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vol.23 número1O PSICANALISTA E A PÓLISDETECÇÃO PRECOCE DE SOFRIMENTO PSÍQUICO VERSUS PATOLOGIZAÇÃO DA PRIMEIRA INFÂNCIA: FACE À LEI Nº 13.438/17, REFERENTE AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.1 São Paulo jan./abr. 2018

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i1p62-82 

10.11606/issn.1981-1624.v23i1p62-82

DOSSIÊ

 

IRDI: UM INSTRUMENTO QUE LEVA A PSICANÁLISE À POLIS

 

IRDI: AN INSTRUMENT THAT TAKES THE PSYCHOANALYSIS TO THE POLIS

 

IRDI: UN INSTRUMENTO QUE LLEVA EL PSICOANÁLISIS A LA POLIS

 

 

Maria Cristina Machado KupferI; Leda Mariza Fischer BernardinoII

IPsicanalista. Professora titular sênior do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), São Paulo, SP, Brasil.
IIPsicanalista, pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), São Paulo, SP, Brasil.

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo relata a história da proposta e da validação do instrumento Indicadores de Risco para Desenvolvimento Infantil (IRDI), composto de 31 indicadores clínicos de referência para o acompanhamento de problemas ou entraves no desenvolvimento psíquico de crianças de zero a dezoito meses. Aborda as discussões geradas no interior do campo psicanalítico em torno da criação daquele instrumento e da promulgação da Lei nº 13.438, examinando criticamente as objeções a esta levantadas por psicanalistas e técnicos do Ministério da Saúde. Finaliza com propostas de reformulação de alguns pressupostos do IRDI e de manutenção de outros, passados quase vinte anos desde sua criação.

Descritores: psicanálise; indicadores clínicos; desenvolvimento psíquico.


ABSTRACT

This article tells the history of the proposal and of the validation of the Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI), an instrument composed by 31 reference clinical indicators for the monitoring of problems or impediments in the psychic development of children from zero to eighteen months. We approach the discussions generated within the psychoanalytic field on the creation of this instrument and of the promulgation of the Law no. 13.438, critically examining the objections done by psychoanalysts and technicians of Ministry of Health to this law. We conclude with proposals to modify some presuppositions in IRDI and to maintain others, after almost 20 years of its creation.

Index terms: psychoanalysis; clinical indicators; psychic development.


RESUMEN

El artículo relata la historia de la propuesta y de la validación del IRDI, un instrumento compuesto por 31 indicadores clínicos de referencia para el seguimiento de los problemas o de los obstáculos en el desarrollo psíquico de los niños desde cero hasta dieciocho meses de edad. El artículo se acerca a las discusiones generadas dentro del campo psicoanalítico alrededor de la creación de ese instrumento y de la divulgación de la Ley nº. 13.438, revisando criticamente las objeciones planteadas por psicoanalistas y por técnicos del Ministerio de la Salud al respecto de esa ley. Concluye con propuestas de reformulación de algunas presuposiciones del IRDI y con propuestas de mantenimiento de otras, casi 20 años después de su créacion.

Palabras clave: psicoanálisis; indicadores clínicos; desarollo psíquico.


 

 

A história dos IRDI

Em 1998, Josenilda Caldeira Brant (já falecida), na época consultora da área da Saúde da Criança, do Ministério da Saúde (MS), e Maria Eugênia Pesaro, técnica da mesma área naquela ocasião, procuraram Maria Cristina Kupfer, docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com um intuito preciso. Ambas iniciavam a revisão de um manual – Saúde da criança: acompanhamento para o crescimento e desenvolvimento infantil (Brasil, 2002) – e interessavam-se em incluir nele indicadores de desenvolvimento psíquico.

Kupfer reuniu, então, um grupo de especialistas, que trabalhou por oito anos em uma pesquisa de validação de indicadores com valor preditivo de problemas de desenvolvimento. A pesquisa recebeu verba do Ministério da Saúde e da Fapesp por meio de um Auxílio Temático Fapesp1.

O grupo de especialistas se autodenominou Grupo Nacional de Pesquisa (GNP) e ficou assim constituído: Josenilda Brant e M. C. Kupfer, coordenação nacional; Alfredo Jerusalinsky, coordenação científica; M. Eugênia Pesaro, coordenação técnica. Sendo uma pesquisa multicêntrica, os especialistas reunidos no GNP tiveram a seu cargo a coordenação do trabalho em nove centros: Leda M. Fischer Bernardino, em Curitiba; Paula Rocha e Elizabeth Cavalcante, no Recife; Domingos Paulo Infante, Lina G. Martins de Oliveira e M. Cecília Casagrande, em São Paulo; Daniele Wanderley, em Salvador; Lea M. Sales, em Belém; Regina M. R. Stellin, em Fortaleza; Flávia Dutra, em Brasília, DF; Otavio Souza, no Rio de Janeiro; e Silvia Molina, em Porto Alegre.

O pedido de Brant e Pesaro tinha um valor especial. Josenilda Brant, além de pediatra, era psicanalista, e Maria Eugênia Pesaro, na época, iniciava sua formação de psicanalista. O pedido de inclusão do desenvolvimento psíquico era então precisamente um pedido de inclusão da perspectiva da psicanálise em um documento de orientação para os pediatras de todo o Brasil.

