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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.23 no.1 São Paulo jan./abr. 2018
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i1p83-99
10.11606/issn.1981-1624.v23i1p83-99
DOSSIÊ
DETECÇÃO PRECOCE DE SOFRIMENTO PSÍQUICO VERSUS PATOLOGIZAÇÃO DA PRIMEIRA INFÂNCIA: FACE À LEI Nº 13.438/17, REFERENTE AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
EARLY DETECTION OF PSYCHIC SUFFERING VERSUS FIRST CHILDHOOD PATHOLOGIZATION (FACE TO LAW 13.438 OF ECA)
DETECCIÓN TEMPRANA DE SUFRIMENTO PSÍQUICO VERSUS PATOLOGIZACIÓN DE LA PRIMERA INFANCIA (FRENTE A LA LEI 13.438 DEL ECA)
Julieta JerusalinskyI
IPsicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Estimulação Precoce pela Fundación Para el Estudio de los Problemas de la Infancia (FEPI) Argentina. Mestre e doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
RESUMO
O artigo considera, diante das Leis nº 13.438 e nº 13.257, referentes ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a necessidade da articulação entre saúde mental e atenção básica para avançarmos na detecção precoce de sofrimento psíquico versus a patologização da primeira infância. Com isso pretende-se modificar a atual realidade do acompanhamento do desenvolvimento que, ao centrar-se em aspectos orgânicos, resta ,importância ao sofrimento psíquico do bebê, passando da "conduta expectante" a diagnósticos psicopatológicos fechados entre 3 e 6 anos de idade. Perde-se assim a chance da detecção (de 0 a 18 meses) e da intervenção precoce, pela qual muitas vezes é possível mudar o rumo da constituição psíquica.
Descritores: bebês; risco psíquico; detecção precoce; prevenção.
ABSTRACT
The article considers, under the laws 13.388 and 13.257 of the Brazilian Child and Adolescent Statute (ECA), the need for articulation between mental health and basic care to advance the early detection of psychic suffering versus the pathologization of early childhood, modifying the current reality of accompanying development that centering on the organic aspects, detracts from the psychic suffering of the baby, moving from "expectant behavior" to closed psychopathological diagnoses between three and six years of age. Thus, the possibility of detection (between zero and eighteen months) and early intervention is lost, by which it is often possible to change the course of the psychic constitution.
Index terms: babies; psychic risk; early detection; prevention.
RESUMEN
El artículo considera, ante las leyes nº 13.438 y nº 13.257 del ECA, la necesidad de articulación entre salud mental y atención básica para avanzar en la detección temprana de sufrimiento psíquico versus la patologización de la primera infancia, modificando la actual realidad del acompañamiento del desarrollo que, al centrarse en los aspectos orgánicos, resta importancia al sufrimiento psíquico del bebé, pasando de una "conducta expectante" a diagnósticos psicopatológicos cerrados entre los tres y los seis años de edad. Se pierde así la posibilidad de la detección (entre cero a dieciocho meses) y de la intervención temprana, por la cual, muchas veces, es posible cambiar el rumbo de la constitución psíquica.
Palabras clave: bebés; riesgo psíquico; detección temprana; prevención.
Este texto foi elaborado a partir de convite para participar de interlocução acerca de detecção precoce, clínica com bebês e clínica com o autismo com uma homenagem, in memoriam, à colega professora doutora Silvana Rabello. Tal interlocução acabou por ficar centrada na questão da Lei nº 13.438 (Brasil, 2017), de 26 de abril de 2017, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ainda que tal lei verse sobre a detecção de risco psíquico no programa de acompanhamento do desenvolvimento de bebês de 0 a 18 meses, muitas vezes é erroneamente apontada como uma lei de "detecção de autismo", gerando muita confusão, como aliás o próprio nome final assumido pelo evento poderia levar a supor, ao denominar-se Risco psíquico e detecção precoce de autismo: uma questão controversa em psicanálise1.
Vemos então que em torno da promulgação dessa lei têm se produzido muito embate e polarização discursiva. Espero que, em lugar disso, possamos avançar em um debate que considere a complexidade que a detecção precoce exige. Se a partir daí concluirmos que essa lei, em sua forma e proposta, não dá conta da extensão do problema que enfrentamos atualmente quanto à detecção precoce de sofrimento psíquico em bebês, será preciso então caminhar na direção de aprimorar seus modos de implementação, sem deixar de lado a questão sobre a qual ela vem lançar luz: a necessidade de que o acompanhamento do desenvolvimento de bebês não se centre apenas nos aspectos orgânicos e possa considerar o sofrimento psíquico na primeira infância.
