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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.13 no.2 São Paulo ago. 2011
ARTIGO ORIGINAL
Desenvolvimento de um dicionário personalizado do modelo dos ciclos terapêuticos (TCM) para adolescentes em conflito com a lei
Development of a customized dictionary of the therapeutic Cycles Model (TCM) for adolescents in conflict with the law
Elaboración de un diccionario personalizado del modelo de los ciclos terapéuticos (TCM) para adolescentes en conflicto con la ley
Eduardo Khater; Elisa Médici Pizão Yoshida
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas – SP – Brasil
RESUMO
Objetivou-se desenvolver um dicionário personalizado para aplicação do modelo de ciclos terapêuticos (TCM) a entrevistas de adolescentes em conflito com a lei. O TCM permite análise de textos por computador para identificar momentos-chave de um processo psicoterapêutico ou de uma narrativa com conteúdo emocional e cognitivo. Análises são feitas com o auxílio de um software (CM), com base em listas de palavras de tom emocional e de abstração, chamadas dicionários de estilo narrativo. Foram compiladas palavras de músicas de rap, entrevistas com adolescentes em conflito com a lei (n = 5), gírias e expressões coloquiais para o desenvolvimento de dicionários personalizados. Análises de entrevistas com os participantes utilizando os dicionários personalizados e comparadas com dicionários padrão do TCM sugerem que os dicionários padrão são capazes de identificar temas importantes do ponto de vista emocional. Contudo, os dicionários personalizados permitem um refinamento analítico com a possibilidade de identificação mais precisa de momentos-chave na fala dos participantes.
Palavras-chave: software; aplicações do computador; avaliação psicológica; psicoterapia; mudança.
ABSTRACT
The aim of this study was to develop a customized dictionary for applying the therapeutic Cycles Model (TCM) to interviews of adolescents in conflict with the law. TCM allows computer text analysis to identify key moments of a psychotherapeutic process or a narrative with emotional and cognitive content. Analyses are carried out through a software (CM), based on word lists with emotional and abstraction tone, called narrative style dictionaries. To the development of customized dictionaries, word lists were collected from rap lyrics, interviews with adolescents in conflict with the law (n = 5), slangs, and colloquial expressions. Analyses of interviews with the participants using the customized dictionaries and compared to TCM standard dictionaries suggest the standard dictionaries are able to identify important themes with regard to emotional issues, however, the customized dictionaries allow an analytical refinement as well as a more accurate identification of key moments in the speech of participants.
Keywords: software; computer applications; psychological evaluation; psychotherapy; change.
RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo desarrollar un diccionario personalizado para aplicación del modelo de ciclos terapéuticos (TCM) a narrativas de adolescentes en conflicto con la ley. El TCM permite el análisis de textos por computador para identificar los momentos claves de un proceso psicoterapéutico o de una narrativa con contenido emocional y cognitivo. Los análisis se efectúan con el auxilio de un software (CM), el cual se basa en listas de palabras con tono emocional y de abstracción, llamadas diccionarios de estilo narrativo. Para la elaboración de diccionarios personalizados fueron compiladas palabras de músicas de rap, entrevistas con adolescentes en conflicto con la ley (n = 5), jergas y expresiones coloquiales. Análisis de entrevistas realizadas con los participantes utilizando los diccionarios especializados y comparadas con diccionarios estándar del TCM, sugieren que los diccionarios estándar son capaces de identificar temas importantes desde un punto de vista emocional, pero los diccionarios personalizados permiten un refinamiento analítico con la posibilidad de identificación más precisa de momentos claves en la habla de los participantes.
Palabras clave: software; aplicaciones del computador; evaluación psicológica; psicoterapia; cambio.
