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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.24 no.1 São Paulo enero/abr. 2019
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i1p1-3
DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i1p1-3
EDITORIAL
Escola consumida ou consumada?
Rinaldo VoltoliniI
IDocente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: rvoltolini@usp.br
Por que destacar a escola numa produção do campo da psicanálise e educação? A importância social dessa instituição poderia bastar para justificar sua colocação num lugar de destaque em qualquer debate sério sobre educação, mas a partir do terreno próprio à psicanálise e sua démarche específica na educação, será uma constatação bem precisa que nos fará colocar a escola na berlinda, que podemos condensar na seguinte fórmula: a escola parece ser cada vez mais forte enquanto organização, na mesma proporção que é cada vez mais frágil enquanto instituição! Isto é, a força da passagem do discurso do mestre ao do capitalista; mas o valor dessa formulação, bem como sua consistência, não é imediatamente evidente e precisa ser devidamente demonstrado.
Podemos sustentar inclusive que essa fórmula vale não só para a escola voltada às crianças, mas também para aquela construída por e para os psicanalistas, que não está totalmente ao abrigo dos efeitos sedutores de um modo de organização que visa consolidar-se a despeito de qualquer solidez. Donde desponta um desafio: como sustentar uma instituição em tempos de organizações?
O conteúdo deste dossiê expressa uma tentativa de dar conta dessa questão, sendo composto a várias mãos, entre múltiplos debates e trocas que se iniciaram no Colóquio do Lepsi em São Paulo, no ano de 2017, que levou o mesmo título: Escola consumida ou consumada? Ou seja, é fruto de uma verdadeira transferência de trabalho, da qual podemos esperar uma afetação entre os trabalhos, e não apenas uma superposição deles.
O título dado ao dossiê é uma provocação sustentada na paráfrase da observação lacaniana sobre o discurso do capitalista: Escola consumida ou consumada? "O discurso capitalista é algo loucamente astucioso, mas votado ao esgotamento. . . . É que ele é insustentável . . . ele anda sobre rodinhas, e não pode andar melhor, mas justamente anda tão rápido que se consome, se consome tão bem que se consuma" (Lacan, 1972/2006). A frase é de Lacan e foi escrita para representar em uma imagem, segundo ele, a essência do capitalismo. A inteligência astuta do capitalismo se faria notar em sua capacidade de encorpar-se, entregando-se exclusivamente ao seu fortalecimento e consolidação. Tudo que a ele se opor sofrerá o destino de ser metabolizado e incorporado, atestando o valor maior da metáfora do consumo: comer, devorar, até transformar tudo em parte de si mesmo.
Essa astúcia encontraria apenas um limite: a consumação. No afã de devorar tudo, o capitalismo não poderia evitar o destino de devorar a si mesmo. É o que nos fazem ver, dramaticamente, os discursos ecológicos, muito fortalecidos nos últimos tempos que, se valendo do medo do fim da vida humana na Terra como um recurso pedagógico, buscam botar algum freio nessa paixão devoradora.
A alusão feita às rodinhas serve tanto para marcar que se trata de velocidade, o que se percebe facilmente quando olhamos o progresso tecnológico, como para marcar que isso gira sobre si mesmo, ou seja, obedece, segundo a lógica freudiana, à morbidez da compulsão à repetição. O imperativo do capitalismo comportaria uma fórmula na qual o ciclo fechado da repetição se mostra claramente: deve-se continuar progredindo sempre para se atingir o quê? O progresso! O fim da causa final diria o filósofo em prol da causa eficiente. Inovar é "A" regra, ou seja, não é mais um processo desencadeado pelo desejo que se opõe à inércia do antigo contra o establishment, como se convencionou dizer mas, ao contrário, tornou-se uma injunção superegoica é o próprio establishment que pesa sobre todas as cabeças dizendo que quem não inova está fora.
Podemos nos perguntar, com proveito, sobre como a escola se encontra nesse estado de coisas. A demanda de inovação é patente sobre ela. Contestada por ser conservadora, por vezes ridicularizada em piadas que atestariam seu suposto anacronismo, a escola nunca se viu tão às voltas com reformas como nesses últimos trinta anos. A relação professor-aluno, os métodos de trabalho, o currículo básico, as regras de avaliação e progressão, a distribuição de seu espaço físico nada em seu interior parece ter ficado fora de questionamento.