Isso porque as dificuldades enfrentadas de 0 a 3 anos têm sido inúmeras vezes relegadas a segundo plano diante de problemas que irrompem supostamente como mais prementes, apenas porque são mais perturbadores da ordem social do que as dificuldades psíquicas enfrentadas por bebês muitas vezes só testemunhadas por seus pais, que com frequência não são suficientemente escutados e levados a sério em suas preocupações quando as expõem aos profissionais que correntemente se ocupam da primeira infância no campo da saúde e da educação.
Na atualidade a falta de detecção precoce de sofrimento psíquico não ocorre nem por negligência nem por falta de sensibilidade dos profissionais comumente ligados à primeira infância, e sim por falta de conhecimento. Essa falta de conhecimento também se apoia em preconceitos muitas vezes originados no cerne da própria área de saúde mental: por um lado, a ideia de que não seria possível detectar sofrimento psíquico na primeira infância (porque se desconhece que um bebê dá-a-ver em sua produção espontânea, posta em cena na relação com os outros, como está se constituindo psiquicamente, desde que saibamos ler clinicamente essa produção); por outro, o temor de que toda detecção precoce equivalha a se fixar em signos patológicos que fechariam diagnósticos (desconhecendo as contribuições que a psicanálise fez ao campo da clínica da estimulação precoce ao longo dos últimos cinquenta anos, ao situar os efeitos de inscrição das operações constituintes do sujeito e, portanto, de uma intervenção clínica centrada não na patologia, e sim na leitura em contexto de tais indicadores). Portanto, se há um valioso trabalho em andamento acerca da transmissibilidade desses conhecimentos, ainda há muito a se fazer na consolidação desse campo.
Essa é uma realidade imprescindível para que possamos modificar o porvir dos que hoje são bebês cujos problemas, se não tratados a tempo, só se agravarão e, conforme tem ocorrido, só passarão a ser considerados tardiamente ou seja, quando tais sofrimentos assumirem a forma de psicopatologias definidas, portanto muito menos permeáveis à intervenção: perto de dois a três anos de idade, dentro do transtorno do espectro autista (TEA) ou, perto dos seis anos, com a entrada da criança no ensino fundamental, dentro do transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
Nem todo "risco psíquico" na primeira infância é "risco de autismo"
Atenção: nem todo risco psíquico da primeira infância é risco de autismo. Isso tem sido muitas vezes superposto e confundido até mesmo no título proposto desta interlocução. A Lei nº 13.438/2017 diz respeito à "detecção de risco psíquico", e não de "detecção de risco de autismo", o que faz diferença na medida em que nem todo sofrimento psíquico na primeira infância é redutível a um risco de autismo.
Falar em "risco psíquico" de 0 aos 18 meses de vida de um bebê implica considerar modos de sofrimento muito mais amplos que abarcam diferentes dificuldades, nem sempre circunscritas a um quadro psicopatológico específico. Portanto, fazer detecção precoce não equivale a fechar diagnósticos, e sim a considerar situações de sofrimento psíquico que, se detectadas nos primórdios, permitem realizar intervenções clínicas no marco da estimulação precoce que favorecem a constituição do bebê e do laço pais-bebê quando estes estão passando dificuldades. Por isso, para podermos avançar no que interessa nesse debate, sem nos perder em suposições ou preconceitos, é preciso primeiro conhecer o texto da lei.
Antes o artigo 14 do ECA afirmava que "o SUS promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção de enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil e campanhas de educação sanitária para pais educadores e alunos" (Brasil, 1990, não paginado). O texto da Lei nº 13.438 altera esse artigo e acrescenta que
É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico (Brasil, 2017, não paginado).
Pois bem, se esse é o texto da lei, agora vamos ao que nos concerne em relação a ela. Freud falava dos três impossíveis: analisar, educar e governar. Como sou clínica, e não política ou legisladora, as questões que trago ao debate sobre essa lei vêm do que testemunho como impasses que insistem desde o discurso social até dispositivos de atendimento nos tratamentos de bebês e que, para além do sofrimento específico do paciente e seus familiares, revelam o contexto político-social em que vivem. É aí que não podemos nos eximir: na medida em que as políticas públicas de saúde e de educação atravessam cada sujeito e traçam, delimitam o contexto de seu porvir.
