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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.22 no.1 São Paulo jan./jun. 2019
ARTIGOS
Impacto da microcefalia no subsistema fraterno por meio do teste da família: estudo de caso
Impact of microcephaly on the fraternal subsystem through family testing: case study
Ana Luiza Santos Ramalho Beirão Barata1; Julia Saturno Santos2; Juliana Monteiro Costa3; Leopoldo Nelson Fernandes Barbosa4; Eduarda Pontual Santos5
Faculdade Pernambucana de Saúde, Recife/PE
RESUMO
O aumento no número de casos de crianças com microcefalia no Nordeste do Brasil gerou um estado de alerta diante da proliferação do Zika Vírus. A microcefalia é uma má-formação que impede o desenvolvimento adequado. Segundo o Ministério da Saúde (2018), entre 2015 e 2018, foram confirmados 3.267 casos de alterações no desenvolvimento por infecção de Zika Vírus no Brasil, sendo o maior volume no Nordeste devido ao clima quente que favorece a proliferação do vírus. Pode-se compreender que a chegada de uma criança com microcefalia traz a necessidade de reconfiguração em todo o sistema familiar e, consequentemente, em mudanças na rotina e nas relações entre os seus membros, gerando demandas especificas para a equipe de saúde. O presente estudo tem como objetivo compreender o impacto que uma criança com microcefalia causa no subsistema fraterno e a repercussão deste fenômeno na relação materna.
Palavras-chave: malformação congênita; teste do desenho da família; relações familiares; intervenção precoce.
ABSTRACT
The increase in the amount of cases of children with microcephaly in Brazilian Northeast has provoked a state of alert about the proliferation of Zika virus. Microcephaly is a malformation that hampers proper development. According to the Ministry of Health (2018), between 2015 and 2018, 3.267 cases of alterations in growth caused by Zika virus infection were confirmed, the largest share of them in Northeast, due to the hot climate that favors the proliferation of the virus. The arrival of a child with microcephaly brings a need of reconfiguration in the family system, and consequently some changes in routine and relations between its members, generating specific demands to the health team. The goal of this study is to understand the impact caused by a child with microcephaly in the fraternal subsystem, and the repercussion of this phenomenon in the maternal relation.
Keywords: congenital malformation; family drawing test; family relationships; early intervention.
Introdução
Em 2014, a Organização Mundial de Saúde decretou alerta de estado de emergência internacional em relação ao aumento da população de crianças nascidas com Microcefalia pela proliferação do Zika Vírus. No Brasil, entre agosto e outubro de 2015, os primeiros casos de recém-nascidos com microcefalia foram notificados. O país foi o primeiro a identificar uma possível relação do número de casos de microcefalia neonatal associada à suspeita de infecção pelo Zika vírus.
A microcefalia é uma malformação congênita na qual o cérebro não se desenvolve de forma adequada, proporcionando atrasos em nível neuropsicomotor. Caracteriza-se por um perímetro cefálico inferior ao esperado para a idade e sexo, podendo estar associada a malformações estruturais do cérebro desde o nascimento ou provir de falhas no crescimento normal do perímetro cefálico pós-natal.
Segundo o manual publicado pela Organização Mundial de Saúde (2014), além das alterações físicas, a microcefalia está associada a alterações cognitivas e/ou motoras que variam de acordo com o nível de comprometimento neurológico. O acometimento desta anormalidade cerebral pode variar entre atrasos moderados do desenvolvimento até deficiência motora e intelectual severa. Estima-se que 90% dos casos apresentem comprometimento cognitivo. Em alguns casos, as funções sensitivas da audição e da visão também são afetadas.
O nascimento ou a chegada de um novo membro altera todas as relações do sistema familiar, exigindo a reconfiguração de sua dinâmica, e, consequentemente, dos papéis exercidos por seus componentes. Conforme Pereira e Fernandes (2010), o novo membro se apresenta com características e necessidades próprias, de forma que a família passa por um período de aceitação e de adaptação. Alguns dos aspectos afetados com o nascimento de um novo filho são: a rotina da família, a rede de apoio, a divisão de trabalho entre os seus membros e as dinâmicas das interações já existentes.
