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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.24 no.3 São Paulo set./dez. 2019
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i3p419-424
10.11606/issn.1981-1624.v24i3p419-424
DOSSIÊ
Um espaço para uma verdade da experiência de transmissão?
¿Un espacio para una verdad de la experiencia de transmisión?
A space for a truth of the experience of transmission?
Robert LevyI
IPsicanalista, membro da Association Analyse Freudiènne, Paris, França. E-mail: robertlevy1@icloud.com
RESUMO
A escola de psicanálise: o lugar para a verdade da experiência da transmissão. Toda a dificuldade deste tipo de experiência reside na irredutível singularidade do ato que se opõe necessariamente à verdade geral, universal. Dizemos que a transmissão não pode ser entendida na escola de psicanálise senão ao modo de uma verdade no um a um. Isto é, se a dimensão do real se opõe à toda veleidade de universalização. Aliás, a noção mesma de escola em psicanálise coloca uma questão delicada. Com efeito, considerar uma escola seria ter resolvido antecipadamente um a priori de elementos constitutivos de uma transmissão que asseguraria a realização desta transmissão de modo universal para todos. Ora, a dimensão de perda e de incerteza daquilo que se transmite no um a um não permite postular a noção de escola senão no só-depois daquilo que se pôde ou não fazer transmissão para um sujeito dado. Pretendemos neste texto tentar articular essas dimensões de modo a interrogar os termos de escola e de transmissão face a um verdade que não pode ser postulada como toda.
Palavras-chave: escola de psicanálise; transmissão; verdade; singular; universal.
RESUMEN
La escuela de psicoanálisis: el lugar para la verdad de la experiencia de transmisión. Toda la dificultad de este tipo de experiencia reside en la irreductible singularidad del acto que se opone necesariamente a la verdad general, universal. Decimos que la transmisión no puede ser entendida en la escuela de psicoanálisis sino como una verdad en el uno a uno. O sea, si la dimensión de lo real se opone a toda veleidad de universalización. Es más, la noción misma de escuela de psicoanálisis plantea una cuestión delicada. En efecto, considerar una escuela significaría haber resuelto anticipadamente un a priori de elementos constitutivos de una transmisión que aseguraría la realización de dicha transmisión de manera universal para todos. Pues bien, la dimensión de pérdida y de incertidumbre de aquello que se transmite en el uno a uno no permite postular la noción de escuela sino en el sólo-después de aquello que se pudo o no convertir en transmisión para un sujeto dado. En este texto intentaremos articular esas dimensiones para interrogar los términos escuela y transmisión en relación a una verdad que no puede ser postulada como toda.
Palabras clave: escuela de psicoanálisis; transmisión; verdad; singular; universal.
ABSTRACT
The school of psychoanalysis: the place for the truth of the experience of transmission. All the difficulty of this kind of experience lies in the irreducible uniqueness of the act which necessarily opposes the general, universal truth. We say that the transmission cannot be understood in the school of psychoanalysis other than in the mode of a truth one by one. That is, if the dimension of the real opposes all fancy of universalization. In fact, the very notion of school in psychoanalysis poses a delicate question. Indeed, to consider a school would be to have resolved in advance an a priori of the constituent elements of a transmission which would ensure that this transmission was universally achieved for all. Now, the dimension of loss and uncertainty of what is transmitted in one by one does not allow us to postulate the notion of school other than only-after of what could or could not be transmitted to a given subject. We intend in this text to try to articulate these dimensions in order to question the terms of school and transmission facing a truth that cannot be postulated as a whole.
Keywords: school of psychoanalysis, transmission, truth, singular, universal.
Gostaríamos de contribuir com esse debate mostrando a vocês parte de nosso embaraço com relação a três pontos.
(1) O termo escola de psicanálise me parece hoje em dia colocar problemas consideráveis. (2) O de verdade, para a psicanálise é um termo que merece reflexão e não pode se anunciar dessa maneira. Enfim (3), a experiência de transmissão suporia que pudéssemos fazer uma generalização, enquanto nada é menos seguro, em todo o caso, do que a existência de uma transmissão possível em psicanálise.
Estes três termos apresentam, no fundo, o mesmo tipo de contradição e proponho encaminhar alterando a ordem, começando por tratar do segundo ponto.
O termo verdade coloca efetivamente um problema, uma vez que sabemos, desde Freud e com Lacan, que a verdade não é senão um semi dizer e que ela só pode se referir a esta aporia: lá onde eu penso eu não sou e lá onde eu sou eu não penso. Com esta modalização Lacan retomou e transformou o cogito cartesiano: penso logo existo. É o que nos transmite Freud ao pé da letra em A psicopatologia da vida cotidiana (1901/1985).
