utilización de psicofármacos por una gran cantidad de niños. Así se pretende plantear las contribuciones del psicoanálisis para esta comprensión hodierna que implica el amordazamiento y el exilio del sujeto de su propia enfermedad.

Palabras clave: psicoanálisis; infancia; síntoma; historia.


 

 

Françoise Dolto (1979/2004, p. 9), no prefácio em que escreveu para o livro A primeira entrevista em psicanálise, de Maud Mannoni, aponta que “Ciência do homem por excelência, a Psicanálise está, desde Freud, seu fundador, em perpétua investigação, e seu campo de estudo vê seus limites se ampliarem cada vez mais abrangendo desordens de saúde mental, da conduta e da saúde somática”.

O apelo para a psicoterapia de crianças é emergente na sociedade atual. Somam­se demandas dos pais, da escola e de diversos pontos de apoio que compõem o cenário das crianças contemporâneas. Isso se torna especialmente grave, como aponta Julieta Jerusalinsky (2014), na medida em que vivemos sob “a época da palmatória química”.

A partir dessa definição, problematizamos que o uso de remédios para a infância tem sido propagado e se tornado, cada vez mais, socialmente aceito e, inclusive, solicitado. O Brasil, como afirmam Decotelli, Bohrer e Bicalho (2013), constitui­se como o segundo maior consumidor de psicotrópicos como o metilfenidato para a infância, de forma que está, assim, no topo dessa palmatória química.

Com a publicação de manuais psiquiátricos como CID-10 e DSM-IV, as doenças psíquicas se tornaram de fácil e rápida classificação, sendo que o preenchimento de alguns itens em uma ordem de sintomas já indica um transtorno instaurado. Apesar de se declararem ateóricos, esses manuais embasam­se fortemente na ciência das evidências, deixando para trás todo e qualquer traço psicanalítico.

Considera­se que mesmo em território psicanalítico há divergências no modo de conceber o tratamento para a infância. Existem duas vias possíveis que divergem, sobretudo na compreensão do sintoma. Como aponta Calzavara (2013), uma prática se apropria deste como produção do inconsciente enquanto, por outro lado, há o entendimento do sintoma como algo a ser suprimido em privilégio da adaptação da criança ao social.

Nesse sentido, este artigo busca trilhar o caminho percorrido na psicanálise para o surgimento de uma psicoterapia para crianças até o ponto em que há uma clivagem em projetos distintos. A partir dessa retomada, articulam­se as formas de atuação possíveis dentro da psicanálise para a infância que procure resguardar o que Dolto já afirmava ser por excelência a ciência do homem. Só assim poderemos, de alguma forma, fazer frente à “época da palmatoria química”.

 

“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” e “O pequeno Hans”

Embora a criança já estivesse presente no divã desde as histéricas analisadas por Freud, a essa época ainda não havia uma clínica com as crianças. Com a escuta dessas pacientes, o autor percebeu que os sintomas advinham de um desejo recalcado expresso no sintoma histérico. Dessa forma, o nó que enlaça as compreensões freudianas refere­se ao entendimento do autor de que o sofrimento histérico não é da ordem do vivido, mas do que foi desejado.

Com esse entendimento de que o sofrimento também é perpassado pelo desejo, abriu­se caminho, na psicanálise, para a emergência da clínica da infância, pois, ao ouvir os relatos de suas pacientes, Freud notou a constância das histórias de sedução no discurso das histéricas. Quando, então, ele percebeu que esses relatos de sedução durante a infância nem sempre condiziam com o que foi de fato vivido, abriram­se as portas para a compreensão de um adoecimento histérico que surgia do desejo infantil.

Com o texto “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”, escrito por Freud em 1909, inaugurou­se a possibilidade da clínica com crianças. Esse caso conhecido como “O pequeno Hans” foi conduzido por intermédio do pai do garoto, analisando de Freud, a fim de confirmar as teorias freudianas sobre a sexualidade infantil (Freud, 1905/1980).

A contribuição do caso de Hans para a psicanálise de crianças é inestimável, na medida em que o caso surge para colaborar com a defesa teórica da sexualidade infantil como raiz dos sintomas histéricos. Assim, a partir desse caso, a sexualidade ganhou outro contorno, para além de agente de sintomas es como um processo natural da vida infantil.