A existência de um membro diferente atinge toda a família enquanto sistema, tornando seus membros vulneráveis nos aspectos psicológico, social, cultural e econômico. Entre os efeitos emocionais dos cuidados necessários, Catana (2013) destaca o stress psicológico em decorrência do isolamento social, do atraso no diagnóstico, a incerteza sobre o futuro, a falta de informação, a dificuldade em obter os cuidados de saúde adequados e, em alguns casos, a interferência de dificuldades financeiras.
Os estudos de Pereira e Fernandes (2010) e Yamashiro e Matsukura (2014) demonstram que, quando o novo membro é portador de alguma deficiência ou doença congênita, é importante se considerar dinâmicas distintas, que acordam com a modalidade e o grau da deficiência em questão. Esta realidade pode implicar em diferentes sentimentos nos membros da família e alterar a estrutura familiar estabelecida antes do nascimento do novo filho. Por isso, há necessidade do direcionamento da atenção não apenas a criança com necessidades especiais, mas também para os diversos membros do sistema familiar.
A importância da orientação dos profissionais de saúde para o acolhimento dos familiares de crianças com microcefalia é citada por Oliveira e Sá (2017), sendo necessário para suas intervenções a compreensão do processo de luto proveniente das expectativas criadas pela idealização do filho e o conflito gerado pelo que se apresenta na realidade. Os autores apontam que os profissionais podem auxiliar a família neste processo de ressignificação, criando um novo olhar acerca da deficiência, abordando as potencialidades para que os pais possam proporcionar um ambiente adequado para o desenvolvimento do filho com microcefalia.
Bruce, Quircke e Shaw (2010) destacam alterações na dinâmica familiar devido ao nascimento de um membro portador de doença crônica. São elas: mudança de papéis na família; reorganização das vidas de todos os membros; aumento das necessidades diárias de cuidados; tensão na gestão dos recursos da família; luto pela perda da criança originalmente idealizada; equilíbrio com as necessidades do resto da família; pais tidos como peritos na doença do filho, providenciando educação e defesa na comunidade.
Silva e Dessen (2014), discorrem sobre a questão dos impactos de um cenário de deficiência no sistema familiar, apontando as diferentes necessidades de cuidados especiais demandadas por uma criança com deficiência, devido as suas limitações. Segundo os autores, estas podem representar uma fonte adicional de estresse tanto para os pais quanto para os irmãos. Diante disso, estes se tornam mais vulneráveis a conflitos e a falhas de comunicação nas interações familiares.
Oliveira e Sá (2017) apontam que a rotina de cuidados e o estresse refletem na dinâmica familiar não só pelo isolamento social e a diminuição de atividades de lazer, como também devido à sobrecarga de gastos no orçamento familiar. Programas familiares passam a ser dificultados pelo cansaço físico frente à rotina de cuidados e pela falta de acessibilidade dos ambientes públicos.
Conforme exposto por Costa & Dias (2012), a Teoria Geral dos Sistemas proposta por Bertalanffy, acompanha o pensamento complexo ao se tratar de uma abordagem sobre princípios universais aos diversos sistemas de natureza física, biológica e sociológica. Diante disso, a avaliação da família tem um grande valor nesta abordagem, pois passa a ser considerada como um todo, compreendendo os indivíduos dentro dos contextos que vivem bem como as interelações entre eles.
De acordo com Pereira e Fernandes (2010), a família é o microssistema que traz implicações mais significativas no desenvolvimento do sujeito. Dentro desse sistema, há várias relações recíprocas nas quais cada membro influencia e é influenciado pelos outros.
A fase do desenvolvimento do irmão mais velho interfere no processo de elaboração do nascimento de um novo membro com deficiência. Conforme Bruce et al. (2010), quando o irmão sadio está em fase escolar ou é adolescente, o maior desafio já não é a separação dos pais em decorrência dos cuidados ao irmão mais novo, mas, se situa no medo de perder o controle, a autonomia e a identidade dentro de determinado grupo. Isso pode ocorrer por diversas razões, dentre elas através de atitudes discriminatórias por parte do grupo que faz parte ou por exclusão na participação do cuidado do irmão doente.