A pesquisa iniciou-se em 2000 e publicou seus resultados nove anos depois (Kupfer et al., 2009). Mas os indicadores validados nunca foram incluídos no referido manual do Ministério da Saúde (Brasil, 2002).

No entanto, o manual foi paulatinamente substituído pela Caderneta de saúde da criança (Brasil, 2017), que se transformou no principal documento de orientação da puericultura praticada no Brasil. Também, aos poucos, os indicadores validados foram incluídos na caderneta, que vem crescendo desde 2005 até atingir mais de cem páginas na versão de 2017.

A Caderneta de saúde da criança é um documento que se modifica a cada edição. Nelas, a área de desenvolvimento psíquico está crescendo de modo significativo. Brant já havia aberto no manual um capítulo especial para essa área e, em 2005, Ana Cecília Sucupira, na época coordenadadora da área de Saúde da Criança do Ministério da Saúde, também incluiu na caderneta o capítulo "Desenvolvendo-se com afeto", no qual o espírito dos Indicadores de Risco para Desenvolvimento Infantil (IRDI) já estava presente2.

Agora, em 2017, pelo menos seis indicadores inspiraram o texto sobre desenvolvimento dirigido às mães3.

Foram necessários dezessete anos para que o Ministério da Saúde fizesse valer o investimento feito em 2000, e o IRDI passasse a integrar uma política pública no Brasil.

 

Por que e como foram feitos os IRDI

Todo o conhecimento de que se servem os técnicos do MS para orientar políticas públicas precisa vir chancelado pelo selo da pesquisa empírica, experimental e feita com populações. A experiência teórica e clínica da psicanálise, contudo, não se adequa a nenhum desses critérios. Para ser levada em conta nos manuais e normas do MS, a pesquisa IRDI precisou então segui-los: foi experimental, quantitativa e considerou uma amostra de 700 crianças. Para um psicanalista, não está em questão se os indicadores têm ou não valor preditivo, e sim o quanto podem guiar a leitura dos bebês e a sinalização de que uma desconexão entre o bebê e seus pais pode estar ocorrendo, o que justifica uma intervenção a tempo e não o estabelecimento de um diagnóstico. Mas o GNP sabia da importância de seguir os critérios de uma pesquisa dita científica pela ciência hoje dominante para fazer valer os IRDI e permitir sua inclusão nas práticas de saúde de nosso tempo. Isso foi o que aconteceu em 2017, quando o grupo responsável pela construção da caderneta3 incluiu apenas o material oriundo de pesquisas validadas e publicadas em veículos acadêmicos de excelência , estando então a pesquisa IRDI habilitada a ser considerada.

A ideia de risco também não é própria à psicanálise, mas está profundamente presente na semiologia pediátrica. Falar de risco não é psicanalítico, mas falar de risco é essencial do ponto de vista da saúde pública. O GNP nunca desconsiderou essa dissimetria, e nunca reduziu sua pesquisa à validação de um instrumento de detecção de risco. Sabia, ao contrário, que sua validação, longe de trazer uma certeza – nunca dissemos que os indicadores preveem seguramente problemas ulteriores – abriria portas à consideração da vida psíquica dos bebês e do sofrimento que poderia advir da presença de desconexões com seus cuidadores. Era apenas isso.

A seleção de 31 indicadores e a realização da pesquisa resultaram de um esforço coletivo, do qual todo o GNP participou, bem como alguns monitores, encarregados de acompanhar o desenvolvimento da pesquisa nas unidades de saúde, e pediatras. Destacam-se nesse grupo Julieta Jerusalinsky, Amira Figueiras, Rosa Maria Mariotto e Rogério Lerner.

A experiência dos especialistas os levou, inicialmente, a reunir uma grande quantidade de sinais de problemas nos dois primeiros anos de vida. Como organizá-los? Quais escolher? Quais eram regulares? Quais poderiam indicar problemas na constituição do sujeito? Alfredo Jerusalinsky sugeriu, então, quatro eixos teóricos, inspirados na obra de Jacques Lacan, em torno dos quais os indicadores poderiam ser agrupados. Muitos ficaram de fora, houve superposição, e uma certa arbitrariedade ainda subsistiu, na medida em que inicialmente não se pensava em um instrumento único, mas na validação de indicadores independentes, que iriam ou não ser incluídos no manual. Assim, 31 puderam ser selecionados a partir da organização em eixos teóricos, mas outros tantos poderiam ter sido também incluídos.

Os indicadores foram criados por razões práticas e políticas, mas, em realidade, para o GNP, visam indicar que a constituição do sujeito está ocorrendo. Por que é importante que um sujeito se constitua? Para um bebê não ficar privado de seu principal instrumento de estar no mundo: sua linguagem e possibilidade de dizer sobre si, independemente de quem venha a se tornar. Uma possibilidade que só pode ser exercida se um sujeito do inconsciente e do desejo tiverem sido constituídos. Assim, não se trata de prever no que ele se tornará, nem de evitar que "fique doente", mas apenas de buscar as condições para que um bebê surja como um sujeito e construa seus principais instrumentos para existir como sujeito desejante.

