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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.3 São Paulo set./dez. 2019

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i3p497-509 

10.11606/issn.1981-1624.v24i3p497-509

EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

 

Ressonâncias da escuta psicanalítica com adolescentes em privação de liberdade

 

Resonancias de la escucha psicoanalítica con adolescentes en privación de libertad

 

Resonances of psychoanalytic listening with adolescents in detention

 

 

Débora Ferreira BossaI; Andréa Máris Campos GuerraII

IPsicóloga, Analista Executivo de Defesa Social em Psicologia (SESP/MG). Mestre em Psicanális e Cultura pela Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: deborabossa@gmail.com
IIDocente do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: andreamcguerra@gmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo discorre sobre a experiência de intervenção com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, cuja escuta impulsiona a produção de novas significações para o acautelamento e o envolvimento com a criminalidade. Ao propor que o adolescente fale livremente, a prática da psicanálise no centro socioeducativo esbarra na lógica da institucionalização do corpo e normatização das condutas dos adolescentes. O estudo apresenta reflexões sobre os efeitos produzidos, em transferência, a partir da escuta dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, e a tensão existente entre o falar livremente na experiência de privação de liberdade, articulando esses aspectos a partir dos conceitos de identificação e resistência. Para isso foram elaboradas reflexões a partir de expressões apresentadas na situação de atendimento psicológico oferecido aos adolescentes em privação de liberdade. Conclui-se sobre a necessidade de construção de escutas nos espaços socioeducativos que ampliem as possibilidades do laço entre o adolescente e a sociedade, expandindo as discussões políticas e jurídicas sobre os efeitos da privação de liberdade, bem como sugere possibilidades para a construção de uma prática psicanalítica atravessada por questões clínico-políticas.

Palavras chave: adolescência; medidas socioeducativas; identificação; resistência; psicanálise.


RESUMEN

Este estudio discurre sobre la experiencia de intervención con adolescentes en cumplimiento de medida socioeducativa, cuya escucha impulsa la producción de nuevas significaciones para el aprisionamiento y la participación en la criminalidad. Al proponer que el adolescente hable libremente, la práctica del psicoanálisis en el centro socioeducativo choca con la lógica de la institucionalización del cuerpo y la normalización de las conductas de los adolescentes. El estudio presenta reflexiones sobre los efectos producidos, en transferencia, a partir de la escucha de los adolescentes en cumplimiento de medida socioeducativa, y la tensión existente entre el hablar libremente en la experiencia de privación de libertad, articulando esos aspectos a partir de los conceptos de identificación y resistencia. Para ello se elaboraron reflexiones a partir de expresiones presentadas en la situación de atención psicológica ofrecida a los adolescentes en privación de libertad. Se concluye sobre la necesidad de construcción de escuchas en los espacios socioeducativos que amplíen las posibilidades del vínculo entre el adolescente y la sociedad, expandiendo las discusiones políticas y jurídicas sobre los efectos de la privación de libertad, así como sugiere posibilidades para la construcción de una práctica psicoanalítica atravesada por cuestiones clínico-políticas.

Palabras clave: adolescencia; medidas socioeducativas; identificación; resistencia; psicoanálisis.


ABSTRACT

This study discusses the experience of intervention with adolescents in compliance with socio- educational measure, whose clinical assistance drives the production of new meanings for care and involvement with crime. When proposing that the adolescent speak freely, the practice of psychoanalysis in the socio- educational center runs counter to the logic of institutionalization of the body and normalization of adolescent behaviors. The study presents reflections on the effects produced by psychoanalytical transference from listening to adolescents in compliance with socio-educational measures, and the tension between talking freely in the experience of deprivation of liberty, articulating these aspects from the concepts of identification and resistance. For this, reflections were elaborated from expressions presented in the situation of psychological assistance offered to adolescents in deprivation of liberty. It is concluded that there is a need to construct eavesdropping in socio- educational spaces that expand the possibilities of the bond between the adolescent and the society, expanding the political and juridical discussions on the effects of deprivation of freedom, as well as suggests possibilities for the construction of a practice psychoanalytic issues.

Keywords: adolescence; socioeducational measures; identification; resistance; psychoanalysis.


 

 

Este estudo propõe reflexões sobre a construção da clínica psicanalítica a partir da escuta de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade, tendo como suporte teórico e técnico o conhecimento construído pela psicanálise. Ao apresentar a escuta a adolescentes privados de liberdade, o trabalho no centro socioeducativo visa a promoção da fala livre, cuja prática é subversiva à lógica institucional e à normatização dos corpos, que, em geral, padronizam e tornam burocrática e rotineira a abordagem ao adolescente. O estudo apresenta reflexões sobre o paradoxo entre a privação de liberdade e a liberdade para falar, a partir das considerações sobre os impasses e implicações sobre a escuta desses sujeitos, e sugere considerações sobre a construção de uma clínica atravessada por questões políticas e sociais.