Paulo (2006) menciona o termo cataclisma afetivo para designar o cenário vivido pelo primogênito com a chegada de um irmão na medida em que dividirá diretamente o seu espaço, as suas vantagens e situação de vida. Concordando com o exposto, Rocha (2009) e Goldsmid & Féres-Carneiro (2011) acrescentam que o relacionamento fraterno vai se constituir a partir de complexa teia de emoções e sentimentos relativos aos elementos de caráter cognitivo, cultural e social.
A fratria tem início quando o irmão mais velho tem consciência da existência do outro, que pode ser no momento da gravidez. Conforme Rocha (2009) "Tornar-se irmão" é uma experiência peculiar para o primogênito, que "reinava" até o presente momento e deverá se reorganizar a partir dos compartilhamentos e experiências sociais que vivenciará com a chegada do novo membro à família.
O subsistema fraterno, assim como os demais que comportam a unidade familiar, é afetado parcialmente diante da presença de alguma doença congênita ou deficiência. Entre os impactos dessa situação no primogênito, Silva e Dessen (2014) ressaltam: amadurecimento precoce, restrição de tempos para brincadeira, e, o sentimento de cuidado e proteção em relação ao irmão.
Os irmãos de crianças doentes também podem ter atitudes que indiquem fortalecimento diante da situação que estão vivenciando. Bezerra e Veríssimo (2002) apontam que esses comportamentos podem ser expressos em relação a empatia que é dirigida não apenas ao irmão doente, mas as pessoas em geral: a solidariedade que poderá ser manifestada no desejo de ajudar a sua própria família à enfrentar a situação, podendo participar dos cuidados com o irmão ou ajudar a zelar pela casa. O crescimento pessoal é visto quando as crianças manifestam a visão de que a doença do irmão não trouxe só consequências negativas, mas uma oportunidade de reelaborar os valores familiares.
Apesar da possibilidade de ressignificação, há sentimentos e comportamentos que podem ser notados e compreendidos como sofrimento dos irmãos sadios no confronto com o adoecimento do novo membro da família. Alguns desses podem ser caracterizados como: raiva, pois as crianças podem sentir raiva do irmão doente pela atenção de todos estarem centrada nele, o que pode fazer com que este último se sinta prejudicado; culpa, pois muitas vezes as crianças podem nutrir desejos de morte ou sentir raiva do irmão; sentimento de inferioridade também pode ser vivido pois a criança se sente menos importante que seu irmão doente; a solidão e o isolamento poderão ser vivenciados pelo irmão pelo fato de não possuir uma pessoa em casa para conversar ou mesmo não receber atenção dos pais e parentes; a sensação de deslocamento por acreditar que não há espaço para si dentro da família (Bezerra e Veríssimo, 2002).
Ainda sobre os sentimentos vivenciados pelo irmão mais velho, Baltazar, Gomes e Cardoso (2010) descreve sobre o contexto da internação do novo membro da família e a ansiedade desencadeada pelo afastamento materno e o quadro de saúde do irmão. Dessa forma, os autores destacam a importância do acompanhamento psicológico da fratria, bem como a busca de estratégias para minimizar os sentimentos negativos que possam decorrer das consequências de um internamento. Entre elas: orientar para que os pais mantenham dentro do possível a rotina familiar e a inclusão do irmão mais velho no processo de adoecimento.
Os irmãos de crianças doentes, podem servir de suporte instrumental no que diz respeito as atividades diárias, como ir à escola e fazer suas refeições. Cheron e Pettengill (2011) salientam a necessidade de um suporte informativo às crianças e adolescentes, em relação ao contexto de adoecimento do irmão.