Introdução
Apresentam-se os resultados de um estudo exploratório que teve por objetivo contribuir com o desenvolvimento de ferramentas para a aplicação do modelo dos ciclos terapêuticos (therapeutic Cycles Model – TCM) (MERGENTHALER, 1996) em psicoterapias conduzidas com adolescentes em conflito com a lei. O TCM (MERGENTHALER, 1996) é um método de análise de textos por computador que, aplicado a processos psicoterapêuticos, permite identificar momentos-chave na narrativa do paciente, do terapeuta ou de ambos em interação. O termo "momento-chave refere-se a um momento da sessão ou a uma sessão de um processo terapêutico, vistos como clinicamente importantes" (Mergenthaler, 1996, p. 1306). São momentos em que se observam mudanças no comportamento do paciente e que estariam associados à noção de progresso clínico. Considerando que a identificação de momentos-chave no TCM é feita com base em marcadores linguísticos ligados à expressão de emoções e de abstrações, e que a pesquisa teve como foco adolescentes em conflito com a lei, faz-se necessária, ainda que brevemente, uma referência ao papel e às características da comunicação verbal e ao contexto social em que vivem esses adolescentes, para então apresentar mais detalhadamente o TCM.
Em se tratando de adolescentes, a comunicação verbal tem especial importância no estabelecimento das relações sociais e nos papéis desempenhados perante os grupos pelos quais transitam. Além de garantir a comunicação entre seus membros, o linguajar utilizado ajuda na preservação da identidade do grupo e confere ao indivíduo um sentimento de pertinência. Essa função da comunicação verbal é especialmente relevante entre adolescentes autores de atos infracionais, que sofrem um agudo processo de discriminação e preconceito pela sociedade. Para eles, o uso de gírias, expressões e jargões tem ainda a função de limitar a compreensão das mensagens, mantendo-as restritas ao grupo, num movimento de defesa e autopreservação (RIBEIRO, 2003).
A linguagem empregada faz parte de um universo simbólico e parece ter a intenção de fazer com que não sejam compreendidas, principalmente pelos adultos ou por outras pessoas de fora desse círculo social, além de permitir que o locutor se identifique e seja aceito pelo grupo ao qual se dirige. Ademais, nota-se um processo de esvaziamento semântico quando o interlocutor utiliza gírias. A palavra "crime", por exemplo, que ordinariamente está relacionada à violência e à criminalidade, e, portanto, dentro do âmbito da ética, sofre alteração do seu sentido quando substituída por "correria", que para eles significa cometer um ato infracional. O esvaziamento semântico altera a sensibilidade e o conceito de delito perde seu significado e, por consequência, a predisposição para a mudança de condutas. A par das gírias e expressões utilizadas pelos adolescentes, que vale destacar, não se restringem aos autores de atos infracionais, há que se assinalar a relevância das letras de rap, como um fator de socialização de expressões e forma de comunicação que, de certa maneira, padronizam a linguagem dos jovens em diversas regiões do país. Sobre a influência que esse estilo musical pode ter sobre os adolescentes das camadas menos privilegiadas da população, é relevante destacar que suas letras refletem, de forma muito fiel, o vocabulário utilizado por eles ao expressarem suas vivências afetivas, seus valores e modo de compreender o mundo.
Cabe ainda assinalar que as formas de comunicação se desenvolvem e ganham consistência dentro de um determinado contexto social, que não pode ser negligenciado. Conforme refere Broide (2006), a maior parte dos adolescentes autores de ato infracional vive na periferia dos centros urbanos, com sérias dificuldades econômicas, fragilizada em seus laços com a família, com a escola e com a comunidade. Possui baixa qualificação profissional, em um contexto de desemprego, e recebe, a todo instante, propostas sedutoras de seu entorno social, de ganho fácil no tráfico de drogas e/ou outros delitos. Ainda como agravante dessa situação, o território em que vive é pautado pela ausência do Estado e das políticas públicas, o que traz por consequência um contexto propício à infração da lei, com baixa qualidade dos serviços, o abuso do poder da polícia e a hegemonia das regras do tráfico de drogas. Os jovens atendidos na instituição, onde esta pesquisa foi realizada, fazem parte desse estrato da população e enquadram-se, efetivamente, no perfil descrito. Por ocasião da coleta de dados, cumpriam medida socioeducativa de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), que consiste na realização, pelo adolescente, de serviços comunitários gratuitos e de interesse geral, como forma de cumprimento de pena judicial (BRASIL, 1990).