Além disso, ela também tem sido muito avaliada, paixão importante do discurso capitalista, esquadrinhada com números e estatísticas que teriam o poder de diagnosticar seus problemas e melhorar sua performance. Nenhuma dessas críticas ou avaliações, entretanto, põe em xeque a existência da escola. Ao contrário, uma reflexão como aquela feita por Ivan Ilich em seu clássico livro Deschooling society literalmente "desescolarizando a sociedade", mal traduzido para o português como Sociedade sem escolas , que conheceu um forte reconhecimento internacional em sua época, hoje não tem senão um valor anedótico.
Nossa sociedade está cada vez mais escolarizada, seja porque a escola, enquanto instituição, chega bem mais cedo na vida do cidadão, seja porque sua formatação invade um público nunca antes imaginado, como da escola de pais, da terceira idade, e de lazer, por exemplo.
O que Ilich punha em evidência, entretanto, era um paradoxo perigoso no qual está assentada a escola: o ensino tornado obrigatório não minaria a vontade de aprender? Se o autor chegou a formular que poderíamos viver sem escolas, não foi porque defendeu um retorno a uma educação totalmente informal, mas porque imaginou que em seu lugar funcionaria bem um sistema em rede, forjado a partir da ideia de que quem se interessa por aprender algo pode encontrar alguém que quer ensinar esse algo. Curiosa antecipação visionária do que a informática faria em nosso tempo. Mas o nascimento dessa rede, agora concretizada com a internet, não desmoronou a escola que, ao contrário, a tem absorvido, mesmo que cambaleante, reforçando seu papel num discurso escolarizante.
Daí o curioso paradoxo: a despeito da inundação de críticas que recebe, a escola segue incólume, cada vez mais magnífica, o que não quer dizer que essa magnificência não esconda um avesso de precariedade.
A démarche freudiana na educação coincide fundamentalmente com a preocupação de Ilich. Em ambos os casos trata-se de pôr em primeiro plano a verdade da experiência da experiência da aprendizagem, da transmissão do conhecimento, no caso. Esse ponto fulcral de uma démarche ganharia contornos concretos mais tarde com Lacan nas reflexões sobre a constituição de uma escola para a psicanálise. Evidentemente não é o caso de equacionar de modo simplista e equivocado a escola de psicanálise, voltada para a formação de analistas, e a escola pública, voltada para a educação das crianças. Trata-se, contudo, de apontar como a psicanálise recuperou a seu modo questões que têm importância para a reflexão pedagógica acerca do aprender, do transmitir, do ensinar, do formar e do peso do funcionamento institucional nesse processo.
Mas trata-se, também, de sublinhar como escolas com perspectivas e objetivos tão diversos a que forma analistas e a que educa crianças sofrem as vicissitudes de uma mesma organização discursiva hegemônica de uma época, que aqui denominamos, seguindo a proposta lacaniana, de discurso do capitalista.
Neste dossiê o leitor encontrará um debate sobre temas como transmissão, autoridade, autorização, instituição, conhecimento, aprendizagem, juventude, primeira infância etc., que são comuns tanto à pedagogia como à psicanálise, embora ambas tenham chegado a respostas diferentes. A aparente dispersão dos temas não deve confundir o leitor sobre o ponto sutil, mas consistente, que estabelece sua unidade: trata-se sempre de como cada um desses temas ganha peso na instituição escolar, tomada como está em seu paradoxo de cada vez mais ver seu papel atestado pela sociedade como o de uma organização e enfraquecido pela mesma sociedade enquanto instituição.
Por isso convidamos o leitor a refletir mantendo essa pergunta título como pano de fundo: escola consumida ou consumada? Afinal, conviria refletir se a escola de nosso tempo não confiou demasiado na manutenção de seus muros em detrimento da verdade de sua experiência. Se assim for, seu risco é o da mumificação, ou seja, o da preservação, potencialmente perpétua, de algo que já não tem mais vida. Se assim for, ela pode terminar por ser consumida, consumada.
Referências
Lacan, J. (2006). Traducción de la conferencia de Lacan en Milán del 12 de mayo de 1972 (O. M. Mater, trad.). Buenos Aires: El Sigma. (Trabalho original publicado em 1972). Recuperado de https://bit.ly/2ZwF1Ij [ Links ]