O volume de produções científicas acerca do subsistema fraterno é reduzido, especialmente quando se trata da análise das alterações na dinâmica familiar decorrentes da inserção de membros com microcefalia. Para realização do estudo foi selecionado como instrumento o Teste do Desenho da Família elaborado por Corman (1979) que tem por objetivo estudar as relações afetivas no meio familiar. Trata-se de um instrumento de teor projetivo e gráfico sob o enfoque psicanalítico, utilizando a linguagem simbólica para traduzir conteúdos do mundo interno do participante e, com isso, proporcionando a avaliação da dinâmica da personalidade de crianças a partir dos 5 anos de idade e da sua relação com os demais membros da família. Logo, o presente estudo utilizou o Teste do Desenho da Família para compreender o impacto que uma criança com microcefalia causa no subsistema fraterno e a repercussão deste fenômeno na relação materna.
Método
Trata-se de um estudo de caso que teve como instrumento o Teste do Desenho da Família de Corman (1979). A aplicação do teste foi realizada por duas psicólogas, em um encontro, que durou duas horas, com o irmão mais velho da criança com microcefalia. A mãe, que estava presente, foi entrevistada individualmente em ambiente reservado, o que contribuiu para análise do desenho e dinâmica familiar. Ressalta-se que os nomes utilizados, José, Clara e Marisa, no item discussão e resultados são fictícios, preservando o sigilo e anonimato dos participantes.
A coleta de dados ocorreu no primeiro semestre de 2018 no Centro de Reabilitação do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP). A pesquisa foi elaborada seguindo as normas e diretrizes propostas pela resolução 466/12 e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) através do parecer número 2.121.991. Os participantes foram convidados para participar da pesquisa e somente após a compreensão dos objetivos, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e Termo de Assentimento (TA) a pesquisa foi iniciada.
Na aplicação do instrumento, foi entregue ao participante uma folha de papel, lápis e borracha. Após o fornecimento do material necessário, foi requisitado que ele desenhasse uma família; não necessariamente a sua. Ao não delimitar, ele teve a liberdade para fazer a sua própria família ou a que é de seu desejo (família ideal). Assim, é observado como o sujeito trabalha: seus traços, suas hesitações, expressão facial, comentários e a ordem em que fez os membros da família. Ao término da atividade, foi pedido para que o participante identificasse e descrevesse os membros da família, explicando os detalhes que fez e sua relação com cada um deles.
A análise de dados ocorreu a partir de dois eixos: nível gráfico e nível do conteúdo. Em relação ao nível gráfico, foi verificada a amplitude do traço, sua força, o tamanho do desenho, ritmo, localização da figura na folha, se o desenho possuía movimento ou ação, se havia simetria do traço, a qualidade de suas linhas, detalhes do desenho e as reações da criança durante a elaboração do desenho.
No que diz respeito ao conteúdo, foi levado como base a própria família do sujeito, independente da família desenhada. Assim, foram analisadas as tendências afetivas positivas, negativas e ambivalentes, valorização ou desvalorização de cada personagem por meio de aspectos positivos e negativos apontados no discurso do sujeito, omissão de figuras, personagens acrescidas ou canceladas, laços, relação e rivalidade fraterna, relação com os pais e atribuição de seus papéis.
Discussão e Resultados
José, 7 anos, é o filho mais velho de Marisa e Jorge. Além dos pais, faz parte do sistema familiar a irmã mais nova, Clara, de 2 anos, que nasceu com microcefalia. Conforme a metodologia, foi solicitado que ele fizesse o desenho de uma família, não precisando ser necessariamente a sua. Sem hesitar, José optou por desenhar sua própria família conforme ilustrado na Figura 1.
Na análise gráfica, nota-se que o desenho foi executado com a página na direção horizontal, estando localizado na parte superior e direita da folha. Assim, aspectos como expansão imaginativa e espiritualidade podem ser vistos em sua produção. A tendência do desenho para o lado direito da página pode indicar extroversão, necessidade se aprovação social e apoio, próprio da idade e personalidade de José.