O objetivo inicial de fazer do IRDI um conjunto de indicadores independentes acabou sendo substituído pelo objetivo de fazer do IRDI um instrumento como um todo, pensando no valor que ele poderia vir a ter como instrumento independente do Manual e propício ao uso por pediatras. Se antes a pesquisa objetivava validar indicadores para incluí-los no manual do MS, o grupo de indicadores passou a ser visto como um conjunto que poderia auxiliar sobremaneira o trabalho do pediatra. Com isso, passou a ser apresentado com uma linguagem que o encaixa no fazer pediátrico. No entanto, guardou nele um potencial para também sugerir uma modalidade de trabalho diferente: aquele que o aplica pode usá-lo para detectar o que não vai bem, independentemente de utilizá-los para uma avaliação diagnóstica. O indicador aponta um desajuste, uma dissintonia, um "desencaixe": e pode bastar um ausente para levantar essa suspeita, a ser verificada depois, na relação cuidadosamente lida entre o bebê e seus pais, em um segundo momento por um profissional da intervenção precoce.

O IRDI é também um roteiro de trabalho. Ele indica nortes de leitura, ajuda a ver o que é tão difícil de ver e de acompanhar: um sujeito nascendo. Busca reintroduzir nas práticas de nosso tempo o sujeito excluído da ciência. Para isso, o IRDI força a barra, como disse Dominique Fingermann (2015) em um debate em torno da pesquisa, de um diálogo com a Ciência, na tentativa de subverter essa exclusão.

 

A polêmica IRDI e a Lei

Em abril de 2017, foi promulgada a Lei nº 13. 438, que torna obrigatória a "aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico" (Brasil, 2017).

A Lei começou a tramitar há cerca de oito anos, nos idos de 2010, por iniciativa da senadora Ângela Portela, que naquela ocasião procurava algum aspecto do campo da saúde que precisasse de regulamentação. Consultado, Alfredo Jerusalinsky sugeriu uma lei que obrigasse todo profissional que lida com bebês a olhar para a dimensão psíquica, esperando com isso implantar na prática pediátrica uma cultura que incluiria o olhar para o sujeito. O texto da lei inicialmente falava diretamente do uso do IRDI, e foi modificado durante sua tramitação, porque nenhuma lei pode fechar sua aplicação em um único instrumento.

Nada mais adequado aos fins a que se havia proposto o grupo criador do IRDI. O sonho de levar "o olhar para o sujeito" a todos os profissionais de saúde trabalhando com bebês encontraria finalmente a chance de se concretizar. O grupo não acompanhou essa tramitação, e muitos só souberam de sua existência quando a Lei foi promulgada.

Mas, uma vez promulgada, o sonho se transformou em pesadelo.

Foram três as correntes críticas que se abateram sobre a Lei e os IRDI, com diferentes intensidades e intenções.

 

As críticas do Ministério da Saúde

A primeira delas partiu do próprio Ministério da Saúde (MS), e deve ser considerada como a mais pertinente, uma vez que tanto a área da Saúde da Criança como a área de Saúde Mental, ambas do MS, são habilitadas a se pronunciar sobre saúde pública no Brasil. Ouvindo os técnicos dessas áreas, foi possível entender os fundamentos das críticas à Lei e o porquê de ela ter sido considerada inoportuna.

A primeira grande objeção é a de que não há condições de realizar um rastreamento de problemas psíquicos nas 15 milhões de consultas de puericultura realizadas anualmente no Brasil. A essa objeção deve-se acrescentar a observação de que a incidência de problemas psíquicos não é tão grande a ponto de justificar esse rastramento em tão larga escala. Os criadores do IRDI – psicanalistas oriundos de uma prática predominantemente de consultório – não podiam imaginar que, entre o trabalho de formiga do um a um que realizam cotidianamente e aquele que precisa ser feito com uma população enorme, espalhada do Oiapoque ao Chuí, há um abismo incomensurável.

O trabalho com IRDI cabe melhor, então, nos centros de referência a que essas crianças em sofrimento (em risco!) podem ser encaminhadas, caso um instrumento mais amplo como a Caderneta de saúde, definida como um instrumento de vigilância5, venha a detectar alguma dissonância no plano do desenvolvimento psíquico. Para isso ocorrer, evidentemente há muito chão a percorrer: muitos agentes comunitários de saúde precisam ser formados, de modo a que vejam bem e não vejam demais, sem provocar um exagero no número de encaminhamentos. Isso se faz com sensatez e com formações de qualidade.

O segundo argumento é o perigo de judicialização que uma Lei como a nº 13.438 pode provocar. Um pediatra pode ser processado porque não previu, por exemplo, o autismo de uma criança de um ano que acabou sendo diagnosticado apenas aos três.

O terceiro argumento do MS mostra o descalabro com que a Lei tramitou. Seus propositores em Brasília não levaram em conta todo um projeto de saúde brasileiro orquestrado pelo SUS, e não se articularam com uma política pública de saúde pensada de modo global. A Lei foi proposta como o são quase todas as leis brasileiras: a partir de uma iniciativa isolada. E quando o MS foi consultado, seu parecer foi negativo (pelas razões anteriormente elencadas). Diante desse resultado, a tramitação saiu do âmbito do MS e prosseguiu no Ministério da Justiça, razão pela qual a Lei foi assinada pelo ministro da Justiça e não pelo da Saúde. Como se não bastasse, não passou por consulta pública, o que é obrigatório em qualquer tramitação de lei no país.