O início da psicanálise aponta para a subversão da clínica psiquiátrica tradicional do século XIX ao tomar a histeria como passível de intervenção, e sua atuação segue produzindo novos efeitos aos sujeitos e instituições ao longo dos séculos. Da mesma forma, a inserção da psicanálise no contexto instituicional de privação de liberdade resgata seu aspecto subversido, uma vez que apresenta particularidades da clínica com adolescentes em conflito com a lei, propondo a tensão existente entre a liberdade para falar, constitutiva da clínica psicanalítica, e a privação de liberdade, cuja condição institucional coloca o sujeito em silenciamento.

Falar livremente em uma unidade de privação de liberdade é um desafio para a prática no centro socioeducativo, tendo em vista questões sobre a transferência e a resistência e sobre as relações de poder ali imiscuídas. Assim, esse estudo pretende analisar excertos de falas de adolescentes privados de liberdade, a fim de propor uma lógica para a escuta do psicanalista no espaço socioeducativo, o que contribui para a ampliação da atuação da clínica psicanalítica.

As unidades socioeducativas são dispositivos sociais previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/1990) para o acolhimento institucional do adolescente (de 12 anos a 18 anos incompletos) que cometeu ato infracional, em instituição devidamente apropriada para servir como unidade de privação de liberdade. O ECA prevê que os adolescentes sejam admitidos na instituição apenas quando todos os demais esforços e dispositivos sociais não estiverem mais disponíveis, ou tenham sido insuficientes para proteger o adolescente dos riscos do envolvimento com a criminalidade.

A realidade institucional deveria seguir os parâmetros normativos, mas a experiência profissional no interior desses espaços apresenta a necessidade de produção de conhecimentos, debates e intervenções sobre a escuta do adolescente, a qual é capaz de revelar a constante tensão entre sujeito e sociedade. No cotidiano dessas instituições vemos, conforme Rizzini (2004), a repetição de antigas práticas de institucionalização da infância e adolescência, cuja remanecência produz a continuidade da exclusão, apesar de serem, atualmente, identificadas como políticas públicas de proteção. Esse aspecto marca a história da institucionalização da infância e adolescência no Brasil desde a educação das crianças pobres, abandonadas, negras e indígenas do século XVIII, passando pela reabilitação dos menores abandonados do século XIX e XX, e mostra resquícios nas atuais modalidades de proteção à infância e adolescência, mesmo com a promulgação do Estatuto da Criança e Adolescência em 1990.

Na experiência institucional com adolescentes em conflito com lei vemos muitos profissionais se acostumarem com as violências cotidianas, compactuando com o senso comum sobre a punição como forma de restauração do ato infracional. Esse pacto pode ser percebido a partir de ações que aparecem como lapsos, negligências e descasos para o atendimento às demandas dos adolescentes. Rosa e Vincentin (2010) consideram que, de acordo com a estruturação das políticas públicas para o atendimento e proteção da adolescência em vulnerabilidade social, é preciso a superação de uma abordagem da violência compreendida pelo discurso da defesa social a fim de possibilitar espaço para uma prática interdisciplinar que permita a escuta do jovem e a construção de novo lugar para o mesmo no campo social.

Rosa e Vincentin (2010) indicam que as políticas públicas brasileiras tendem à institucionalização como medida para proteger a adolescência ameaçada pela vulnerabilidade social e em risco de envolvimento com a criminalidade. O exílio tem sido o principal recurso para a juventude pobre nos âmbitos médico-jurídicos. As autoras consideram que os corpos dos jovens pobres se inscrevem no imaginário social de vinculação à delinquência e à violência, da mesma forma em que a juventude em conflito com a lei é comumente associada à vitimização letal, de tortura e maus-tratos nas instituições de internação. Mesmo com os quase trinta anos da elaboração e vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/1990), as demandas de controle e apaziguamento das tensões sociais provocadas pela criminalidade juvenil têm se mostrado insuficientes para redução das crescentes taxas de criminalização, além disso, o discurso popular de defesa da redução da maioridade penal evidencia a falta de informação e a dificuldade analítica para o enfrentamento e resolutividade do problema. Nesse sentido, os esforços sociais têm se mostrado na contramão da proposta sustentada pelo ECA, e atualmente vemos emergir, ao lado das iniciativas de redução da menoridade penal, a criminalização da pobreza e a patologização do adolescente em conflito com a lei, cuja responsabilização pelo ato criminal é posta no sujeito, e não na composição das políticas públicas e sociais para o atendimento à adolescência em vulnerabilidade social, destacando-se para a gestão de riscos que a adolescência pobre produz para o campo social.

A privação de liberdade busca provocar, intencionalmente, efeitos na subjetividade dos sujeitos. Foucault (1977) argumenta que apartar o sujeito de sua liberdade constitui um castigo igualitário, uma vez que a perda da liberdade possui mesmo valor para os diferentes grupos humanos, além de ser uma variável capaz de quantificar o tempo do cárcere a fim de respaudar o quão ameaçadora foi a ação do sujeito, cuja infração lesou não apenas a vítima, mas também a sociedade inteira. Foucault (1977) afirma que, ao tentar refrear a transgressão, as instituições de privação de liberdade acabam por fundamentar sua continuidade, pois a criminalidade é produto de fatores coercivos e dogmatizadores que imputam ao exílio e à subserviência das estruturas repressivas, tendendo à reincidência por apresentar ao sujeito a invalidade de seus objetivos reeducativos ou reflexivos. Em síntese, como já lembrava Lacan (1950/1998a), o castigo, orientado pela lógica da vingança e normatizado segundo o enquadre sociológico de cada época, incita ao crime, não o detém.