Além disso, o sistema legal implantado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) indica o adolescente como sujeito com direitos e responsabilidades, oferecendo alguns mecanismos de atendimento e responsabilização dos atos ilícitos, denominados medidas socioeducativas. As medidas são aplicadas de acordo com a característica da infração e da disponibilidade de programas que atendem esses adolescentes. A execução dessas medidas diferencia-se muito, de acordo com a entidade (CARVALHO, 2009). As práticas podem ser encaminhar os adolescentes para executar atividades operacionais que não estão associadas a qualquer princípio educativo – o que desabona o caráter pedagógico e salienta uma função repressora e punitiva – ou, entre outros, prepará-los para elaborar e realizar oficinas para suas comunidades, creches, hospitais etc., como é o caso da instituição pesquisada. Nesse contexto, intervenções de natureza psicoterapêutica são às vezes necessárias e se apresentam como mais uma das alternativas de ajuda aos jovens assistidos.
O trabalho de recuperação e reinserção na sociedade de adolescentes em conflito com a lei é, portanto, uma das áreas que desafiam a atuação do psicólogo. A lei deve ser respaldada, na medida do possível, por pesquisas empíricas bem fundamentadas. Nesse sentido, o desenvolvimento e a adaptação de instrumentos que forneçam informações confiáveis e válidas sobre as características e peculiaridades desse estrato da população ganham relevância.
Modelo dos ciclos terapêuticos (TCM)
As tecnologias para a avaliação automatizada de textos extensos estão em progresso nas últimas décadas e evidenciam perspectivas de aumentar a fidedignidade das análises e possibilitar investigações relativas a construtos de difícil mensuração, tais como os envolvidos nos diálogos entre pacientes e psicoterapeutas em processos de psicoterapia. Já são conhecidos alguns programas particularmente dirigidos a uma análise de conteúdo simples, bem como alguns softwares mais sofisticados, que são capazes de estabelecer conexões entre categorias de vários níveis para formar esquemas conceituais. Outras ferramentas de análise textual têm como objetivo realizar pré-processamento de textos e transformá-los em formato estruturado, agrupando uma diversidade de dados que tenham algo em comum. No entanto, a maior parte desses softwares foi desenvolvida especialmente para pesquisas relacionadas à linguística ou compreensão da estrutura semântica dos textos. Embora não exista um que atenda a todas as demandas de pesquisa, a escolha da utilização do software adequado depende das necessidades e complexidades do que se pretende estudar.
O TCM utiliza um software (Cycles Model – CM) que permite o confronto da transcrição do que é dito com um dicionário pré-desenvolvido, composto por palavras categorizadas segundo a natureza do tom emocional (positiva ou negativa), ou da indicação de que se trata de uma abstração. São também chamados de dicionários de estilo narrativo por denotarem as oscilações na conotação afetiva/cognitiva do discurso. Os marcadores emocionais são palavras que cabem em uma ou mais das seguintes dimensões: prazer-desprazer, aprovação-desaprovação, apego-desapego e surpresa. E as palavras de abstração são divididas em simples abstrações ou abstrações com conotação afetiva positiva e negativa. Exemplos de palavras com tom emocional positivo seriam: abraçar, ajudar, beijo, gostoso. Com tom emocional negativo: rejeitar, frustrar, soco, humilhado. Dentre as abstrações: departamento, ano, febre, medicina. Abstração com tom positivo: amizade, amor, justiça, dignidade. E, finalmente, abstrações com tom negativo: humilhação, injustiça, depressão, rejeição.