 

As críticas de alguns psicanalistas envolvidos com a saúde mental

Para um grupo de psicanalistas envolvidos na interface da psicanálise com instituições de saúde mental, que se pronunciaram em larga escala nas redes sociais, a Lei foi atacada por ser patologizante, medicalizante e por aumentar o número de falsos positivos.

Esses são perigos que o GNP reconhece como reais. O problema não está nesses argumentos fartamente conhecidos, mas nas confusões cometidas pelos atacantes.

O grupo confundiu seus inimigos. Supondo que o GNP estava em acordo com as forças políticas reacionárias atualmente em ação no país, o grupo atacante julgou que seus colegas precisavam ser atacados publicamente e supôs, de modo leviano, que haviam proposto a lei para dela auferir ganhos financeiros. Dividiu forças em uma guerra fratricida, e diminuiu a força do GNP, já reduzida, de interferir, com a psicanálise, nas políticas públicas do MS. Foi um tiro no pé, como disse Leda Bernardino.

Vejamos, uma a uma, as críticas levantadas contra o IRDI.

 

Críticas ao tratamento estatístico generalizante

A psicanálise é estranha ao mundo dos números. O psicanalista não faz cálculos, não conta, não soma, não numeriza o que vê. Ele, ao contrário, lê no único da fala de um sujeito o seu dizer. Não participa das ciências baseadas em evidências.

No entanto, as ciências baseadas em evidências apontam regularidades. E as regularidades mostram uma direção para a qual apontam populações. As regularidades mostram, por exemplo, que o irmão de uma criança autista tem muita mais chances de desenvolver autismo do que outra criança. Pode um clínico ignorar esse conhecimento, fruto da experiência de uma cultura?

Além disso, se queremos levar a psicanálise à saúde pública, precisamos conversar com gestores de políticas públicas, ainda que nossos instrumentos psicanalíticos de trabalho fiquem em nossos consultórios (tempo lógico, manejo da transferência e uso da interpretação, por exemplo, em nada afeitos a qualquer trabalho com políticas públicas). Com os gestores, temos que falar de evidências, de previsão, de risco, de valor preditivo; sendo interlocutores, temos que acatar o vocabulário médico e lembrar que ali se trabalha com populações, uma realidade muito distante daquela do consultório particular.

 

A indução à patologização e ao higienismo

Os psicanalistas puristas afirmam que buscar é encontrar, o que faria do IRDI um instrumento capaz de fazer crescer o número de falsos positivos. A isso pode-se responder que os IRDI são apresentados de modo afirmativo, justamente para "induzir" à busca de saúde e não de doença. Os indicadores, escritos de modo afirmativo, indicam o que se espera encontrar e assim sugerem a procura do desenvolvimento e o acompanhamento da constituição do sujeito. Além disso, diante de indicadores ausentes, o IRDI não implica um diagnóstico final. Ele apenas indica a necessidade de um acompanhamento sistemático. Apenas os instrumentos diagnósticos podem ter efeito patologizante.

Nos usos subsequentes do IRDI em outros campos, como é o caso da metodologia IRDI nas creches6, a intenção de não diagnosticar prossegue por meio de uma prática em que não é o professor o responsável pelo acompamento dos bebês por meio dos IRDI. Este sempre será feito por um profissional de orientação psicanalítica, assim não haverá nenhuma demanda diagnóstica dirigida ao professor, já que isso descaracterizaria sua prática com as crianças e o afastaria de seu mandato social. Isso seria abusar de seu mandato social, que é o de ensinar e não diagnosticar.

 

Em relação à medicalização

Já bastante conhecida nos meios acadêmicos, a crítica à medicalização da infância sustenta que a transformação dos fenômenos da vida cotidiana e da própria infância em doenças ou desordens produz efeitos nefastos (Guarido, 2007; Kammers, 2015). O saber dos pais e da cultura diante das dificuldades inerentes à vida é substituído pelo conhecimento da medicina, conhecimento esse no qual a noção de sujeito não está incluída. Assim, as manifestações que podem ser imputadas à presença de um sujeito são reduzidas a funcionamentos neuroquímicos e, portanto, combatidas por meios farmacológicos.

O que há de medicalizante no IRDI? Em que esse instrumento transforma a vida dos bebês em desordens neuroquímicas?

O instrumento IRDI não é medicalizante porque não transforma bebês em incubadoras, em germem de doenças futuras. Ao contrário: ao dar oportunidade, quando necessário, a uma intervenção a tempo, chama pais e bebês à vida, ao contato e à manifestação do desejo, o que é contrário à medicalização da infância.

O IRDI, se bem aplicado, não aumenta a quantidade de falsos positivos. Ao contrário: pode ajudar a diminuir o enorme movimento da medicina, já em curso, de patologização e de medicalização da infância. O IRDI permite que algumas crianças sejam desviadas do curso a que já estão condenadas. Como a resistência francesa fazia, ao desviar trens carregados de judeus do curso que teriam tomado em direção aos campos de concentração.

Muitas crianças sinalizadas podem apresentar indicadores ausentes em função da precariedade social de suas famílias – neste caso, um assistente social sendo acionado, e a situação precária da família se modificando, rapidamente a criança retoma o andamento de sua constituição psíquica!