A criminalidade, assim como o alcoolismo e a toxicomania são compreendidos por Melman (1992), apoiado em Lacan (1950/1998a), como sintomas sociais, pois são fenômenos que dizem respeito ao modo como são inscritos no discurso social dominante de cada sociedade em determinada época. O autor aponta que, como sintomas sociais, o psicanalista não deve se eximir em propor respostas sociais. Ao retomar a teoria lacaniana de que a subjetividade não se constitui fora do laço social, é possível compreender que os discursos articulam a subjetividade ao laço social, a qual também enlaça a relação entre o semelhante e o Outro. O envolvimento com o ato infracional, ou atos que tendem à "delinquência", nas palavras de Melman (1992), caracteriza-se pelo acesso ao objeto, e não pelo símbolo como ocorre na neurose, mas pelo rapto, violação, apreensão. A ação do "delinquente" é, nesse sentido, simbólica, pois há algo que ultrapassa o valor material do delito, e que diz respeito à falta de acesso ao objeto que comanda o gozo ao falo.

Nesse sentido, Moreira, Guerra, Souza e Soares (2015) retomam considerações apresentadas no texto Meu Ensino de Lacan (1968/2005) para compreenderem que a população infratora representa elementos do real, que não se reduzem à linguagem e à significação. Essa população aponta para a existência de um excesso produzido pela própria sociedade, sendo ela mesma incapaz de significar essa experiência e eliminar o problema. Essa eliminação implica na tentativa repressora de evacuar o excedente que, sob a forma de violência ou de criminalidade nesse caso, produz a identificação do adolescente com o resto societário, desapropriado de seu caráter como sujeito de direito e de desejo, para os quais as práticas educativas e restaurativas são suplantadas pelas tentativas de controle, exclusão e eliminação.

O ato infracional, de acordo com o ECA, diz respeito à "conduta descrita como crime ou contravenção penal" (art. 103), sendo a privação de liberdade a forma mais severa de desaprovação do ato. Nos centros socioeducativos, local onde se cumpre a medida de privação de liberdade, a escuta do adolescente depara-se com a resistência provocada pelo estranhamento entre a privação de liberdade e a fala livre. A resistência à fala, pelo adolescente privado de liberdade ao psicanalista diante do convite ao trabalho clínico, pode indicar a resistência do sujeito à ordem, uma vez que a recusa diante da liberdade para falar indica a insubmissão do sujeito à lógica do sistema socioeducativo. A tensão posta entre a liberdade de fala e a privação de liberdade, objeto deste estudo, é assim construída a partir da experiência com a clínica psicanalítica no centro socioeducativo, cujas considerações possibilitam reflexões sobre a construção de uma escuta atravessada por questões clínico-políticas.

 

Ressonâncias para a escuta analítica

As reflexões presentes neste estudo partem da experiência de atendimento com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade, e apontam para a construção do fazer clínico em psicanálise no espaço institucional, cuja experiência psicanalítica se estende na relação entre o singular e o social. Na obra Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud (1921/2011) propôs a articulação entre o sujeito e a sociedade, considerando a existência de uma importante relação entre a psicologia individual e a psicologia social. A primeira apreende o homem em sua esfera individual e explora os caminhos pelos quais o sujeito busca a satisfação pulsional. A psicologia social, por sua vez, analisa as relações que o sujeito estabelece com a sociedade. Para Freud, a psicologia social é também individual, na medida em que os mesmos fenômenos psíquicos estão presentes em ambas as esferas, constituindo elementos comuns tanto para sua leitura e interpretação quanto para intervenção sobre eles.

Retomando essa proposta, Lacan (1967/2003b) denominou como psicanálise em extensão a função e presença de sua escola e da psicanálise no mundo, e a psicanálise em intensão a didática que opera a prática dos psicanalistas, de forma que a psicanálise em intensão é fundadora da psicanálise em extensão. No texto Variantes do tratamento-padrão, Lacan (1955/1998c) propõe que a psicanálise estende sua escuta e seus efeitos fora da clínica tradicional, ao afirmar que um tratamento padrão, ou não, em psicanálise é o trabalho que se espera de um psicanalista. A psicanálise não é uma terapêutica como as demais práticas, pois se trata de uma ética do desejo do sujeito, em que cada caso questiona e inova a própria teoria.