Para a análise de textos, o CM segmenta-os em blocos de palavras cuja extensão é determinada pelo pesquisador (o mais usual são blocos de 150 palavras) e gera gráficos que permitem acompanhar as alterações no discurso do paciente, do terapeuta ou de ambos em conjunto. A avaliação qualitativa dos gráficos é feita pela identificação de padrões de emoção-abstração dados pelo total de palavras identificadas em cada bloco, como de tom emocional ou de abstração. Mergenthaler (1996) descreveu quatro tipos de padrões. São eles:
• Relaxamento (relaxing): caracterizado por baixo tom emocional e de abstração. Corresponde, usualmente, a momentos em que o paciente fala de temas não manifestamente conectados aos seus sintomas ou conflitos centrais que o levaram à terapia. Ele descreve em vez de refletir. Além disso, é um estado para o qual retorna sempre que sente necessidade de se regenerar física ou psicologicamente, para se preparar para o próximo passo de sua "cura pela fala" (Mergenthaler, 1996, 2008). Nesse momento geralmente aparecem relatos de conteúdos irrelevantes na terapia.
• Reflexão (reflecting): baixo tom emocional e alta abstração. O paciente apresenta tópicos com alto grau de abstração e sem emoções. Isso pode ser a expressão da defesa conhecida como intelectualização.
• Experiência (experiencing): alta emoção e baixa abstração. O paciente encontra-se num estado de experiência emocional. Pode estar abordando temas conflituosos ao mesmo tempo que os vivencia emocionalmente. Está provavelmente experimentando emoções ligadas a experiências passadas, mas sem elaboração cognitiva.
• Conexão (connecting): alto tom emocional e alta abstração. O paciente encontrou acesso emocional para o tema conflituoso e reflete sobre ele. Esse estado marca um momento clinicamente importante. Esse é um instante que foi apresentado anteriormente, como momento-chave (Mergenthaler, 1996).
A partir da identificação desses padrões, é possível observar a ocorrência do que Mergenthaler (1996) definiu como ciclos terapêuticos. Ou seja, uma "sequência temporal específica dos quatro padrões de emoção abstração" (relaxamento, experiência, conexão e reflexão) (Mergenthaler, 1996, p. 1308), que denota a passagem da descrição de episódios com baixa conotação afetiva para verbalização com conteúdo emocional, acompanhada da possibilidade de refletir sobre elas, tendo por fim uma reflexão acerca dos conteúdos verbalizados. Ao final do ciclo, ocorrem o retorno a um estado de relaxamento e a preparação para um novo ciclo.
O TCM tem sido utilizado em pesquisas com diferentes propósitos e em diferentes contextos que demonstram sua versatilidade como instrumento de análise de processos terapêuticos. Lepper e Mergenthaler (2005), por exemplo, avaliaram as mudanças ocorridas em processos psicoterápicos individuais; e Fontao e Mergenthaler (2005), em processos grupais, cujos resultados apontaram para relações positivas entre insight e o padrão de conexão. A utilidade do TCM foi ainda testada na avaliação de associação entre momentos-chave em psicoterapias psicanaliticamente orientadas em que se pode observar a relação da experiência não verbal com a linguagem (BUCCI; MERGENTHALER, 1999). Esse modelo também se revelou útil no estudo de processo de mudança em sessões de terapia individual com agressores sexuais (Friedemann et al., 2005) e na análise das características de linguagem utilizada pelo terapeuta apontadas nas análises gráficas e quantitativas (GELO; MERGENTHALER, 2003).