A utilização de "Bonecos de palito" com traços curtos, personagens pequenos e pobres em detalhe podem indicar falta de energia ou vazio. Estas características demarcam a possibilidade de inibição, que se faz perceptível em algumas atitudes de José durante a aplicação do teste. Conforme os parâmetros destrinchados por Corman (1979) e Dias (2000), o ritmo das linhas se apresentam de forma rígida e estereotipada, com todos os personagens da mesma forma, só diferindo no tamanho.
Clara é a menor entre todas as personagens, o que pode significar desvalorização e rivalidade fraterna. Além disso, é preciso considerar o aspecto da realidade, tendo em vista que a irmã é menor que ele, tanto em relação ao tamanho quanto à idade.
Em sua imagem, José se representa do mesmo tamanho que o pai. O primogênito, muitas vezes, tem o amadurecimento precoce e restrições de tempo e brincadeiras para dar suporte aos pais conforme estudo de Silva e Dessen (2014). Tal aspecto é percebido durante a entrevista de Marisa quando esta relata que José "assume o lugar do pai" quando ele está ausente.
A qualidade da linha do desenho de José, é curta e reta, podendo indicar impulsividade e humor agressivo. Isto pode ser percebido em seu discurso e no desenho quando coloca uma "bola de fogo" em suas mãos e um zumbi afastado dos demais da família. José diz que o zumbi foi desenhado "sem querer" e que ele está "brabo". Conforme Corman (1979) e Dias (2000), o personagem acrescentado pode representar tendências que a criança não aceita em si, e, por isso, projeta no outro.
Ao colocar uma "bola de fogo" azul, no personagem que desenhou lhe representando, José justificou que iria jogá-la no zumbi. Quando a criança faz um desenho cinético, e coloca o arremesso de algo, o evento pode ser compreendido como competição e rivalidade (Corman, 1979; Dias, 2000). A relação com a sua irmã afirma essa proposição e ele confirma quando a psicóloga pergunta sobre a chegada de Clara. Dando continuidade à explicação do desenho, ele diz: "antes eu ficava com ciúme. Agora eu não tou mais (...) eu fiquei só um pouquinho".
Além da viva imaginação, os símbolos não originais podem indicar o desejo de fuga da realidade e de escapar da situação do qual está vivenciando. Tal fato também é percebido no desenho de um carro, que pode significar o desejo de mudança ou de sair de alguma situação, transição. Isso pode ser compreendido a partir da explicação de José sobre o elemento: "quando eu for adolescente painho vai me dar... uma Ferrari".
O traço mais forte se encontra nas figuras do pai e da mãe, podendo ser compreendido como a liberação instintiva de impulsividade e agressividade nessas figuras. Em seu discurso, José traz o desejo de ter um irmão menino e a decepção ao saber da chegada da menina. Além disso, hesita ao desenhar Clara. No primeiro momento, ele diz que "errou" porque desenhou um menino e apaga o desenho da irmã, fazendo-o novamente ao lado. O cancelamento de uma personagem pode ser compreendido como desvalorização daquele membro, bem como indica o conflito entre a tendência projetada e a censura do eu.
A situação descrita pode ser compreendida através da fala de Marisa, pois ao descrever como tem sido a trajetória de José com Clara ela demonstra preocupação com as reações do primogênito. Quando estava grávida, Marisa relata que José desejava um irmão havendo um desinvestimento ao saber que seria uma menina. Apesar desse movimento, Marisa traz em sua fala que José sentiu muito a chegada de Clara, demonstrando ciúme e ficando revoltado.
Sobre o processo de aceitação do filho acerca da condição da irmã, Marisa conta que assim que Clara nasceu mostraram uma foto dela ao irmão, que logo identificou que a irmã não era uma criança normal. Sobre essa vivência ela traz: "Para mim foi um choque. E demorou muito para ele se adaptar a ela. (...) Logo no começo ele não aceitava. Foi muito difícil para mim no começo, com ele. Ele esperava uma irmã normal e não veio uma irmã normal. Ele não queria uma irmã, queria um irmão". Diante disto, nota-se que o luto pela criança idealizada é um processo vivido por todos os membros e não apenas pelos pais, que tem diante do filho com deficiência uma ferida narcísica conforme apontado por Bruce et al. (2010) e Oliveira e Sá (2017).