Conforme Rosa (2004), a psicanálise em intensão diz respeito à doutrina que oferece suporte à formação, e a psicanálise em extensão faz referência à prática e recenseamento do campo psicanalítico que inclui a articulação da clínica com as ciências afins. Dessa forma, a psicanálise aplicada em diferentes contextos permite desvendar a relação entre o sujeito e os fenômenos sócio-culturais, políticos e abordar os impasses da subjetivação na atualidade, além de demonstrar a indissociabilidade entre pesquisa e intervenção. A escuta do sujeito, a transferência e a intervenção não são exclusividade do contexto da clínica, uma vez que o inconsciente está presente em todas as manifestações humanas.

A escuta é a principal ferramenta para o trabalho do psicanalista. No texto História do Movimento Psicanalítico, Freud (1914/2006d) nos conta que a história da psicanálise se inicia a partir do momento em que ele, Sigmund Freud (1856-1939), abandonou o uso da hipnose para o tratamento das neuroses histéricas, propondo uma inversão no modo de escuta do paciente, uma vez que este é deposto da postura passiva perante o psicanalista. A pedido da paciente Emmy von N., Freud é solicitado a ficar em silêncio para que ela pudesse falar sem interrupções sobre seus sintomas e manifestações psíquicas. Outra paciente, Anna O., a qual rendeu divergências entre Sigmund Freud e Josef Breuer sobre o mecanismo psíquico da histeria e o conteúdo sexual na origem desta afecção, denominou a psicanálise e seu método de associação livre como talking cure, ou cura pela fala.

Assim, vemos que foram as pacientes de Freud que denominaram o método da psicanálise e solicitaram a fala livre. A fala é, portanto, uma demanda do sujeito pela escuta. Freud (1914/2006d) considera, ainda, que o nascimento da psicanálise só foi possível mediante a substituição da hipnose, e a identificação de dois fatos importantes: a transferência e a resistência, de forma que o tratamento psicanalítico opera por meio da transferência atentando- se para a resistência.

No texto Função e campo da fala e da linguagem, Lacan (1953/1998b) apontou que o interesse pelas funções da fala e pelo campo da linguagem motivaram mudanças na técnica e no objetivo da terapêutica em psicanálise, uma vez que a técnica só pode ser corretamente aplicada diante do conhecimento dos conceitos fundamentais da psicanálise, os quais apenas adquirem sentido se orientados no campo da linguagem e pela função da fala. A linguagem tem o valor de evocação, e produz ressonâncias que ultrapassam a comunicação como informativa de qualquer fato. A fala busca a resposta do outro, já que sempre a inclui subjetivamente. Fala e linguagem não são tomados como sinônimos ou como complementares, mas estão em relação, dado que a linguagem é a estrutura pela qual o inconsciente se manifesta, seja em ato ou pela fala. Lacan (1953/1998b) propõe que a linguagem, ao se tornar mais funcional, fica imprópria para a fala, e ao se tornar particular perde sua função de linguagem. Mais ainda, indica que a fala é um dom da linguagem, e a linguagem não é imaterial, sendo um corpo sutil, uma estrutura. O abandono da hipnose indica o início do método psicanalítico e, consequentemente, o desenvolvimento de umas das primeiras condições para a análise e acesso à lógica do inconsciente, a associação livre. Assim, vemos que a escuta em psicanálise se baseia, fundamentalmente, na relação transferencial a partir da associação livre. Jorge (2008) afirma que a possibilidade de dizer livremente sobre seus sintomas foi o ponto fundante da psicanálise como tratamento das afecções mentais, de forma que a associação livre sustenta todo o dispositivo analítico, trazendo o sujeito à palavra para simbolizar as moções pulsionais recalcadas.

Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958/1998d), Lacan propõe ainda que a escuta do sujeito se paute a partir de uma direção, a qual de modo algum pode ter a intenção de direcionar a consciência para um caminho já esperado, mas deve propor que o sujeito aplique a regra analítica, a associação livre. Essa liberdade, em si mesma, aponta de saída um paradoxo, dado que o sujeito, ao falar livremente, irá sempre discorrer sobre o que o determina pelas vias abertas pela pulsão. É nesse sentido que a associação livre tem como consequência a produção de um estranhamento diante do sujeito face a seu próprio discurso, em que o analista é capturado pela atenção flutuante.

A associação livre só é possível na condição da transferência. O termo transferência foi caro a Freud, pois reconheceu a importância desse fenômeno apenas a partir da interrupção abrupta do tratamento por parte da paciente Dora (Freud, 1905/2006b). No texto Fragmento da análise de um caso de histeria, Freud (1905/2006b) analisou o caso Dora e apresentou, somente no posfácio da obra, preocupação quanto à relação estabelecida entre ele e a paciente, advertindo- se que o empenho antecipado sobre a transferência teria possibilitado o acesso a novo material mnêmico, assim como diferente direção no tratamento.

"No começo da psicanálise está a transferência" afirmou Lacan (1967/2003b, p. 252). É a partir da transferência que o sujeito é convocado a falar e a resistir à fala, no contexto da situação analítica. O adolescente em privação de liberdade convidado a falar livremente nos atendimentos esbarra em questões institucionais, seja pela constante vigilância dos agentes socioeducativos, seja pela persistente desconfiança nos profissionais que atuam em seu acompanhamento jurídico e acolhimento psicossocial, ou ainda por condicionar sua liberdade à sua fala. A fala, assim, é constantemente ameaçada, o discurso é vigiado para que não se fale mais do que o necessário, para que não se ventile as práticas de violência implícitas e explícitas presentes na relação entre os adolescentes e a instituição. E, o psicanalista não está imune a esses efeitos de poder presentes na relação transferencial, muito pelo contrário, seu poder reside justamente em não se valer destes na operação clínica.