Por se tratar de um método empiricamente baseado e em função das especificidades linguísticas de cada idioma, a adaptação das ferramentas que permitem o emprego do TCM é necessária. No momento, a adaptação do CM para a língua portuguesa vem sendo implementada, com o desenvolvimento de dicionários de estilo narrativo em português (YOSHIDA; MERGENTHALER, 2008, 2009). Este trabalho insere-se nesse esforço, buscando contribuir com o desenvolvimento de dicionários para a aplicação do TCM a relatos verbais de adolescentes em conflito com a lei. Procurou-se ainda explorar em que medida dicionários assim, "personalizados", permitiriam identificar um maior número de palavras com tom emocional e de abstração, padrões de emoção/abstração e também um maior número de ciclos terapêuticos, se comparado aos obtidos com o emprego dos dicionários padrão para a língua portuguesa (YOSHIDA; MERGENTHALER, 2008), que serão referidos aqui como "dicionários padrão".
Método
Instituição
A coleta de dados foi realizada em uma organização não governamental (ONG) no interior de São Paulo, que atende adolescentes e seu grupo familiar, por meio de projetos educativos e culturais específicos em uma perspectiva de desenvolvimento pessoal e social, promovendo a construção da cidadania. As atividades estão divididas em três programas: Liberdade Assistida (LA), Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) e Aprendizagem Profissional (AP). As equipes de profissionais são interdisciplinares, com um coordenador, assistentes sociais, pedagogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais. O acompanhamento sistemático dos jovens se propõe a realizar um processo de construção ou reconstrução de projetos de vida reais e possíveis de serem realizados, que alterem suas rotas de vida, desatrelando-os da prática de atos infracionais.
Participantes
Participaram cinco adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de prestação de serviços à comunidade (identificados pelas letras A, B, C, D e E). Todos do sexo masculino, solteiros, sem filhos, com idade média de 16 anos e histórico de uso de drogas. Eles aceitaram participar voluntariamente do estudo, mediante a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Protocolo n. 245/09).
Material
Utilizaram-se letras de rap e transcrições de entrevistas com os participantes.
Instrumentos
Utilizou-se o TCM (MERGENTHALER, 1996, 2008). Por meio dos gráficos gerados pelo software CM, é possível identificar a ocorrência de padrões de emoção/abstração (relaxamento, reflexão, experiência e conexão) e ciclos terapêuticos. As palavras com tom emocional e de abstração, de cada bloco do texto, são convertidas em escores-z. Cada folha contém três gráficos: superior (Language Patterns Patient), que fornece as frequências relativas de marcadores utilizados pelo paciente. A linha cinza, que corta o gráfico, indica o movimento médio usando metade do bloco de palavras. Com isso se obtém uma progressão "suavizada" (smoothed) do padrão de linguagem do paciente. O segundo gráfico (Speech Proportion) fornece uma ideia da contribuição independente do paciente e do terapeuta, por meio da proporção de palavras de cada um. A contribuição do paciente aparece nas barras pretas, acima do eixo, e as do psicoterapeuta, nas barras cinzas, abaixo do eixo. O terceiro gráfico traz essas contribuições integradas. E, finalmente, a valência das emoções é apresentada no gráfico ao final da página, respectivamente, pelas linhas cinza (tom emocional positivo) e preta (tom negativo). Uma vez obtidos os gráficos, os ciclos terapêuticos são identificados e pode-se destacá-los automaticamente. Eles são representados por uma sequência de padrões de emoção-abstração que inclui ao menos um bloco com o padrão "conexão" (muita emoção e muita abstração) e tem como limite inicial e final a ocorrência de um padrão de "relaxamento" (pequeno tom emocional – igual ou inferior à média; pequena abstração) (MERGENTHALER, 2008; YOSHIDA; MERGENTHALER, 2009). Os dicionários do TCM para a língua portuguesa (padrão) foram elaborados a partir de listas de palavras de tom emocional e abstração compiladas de transcrições de sessões de psicoterapias, entrevistas diagnósticas e textos da literatura Brasileira (YOSHIDA, 2008).