Nenhuma esperança, portanto, de reter qualquer verdade toda, se não for balbuciar alguns semi-dizeres, ao modo do um a um que se transmite como tantos pedaços do real. Aliás, se existisse uma verdade transmissível em psicanálise, essa significaria que nós poderíamos colocar a existência de um real universal, quer dizer, que nós confundiríamos a história universal com um H maiúsculo com aquela de cada um, tomada um a um, em seu mito individual.
E como menciona Lacan justamente em seu artigo sobre o Mito individual do neurótico (2007, p. 13),
é bem no que a experiência analítica é decisivamente não objetivável. Ela implica sempre, no seio dela mesma, a emergência de uma verdade que não pode ser dita, pois que o que a constitui é a palavra, e que seria necessário, em todo o caso, dizer a palavra ela mesma, o que é, propriamente falando, o que não pode ser dito enquanto palavra.
Existe, no entanto, hoje em dia, uma tentativa de restauração do cogito cartesiano no campo das ciências, tentativa que pode, se chegar a termo, fazer desaparecer o sujeito do conhecimento. O que não deixa de ter interesse para nós, porque os psicanalistas sabem bem que o sujeito da ciência é a condição do sujeito do inconsciente. Eles só podem advir conjuntamente, pois um é o avesso do outro. Donde essa ideia, fundamental para nós, de que o sujeito do inconsciente é dividido entre saber e verdade. Toda a tentativa de querer abolir esa divisão, seja ela com a boa intenção de fazer da psicanálise uma ciência, será inevitavelmente colocar a psicanálise como uma técnica de pesquisa de uma verdade conhecida de antemão, quer dizer, reduzi-la a uma forma de técnica psicoterapêutica.
Quanto ao nosso terceiro ponto o da experiência da transmissão. O que se transmite, então, em psicanálise senão que é impossível saber o real? Eis aqui, portanto, o projeto de transmissão da psicanálise: a impossível transmissão do real. Mas esse real está bem constituído pela descoberta freudiana do inconsciente; inconsciente que não é senão o lugar do recalque de um desejo no qual o objeto é fundamentalmente perdido, ou até mesmo que sequer existe o objeto, pois que ele nunca satisfez a pulsão.
Motivo de nosso grande interesse em considerar a verdade da qual acabo de falar como o que é o resultado de uma operação: o objeto do desejo não é senão a falta que o causa. Como, então, transmitir essa verdade de outro modo que na experiência efetiva, mas uma experiência um tanto particular que é essa da transferência?
Nesta experiência de palavra, própria à cura, a concepção estrutural da linguagem : diga o que tem vem à cabeça, é o sistema que significa o desejo inconsciente e supõe um sujeito que não é senão o efeito dessa relação com o Outro da transferência. A esse respeito compreenderemos que a formação só pode ser o resultado da deformação sofrida pela experiência das formações do inconsciente na cura da qual o analista na transferência é uma das figuras. Figura desejante, no caso, desejo de analista, portanto.
Conceito que tentarei definir, pois é um eixo central de uma crítica de Lacan contra os termos de transferência e contra-transferência que define uma: clínica da transferência e de sua análise. Parece que com esse uso, terminamos por poder dar os limites da psicanálise e da psicoterapia, apoiando-nos, justamente, sobre as consequências desse conceito de desejo de analista.
Os dois últimos pontos nos enviam necessariamente à questão da formação do analista, única questão que, se ela pode ser definida em termos de critérios, poderia terminar por nos dar alguns elementos para poder pensar a avaliação.
Lacan nos anunciava isso em seu ato de fundação da Escola Freudiana de Paris: "É um ponto, no entanto, no qual o problema do desejo não pode ser eludido. É quando se trata do próprio psicanalista." (Lacan, 1971, p. 86).
Toda intervenção em uma cura coloca a questão de saber de qual lugar o analista se autoriza em sua enunciação.
Foi necessário, então, esperar a crítica que fez Lacan da contratransferência para introduzir uma outra dimensão no exercício da interpretação. Com efeito, desde então, vemos Lacan relevar esse paradoxo, ou ainda essa antinomia, que consiste em "definir o analista ideal simultaneamente como aquele que, no limite, não seria mais nada de inconsciente, mas que, ao mesmo tempo, conservaria dele uma boa parte" (Lacan, 1991, p. 213).