A fala livre intimida o adolescente acostumado apenas a se apresentar a partir de seu crime. Por exemplo, o adolescente que se apresenta a partir do número do Código Penal "eu sou 1571", ou se nomeia como o lugar que o social lhe retribuiu "eu sou bandido". A fala livre também pode ser evitada devido ao impedimento próprio da criminalidade, pois ao sugerir que fale o adolescente pode se considerar "cagueta2", cuja transgressão à ordem de ferro do crime, que impede denunciar os parceiros e atos criminais, é cobrada com a morte. Ser "cagueta" é um ato ilícito para as relações estabelecidas na criminalidade. Ao falar, o sujeito trai o grupo, sendo a traição restaurada com seu eterno silêncio, a morte. O convite para falar livremente é timidamente aceito por alguns, e recusado cínica ou veementemente por outros.

A fala, porém, por estrutura, nunca é livre, uma vez que:

. Primeiro, sempre se apoia na estrutura da linguagem, condicionada por sua sintaxe e seu léxico;

. Em segundo lugar, por operar a partir dos destinos da pulsão e das vias de satisfação e de sofrimento, que determinam os percursos pelas quais a fala se organiza para cada sujeito;

. Terceiro, pelo fato de o ato de fala se articular em torno de resistências inconscientes que trazem à baila os elementos recalcados e inacessíveis que produzem o mal-estar subjetivo;

. Quarto, por estarem, nas condições institucionais, submetidas a um determinado regime de saber-poder;

. E, finalmente, por se articularem a partir de discursos de dominação e adestramento que politicamente alocam o sujeito a condicionantes históricos, econômicos, sociais e simbólicos.

Como operar com a transferência e a clínica psicanalítica nessas condições? Sabemos que os adolescentes falam, mas com cuidado, medindo palavras, resistindo à morte. Falam sobre as inúmeras formas de violência, sobre os homicídios, os roubos, as mulheres, os filhos, a saudade da família, sobre a baixa escolaridade e as dificuldades de aprendizagem, falam também sobre o futuro, que nem sempre há. Falam sobre o dinheiro que o envolvimento com o tráfico proporciona, e a possibilidade de comprar uma adolescência de festas, carros, drogas e mulheres, de "adrenalina". O envolvimento com a criminalidade parece negociar a compra de um padrão de consumo capaz de sustentar uma vida de prazeres inacabáveis. Para o adolescente, a criminalidade tem a função de nomear um lugar no social – "vida loka" –, no qual é possível vermos também perspectivas de ascensão e visibilidade, como "quero crescer no crime". Para que o adolescente pobre tenha acesso a esse mundo de gozo ininterrupto, a criminalidade oferece vias rápidas, conforme um adolescente indicou: "para ter tudo isso é preciso roubar", e para roubar "é preciso se acostumar com a violência".

As expressões "eu sou 157" e "eu sou bandido" apresentadas anteriormente remetem à questão própria da adolescência, que tenta responder psiquicamente aos apelos societários e às exigências pulsionais inconscientes, a partir do percurso construído na infância. Lacan (1950/1998a) nos indica que as superações dialéticas na constituição do eu serão tanto mais incisivas quando frustradas, e mais resolutivas pela via das identificações, quando superadas. Assim, testemunhamos nessas expressões figuras de linguagem através das quais o adolescente se anuncia como sujeito ao outro, através de processos identificatórios, pelos quais responde para si, apoiado nos referenciais atribuídos ao Outro, acerca de um saber possível de ser elaborado sobre seu ser.

Dessa maneira, ser "157" ou ser "bandido" oferecem bordas para a enigmática questão acerca de seu ser, a qual é formulada inconscientemente no endereçamento que o sujeito dirige ao Outro, enquanto estrutura simbólica de reconhecimento. Esta se refere à formulação inconsciente extraída por Lacan na expressão literária "que queres?" ("Che vuoi?"). A questão foi apresentada por Lacan (1964/1998e) em seus estudos sobre a formação do desejo, e parte da condição fundamental de alienação do sujeito frente ao próprio desejo inconsciente, acessado de maneira invertida e dirigida ao Outro, já que é sempre referida a seu enquadre. Ao responder à questão "que queres?", abre-se a condição de trabalho clínico para assunção do desejo, dessa maneira alienado em sua estrutura originária.