Na primeira infância há diferentes dificuldades que podem comparecer. Então, embora os documentos Linha de cuidados (Brasil, 2015) e das Diretrizes de reabilitação do TEA (Brasil, 2014) tenham trazido à tona importantes discussões, eles não recobram a questão que se coloca em relevo nessa lei, porque, se o autismo é um quadro de manifestação precoce, nem toda manifestação precoce de sofrimento psíquico é autismo, mas precisa ser tratada para favorecer a constituição do bebê2.
Sobre a detecção precoce de sofrimento psíquico e sua retaguarda legal
Nisso é preciso que avancemos, partindo do princípio de que há um longo caminho a percorrer na promoção de saúde mental da primeira infância e também em seu amparo pela legislação, ligado indissociavelmente ao amplo debate quanto aos modos de produzir essa necessária ação junto com as estratégias de intervenção que fazem parte do SUS para que atenda as realidades de cada território e para que a implementação dessa prática sirva aos fins legítimos de propiciar, por meio do Estado, a assistência necessária aos bebês e seus familiares.
Por isso, se a lei levanta questões que devemos discutir, já que sua forma de implementação pode nos levar a rumos muito diferentes e até mesmo completamente opostos que vão da detecção precoce de sofrimento, a fim de favorecer a constituição, ao risco de uma patologização precoce , há algo sobre o que nós, que intervimos com a infância, não temos a menor dúvida: há muitos bebês precisando de um acompanhamento especializado que considere não apenas os aspectos orgânicos, mas também os aspectos psíquicos, indissociavelmente implicados no desenvolvimento.
Todo o debate produzido por essa lei deixa em relevo quanto ainda é preciso socialmente inscrever o fato de que um bebê pode sofrer psiquicamente e que esse sofrimento tem consequências não só para sua constituição como sujeito, mas também para as aquisições que fazem parte de seu desenvolvimento (psicomotricidade, aprendizagem, aquisição de hábitos e linguagem), na medida em que o desenvolvimento não é autônomo (não se dá pelo mero cruzamento entre um organismo hígido e a passagem do tempo), e sim atrelado à constituição psíquica de um bebê, sustentada no laço com seu outro familiar, escolar e social.
É dentro dessa lógica da complexidade que é preciso considerar a detecção precoce: no acompanhamento do desenvolvimento de um bebê certamente é preciso verificar se os órgãos que suportam as funções são ou não hígidos. Por exemplo, se um bebê tem um atraso psicomotor, é preciso interrogar: há alguma questão orgânica implicada em seu quadro que impeça ou dificulte suas aquisições? Essa pergunta é decisiva para que se dê a assistência necessária nesse aspecto. Mas tão importante quanto isso é interrogar clinicamente o modo como a função é posta em funcionamento (Bergés, 1988) na relação com os outros; portanto, questionar se o bebê se endereça aos demais. Os outros dão brecha para suas produções, sustentando o seu fazer sem poupar-lhe o esforço?
A leitura clínica de como a função é posta em funcionamento na relação do bebê com os outros (Jerusalinsky, 2011) costuma ficar bastante fora dos critérios de detecção precoce padrão, pela concepção ainda predominante no âmbito do desenvolvimento de que as aquisições seriam uma consequência bastante direta do cruzamento entre a passagem do tempo e seus efeitos sobre um organismo hígido. Contrariamente a isso, a experiência clínica em contexto interdisciplinar dos problemas do desenvolvimento infantil atravessada pela psicanálise torna inquestionável que, para o desenvolvimento, tão importante quanto as possibilidades orgânicas é o circuito de desejo e demandas no qual se sustentam os cuidados de um bebê (considerando aí não apenas o pai e a mãe, como se estivesse em jogo neles uma competência isolada para o exercício dessas funções, mas também a rede familiar, educacional, de saúde e cultural que atravessam os seus cuidados).
Esse é um problema de saúde pública que não podemos ignorar e que está bastante longe de ser recoberto com as estratégias atuais. Pois, apesar do esforço de alguns profissionais desde a rede pública de saúde, educação e assistência até clínicas universitárias e do terceiro setor , é preciso instaurar e sustentar estratégias de intervenção precoce na primeira infância em uma articulação entre a saúde mental e a atenção básica.
Nós, que nos dedicamos à clínica com bebês, temos, durante anos, batalhado pela transmissão de critérios que permitam a precoce detecção de sofrimento psíquico no desenvolvimento infantil àqueles que intervêm com toda e qualquer criança: ou seja, profissionais que acompanham o desenvolvimento no campo da saúde e do ensino infantil.