No desenho, o deslocamento de José em relação aos demais membros da família, e, ao citar que só recebe ajuda da mãe podem sugerir a vivência de deslocamento e de isolamento com a chegada de Clara. Em relação aos sentimentos que podem ser vistos nos irmãos de crianças com alguma patologia, a raiva pela criança doente estar recebendo mais atenção, a culpa por algumas vezes nutrir desejos de morte do irmão e inferioridade por se sentir menos importante que seu irmão doente.
Outro aspecto é quando José discursa sobre a sua relação com o pai (Jorge). Ele hesita ao comentar sobre a relação, informando, depois, que Jorge não brincava com ele, pois sempre "chega dorminhoco (do trabalho)". Além disso, ele traz que não lembrava como havia sido a chegada de Clara em casa, mas que ela só queria ficar com sua mãe, deixando claro que se sentia sozinho nesse período.
A análise corrobora com alguns estudos os quais apontam que, sentimentos de deslocamento, solidão e isolamento também podem ser vivenciados pelo irmão mais velho, já que não recebe atenção dos cuidadores como antes (Bezerra e Veríssimo, 2002; Cheron e Pettengill, 2011).
As diferentes necessidades de cuidados especiais pelo irmão mais novo, devido as suas limitações, podem representar uma fonte de estresse para todos, incluindo neste contexto o primogênito que, não obstante, pode se sentir em segundo plano conforme os estudos de Silva e Dessen (2014) e Catana (2013). Tal aspecto é notado quando Marisa traz o relato acerca da primeira internação de Clara:
Foi quando ela ficou internada pela primeira vez. Com quatro meses, depois da crise convulsiva. Pra mim foi o tempo mais difícil. Eu fiquei o tempo todo com ela e meu esposo trazia ele (José). Eu descia pra falar com ele. Eu ficava com ele e meu esposo ficava em cima com ela (Clara). E eu acho que fugiu do controle da gente não dar mais atenção a ele. Por causa do problema de Clara, a gente foi muito pra ela e não prestava mais atenção devida a ele. Tudo isso foi uma bola de neve na vida da gente.
No seu desenho, José se colocou longe dos pais, o que pode ser explicado pelo sentimento de inferioridade, por se achar menos importante que a irmã. Na maior parte das vezes, as figuras parentais vêm em primeiro lugar, seguido dos filhos, estando todos os membros separados por uma pequena distância, significando que cada um tem seu espaço na família. O fato dele e da irmã estarem longe dos pais pode refletir: agressividade contra a família, sentimento de exclusão e conflito com os membros (Corman, 1979; Dias, 2000).
Outra passagem do discurso de Marisa evidencia as consequências da reestruturação familiar. Em determinado momento, José fala para os pais: "Eu não aguento mais essa vida. Porque tudo isso aqui? Antes eu era uma criança só. Uma criança feliz. E porque ela teve que aparecer?". O seu discurso pode ser compreendido à luz do conceito de cataclisma afetivo, que busca descrever cenário vivido pelo primogênito com a chegada de um irmão com quem terá que dividir diretamente o seu espaço, as suas vantagens e situação de vida (Paulo, 2006). O sentimento de deslocamento por tal contexto também fica evidente quando Marisa explica algumas mudanças na família após a chegada de Clara: "José era o xodó da casa da minha mãe, de todos os sobrinhos. (...) Depois que Clara nasceu, pronto. Clara é o xodó não só da casa da minha mãe, mas de toda a família".
Quanto a reorganização da família em torno da rotina de cuidados de Clara e as repercussões na vida de todos os membros, Marisa revela o estresse causado neste período tanto para ela quanto para José. Para descrever, ela relata um episódio em que Clara ganhou um presente do tio:
Nesse dia, ele ficou muito irritado. E, depois a gente foi pra casa. Ele disse muita coisa. Pronto, ele desabafou. Aquilo que tava guardado. Ele explodiu feito um adulto. Uma pessoa que quando tem aquela mágoa, aquela raiva. (...) Ele tava com os brinquedos na mão. Ele jogou na parede. Ficou com aquela raiva: "porque tudo aqui é para Clara. Só Clara dorme na cama. Só Clara toma banho primeiro. Só Clara que come primeiro.