Cabe aos criadores do IRDI zelar para que ele seja bem transmitido e bem aplicado. Se, porém, isso não puder ocorrer e o IRDI for mal aplicado, o cenário que já está em curso em nada mudará. Vale a pena, então, correr o risco de o esforço com o IRDI não dar resultados tão bons como os esperados – formação adequadamente transmitida, uso criterioso do instrumento e cuidado para não fechar diagnósticos.

 

Em relação ao seu formato protocolo

O IRDI é um instrumento de leitura e não um checklist. Não se pode aplicá-lo como um questionário, pois o profissional é convocado a observar a dupla mãe/bebê e a conversar com a mãe para então poder proceder a uma leitura do que percebeu e, depois da consulta, preencher se o indicador está presente, ausente ou se não foi possível verificá-lo. Além disso, a concepção do IRDI retoma em cada faixa etária as mesmas questões, por meio de diferentes situações, propondo com a aplicação da faixa etária atual e da faixa etária pregressa uma leitura a posteriori, tal qual preconiza a psicanálise. Não pode ser aplicado automaticamente como seria ticar em uma lista: seu uso requer um raciocínio clínico.

Há, além disso, um benefício no uso do IRDI que é pouco mencionado: trata-se da vocação Formativa do IRDI e de instrumentos de base psicanalítica como a Avaliação Psicanalítica para Crianças de até 3 Anos (AP3), o Acompanhamento Psicanalítico de Crianças em Escolas, Grupos e Innstituições (Apegi) e o PréAut. A transmissão para uso do IRDI, que é necessária e indispensável, implica uma transmissão já sistematizada dos principais eixos responsáveis pelo acompanhamento da constituição do sujeito. Com isso, a psicanálise tem um veículo de difusão de seus princípios capaz de atingir outros profissionais e a cultura. Portanto, é na pólis, entendida como o campo da extensão da psicanálise, que os instrumentos a estão veiculando.

 

Em relação à detecção precoce

Os psicanalistas críticos da noção de detecção precoce pedem aos psicanalistas de bebês que pensem apenas no sofrimento psíquico, e que não se aventurem a olhar para o futuro, já que ele dependerá de acontecimentos imprevisíveis e capazes de mudar o curso da vida do bebê.

A isso respondemos que o IRDI pode fazer as duas coisas: pode buscar a promoção de saúde, mas pode também ajudar a prevenir problemas ulteriores.

Articular prevenção e promoção de saúde é articular a psicanálise com a educação.

Quando se fala da articulação entre promover saúde, prevenir problemas e tratar deles, estamos no terreno das articulações entre a psicanálise e a educação. Para esclarecer essa articulação e mostrar sua pertinência, deve-se apresentar brevemente uma noção psicanalítica de educação, sem a qual esse articulação não se sustenta.

Do ponto de vista da psicanálise, a educação é muito mais do que adestramento e transmissão de informações. A educação é o processo pelo qual um sujeito se constitui. Assim, educar é fundar um sujeito. Mas nas psicopatologias da primeira infância, um sujeito não poderá advir ou encontrará obstáculos para o seu advento.

Se nas psicopatologias da primeira infância está comprometida a emergência de um sujeito, se educar é o processo pelo qual este se constitui, então a educação e o tratamento convergem: tratar é educar; educar é tratar.

Graças ao modo de entender educação da perspectiva da psicanálise, conjuga-se tratar com educar (Kupfer, 2000). Conjuga-se prevenir e/ou tratar com promover saúde ou educar.

Estamos aqui articulando: prevenção, quando intervimos a tempo; e promoção, quando procuramos condições de subjetivação, ou seja, de uma educação que dê lugar ao sujeito e seu dizer.

Prevê-se o sujeito para que ele possa advir. O sujeito precisa ser antecipado, pré-vindo, além de "pré-visto" e "pré-dito", no campo do Outro (Motta, 2002).

"Atos sustentados pela abordagem psicanalítica, como a detecção muito cedo ou a prevenção, podem ser operados fora do setting tradicional, desde que sustentados pela ética psicanalítica e pela produção posta à prova ao ser apresentada à comunidade" (Bernardino, 2017, p. 33), o que os pesquisadores fizeram a cada nova etapa da pesquisa, levando à discussão em colóquios e congressos nacionais e internacionais os impasses e achados, buscando essa interlocução.

 

Em relação aos ganhos financeiros do grupo IRDI

Quem ganha com a adoção do IRDI em equipamentos de saúde pública? Perguntam os detratores do IRDI. A resposta é simples: sendo de livre acesso, o IRDI é gratuito. Então o grupo GNP poderia ganhar com capacitações?

Sim, os psicanalistas que criaram o IRDI podem receber pelos cursos que fizerem. Tanto quanto qualquer psicanalista que, ao divulgar a psicanálise, cobra por esses cursos. Se isso for condenável, conclamamos então todos os psicanalistas a fazer gratuitamente qualquer curso que divulgue a psicanálise.

Essa questão, de fato, está mal colocada; o importante é lutar para que o poder público providencie cursos em que a dimensão do desenvolvimento psíquico seja incluída. E que as especializações dos médicos em pediatria incluam esse tema como de relevância e concernindo quem trabalha com crescimento e desenvolvimento. A afirmação que correu nas redes sociais, segundo a qual o grupo IRDI pretendia ganhar dinheiro com a implantação da Lei é caluniosa, inoportuna, fratricida e, talvez, mal intencionada.