O instrumento Quadros (INSTITUTO FONTE, 2008) é uma metodologia desenvolvida especificamente para fomentar o diálogo entre o adolescente que vive em contexto de vulnerabilidade e o aplicador. É composto por 27 imagens, das quais o sujeito escolhe uma ou mais figuras que tendem a se relacionar com o seu universo. Cada desenho traz leituras e significados distintos para os jovens e serve como disparador do diálogo entre o sujeito e entrevistador. As imagens são de situações que fazem parte do repertório da maior parte dos adolescentes, especialmente que vivem em contextos de vulnerabilidade social (por exemplo: drogas, polícia, violência doméstica, entre outros).
Procedimento
As entrevistas, realizadas de forma individual, nas dependências da instituição, tiveram como estímulo disparador o instrumento Quadros. Solicitou-se a cada participante que escolhesse um ou mais quadros e contasse uma história com base nas cenas escolhidas. Os quadros mais escolhidos pelos participantes foram os que suscitavam temáticas relativas à violência policial, à socialização com outros adolescentes, ao relacionamento com os pais e ao uso de drogas As entrevistas foram registradas em áudio e transcritas exatamente da maneira verbalizada. A seguir, realizou-se pesquisa em sítios da internet para fazer o levantamento de letras de rap e ampliar o rol de palavras. Foram acessados os seguintes endereços: <http://www.letrasdemusicas.com.br> e <http://letras.terra.com.br/>. Foram selecionadas letras de 14 músicas dos grupos Racionais MC´s, Sistema Negro, MV BiIl e Sabotage, bastante populares entre os participantes.
Com base na compilação das letras de rap e nas transcrições das entrevistas realizadas com os participantes, foi gerada, com o auxílio do CM, uma lista de palavras que ainda não constavam dos dicionários de estilo narrativo desenvolvidos para o português (dicionários padrão) (YOSHIDA, 2008). Obteve-se um total de 1.907 palavras que foram então avaliadas quanto ao tom emocional ou de abstração por dois juizes independentes. Nos casos de desacordo, um consenso foi obtido. Uma vez categorizadas as palavras, elas compuseram os dicionários personalizados.
Resultados e discussão
Os dicionários de estilo narrativo personalizados ficaram compostos por 629 palavras que preenchiam os critérios de classificação de tom emocional ou abstração. Dessas, 185 foram classificadas como de tom emocional positivo (categoria 1), 339 como tom emocional negativo (categoria 2), 55 palavras como abstrações (categoria 3), 23 como abstratas com tom emocional positivo (categoria 4) e 27 palavras como abstratas com tom emocional negativo (categoria 5). São exemplos de palavras utilizadas pelos participantes e que têm um sentido diferente do português padrão: "suave" (tranquilo – cat. 1); "Steve" (policial – cat. 2); "farinha" (cocaína – cat. 3); "brisa" (efeito bom da droga – cat. 4); "formigueiro" (favela – cat. 5).
A seguir as entrevistas foram analisadas rodando-se primeiramente o CM, apenas com base nos dicionários padrão (YOSHIDA, 2008), depois com os dicionários personalizados. E, finalmente, com base na integração dos conteúdos de ambos: padrão e personalizados. A Tabela 1 traz as frequências absolutas de palavras segundo cada uma das categorias do TCM e de acordo com os dicionários utilizados. O número de palavras identificadas com os dicionários personalizados foi superior ao das identificadas com os dicionários padrão nas categorias de palavras com tom emocional (1 e 2) e de palavras abstratas com tom emocional positivo (cat. 4) e negativo (cat. 5). Apenas na categoria 3, que inclui substantivos abstratos de tom emocional neutro, a relação ficou invertida para todos os participantes. Isto é, foram identificadas mais palavras dessa categoria quando se utilizaram os dicionários padrão do que os personalizados. Hipotetiza-se que essa categoria tenha menos chance de dar origem a gírias e de adquirir sentido específico quando utilizada por adolescentes, dada a natureza das ideias que veicula. Isto é, conceitos abstratos com conotação emocional neutra parecem ser utilizadas pelos adolescentes segundo o sentido oficial da língua portuguesa, e, por isso, nos dicionários personalizados, a categoria 3 estaria representada parcialmente. Essa possibilidade necessita ser revista em pesquisas com amostras mais representativas. Por ora, fica a observação de que, no estágio atual, os dicionários personalizados apresentariam carência de palavras abstratas neutras, a ser corrigida no futuro, compilando-se mais material junto a essa população.