Juntos com ele podemos precisar qual é essa "boa parte" conservada, entendendo que se trata já de uma questão que porta o traço sobre certa forma de avaliação do ato analítico em função da formação do analista, eu diria mais exatamente em função da formação do inconsciente do analista, ou ainda, do analista tomado como formação do inconsciente na cura.
Essa "boa parte", Lacan a leva a seu ponto culminante, pois em sua concepção da análise não somente o analista não se encontra "fora do alcance das paixões", mas « quanto melhor seja ele analisado, mais lhe será possível que ele seja francamente amoroso, ou francamente em estado de aversão, de repulsa sobre os modos mais elementares dos corpos entre si, com relação a seu parceiro»; ele será, então, "possuído por um desejo mais forte que os desejos nos quais ele poderia agir, passando para as vias de fato com seu paciente, de lhe tomar nos braços ou de lhe jogar pela janela." (1991, p. 220-221). Compreendamos com isso que um desejo « mais forte » não é redutível ao desejo sexual nem a uma paixão, mesmo se, como nos indica Lacan, a propósito da contratransferência ou da análise didática, "a psicanálise é, com efeito, bem pessoal, mas àquele que a dirige". O que é, portanto, conveniente transmitir é, em definitivo, em que a psicanálise é, com efeito "bem pessoal, mas àquele que a dirige" (Lacan, 2001, p. 48). Por fim, o último ponto de minha lista, aquele que figurava em primeiro lugar: o que seria uma escola de psicanálise ou para a psicanálise, hoje em dia? o que me parece serem duas maneiras diferentes de colocar e de responder à questão.
Seria vão situar o analista no quadro de uma formação: não nos formamos analistas, nenhuma disciplina de treinamento é prevista para esse uso e se em medicina a clínica do olhar permite referenciar síndromes precisas na sequência de numerosas observações, na psicanálise, a clínica, que é aquela centrada na escuta, deve sua consistência aos efeitos de verdade, quer dizer, de interpretação. "A relação analítica", diz Freud em Análise terminável e interminável "está fundada sobre o amor à verdade, quer dizer, sobre o reconhecimento da realidade" (Freud, 1901/1985, p. 263).
Neste mesmo texto, algumas linhas a frente, Freud qualifica de impossível a profissão de analista pela mesma razão do governar e do educar ou seja, o discurso do mestre e do universitário. É nessa mesma perspectiva que Lacan anuncia em 1978 em suas Conclusions du congrès sur la transmission (Lacan, 1978, p. 171), por conta da formação, que "a análise é intransmissível", retomando aí as proposições de Freud, radicalizando-as até afirmar que cada analista seria "forçado a reinventar a psicanálise". Nessa fórmula, é necessário compreender que a formação, para cada analista, seria uma deformação necessária consistindo, no um por um, em efetuar a operação de (de)nomear a psicanálise de Freud, de tal modo que os significantes do desejo de cada um façam enunciação desse mesmo ato.
Uma tal enunciação coloca cada um em posição de se autorizar e de não se autorizar de si mesmo, fazendo assim passar ao público. Está aí o sentido da expressão « reinventar a psicanálise ». Proposição central que situa o sujeito do inconsciente no único campo no qual ele pode se fazer conhecer, quer dizer, enquanto causa da repetição sabendo que um forçamento é necessário para fazer passar à outros essa posição.
A formação do psicanalista se definirá, portanto, como uma clínica que consiste no desejo do analista como função.
Desde então aparece como evidente que não há o ser analista, nenhuma formação podendo funcionar como garante do Outro, nada de garantia da verdade : S(A). É justamente este S(A) que é o único referente a partir do qual o analista pode projetar qualquer formação, esse que constitui um dos pontos nodais da rede em torno da qual se articula toda a dialética do desejo, enquanto ela se constrói do intervalo entre enunciado e enunciação.
O termo de formação parece, portanto, totalmente impróprio para qualificar isso que se produz a partir da enunciação de um desejo. Preferiríamos amplamente em seu lugar o termo deformação, na medida em que o analista, no melhor dos casos, será um tornando-se analista, analista não sendo senão uma função que se produz eventualmente a cada nova cura, através da posta em ato do desejo de um sujeito sustentando esse desejo, com todas as consequências da transferência que isso produz.