 

Hug-Hellmuth e Anna Freud: a clínica sob influência pedagógica

Após o caso Hans, tentativa prima de um atendimento infantil, a primeira análise com crianças foi empreendida por Hermine von Hug­Hellmuth, a pioneira na clínica com crianças, porém com importância reduzida na história na psicanálise. Uma hipótese para seu desconhecimento é levantada por Camarotti (2010), que acredita que sua trágica morte pode ter influenciado em seu não reconhecimento − em 1924, Hug­Hellmuth foi assassinada por um sobrinho a quem educou seguindo os princípios teóricos da psicanálise. Além disso, ela foi obliterada pelo embate teórico entre Melanie Klein e Anna Freud, que dominou a cena no início da psicanálise de crianças.

Após Hug­Hellmuth, ganhou força a cisão entre duas grandes correntes da psicanálise da infância representadas por Melanie Klein e Anna Freud. Com uma perspectiva parecida à de Hellmuth, Anna Freud valoriza os aspectos educativos em sua clínica. Em sua teoria, ela privilegia “a adaptação do comportamento da criança ao social em detrimento das questões estruturais concernentes ao inconsciente” (Calzavara, 2013). Como afirma Corso (1998), ela acredita que o sujeito pode se reestruturar, mesmo no tempo da infância, por meio da liberação dos impulsos que foram recalcados e da posterior colocação destes sob a égide educativa do ideal da analista. Interessava, nessa perspectiva clínica, a domesticação das pulsões, de forma a colocar diques para que elas não transbordassem. O ego e o consciente são protagonistas da vida do infante e a situação externa e o nível de realidade são de fundamental importância na clínica de Anna Freud e seus seguidores (Priszkulnik,1995).

A teoria do desenvolvimento, ou seja, a maturação, também é consideravelmente valorizada por Anna Freud. Dessa forma, a direção do tratamento caminha para a supressão do sintoma por não estar em conformidade com o social, o que parece ser teoricamente contraditório à noção analítica de produção do inconsciente de cada sujeito.

 

Melanie Klein: a eclosão de uma prática analítica com crianças

Melanie Klein (1952/2006) revolucionou a psicanálise de crianças com sua técnica do brincar e foi uma das seguidoras mais fiéis de Freud, sendo uma das primeiras a acolher e usar em sua teoria o conceito de pulsão de morte, tão rechaçado no início entre os próprios psicanalistas. Sua teoria colocou o mundo interno do bebê em evidência: suas sensações e sentimentos são narrados pela autora que direciona seu olhar sobre esses momentos primitivos. Ela estabelece duas fases do desenvolvimento no primeiro ano de vida. São elas: a posição esquizoparanoide, no primeiro semestre de vida, e a posição depressiva, no segundo. Além disso, o termo “posição” escolhido por ela não foca somente o desenvolvimento biológico, mas também as experiências psíquicas vividas pelo bebê.

Em termos de técnica, ao contrário do que considerava Anna Freud, Klein deslinda que o brincar oferece material para a interpretação a partir das relações transferenciais. Ela propõe que o analista não exerça nenhuma pressão moral ou educacional, de modo que seu trabalho seja pautado pela interpretação das ansiedades e fantasias inconscientes.

Calzavara (2013) pontua que o tratamento de crianças de Melanie Klein possui uma perspectiva mais analítica, uma vez que conceitos fundamentais da obra de Freud formam o pilar de sua prática. A autora estende a associação livre, regra fundamental da psicanálise, para a clínica com crianças de modo que, ao interpretar seu brincar, compreende que, na verdade, todo seu comportamento “são meios de expressar o que o adulto expressa predominantemente através de palavras” (Klein, 1955/1991, p. 151).

Acentuamos, assim, que a importância da teoria kleiniana para a infância pode ser pensada na medida em que a autora foi a primeira a seguir realmente o projeto freudiano e transpô­lo para a clínica com crianças. Ao contrário do viés educativo de outrora, Klein privilegiou o pensar do bebê que se baseia, no sentido freudiano, no eu corporal. Com sua técnica de se propor a brincar sem objetivos pedagógicos e com a escuta dos movimentos da criança, ela ofereceu a esses pequenos pacientes o que a psicanálise possui enquanto essência: a verdade oculta do inconsciente de cada sujeito.

 

O sintoma em tempos de DSM: a desordem contemporânea

A terceira revisão do Manual de Diagnóstico e de Estatística da Associação Psiquiátrica Americana (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders − DSM-III), em 1980, representa o marco zero de uma nova relação entre psiquiatria e psicopatologia. Declarado como ateórico, propôs­se a apresentar os grandes transtornos psíquicos em critérios objetiváveis e passíveis de pesquisa empírico­experimental, rechaçando, assim, todo e qualquer aspecto psicodinâmico.