 

A corrente das críticas teóricas

A discussão em torno da lei ensejou o surgimento de críticas aos fundamentos teóricos em que os IRDI se basearam para ser formulados. Essas críticas já existiam, visto se originarem em discordâncias teóricas, mas apareceram com força no seio da guerra civil que estourou em 2017.

A principal objeção está na visão de detecção precoce que o IRDI professa.

Para entrar nesse tema, que merece – esse sim – ser discutido, já que pode provocar progresso, como todo debate de ideias e não de ataques pessoais, pretende-se explicitar aqui as ideias em que se basearam os IRDI para serem construídos.

Dizemos que o sujeito se constitui e para isso é necessário considerar o tempo, e essa é a categoria teorizada de diferentes modos pelos grupos aqui em debate.

 

O debate sobre o tempo

No campo específico da psicanálise de orientação lacaniana há um grande questionamento quanto a considerar o tempo cronológico, evolutivo, o desenvolvimento da criança, tendo em vista a afirmação consensual de que o sujeito não tem idade. Todos conhecem o famoso debate entre Dolto e Lacan, no qual, diante das críticas lacanianas quanto ao geneticismo, Dolto contrapunha sua necessidade de considerar os diferentes estágios pulsionais. Desde então, os psicanalistas dessa linha se dividem em grupos que pensam a estrutura como definida desde muito cedo, por operações lógicas que não precisariam do desenvolvimento para ocorrer; e grupos que concebem, na infância, um entrecruzamento entre estrutura e desenvolvimento. Os integrantes do GNP, em sua maioria (já que nem todos eram lacanianos e alguns eram originários de escolas do primeiro grupo aqui citado), são partidários do segundo grupo, composto por psicanalistas com extensa clínica com bebês e crianças pequenas e com trabalhos clínicos e teóricos sobre, por exemplo, a mudança de encaminhamento estrutural no tempo da infância, tendo em vista a maleabilidade psíquica das crianças (Jerusalinsky, 1993; Bernardino, 2004). Para esse grupo, a consideração do tempo do desenvolvimento é importante, já que a criança terá de se constituir como sujeito, ou seja, a instalação do sujeito psíquico se dará no decorrer de sua evolução maturativa e desenvolvimental, considerando ainda que esta instalação ocorre em relação a uma estrutura de Linguagem e que a relação da criança com a linguagem depende de sua maturação e de seu desenvolvimento. É esse raciocínio que embasa a importância da detecção de sinais de risco, bem como a intervenção a tempo, considerada essencial para que a relação da criança com a linguagem enquanto estrutura possa ocorrer, aproveitando sua condição gerúndio de formação psíquica e sua abertura às inscrições. Nesse sentido, as operações psíquicas de causação do sujeito (alienação e separação) – entendidas como operações lógicas – se entrecruzam com o tempo maturativo e do desenvolvimento. Da mesma forma, a operação edípica (outra operação lógica de constituição do sujeito) só poderia ocorrer num segundo tempo e é dependente de condições cognitivas e desenvolvimentais da criança para chegar às suas consequências estruturais. E, ainda, é necessário o tempo da adolescência, entendido primordialmente como operação psíquica – mas que requer o desenvolvimento e a puberdade biológica como seus disparadores –, para confirmar a inscrição ou não de mecanismos psíquicos estruturais. Todo esse processo, evidentemente, o sujeito não o vive sozinho, mas depende dos interlocutores que encontra em cada uma destas encruzilhadas nas quais, como diz Lacan em O seminário 4 (Lacan, 1995), o sujeito já não é mais quem pensava que era, mas ainda não sabe quem poderá ser – tornando, nesse sentido, o trabalho transferencial do psicanalista uma abordagem fundamental quando há risco de um sujeito não surgir e não comparecer com seu dizer.

Temos uma referência, entre outras, muita clara na obra de Lacan ao desenvolvimento. Trata-se do Seminário 8, quando aborda a questão das inscrições primordiais, em que textualmente ele afirma: "Isso se passa no desenvolvimento, não duvido. Não é uma etapa lógica, mas uma etapa do desenvolvimento que se situa antes do engajamento do conflito do Édipo" (Lacan, 1992, p. 343).

É interessante observar que importantes teóricos pertencentes ao primeiro grupo de psicanalistas a que nos referimos, e que pretendem prescindir da noção de desenvolvimento, têm questionamentos nesse sentido. Lembramos, por exemplo, a intervenção de Jacques-Alain Miller (1992), que adverte justamente os psicanalistas neste ponto: "esta vocação de dissolver a criança é a dificuldade que introduz esta perspectiva lacaniana" (p. 9). Este autor faz inclusive um convocatória que, lamentavelmente, não vem sendo levada a sério: "Devemos recuperar um conceito operativo da criança, e isto é um trabalho a ser feito" (Miller, 1992, p. 9). Para nós, do GNP, apoiados em nossa experiência clínica e no que ela nos ensina, é impossível tratar a criança como uma ficção teórica. Pelo contrário, ela é parte do real da clínica e é a partir do que ela nos traz que devemos fazer a teoria trabalhar!