Veja-se a esse respeito a pesquisa de Indicadores de Risco-Referência para o Desenvolvimento Infantil (IRDI), que, mesmo sendo feita aqui no Brasil, com financiamento do Ministério da Saúde, em uma lógica colaboracionista de pesquisadores de diferentes estados de Norte a Sul e de domínio público (portanto, não visa possiblidades de lucro com royalties), teve seus indicadores incluídos e retirados da Caderneta da Criança por mais de uma vez. Na última consulta pública foi preciso argumentar novamente a favor de sua inclusão, na medida em que tal instrumento se revela pertinente, na transmissibilidade de aspectos psíquicos implicados no desenvolvimento, a profissionais que realizam esse acompanhamento com todo e qualquer bebê. A saída disso da Caderneta da Criança revela que às vezes andamos um passo para a frente e outro para trás.
Quanto à retaguarda legal para o cuidado da primeira infância, o Marco Legal da primeira infância (Brasil, 2016) é um importante ponto de partida. Ele consiste em uma lei aprovada em 8 de março de 2016 para criar programas, serviços e iniciativas voltados à promoção do desenvolvimento de crianças até seis anos, colocando a criança dessa faixa etária como prioridade no desenvolvimento de programas, formação de profissionais e formulação de políticas públicas. O documento afirma:
diversos estudos científicos têm comprovado que os primeiros seis anos de vida da criança, incluindo a gestação, são cruciais para o adulto que ela irá se tornar. Dessa forma, para termos uma sociedade com maior igualdade de oportunidades é imprescindível que nossas políticas públicas dediquem especial atenção aos primeiros anos de vida. . . . A criança é atendida no contexto dos programas globais, mas precisa, também, de programas específicos como grupo etário, em função de suas necessidades de crescimento e desenvolvimento. Entre 2006 e 2009, dobrou o investimento em programas de atenção à criança e ao adolescente. . . . No entanto, a primeira infância ainda ocupa um fragmento inexpressivo: dos programas, apenas um é voltado diretamente à primeira infância e dois a incluem em seu escopo (Fundeb e Salário Educação). O primeiro representa apenas 0,079% do total (Brasil, 2010, p. 20).
Daí que seja preciso considerar a polêmica diante da Lei nº 13.438 (Brasil, 2017) junto com essa outra modificação produzida no ECA, no ano anterior, pelo Marco Legal, transformado na Lei nº 13.257 (parágrafo terceiro do artigo 11), que parece ter passado despercebida e ficado à margem do debate, quando nela se afirma que: "Os profissionais que atuam no cuidado diário ou frequente de crianças na primeira infância receberão formação específica e permanente para a detecção de sinais de risco para o desenvolvimento psíquico, bem como para o acompanhamento que se fizer necessário" (Brasil, 2016, art. 21, § 3º, grifo nosso).
Nesse sentido é imprescindível que a Lei nº 13.438 não seja compreendida nem executada de modo isolado: a Lei nº 13.257 também já versava sobre a detecção de sinais de risco psíquico, mas, diferentemente da lei 13.438, tem a vantagem de não centrar tal detecção como ação única dos pediatras, marcando a importância da formação para detecção e acompanhamento por parte dos profissionais que, de modo amplo, intervêm na primeira infância, possibilitando um âmbito interdisciplinar para tal detecção. Por sua vez, a Lei nº 13.438 sublinha a importância de realizar tal detecção até um ano e meio de idade, enquanto a Lei nº 13.257, ao situar a primeira infância no intervalo entre zero e seis anos (de acordo com o critério que consta no ECA), deixa um tempo demasiadamente longo para o que se considera como detecção precoce, o que pode implicar a perda de um tempo precioso para a intervenção.
A não detecção de sofrimento em bebês como um sintoma da saúde pública
O fato é que, tanto na realidade dos consultórios públicos quanto na dos privados, há uma história que se repete: a chegada ao atendimento ainda ocorre, com muita frequência, entre seis e sete anos, faixa etária que não à toa coincide com a entrada no ensino fundamental. No entanto, quando nos detemos nas dificuldades apresentadas a partir do encaminhamento, elas em muito extrapolam problemas específicos decorrentes do encontro com o objeto epistêmico da lectoescritura. Dificuldades são detectadas nesse momento, não porque até ali estava tudo bem, mas porque até então havia um esgarçamento da sustentação da assistência necessária às crianças e suas famílias antes da entrada no ensino fundamental.