Esse sistema de classificação pretendeu “fornecer critérios explícitos, operacionalmente observáveis e que reduzissem ao mínimo o uso de interferências teóricas não diretamente observáveis para a definição de cada quadro mental” (Dunker & Kyrillos Neto, 2015, p. 198).

As novas revisões do DSM seguiram pelo mesmo caminho. As síndromes psíquicas tornaram­se passíveis de ser diagnosticadas por uma série de critérios de inclusão e exclusão. Segundo Aguiar (2004), deslocou­se o modelo de análise do sujeito para o tratamento de casos, em que é considerada a semelhança na apresentação de sintomas. A partir disso, o foco deixou de ser os sujeitos singulares e passou a ser os transtornos universais. Assim, as consequências desse manual refletem significativamente no panorama contemporâneo, afinal, como afirma Pereira (1999, p. 24) “nada é mais suspeito do que uma psicopatologia esquecida dos afetos”.

Angell (2011) comenta uma pesquisa realizada nos Estados Unidos em que se identificou um aumento de trinta e cinco vezes no número de crianças diagnosticadas com algum transtorno mental, bem à frente de síndrome de Down e deficiências físicas. Entre esses transtornos, ela cita a prevalência de “transtorno bipolar juvenil”, que aumentou quarenta vezes entre 1993 e 2004, e de “autismo”, que aumentou noventa vezes na mesma década. Além disso, dez por cento dos meninos de dez anos de idade tomam algum tipo de medicamento para o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Assim, é necessário problematizar o que representam esses manuais em termos psicopatológicos, sobretudo, na infância. A mudança paradigmática do DSM-III permitiu a emergência da psiquiatria biológica, ou seja, o transtorno mental promanado, somente, da fisicalidade do corpo. A medicalização comporta­se, então, como uma resultante desse entendimento, que Gonçalves (2007, p. 52) denomina como “carona farmacológica”.

Contudo, o manual soi disant ateórico não é ingênuo quanto a sua pretensa neutralidade. Ele foi “essencial para a 'simplificação' dos critérios diagnósticos, e para sua aplicação em estudos experimentais a serviço da indústria farmacêutica” (Gonçalves, 2007, p. 55). A favor dessa indústria está a incessante cultura contemporânea que clama por remédios que analgesiem quase instantaneamente a dor e o que nós entendemos por pathos. No entanto, o sofrimento psíquico, ou “a escola das paixões da alma”, como escreveria Lacan (1966/1998), não cessa apenas com a inibição de sintomas.

Segundo Birman (2012), a oposição entre psicanálise e psiquiatria biológica surge a partir das condições históricas ditadas pelas novas formas de mal­estar. O autor aponta que a transformação do ser da subjetividade redefiniu uma nova partilha entre esses campos. Como aponta Fortes (2009), as atuais formas de subjetivação se caracterizam pelo hedonismo, ou seja, o dever de ser feliz e a negação da dor. Essa é uma rígida fronteira entre psicanálise e psiquiatria biológica, pois, para a primeira, o sujeito não pode ser concebido eclipsado de dor e angústia.

Dessa forma, a psiquiatria biológica floresce, na medida em que os psicofármacos podem “realizar o curto­circuito do sofrimento e atender diretamente aos reclamos da dor” (Birman, 2012, p. 143). Em contra-partida, a psicanálise perde parte de seu poder social, uma vez que sustenta o modelo alteritário de subjetividade e prima pela mediação em vez da medicalização.

Freud (1924/2011, p. 192), no entanto, testemunha que não há pulsão pura, ou seja, é necessário que haja a “amálgama, tão importante para a vida, de Eros e instinto de morte”. Então, para lidar com o excesso mortífero pulsional, masoquismo e pulsão de morte, fundamentam a dor como inerente ao aparelho psíquico e “não há como eliminá­la totalmente do psiquismo humano, delimitando dessa maneira uma diferença crucial entre a tarefa da psicanálise e certos imperativos da cultura contemporânea” (Fortes, 2009, p. 1143).

Contudo, diante desses imperativos, há que se por em questão a concepção de sintoma atual e suas consequentes implicações. Em um determinado momento histórico, Anna Freud e Melanie Klein pautaram discussões sobre as diferentes formas de concebê­lo. Para a primeira, o sintoma é algo a ser suprimido; para a segunda, uma produção do inconsciente. No entanto, o que está posto atualmente é o sintoma relegado somente ao plano biológico, característico de um mau funcionamento do organismo.