Algumas das mudanças sobre o cotidiano da família são a atenção e os cuidados com a criança com deficiência e a reorganização de trabalho e papéis entre os seus membros, bem como a inclusão do irmão mais velho nos cuidados com o novo membro conforme estudos (Bruce et. al., 2010; Pereira e Fernandes, 2010). Tais aspectos ficam evidentes quando Marisa relata que após o contato com o Serviço de Psicologia teve uma conversa com José sobre os cuidados da irmã:
A partir de hoje, pra isso não acontecer, você vai ajudar a mamãe a cuidar dela. E assim eu fui mudando a rotina. A gente incluía mais ele. Muitas vezes que ia pra lanchonete, saía os quatro. Tinha vezes que a gente não saía com Clara. Deixava ela na casa da minha mãe, com as minhas irmãs, e saía com ele. (...) Eu disse ao meu esposo: "mesmo que a gente chegue cansado, enfadado, vamos dar atenção a ele (José). (...) Agora a gente janta todo mundo na mesa. Almoçamos na mesa. Tomamos café na mesa. Todo mundo senta na mesa. (...) Aí mudamos, Clara não come mais primeiro. Comemos todos juntos. (...) A gente mudou a rotina e eu vi uma melhora muito boa.
Nesse sentido, pode-se pensar que Marisa começa a ressignificar o processo da chegada de Clara na família frente à reação de José. A transformação na posição para o enfrentamento da reconfiguração da dinâmica familiar ocorre aos poucos e, ao longo do tempo, a vivência permite reelaborar os valores da família (Bezerra e Veríssimo, 2002). As mudanças iniciais apontadas por Marisa quando descreve as modificações na dinâmica e na rotina familiar podem ser compreendidas à luz do processo de ressignificação, também citado por Oliveira e Sá (2017).
Considerações Finais
Na díade participante do estudo, pode-se verificar que a chegada de uma criança com microcefalia, trouxe a necessidade de uma reconfiguração em todo o sistema familiar e, consequentemente, de mudanças na rotina dos seus membros. Tal fato pode ser percebido diante das alterações apontadas pelos entrevistados e na própria relação entre eles, tais como: a relação de amor e ódio do primogênito, afastamento da mãe do primogênito e os sentimentos e atitudes que descrevem o ciúme da irmã.
Na tentativa de responder ao objetivo geral da pesquisa, percebe-se que foi difícil apontar apenas uma única visão do primogênito sobre sua dinâmica familiar. No geral, pode-se compreender que diante da chegada de um membro com microcefalia, o irmão mais velho sente o afastamento dos pais, principalmente da mãe, pois esta passa grande parte do tempo com o filho com microcefalia em hospitais, terapias e tentando suprir suas demandas de cuidados em casa.
Nota-se que o processo de luto pelo conflito entre a idealização e a realidade do novo membro também é vivido pelo irmão mais velho. Logo, é importante o olhar para este público e a produção de trabalhos para o desenvolvimento de intervenções adequadas a essa população, visando à promoção da saúde.
Na literatura não há material que aborde a temática da dinâmica familiar de crianças com microcefalia e os seus impactos no subsistema fraterno, sendo este o primeiro estudo. Nos resultados, sobressaíram aspectos negativos do funcionamento da família de crianças com microcefalia no sentido de chamar atenção para subsistema fraterno e os processos vividos pelo irmão mais velho. No entanto, é importante considerar, que com o aumento da produção cientifica sobre o tema será possível verificar com maior profundidade a adaptação da família à criança com microcefalia, apontando fatores positivos que costumam surgir ao longo dos anos a partir da ressignificação do luto e das demandas do novo membro com microcefalia.