Nos últimos anos temos testemunhado outro momento de chegada ao atendimento: pequenas crianças, com idade entre três e quatro anos, têm passado por rápidas consultas nas quais são diagnosticadas dentro do transtorno do espectro autista (com toda a questionável extensão que tal diagnóstico tem na atualidade). Ao escutar seus pais, uma triste história se repete: eles contam que desde cedo percebiam e comunicavam aos profissionais as dificuldades dos filhos, mas não foram levados a sério.
Tais casos, para além de dizerem respeito a uma dificuldade específica das crianças em questão, revelam um grave sintoma do campo da saúde: passa-se de uma conduta expectante, sem intervenção alguma, a uma patologização da criança com base em um diagnóstico fechado e definitivo da maior gravidade.
Esse é um grave furo da rede de cuidado dos bebês na atualidade que faz imperar a lógica da patologização, desconsiderando a importância dos primeiros tempos da constituição em face da estrutura psíquica e orgânica não decidida. É isso que nos leva a perguntar: qual é o lugar para os pequenos na rede (Jerusalinsky, 2016)?
Vemos frequentemente que mesmo os profissionais sensíveis a essa questão estão em diferentes serviços de atendimento, transbordados de demandas relativas a crianças e adolescentes cujos modos de sofrimento são, por assim dizer, mais barulhentos porque desacomodam mais as instituições em que circulam (com problemas de aprendizagem, de adições ou transgressão). Todas essas são dificuldades mais que legítimas e que devem ser atendidas, sem sombra de dúvida. Em todos os momentos da vida apostamos ao comparecimento do sujeito do desejo e à modificação de seus sofrimentos em relação com um outro social, escolar e familiar.
No entanto, a quem faz ruído o sofrimento de um bebê a não ser aos seus pais, tantas vezes destituídos do saber que comparece em suas afirmações e mantidos em conduta expectante? O que se espera? Que o quadro encaixe no conhecimento dos especialistas sobre uma patologia específica, para então diagnosticar e encaminhar o bebê quando ele já for uma criança3. Já se perdeu aí um tempo precioso para a constituição e, portanto, para a intervenção por meio da qual tantas vezes é possível mudar o rumo da história.
Ao proceder desse modo, ainda procura-se fazer a primeira infância encaixar no ranço de concepções de patologia adultomorfas que partem da concepção de um organismo e de um psiquismo já estabelecidos. Isso é antinômico da infância, momento da vida em que a estrutura não está decidida nem orgânica nem psiquicamente. Por isso é preciso considerar a dimensão da infância acima de qualquer diagnóstico e centrar a intervenção clínica na aposta da estruturação.
Mais do que isso, é imprescindível considerar que o tempo de ser bebê comporta uma especificidade dentro da infância. Por estar nos primórdios da constituição, os indicadores de sofrimento de 0-3 são muito sensíveis, mas pouco específicos, como aponta a Organização Mundial da Saúde (1993). Por isso é preciso levar em conta a desobediência dos bebês às classificações psicopatológicas.
Detectar que algo "não vai bem" como critério para intervir a tempo
Há algo que é muito próprio da clínica de bebês: o primeiro fator que se apresenta como dificuldade na constituição psíquica implica uma não instauração de uma produção que deveria ter ocorrido. É apenas sobre essa não instauração que se produz posteriormente um indicador relativo a uma patologia específica. Por isso, o mais importante diagnóstico para intervir com bebês é não está bem e precisa de ajuda, sem estabelecer nenhuma correlação antecipatória por patologia específica. Isso é central para promover a saúde e não a doença, situando assim a concepção de risco na vertente de inscrições constituintes do sujeito do desejo.
Certamente detectar sofrimento psíquico em um bebê, ou seja, em alguém que ainda não fala e que, ainda por cima, tampouco brinca como uma criança, certamente exige olhar e escuta clínica acurada. No entanto, longe do que se tende a pensar, a constituição psíquica não é algo profundo ou inefável: ela se dá a ver nas produções de um bebê desde que saibamos ler e conheçamos os tempos dessas realizações.
Por isso, o "preventivo" não opera aí como um a priori higienista preconceito que tantas vezes aqueles que estão afastados da práxis com a primeira infância atravessada pela psicanálise (que prima pela sustentação das operações constituintes do sujeito) são erroneamente levados a conjecturar. Se detectamos, pelas produções dadas a ver pelo bebê, que sua estruturação psíquica "não vai bem", poderemos intervir, não de antemão (na medida em que já há dificuldades em curso), mas sim precocemente, ou seja, poderemos intervir cedo (na medida em que o faremos em um tempo em que ainda pode ser possível modificar os rumos dessas dificuldades em curso), e antes de que estas se fechem como uma estrutura patológica definitiva.