O DSM representa a ordem biopolítica que impera e a qual estamos submetidos. Embora traduzido para o português como “transtorno”, o que está inerente ao título original norte­americano é a “desordem”. Desse modo, remetemos ao que não tem espaço nessa ordem social, a analgesia fundamental que silencia tantas dores. Assim, minúcias e particularidades do pathos devem ser submetidos a classificações gerais, de modo a garantir que estejamos todos em ordem, ainda que essa sociedade não esteja.

A desordem do sujeito é tão soberana que, no Brasil, para crianças diagnosticadas com TDAH há uma salvação: o remédio Concerta. A partir dessa referência, é possível balizar a concepção contemporânea do sintoma como um resultado que tem como seu significante o reducionismo biológico. Dessa forma, psicopatologias (o psíquico sob o efeito do pathos) podem ser situadas em termos de genes imperfeitos e desregulação molecular.

Se para a angústia temos ansiolíticos; para o TDAH temos Ritalina e Concerta; para a depressão, remédios variados que atuam na receptação de serotonina e inibidores de monoaminoxidase. Trata­se, portanto, de uma lógica hodierna que exila permanentemente o sujeito de seu próprio adoecer. Assim, não se trata de negar o que há de biológico na desordem, mas de explorar as particularidades e restituir ao indivíduo o que é intrínseco a sua subjetividade.

Isso é ainda mais premente quando se tratam de crianças. Com a modificação paradigmática do DSM nos anos 1980, tornou­se possível a utilização de psicofármacos como prática corrente para a infância. A partir dessa modificação, segundo Ortega (2008, p. 490), houve um deslocamento de um marcador subjetivo dos transtornos para um marcador cerebral, de forma que “o cérebro responde cada vez mais por tudo aquilo que outrora nos acostumamos a atribuir à pessoa, ao indivíduo, ao sujeito”. Entretanto, com os transtornos infantis, os marcadores cerebrais não são tão pontuais quanto parecem e a epigenética nos dá notícia disso. O que ocorre no Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é um registro disso. Embora não existam bases biológicas sólidas que corroborem o transtorno, há medicação atuante biologicamente que é frequentemente usada e em proporções assustadoras − exceto no período de férias (Brum, 2013).

A publicação do DSM-5 no ano de 2013 foi ainda mais alarmante. Concebido em meio a indignações e polêmicas, até mesmo os partidários desse tipo de classificação o receberam com uma dose grande de críticas. Segundo Brum (2013), o criador da edição anterior, o psiquiatra Allen Frances disse ter sido esse o momento mais triste de sua carreira.

Além de romper com as barreiras entre normal e patológico, desconsiderar o sujeito e também seu contexto social, o DSM-5 cria categorias inimagináveis. Essa é sua grande polêmica, tornar situações normais em transtornos. O DSM se perdeu totalmente e, hoje, os limites entre o aceitável e o excesso se esfumaçaram e não são mais distinguíveis.

Para a infância, o novo manual caracterizou as birras como um transtorno chamado “Transtorno Disruptivo de Regulação de Humor”. Assim, se até as birras correspondem a uma determinada classificação, “a vida tornou­se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença mental” (Brum, 2013).

Os psicofármacos para a infância são as camisas de força contemporâneas, que representam práticas ainda manicomiais no campo das doenças mentais. Assim, crianças aparecem medicadas cada vez mais cedo nos consultórios e muitos pais anseiam por um remédio. Diante disso, a clínica da infância hoje exige um (re)posicionamento. A questão, como aponta Jerusalinsky (2014), é descentrar o debate sobre o cérebro da criança para retomar o porquê de precisarmos recorrer atualmente a “palmatórias químicas” para dar conta de um corpo pulsante que sofre com excessos e/ ou faltas.

O DSM-5, mediante essa categorização, cria a própria patologia e inventa igualmente o remédio que vai curá­la. Está muito bem inserido no movimento do modo de produção capitalista, no qual as bizarras classificações se evidenciam como mercadorias a serem consumidas.

A psicanálise, então, ao bordejar essa concepção atual, pode contribuir na medida em que “falamos de endereçamento da fala, de uma ultrapassagem dos fenômenos que nos permite formular um diagnóstico como função terapêutica e concomitantemente nos afasta das caricaturas engendradas pelos manuais como padrões de sofrimento psíquico” (Dunker & Kyrillos Neto, 2011, p. 623).