Os dados desta pesquisa mostraram pontos importantes diante da visão do primogênito sobre a chegada de uma criança com microcefalia e da figura materna acerca do subsistema fraterno. Diante dos resultados, é importante se compreender o sistema familiar de crianças com microcefalia e as suas demandas para que os membros da equipe profissional, que cuida deste público, possam fornecer o suporte necessário aos sujeitos, tanto em termos de tratamentos quanto no sentido da prevenção e da promoção à saúde.
A notícia do diagnóstico da criança com microcefalia causa grande desestabilização na dinâmica familiar e todos os membros de alguma maneira são afetados. As demandas em decorrência do nascimento desencadeiam modificações no comportamento individual e coletivo, como uma tentativa de adaptação do processo de transição da família com um filho único para uma com dois filhos. Há alterações nos âmbitos mãe-primogênito-pai, na relação conjugal e na relação mãe-primogênito. As mudanças expressivas no comportamento e dificuldades em relação ao ciúme do filho mais velho, requerem uma mudança na rotina familiar para que haja uma melhor adaptação. Incluir o primogênito nos cuidados do mais novo, é uma das formas de levá-lo para mais próximo do irmão e favorecer o fortalecimento do laço fraterno e reaproximação dos membros familiares.
Assim, pode-se dizer que as famílias com uma criança com microcefalia possuem características convergentes a outras famílias, mas que tem desafios a enfrentar justamente pela condição e pelas demandas provenientes da microcefalia. Por se tratar de uma epidemia recente, nota-se a busca pelo aprendizado diário acerca da microcefalia, o que implica em sofrimentos e alegrias para os membros da família. Portanto, os dados obtidos e analisados corroboram com a importância do investimento em estudos que verifiquem os impactos e os sentimentos dos membros da família. Torna-se necessário o desenvolvimento de serviços de apoio para esta população e, para tanto, as pesquisas com tais objetivos podem fornecer subsídios para a melhoria desse suporte.
Os resultados da análise do Teste do desenho da família sinalizam a necessidade da atenção dos Serviços de Psicologia ao sistema familiar. Compreendendo que todos os seus membros são afetados, o acolhimento e a prestação do serviço devem atingir tal extensão. As intervenções podem ocorrer, inclusive, no momento do diagnóstico, assumindo caráter preventivo.
Diante do exposto, faz-se necessária a realização de novos estudos com irmãos e mães neste contexto a fim de investigar o subsistema fraterno e materno e os impactos causados em sua dinâmica. A escassez de referências sobre este público vai de encontro a epidemia nos nascimentos de crianças com Microcefalia ocorrida em 2015. Ademais, os profissionais de saúde devem estar preparados para lidar com esta geração de crianças e com as demandas de sua família, incluindo os irmãos que, conforme evidenciado pelo baixo volume de material encontrado na revisão bibliográfica, não são alvo do olhar de pesquisadores.
Além dos irmãos e mães de crianças com Microcefalia, é importante a produção de novos estudos com os demais membros do sistema familiar. Dentre eles, destacamos as pesquisas qualitativas com o objetivo de avaliar a repercussão da microcefalia na dinâmica familiar como forma de apontar possíveis intervenções voltadas para a prevenção e à promoção da saúde.
Referências
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1 Psicóloga pela Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Pós-graduanda em Clínica Psicanalítica com Bebês pela Faculdade Frassinetti do Recife. Contato: srbb.analuiza@gmail.com.
2 Psicóloga pela Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Pós-graduanda em Intervenções Clínicas na Abordagem Psicanalítica pela Faculdade Frassinetti do Recife. Contato: juu.sat@hotmail.com.
3 Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Docente da Graduação e da Pós-Graduação da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Contato: jullymc@hotmail.com.
4 Doutor em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Docente do curso de Psicologia e da Pós-graduação da Faculdade Pernambucana de Saúde. Psicólogo do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP). Contato: leopoldopsi@gmail.com.
5 Mestre em Saúde Materno Infantil pelo Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP). Docente do curso de Psicologia da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Coordenadora de Psicologia no Hospital da Mulher do Recife. Contato: e_pontuals@hotmail.com.