Além, de indicar um lugar diante do desejo do Outro, as expressões "eu sou 157" e "eu sou bandido" apontam para a construção de ideais, pontuando a dimensão imaginária do lugar social a ser ocupado. A expressão "eu sou 157" indica também sobre a condição de não pertencimento do adolescente, do não-lugar, pois ele se nomeia como um número do Código Penal Brasileiro, passando a ser um objeto de um código que é atribuído ao adulto e não ao adolescente. Quando comete um crime, a ação do adolescente é indicada nos prontuários jurídicos com a palavra "análogo", vemos, por exemplo, expressões semelhantes a: "o adolescente cometeu ato infracional análogo ao art. 157 do CP". Isso porque, o Código Penal é aplicado ao adulto, enquanto que, para o adolescente, regem os parâmetros estabelecidos pelo ECA. Desse modo, a expressão indicada leva-nos a considerar que o adolescente se identifica como um número, objeto de um código, ao qual ele não pertence juridicamente. Consideramos também a respeito da possibilidade de achatamento da subjetividade desses adolescentes, uma vez que tais expressões sugere o reconhecimento sobre a aproximação entre o código e o não-lugar de pertencimento, movimento que pode ser um modo de responder à inscrição junto ao Outro social. O sujeito, portanto, anuncia ser aquilo que ele não é, ou seja, aquilo que ele lê como sendo o que responde à demanda invertida do Outro social para a questão "que queres?".

A identificação, em psicanálise, diz respeito ao processo central de constituição psíquica. Freud (1933/2006e) indicou que a identificação é um conceito base para o processo de constituição da personalidade psíquica, e, embora, insatisfeito com as elaborações apresentadas no texto A dissecação da personalidade psíquica, presente na obra Novas Conferências Introdutórias sobre a psicanálise (1933/2006e), afirmou que a identificação é o processo de transformação da relação com os pais no supereu, cujo núcleo é formado pela introjeção da autoridade paterna no eu. A identificação estaria, portanto, relacionada à articulação entre os ideais e as formações narcísicas. Nas palavras de Freud (1933/2006e), a identificação é "a ação de assemelhar um ego a outro ego, em consequência do que o primeiro ego se comporta como o segundo em determinados aspectos, imita-o e, em certo sentido, assimila-o dentro de si" (p.44).

Lacan (2003a) desenvolve em seu nono seminário o conceito de identificação, reconhecendo-a como a relação entre sujeito e o significante, ou seja, o modo como o significante se inscreve e produz um efeito no sujeito, trazendo como marca o traço unário e, por consequência, ressonâncias da relação com o Outro. O significante apresenta vários modos de inscrição no sujeito, um deles seria a forma imaginária. Ao anunciar "eu sou 157" e "eu sou bandido", o sujeito propõe sujeição à imagem representada como ideal. A imagem construída em torno da sentença oferece imagem especular ao sujeito, e porta a imagem do Outro, representado pela entrada no crime, lugar imaginário em que o sujeito buscará respostas para sua imagem e existência a partir daquilo que ele não é.

O curso do desenvolvimento requer desligamento da autoridade dos pais, que no momento da puberdade é substituída por imagens ideativas e valorizadas pelo sujeito, independente da realidade que lhe é apresentada (Freud, 1909/2006c). Nesse sentido, é próprio da adolescência a reconstrução de ideais. Alberti (2010) esclarece que na adolescência o sujeito, ainda em constituição, desempenhará esforços para o processo de separação dos pais imaginados e idealizados, sendo necessário o desligamento do ideal das referências infantis. Nesse período, o sujeito é convocado a um longo trabalho de elaboração de escolhas e da falta no Outro. O Outro, como lugar de identificação do sujeito, será formado pela intrusão do significante.

A adolescência é marcada, portanto, por uma espécie de não-lugar no sentido identificatório, sendo por esse motivo que o sujeito buscará estratégias de inscrição no laço social, em que o crime pode ser uma delas. Na busca de afirmação de si, o adolescente endereça-se a um Outro suposto saber para produzir um saber possível sobre si mesmo. Esse Outro pode ser ocupado pela criminalidade, cuja imagem ideal construída é incorporada pelo líder do tráfico (Guerra, Soares, & Pinheiro, 2012). Desse modo, a inserção na criminalidade propõe um lugar de identificação para o sujeito adolescente, em que o líder do tráfico, ou "os maiores no crime", ocuparia para o sujeito a função de orientação ou de autoridade, oferecendo como resultado metafórico um modo de inserção do sujeito no laço social.

Na sociedade de consumo, acrescenta-se que é preciso ter sempre mais, é preciso "crescer no crime", despossuir o lugar de limite e orientação do elemento regulador para ocupar o ideal de todo-gozador, escrito pela possibilidade ilusória de tudo possuir que o consumo oferece. Na busca desenfreada pela totalidade, vemos que "para ter tudo isso, é preciso roubar", de modo que a associação ao crime pode ser uma forma de comprar uma adolescência que não pertence à pobreza. A adolescência almejada tem "tudo" e, para acessá-la, é preciso roubar a adolescência de outro, padrão a ser raptado como via de acesso ao gozo.