Podemos nos lembrar também de Colette Soler, que já em 1994 abordava a diferença entre estrutura e efetuação desta estrutura, considerando que há um tempo (cronológico, sem dúvida, pelas necessidades do filhote humano) em que a criança não é sujeito, mas objeto do Outro, já que "o sujeito não é dado de saída" (p. 9). A efetuação da estrutura depende de um tempo, não somente das operações lógicas, mas do tempo evolutivo propriamente dito.

Considerar crianças como ficção e construir teorias e gráficos para discutir no interior de associações de psicanálise não nos parece um caminho muito interessante para inserir a psicanálise na pólis e para podermos ter um lugar transferencial na comunidade, do qual, em última instância, se alimenta a clínica psicanalítica. Além disso, se seguirmos o exemplo de Freud e Lacan, teremos o que dizer a cada vez que o campo social nos convoca. Temos o infeliz exemplo do filme Le mur, em que depoimentos extremamente teóricos sobre o autismo e seu tratamento foram utilizados de modo insidioso para reforçar ainda mais os ataques dos pais de crianças autistas à psicanálise, e fazendo dela um inimigo eterno.

 

Considerações finais sobre a celeuma

O que importa é o advento do sujeito e de seu dizer. Não sabemos, de fato, em que sujeito uma criança vai se transformar. Sabemos, porém, que o sujeito da psicanálise corre o risco de desaparecer. Há um avanço da supressão do sujeito no mundo contemporâneo.

Os psicanalistas que se arriscam a sair da ortodoxia e se utilizam de instrumentos buscam então fazer resistência a essa supressão. Buscam garantir que um sujeito advenha para poder dizer-se, seja qual for seu destino, digamos, psicopatológico.

Se levado às creches, o que importa é valorizar o ato educativo subjetivante do professor, e reintroduzir o sujeito, que está excluído das práticas científicas atuais.

Mas também na creche poderá haver "tratamento", quando o IRDI acompanha um professor que se coloca e é colocado como um Outro, e assim previne a tempo "a instalação de defesas maciças de proteção do psiquismo em risco" (Bernardino & Mariotto, 2010). Os IRDI nas creches são uma forma de trazer o sujeito de volta ao seio do ato educativo. Ele sempre esteve lá, mas a contemporaneidade insiste em negá-lo. Voltamos nossos esforços para lembrar aos educadores que, desde cedo, é preciso cuidar do advento do sujeito no bebê.

Com tudo isso, ajudaremos um bebê a se tornar um sujeito do desejo. É por isso que o grupo IRDI está sendo condenado?

 

O IRDI: um debate conceitual

Um artigo de 2005 (Kupfer & Voltolini, 2005) já debatia pontos que agora, em 2017, retornam para discussão. Retomemos, então, alguns de seus argumentos, para refletir sobre a realidade que hoje vivemos, na qual o narcisismo das pequenas diferenças reabriu o debate.

O que, daquele artigo, pode ser mantido como argumento? O que mudou com o passar do tempo?

O pressuposto é que esses indicadores clínicos podem ser empregados por pediatras e por outros profissionais de saúde da atenção básica em consultas regulares e podem ser úteis para indicar a possibilidade de ocorrerem ulteriormente transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil (Kupfer & Voltolini, 2005, p. 359).

Pode-se reformular a afirmação de que os IRDI são para uso na atenção básica e por outros profissionais. Tal como foram construídos, e passados quase vinte anos do inicio de sua construção, o IRDI foi pouco utilizado em atenção básica e menos ainda por outros profissionais de saúde. Hoje, é possível perceber melhor que seu uso deve ser restrito ao profissional formado em sua aplicação e como um instrumento de vigilância, mas não na atenção básica e tampouco de modo universal.

Hanns (2000) afirma, muito justamente, que a psicanálise não pertence ao campo da medicina, mas se aproxima muito mais, em termos metodológicos, do campo da Economia, e pode compor com ela, dentro de um conjunto do qual participam outras ciências, um campo que aquele autor propõe chamar de "dinâmico-tendencial". Essa denominação se justifica pelo fato de a psicanálise constituir, segundo Hanns, um campo que lida com muitas variáveis – dinâmico – , cuja articulação permite se não fazer previsões exatas, pelo menos destacar tendências – tendencial. Nessa direção, torna-se possível buscar medidas objetivas de aspectos estruturais (Kupfer & Voltolini, 2005, p. 360).

Essa afirmação ainda se sustenta incólume, porque responde à necessária articulação entre discursos, que não descaracteriza nenhum deles, mas os coloca em um campo epistemológico comum.

Responde ainda ao problema colocado sobre a detecção precoce: há uma tendência a ser levada em conta, o que não se confunde com uma previsão ou com uma predição. Em psicanálise, o acontecimento é sempre de natureza subjetiva, e portanto inapreensível, e suas conseqüências só poderiam ser percebidas em um momento posterior, ou seja, sempre no après coup, que viria, além disso, ressignificar necessariamente o acontecimento do primeiro tempo. Como conciliar essa visão com o uso de indicadores? Justamente falando de tendência. O acontecimento para o sujeito é único, mas para a população, não.