Sem dúvida alguma vivemos um momento em que discursos de patologização e criminalização precoce vêm empurrado para o domínio da competência individual e inata as dificuldades apresentadas desde a infância. Desse modo, há risco de produzir uma desresponsabilização do Estado em relação ao porvir de seus pequenos grandes cidadãos. Isso é o que ocorre, por exemplo, com o projeto de lei para diminuição da idade penal cujo relator, Laerte Bessa (PR-DF), afirmou que "chegaremos a um estágio em que será possível determinarmos se a criança no útero tem tendências criminosas" (Formenti, Diógenes, & Felix, 2015). Ou com a proposta, na França, de que se escrevesse na caderneta escolar da criança de 36 meses atos agressivos, como bater ou morder, porque eles poderiam ser indicadores de tendências psicopáticas. Se não nascemos todos iguais, é inquestionável que as experiências de vida têm papel decisivo na formação do sujeito, e por isso é fundamental considerar quem é o Outro de um bebê (em sua instância familiar, escolar e social).
Daí que não se pode ser ingênuo e se torna necessário considerar a lógica que perpassa a construção de diferentes instrumentos ou protocolos de detecção precoce, já que eles apontam em direções muito diversas e até mesmo francamente opostas.
Alguns desses instrumentos induzem a patologização da primeira infância buscando ativamente indicadores de quadros patológicos específicos que os pais passam a verificar em seus filhos, já que tais protocolos estão disponíveis na internet. A verificação do comportamento da criança é feita em qualquer contexto, e somente se observa o que ela produz e nada do que se passa em sua relação com os outros. Nessa lógica engendra-se a patologia tendendo a fechar o que não está fechado e, portanto, fazendo em nome da ciência um exercício que espolia destinos por meio de profecias autorrealizáveis.
Há, por sua vez, instrumentos que seguem a lógica da detecção precoce para favorecer a constituição psíquica e o desenvolvimento, com sua consequente e necessária assistência.
Estabelecer esse não vai bem como critério de detecção, sem correlação fechada com nenhuma patologia, exige um profundo trabalho de conhecimento do que ocorre na constituição e no desenvolvimento ao longo da primeira infância. E não podemos pedir que todos os agentes de saúde que intervêm no desenvolvimento infantil façam esse longo percurso de formação, que implica a especialização em Clínica com Bebês e Estimulação Precoce.
Foi isso que motivou a pesquisa Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI), em um valioso trabalho de articulação entre pediatria, psicanálise e estimulação precoce, a produzir um instrumento que tornasse transmissível aos profissionais que intervêm com todo e qualquer bebê (agentes de saúde do acompanhamento do desenvolvimento e educadores do ensino infantil) as operações constituintes do sujeito (que operam pela suposição do sujeito, estabelecimento da demanda, alternância e alteridade ou Função Paterna), tornando legível seu comparecimento nas produções do bebê e na sustentação da Função Materna pelo olhar, pela voz e pela comunicação, pela psicomotricidade e pelos hábitos. O resultado disso é um instrumento que alerta quando algo não vai bem, sem correlação fechada por patologia, podendo em alguns casos reverter a situação que desperta preocupação, sem tratamento especializado, nas consultas regulares apenas porque o agente de saúde teve a chance de lançar luz e valorizar esse aspecto.
Os modos de exclusão e a atual encruzilhada do cuidado dirigido aos bebês
Estamos diante dessa Lei em um momento de extremo tensionamento entre a patologização da primeira infância que tem grande força e pode se servir do pior modo dessa Lei e uma outra corrente que, mesmo minoritária, tem feito um valioso trabalho na detecção e intervenção precoce que engendra desenvolvimento atrelado à constituição do sujeito. Essa segunda corrente tem batalhado desde as microrredes, pela instauração desse trabalho. Mas esta corrente precisa de um suporte legal para sustentar tais ações, tantas vezes varridas e desmontadas em suas diferentes instâncias de intervenção. Por isso há trabalhadores da primeira infância que depositam a esperança nessa Lei, vendo-a como um respaldo legal na implementação e sustentação prática de tais intervenções.