Para conseguir essa forma de adolescência "é preciso se acostumar com a violência". Prazer e violência se relacionam de modo muito estreito e fugaz. Ter acesso a essa forma de adolescência também pode ser fatal, pois se aproxima de forma imediata da violência e sua banalidade. A violência apresenta-se como uma intrusão a qual é preciso se acostumar, ao mesmo tempo, em que o adolescente parece fazer uso dela para se manter no crime. Acostumar- se com a violência parece ser um modo de existir, e resistir como sujeito, diante do encontro com a morte subjetiva e social.

 

Ressonâncias da resistência na clínica-política

A psicanálise nos espaços institucionais faz referência à construção de dispositivos clínicos para a escuta analítica fora do conhecido campo da clínica psicanalítica, partindo da experiência do sujeito em reconhecer, através de seus significantes, outra relação consigo, com o laço social e com a alienação ao Outro. A escuta do adolescente em privação de liberdade, portanto, parte da proposta do fazer clínico em psicanálise, levando-se em consideração as dimensões que perpassam o laço entre o analista e o sujeito, uma vez que rompe o silêncio posto ao sujeito quando em privação da liberdade. A escuta do adolescente apreende a dimensão de narrar o ato como efeito e produto da adolescência, as significações do ato para o sujeito em constituição e a ampliação da prática em psicanálise como ação política. Ao ocupar outros espaços, a clínica psicanalítica fundamenta sua ênfase em se construir como uma clínica da fala, onde está o sujeito e, consequentemente, sua angústia e seu sofrimento.

No Brasil, ainda são recentes as pesquisas sobre a atuação profissional de psicanalistas nas políticas públicas, tendo muito o que contribuir para as intervenções nesses contextos (Souza; Moreira, 2014). No campo social, o psicólogo orientado pela teoria psicanalítica sustenta sua prática nos princípios basilares da psicanálise, em que importantes grupos de trabalho e pesquisa têm sustentado essa perspectiva de aplicação do saber psicanalítico em campos que ultrapassam as delimitações do consultório. Essa proposta amplia as possibilidades do exercício psicanalítico e considera o redimensionamento de seus dispositivos de intervenção. Dessa forma, torna-se, também, importante reconhecer a psicanálise como uma teoria que contribui com questões sociais e intervém junto à realidade dos adolescentes envolvidos em atos infracionais (Melgaço; Moreira; Araújo; Vasconcelos; Taveres; Pompeu, 2014).

A partir da escuta dos adolescentes envolvidos com a criminalidade, coloca-se a necessidade de localizar sua posição de sujeito, ou seja, o modo de alcançar satisfação com os atos infracionais e a implicação destes com suas justificativas e queixas (Souza; Moreira, 2014). Assim, é importante considerar sobre as ressonâncias da fala dos adolescentes através da escuta do analista em relação ao conceito de resistência. Isso porque, de um lado, os adolescentes resistem à mortificação institucional e às vulnerabilidades sociais que contextualizam o ato infracional e, por outro, o analista, em sua escuta, também resiste ao incômodo produzido pelo estranhamento frente ao relato dos crimes que, por muitas vezes, portam narrativas de horror. Há, portanto, declinações dos modos de resistência que precisam ser enfrentados nessa modalidade da clínica psicanalítica, para que o analista não caia no engodo da neutralidade e se implique como causa na condução e direção do tratamento.

O termo resistência porta ambiguidade na obra psicanalítica, pois ao mesmo tempo em que indica impedimento, impossibilidade de acesso aos conteúdos inconscientes e, por consequência, resistência ao tratamento, a análise das resistências é o fundamento construído por Freud para a construção da terapêutica psicanalítica. Lacan (1953/1998b) revela que a análise da resistência é um fundamento importante para a técnica da psicanálise e foi muito trabalhada por Freud como forma de acionamento das ressonâncias da fala. A definição inicial do termo resistência permitia a Freud manter o diálogo a nível de uma conversa, em que o sujeito perpetua sua sedução e esquiva.

Freud apresentou o termo resistência pela primeira vez na teoria psicanalítica no texto Os estudos sobre a histeria (1893-1895/2006a), no qual ao se atentar para o relato do caso clínico de Elizabeth von R., considera que a paciente oferecia resistência à reprodução de suas lembranças. A resistência, portanto, faz referência à força contrária à tentativa das representações psíquicas em transpor o isolamento promovido pelo recalque, a fim de impedir o trabalho de recordação, atuando para evitar a mudança no estado do paciente, uma vez que essa alteração resulta em um trabalho ainda mais laborioso que o tratamento.

Da ambiguidade que o termo resistência porta quando implicado em uma clínica com dimensões políticas mais diretas e evidentes, podemos compreendê-la como a forma que o sujeito encontra para não se submeter à inserção do significante, decorrente do processo de identificação, imposto de maneira forçada aos adolescentes autores de ato infracional, bem como uma forma de fazer-se existir diante dessa inevitável intrusão. A resistência, que suprime a fala dos adolescentes, aparece como um modo de manter inalterada a ordem para a inserção na criminalidade, pois para suportar essa entrada é preciso manter inerte o efeito que a violência provoca.