O grupo de experts que idealizou a pesquisa e construiu os indicadores justifica esse uso a partir da constatação de que a presença de um sujeito psíquico só pode ser verificada a partir dos efeitos indiretos que essa presença produz. Assim, a leitura dessa presença de sujeito precisa apoiar-se em sinais fenomênicos que permitem supor a presença de um sujeito. Esses sinais podem ser traduzidos em termos de indicadores, a partir dos quais é possível supor como está ocorrendo a instalação de um sujeito, bem como articular essa constituição com o plano do desenvolvimento da criança (Kupfer & Voltolini, 2005, p. 360).

A essa afirmação, deve-se acrescentar que, sendo signos, não são, e nem devem ser, sinais singulares de um sujeito-bebê. Eles não traduzem uma posição de um sujeito, mas sua ausência leva o clinico a "sentir falta" da presença de um sujeito ali. O que ele faz então é ir em busca desse sujeito e fazê-lo falar onde ele se calou.

Se, no entanto, fala por meio da presença de um indicador, nós nada sabemos de seu especial modo de "indicar-se". Mas o clínico, nesse momento, não precisa saber o que diz o sujeito por trás do indicador presente. Basta não esquecer que há ali um processo de constituição subjetiva em andamento, coisa que o indicador pode apontar.

Não há, desse modo, nenhuma patologização em curso, nenhum higienismo em ação. Não se busca doença, não se busca o autismo: "uma pesquisa para a validação de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil" (Kupfer & Voltolini, 2005, p. 359).

Esse era de fato o propósito do estudo estatístico. Mas o que se perdeu de vista foi o fato de que o estudo estatístico servia apenas como peça de convencimento: os indicadores têm valor preditivo e por isso merecem que os olhemos nas consultas regulares em saúde publica. Não havia a intençao de estimular exercícios de previsão, mas de chamar a atenção do clínico para o valor da subjetividade. Pretendia-se formar o olhar do pediatra para fazê-lo ver o que não está em sua semiologia, mas pode estar. Sensibilizá-lo para o acompanhamento da saúde psíquica, ainda que não seja essa sua vocação maior.

Não podemos deixar de citar, ainda, dois resultados surpreendentes, que no après-coup podem aqui ser destacados. Em primeiro lugar, o efeito da descrição dos quatro eixos na formação dos profissionais: a sistematização teórica do que constitui, em essência, a noção de função materna no pensamento lacaniano, produz um efeito de descoberta e de reconhecimento que muito contribui para uma transferência positiva com a psicanálise, e uma abertura para essa transmissão. O segundo resultado foi o achado estatístico, que mostrou, em números e de modo objetivo, a importância determinante da função paterna para a constituição subjetiva, tal como os pressupostos freudianos e lacanianos sustentam, pois os indicadores com maior potencial de previsibilidade foram justamente aqueles do eixo função paterna!

 

Para concluir

Em um debate de ideias, a psicanálise sempre adotará a posição de ser contrária a todo discurso que suprime a função do sujeito, como afirma Quinet (2002). Mas, se alguma ação precisa se realizar, não será ela em defesa da psicanálise.

O IRDI não veio ao mundo para salvar a psicanálise.

Não é a psicanálise, mas o psicanalista que precisa sair da posição entrincheirada em que se encontra. Adentrando a pólis, espaço público, caberá ao psicanalista ser um testemunho vivo da experiência da psicanálise e da teoria do sujeito que lhe é intrínseca.

 

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Endereço para correspondência
mckupfer@usp.br
R. Aramanaí, 335
05450-030 -São Paulo – SP – Brasil.

ledber@terra.com.br
R. Mateus Grou, 57 – ap. 42
05415-050 – São Paulo – SP – Brasil.

Enviado em janeiro/2018.
Aceito em abril/2018.

 

NOTAS

1. Processo Fapesp nº 2003/09687-7.
2. O artigo de M. E. Pesaro e R. Mariotto, que integra este dossiê, desenvolve o tema das relações entre o IRDI e a Caderneta de saúde da criança.
3. Os indicadores são: 1) quando a criança chora ou grita, a mãe sabe o que ela quer; 2) a mãe fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela (manhês); 3) a criança reage ao manhês; 4) a professora propõe algo à criança e aguarda a sua reação; 5) há trocas de olhares entre a criança e a professora; 6) durante os cuidados corporais, a criança busca ativamente jogos e brincadeiras amorosas com a professora.
4. Amira Figueiras e Maria Virgínia Peixoto, responsáveis pela versão de 2017 da Caderneta de saúde da criança, editada pela área de Saúde da Criança do Ministério da Saúde (Brasil, 2017).
5. "A vigilância do desenvolvimento infantil compreende todas as atividades relacionadas à promoção do desenvolvimento normal e detecção de problemas no desenvolvimento da criança. É um processo contínuo, flexível, envolvendo informações dos profissionais de saúde, pais, professores, entre outros" (Figueiras, 2015, p. 79).
6. A metodologia IRDI nas creches foi criada a partir de uma pesquisa em creches, desenvolvida entre 2012 e 2017 e financiada pela Fapesp (processos: 2012/50156-4; 2014/24678-9; 2017/06830-6), que validou uma metodologia de acompanhamento e de promoção de saúde mental realizada por profissionais orientados pela psicanálise. Ver Kupfer, Bernardino e Yamashita, (No prelo).

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