Assim, ao se defrontarem com o estranho, o excesso ou a falta de seus filhos, os pais emitem um pedido de ajuda ao especialista, que responde ao pedido com uma lista padronizada de comportamentos, ao modo de um checklist, que deve ser rapidamente preenchida. Ora, as crianças, em seus movimentos peculiares que são primazia do tempo da infância, nos provam cotidianamente que não há nada mais arrogante por parte dos adultos que a pretensão de querer padronizá­las.

Alguns dispositivos como os grupos terapêuticos de crianças do Lugar de Vida nos oferecem rastros disso (Pesaro, 2015; Pinto, 2009; Tiussi, 2012). O encontro heterogêneo de crianças, seja com impasses na constituição subjetiva ou questões na posição discursiva, surte efeitos que surpreendem a nós, adultos. Isso se deve, em certa medida, ao fato de que as crianças vivem continuamente sob a custódia da patologização, o que implica que os olhares dirigidos a elas sejam normatizantes. Buscam, então, uma suposta padronização baseada em uma concepção desenvolvimentista que ignora que a constituição psíquica não se dá, puramente, em tempos pré­determinados e estabelecidos a priori.

Assim, a partir do entendimento psicanalítico, a clínica com crianças, historicamente, propiciou que se olhasse para os pequenos e compreendesse, ainda que com um olhar adulto, o mundo de sensações que são vivenciados pelo filhote do homem. A partir de uma invenção, a psicanálise com crianças surgiu, e é necessário que a partir de invenções ela continue. Embora guarde a especificidade da técnica e do método, é preciso “a criação de dispositivos institucionais que envolvem a criança numa rede ampliada de discursos e laços sociais” (Pesaro, 2015, p. 52). Apesar das particularidades da psicanálise com crianças, a aposta é que assim como elas, possamos explorar um mundo que não é tão conhecido como supomos e que possa fazer frente às atuais camisas de força.

Assim, o que esses checklists produzem é um empobrecimento de criação, uma vez que o especialista, ao receber uma criança, já sabe de antemão o que procura. O personagem já existe, basta encaixá­lo (Jerusalinsky, 2015). Por conseguinte, após essa busca enviesada, configuram­se tratamentos que caminham nessa direção, a de travar uma batalha contra o estranho, o sintoma. Entretanto, isso é feito sem sequer considerar um cessar-fogo, do qual poderia advir a possibilidade do diálogo e do espaço para pensar. Essa batalha, diagnóstica ou de tratamento, contra o sintoma impossibilita qualquer flor que pudesse nascer do asfalto, pois já se tem certeza que daquelas condições não há possibilidade de vida que possa brotar.

Dessa forma, o discurso psicanalítico que compreende o sintoma como produção do inconsciente de cada sujeito pode oferecer um contraponto a tal nomeação ao buscar a singularidade da criança e seu desejo. Acredita­se, assim, que a nomeação em um manual diagnóstico, postulado como ateórico, afeta de diferentes maneiras a criança, a família e suas possibilidades.

A psicanálise aposta na existência de um sujeito e em uma ética (para além do bem comum) do desejo, ao fazer emergir sujeitos dotados de singularidades ofuscadas pelo discurso universal. Sem dúvidas, é um posicionamento clínico ético com a vida (Oliveira, 2012, p. 56).

Isso nos faz crer que é premente que o tratamento infantil seja compreendido em termos do sintoma como uma produção ou “pathei mathos: um sofrimento que comporta a possibilidade de transformar­se em sabedoria” (Pereira, 1999, p. 23).

O resgate da história da psicanálise de crianças nos mostra o caminho percorrido por importantes autores psicanalíticos em suas tentativas de dar conta desses sintomas que desvelam a nós o que há de humano na dor. O contemporâneo, sem espaço para aquilo que dói, o cala. Contudo, a dor pulsa e é nesse pulsar que habita nossa aposta.

Assim, nosso tempo prima pelo que está adiante, em direção ao futuro. Este artigo, na contramão desse movimento, se propõe a olhar para trás para que possamos revisitar descobertas fundamentais e necessárias a respeito da clínica com crianças. Essa é uma tentativa de que possamos também nos permitir pensar novas práticas que diminuam o imperativo do remédio, pois “em vista dos riscos, e da eficácia questionável dos medicamentos em longo prazo, precisamos fazer melhor do que isso. Acima de tudo, devemos lembrar o consagrado ditado médico: em primeiro lugar, não causar dano (primum non nocere)” (Angell, 2011. p. 14). Afinal, em tempos de medicalização, é fundamental a criação.

 

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Recebido em dezembro/2015.
Aceito em julho/2016.

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