Para se inserirem na criminalidade, os adolescentes precisam reconhecer que o acesso é marcado pela violência, cuja entrada viabiliza os movimentos de identificação, mas também os de resistência. O movimento é apresentado da seguinte forma: para ser algo para alguém é preciso ser alguma coisa que o outro espera, então é preciso "ser 157", recebendo o lugar de "bandido". Todavia, esse lugar não é cedido, precisa ser roubado, uma vez que para crescer no crime e ser reconhecido por alguém é preciso que se roube do outro o lugar privilegiado de poder "tudo". Estar nesse lugar em que se pode tudo, que não é dado de antemão, mas roubado, é preciso que seja subtraído do outro por meio da violência, sendo necessário se acostumar com esta. O desejo de "crescer no crime" traduz, portanto, um modo de ser reconhecido pelo Outro, enquanto lugar que oferece o meio de gozo ilimitado.

Nesse sentido, podemos compreender que para se inserir nesse discurso, é preciso resistir à ressonância da violência. A resistência, aqui, tem o efeito de fazer emergir o sujeito em desidentificação com o que ele anuncia ser a partir da imagem capturada no Outro, enquanto lugar de identificação no crime, portador de significantes que nomeiam socialmente o sujeito. O processo de separação dessa lógica alienante implica na divisão do sujeito quanto ao seu desejo, já que é orientado de maneira mortífera e irrefreado quanto ao gozo. Implicar o sujeito de outro lugar, tem como consequência admitir que esses significantes alienantes o localizam a fim de se abrir o convite à fala que permita seu deslocamento em relação às identificações imaginárias.

Esse trabalho, entretanto, não termina aí. Segue com a divisão subjetiva que, fazendo vacilar os significantes da cultura impostos ao corpo adolescente pela via da identificação, permite que o sujeito aceda a questões acerca de seu desejo, às reformulações sobre seu ser de gozo e às experimentações outras que não aquelas referidas ao crime – condição necessária a uma dessubjetivação alienante na aposta clínica do psicanalista. A direção da escuta, portanto, pretende reconhecer que esses adolescentes estabeleçam uma relação menos alienada e mais desejante.

 

Considerações finais

Este estudo foi desenvolvido a partir da experiência com a escuta de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade, e objetivou elaborar reflexões sobre a tensão presente entre a privação de liberdade e a proposta de escuta preconizada pela técnica psicanalítica que privilegia a liberdade de fala. Para isso, buscamos analisar sentenças anunciadas pelos adolescentes, nas quais identificamos a relação entre identificação e resistência. O primeiro termo apresenta os modos subjetivos de inserção no crime e tentativa de reconhecimento do Outro para que o sujeito possa oferecer uma resposta subjetiva à construção dos ideais, o segundo termo reconhece os movimentos subjetivos necessários para sustentar uma separação do primeiro processo.

Percebemos que, na relação transferencial, o sujeito é convidado a falar livremente, mas esse convite apresenta o paradoxo da resistência, pois o termo e seus efeitos inviabilizam o acesso aos conteúdos inconscientes. Ao mesmo tempo, resistir implica a possibilidade de desalienar- se, remodulando o termo na clínica política que a psicanálise empreende em contextos institucionais. Assim, falar livremente sobre o envolvimento com o crime é romper com sua própria cultura subjetivada, além de esbarrar no temor diante da morte, e por isso o adolescente precisa se acostumar com a violência, para evitar o acesso aos efeitos que ela provoca. Evita- se falar, porque o retorno da violência é temido pelo sujeito, uma vez que a morte é apresentada para aqueles que falam mais que o necessário. A fala livre é evitada por estar aprisionada ao aparecimento da morte e à revelação da violência.

No contexto da relação transferencial, enfim, encontramos o impasse da associação livre, pois é impossível acessar os conteúdos do inconsciente devido à lógica estrutural e ao mecanismo do recalque. Da mesma forma, nos contextos de atendimento com adolescentes privados de liberdade, e envolvidos com a criminalidade, encontramos a resistência à fala livre, acrescida à lógica com a qual esses adolescentes se identificam, em especial a fixação em uma lógica de reconhecimento do Outro pela fidedignidade ao silêncio sobre a violência para se inserem na criminalidade, além dos elementos estruturais intrínsecos ao ato de fala.

Por fim, podemos concluir que a escuta dos adolescentes em privação de liberdade amplia as experimentações dos adolescentes diante de seus modos de gozo e inserção no laço social, em que a expectativa de fala livre se torna impossível. Isso porque estamos, pela inserção da clínica psicanalítico no espaço da socioeducação, diante da tensão existente entre a busca de identificações, as exigências pulsionais e a o envolvimento dos adolescentes com a criminalidade, o que exige do analista um trabalho delicado de escuta. Essa escuta deve estar direciona para a abertura à fala e à circulação de novos elementos significantes na construção de outras lógicas, que ampliem as condições de inserção no laço social diferentes daquelas restritas à oferta feita pelo ambiente criminal.

 

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Recebido em maio/2019 – Aceito em outubro/2019.

 

 

1 Número do artigo do Código Penal Brasileiro para a prática de roubo.
2 Jargão que indica a pessoa que denuncia outros, que transmite informações sigilosas.

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