É indiscutível que as Leis nº 13.257 e nº 13.438, que versam sobre a necessidade de detecção de risco psíquico no contexto do desenvolvimento da primeira infância, podem ser implementadas de diferentes modos. Isso levanta uma legítima preocupação em um momento em que justamente se produz um corte de investimentos em saúde, educação e pesquisa. Mas há algo que elas deixam em relevo e do que não podemos recusar ou, pelo menos, nosso ofício psicanalítico de reconhecer os furos do discurso social deveria permitir ouvir: elas vêm nomear um furo na assistência ao sofrimento de bebês e suas famílias em um tempo em que a intervenção tem efeitos decisivos diante de um problema de constituição psíquica e de desenvolvimento, antes que suas estruturas assumam a forma de uma patologia específica ou definitiva.
A palavra risco, que permeia essas duas leis, certamente exige algumas considerações. Todos estamos sujeitos a riscos na constituição psíquica e não há um a priori que, por cartilha, possa garanti-la. Por isso, se caminharmos na direção de considerar tal aplicação como parte necessária do acompanhamento do desenvolvimento de todos os bebês de zero a dezoito meses (como determina essa lei), longe de produzir uma intervenção segregacionista, pode-se viabilizar de forma equânime, "a todos", o acesso a conhecimentos que possibilitam práticas preventivas (porque de precoce detecção de sofrimento psíquico) em saúde mental. Possibilitar uma leitura singularizada de indicadores de referência-risco4 para a constituição psíquica dentro do acompanhamento do desenvolvimento para "todos os bebês" implica, desse modo, reconhecer, detectar e possibilitar a intervenção a tempo sobre o que não vai bem.
Ao reconhecer os aspectos discutidos poderemos entrar no debate e sair do embate de lógicas polarizadas que, muitas vezes, por falta de conhecimento sobre práxis com a primeira infância que primam pela leitura do que o bebê dá a ver em sua produção e pela escuta do saber parental, sustentando a partir daí as condições constituintes da subjetividade erroneamente consideram que qualquer detecção ou intervenção precoce seria inevitavelmente higienista, preconceituosa, patologizante, controladora, ou até mesmo movida por interesses escusos de exercício de poder golpistas! Ora, nessa lógica totalitária da polarização discursiva em que se supõe que qualquer detecção realizaria inevitavelmente o risco da patologização, fecha-se teoricamente um argumento que fica completamente cindido da realidade em que está mergulhado o sofrimento psíquico dos bebês, como se a falta de intervenção fosse equivalente a uma suposta liberdade.
Se Foucault permitiu pensar a exclusão por meio dos dispositivos de controle do Estado que passaram da expulsão dos leprosos aos dispositivos institucionais por meio dos quais se confinavam os que não correspondiam à moral manicômios aos loucos, prisão aos transgressores e escolas às crianças (Foucault, 1984) hoje nosso desafio maior diante da exclusão não é o confinamento, e sim o ser "deixado de fora" por "não ter visibilidade" (Endo, 2017; Rabello, 2013).
É nessa lógica de exclusão (em que se perde um tempo de intervenção decisivo para o porvir) que estão tantos bebês e seus familiares na realidade atual de nosso país, mantidos em conduta expectante até o fechamento de diagnósticos dados como definitivos5.
Assim, as Leis nº 13.438 e nº 13.257 colocam em relevo a discussão sobre a necessidade de reconhecimento do sofrimento psíquico na primeira infância e seus consequentes cuidados. Será preciso zelar para que seus modos de implementação primem por uma leitura clínica do que o bebê dá a ver e pela escuta da preocupação dos pais, dando lugar a um tratamento que parta não da patologia, mas da aposta na constituição. Para tanto é preciso, em primeiro lugar, considerar quais instrumentos utilizar em tal detecção, já que estes podem levar a caminhos bem diferentes. Em segundo lugar, diante da realidade de muitas Unidades Básicas de Saúde (UBS), será preciso sublinhar a detecção por parte de "profissionais do acompanhamento da primeira infância", em lugar de apenas "pediatras". Em terceiro lugar, será preciso fazer valer, tal como proposto nos textos dessas leis, a ideia de que a detecção implica um posterior atendimento, sendo essas intervenções eticamente indissociáveis, o que torna imprescindível, tal como também está no texto dessas leis, a formação dos profissionais para a intervenção diante dos casos em que detectarem-se dificuldades, articulando tais tratamentos aos dispositivos do Sistema Único de Saúde (SUS) a fim de propiciar cuidados qualificados e não segregados.