Mas hoje em dia autorizar-se de si mesmo tornou-se também um termo bastante impróprio pelo menos quando se trata de consumir, a exemplo de qualquer um dos múltiplos objetos da sociedade que portam o mesmo nome. E isso por duas razões: (1) com efeito, quando essa proposição foi enunciada, o quadro da escola de Lacan garantia que alguns outros poderiam escutá-lo com conhecimento de causa. (2) De outro lado, esta enunciação teve que submeter-se ao que se submete toda enunciação que se torna enunciado coletivo : ela perdeu seus efeitos de ato original para se fazer uma frase, máxima na qual qualquer um se autoriza e não mais se autor-iza, em lugar, portanto, de uma enunciação pessoal.
Lembremos : não existe enunciação coletiva
Os alguns outros
Em um tal contexto, prevalente nos dias atuais, nos parece de uma certa urgência colocar novamente o acento sobre a importância desses alguns outros e de seu papel crucial, contra uma tendência que desde algum tempo se desenha, e que segundo a qual podemos ver um certo número de analistas desabusados, por boas ou más razões, pelas instituições posteriores à dissolução, se sentirem autorizados de si mesmos.
Apesar de que, em razão das modalidades de obtenção do título de psicoterapeuta, o engajamento nas instituições parecem relançar o problema. Desse modo eles não se engajam em nenhuma regra do jogo associativo, o que novamente recalca os alguns outros em benefício de uma suspensão do ato. Uma tal atitude não favorece um retorno ao Eu forte do analista da forma mais narcísica possível? É nisso que se pode sustentar que a instituição mínima é a cura, a essa única condição, contudo, que a posta em ato que a legitima como tal, e que desse modo a situa dentro de uma certa ética, seja transmissível e não se contente de ser inefável. O que torna necessário, então:
que cada um, um a um, possa fazer passar esse processo à outros que o testemunham;
que uma estrutura de funcionamento com as regras do jogo, conhecidas por todos e cada um possa se estabelecer.
Com tais procedimentos queremos ter por finalidade agrupar em coletivo, mais do que criar um Como UM.
Mas elas são as condições elementares para que se enuncie o discurso psicanalítico da mesma maneira que se produza esse laço social do qual Lacan de modo correto observou que foi exatamente o que havia faltado a Freud e permitido à sua Associação Internacional recobrir sua descoberta do inconsciente (Lacan, 1972).
Se, então, a formação do analista só pode se constituir na perseguição permanente da atualização do desejo que faz sua função, e isso de modo renovável a cada nova cura, como projetar essa atualização, essa passagem ao público? Como pensar sobre essas bases a formação do analista hoje em dia?
Se, portanto, falamos de avaliação, quem serão os alguns outros de referência?
Se se trata de reinventar a psicanálise, nessa forçagem que consiste para cada analista, como vimos, à (des)nomear ou renomear a psicanálise de Freud, de tal modo que os significantes de seu desejo se enunciem por este mesmo ato que os faz passar ao público, o papel, então, de uma instituição analítica, de uma escola, só pode ser o de se votar à acolher, tanto quanto possível, toda veleidade de testemunho de uma tal natureza, colocando em jogo esse desejo de analista. Nessas condições me parece menos importante atualmente nomear um analista do que atestar que alguns outros compreenderam bem o preço que isso agrega ao fato de testemunhar daquilo que o funda a produzir seu ato, quer dizer, daquilo que o constitui essencialmente em função isso devendo se desenrolar em total conformidade com a regra do jogo na qual cada instituição ou escola foi dotada para este efeito.
Mas ainda será necessário que exista uma e que ela seja enunciada de modo claro. Concluindo, vocês terão compreendido que não pode haver escola que não seja no depois disso que cada um terá podido testemunhar do que foi capaz de considerar como aquilo que lhe foi transmitido.
Referências
Freud, S. (1985). Résultats, idées, problèmes. Paris: PUF. (Trabalho original publicado em1901). [ Links ]
Lacan, J. (2007). Le mythe individuel du névrosé. Paris: Le Seuil. [ Links ]
Lacan, J. (1971). Acte de fondation de l'EFP. Paris: EFP. [ Links ]
Lacan, J. (1991). Le séminaire: le transfert (Livre VIII). Paris: Le Seuil. [ Links ]
Lacan, J. (2001). De Rome 53 à Rome 67: La psychanalyse raison d'un échec. In J. Lacan, Autres écrits (pp. 341-349). Paris: Seuil. [ Links ]
Lacan, J. (1978). Conclusion du Congrès sur la transmission. Lettres de l'EPF. (n.25, vol.1, pp. 219-220). [ Links ]
Recebido em setembro/2019 Aceito em novembro/2019.