Por fim, em relação à promulgação dessas leis, é preciso considerar que qualquer ato inevitavelmente implica riscos, mas quando temos um problema de tal magnitude é preciso começar por algum lugar, afinal não há serviço que tenha sido jamais implementado sem que tenha se produzido demanda para tal. Se há objeções às leis, esperemos que elas permitam, então, fazer coisa melhor em seu lugar, pois o que não podemos é recusar o problema que essas leis vêm apontar. Devemos isso aos bebês e a suas famílias, mantidas em conduta expectante até a decisão da patologia em um tempo que sabemos ser absolutamente precioso e decisivo para mudar os rumos ainda não decididos da constituição de um bebê6.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência
julietajerusalinsky@gmail.com
Rua Caiubi, 600.
05010-000 São Paulo SP Brasil.
Recebido em fevereiro/2018.
Aceito em abril/2018.
NOTAS
1. Evento realizado em 24 de agosto de 2017, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pelo Fórum do Campo Lacaniano.
2. Assim, a amplitude de questões implicadas no sofrimento de bebês, longe de ser redutível a documentos que versem sobre o TEA, vai mais na direção de que as atuais Diretrizes de Estimulação Precoce possam se ampliar como uma linha de cuidados que considere a Detecção e Intervenção em Estimulação Precoce não só diante de patologias orgânicas de base, mas também diante do sofrimento psíquico.
3. Tal questão encontrou sua voz por meio do Ministério da Justiça, aliás, como todo o ECA, que não é originalmente da saúde e da educação, ainda que tenha consequências nessas áreas, muitas vezes causando alvoroço a corporações de profissionais ao se sentirem "surpreendidas" ou "atropeladas" em seus procedimentos usuais. Mesmo que incomode, é uma questão que faz pensar e, esperemos, nos ponha a trabalhar diante do inevitável descompasso que sempre há entre o instituído e o que é preciso instituir para dar conta de problemas que nos assolam desde a realidade.
4. A discussão sobre diferença terminológica, que pode ter o seu valor quando buscamos, na produção da criança, indicadores de referência do que se espera para que sua constituição psíquica vá bem, e quando o que desperta risco ou alerta que torna necessário um acompanhamento do desenvolvimento especializado é a ausência de um indicador (tal como ocorre no protocolo IRDI). Ao mesmo tempo, suprimir o termo "risco", suavizando a denominação, pode acabar por encobrir a importância do que efetivamente está em jogo.
5. Nesse sentido vale considerar o que a Lei nº 13.438 sublinha ao apontar a importância da detecção precoce de risco psíquico nos primeiros meses de vida, diante de uma concepção de primeira infância contida de forma ampla no ECA e, portanto, na Lei nº 13.257 que, ao abarcar a faixa etária dos zero aos seis anos de idade, pode deixar passar tempo demais para tal detecção.
6. Efetivamente, o primeiro comitê realizado no Ministério da Saúde após a promulgação da Lei (composto apenas por profissionais convidados) no segundo semestre de 2017, deu parecer contrário à Lei. Um de seus argumentos foi considerar "falta de instrumentos adequados" para tal detecção, o que, no mínimo, implica ignorar um instrumento nacional desenvolvido a partir do próprio Ministério da Saúde que, paradoxalmente, é indicado para compor a Caderneta da Criança por esse mesmo comitê. Outro dos argumentos contrários foi o risco de "judicialização do Ministério da Saúde" caso um bebê, em cuja consulta de acompanhamento do desenvolvimento tivesse sido aplicado esse instrumento, viesse a apresentar futuramente alguma dificuldade. Ora, tal argumento resulta, no mínimo, surpreendente, revelando um profundo desconhecimento da lógica que permeia os princípios de prevenção. Que alguém se encontre bem na época em que a consulta ocorreu não significa um atestado de saúde para sempre e à prova de todas as contingências da vida, dado que fazer detecção não equivale a fazer predição e, menos ainda, ao tratar-se de detecção de risco psíquico, campo no qual a lógica de causa e efeito unívocas não tem aplicabilidade e no qual é imprescindível um acompanhamento longitudinal e uma leitura dos indicadores em contexto. Isso revela o quanto, para instaurar uma detecção precoce do sofrimento psíquico que considere o bebê como sujeito em constituição, será preciso vencer preconceitos e desconhecimentos que provêm do próprio cerne da saúde mental, ainda muitas vezes calcados em uma concepção puramente conceitual da primeira infância e dissociada da prática clínica com bebês.