Os qui-quadrados de aderência para cada uma das categorias de palavras, para a amostra total, apenas corroboram as observações que o exame visual dos resultados, separados por participante, já havia sugerido. Ou seja, as diferenças são significativas em todas as categorias (p < 0,001), ainda que, na categoria 3, a maior frequência seja a registrada pela aplicação dos dicionários padrão. E, naturalmente, essas diferenças ficam ainda mais acentuadas quando ambos os dicionários são integrados (linhas cinza-escuro), o que dispensa a necessidade de novos cálculos.
Verificou-se, a seguir, em que medida os dicionários personalizados levariam à identificação de um número superior de padrões de emoção/abstração. O exame visual da Tabela 2 mostra que os dicionários personalizados não levaram a um aumento sistemático do número de padrões em cada caso, quando comparado ao identificado com os dicionários padrão. O mesmo se pode dizer da aplicação dos dicionários integrados (padrão + personalizados). Esse é um resultado que contraria a expectativa teórica, posto que se imaginava que análises com dicionários personalizados poderiam refinar a identificação dos padrões de emoção/abstração, resultando em seu aumento. Uma possível explicação é a de que, embora os adolescentes efetivamente tenham um linguajar impregnado de palavras com sentido próprio, esta ocorrência não chega a modificar de maneira significante o padrão mais amplo da comunicação, no que respeita ao tom emocional e ao uso de abstrações. Como consequência, o uso integrado dos dicionários também não modificaria as análises feitas com o TCM, quando comparado apenas ao dicionário padrão para a língua portuguesa.
Se, de um lado, os resultados surpreendem, de outro, pode-se dizer que são auspiciosos, pois indicam que o uso de dicionários padrão pode ser considerado um instrumento válido na utilização do TCM, também para adolescentes em confronto com a lei. Mesmo que usem expressões verbais com sentidos diversos do idioma oficial e criem neologismos, como uma forma de preservação e afirmação da identidade pessoal e grupal (RIBEIRO, 2003), essas diferenças não chegam a impedir o acompanhamento das oscilações dos padrões de emoção/abstração verificados na fala dessas pessoas. É necessário, todavia, argumentar em favor de cautela na generalização dos resultados, dado que especialmente gírias e neologismos costumam ter uso restrito a pessoas de uma determinada região geográfica ou a um estrato específico da população.
Com o propósito de aprofundar as análises, verificou-se a seguir se haveria diferença no número de ciclos terapêuticos identificados, utilizando os dicionários padrão ou personalizados. Cabe observar que, pelo fato de as análises se basearem apenas no conteúdo de uma entrevista e não em uma sequência de entrevistas, como previsto para a aplicação do TCM a processos psicoterápicos, os ciclos identificados não podem ser vistos como indicadores de algum tipo de mudança psicológica, mas como momentos de conexão entre emoção e abstração (MERGENTHALER, 2008), no discurso do participante, o que os qualifica como momentos psicologicamente significantes (momentos-chave). Esse tipo de emprego do TCM justifica-se em função dos objetivos da pesquisa.
Foram gerados os gráficos de cada participante e analisados os que apresentavam apenas a verbalização do participante (smoothed Language Patterns Patient). A análise com os dicionários padrão indicou um total de 10 ciclos terapêuticos, assim distribuídos: participante A (n = 1), B (n = 2), C (n = 2), D (n = 3) e E (n = 2). Em relação aos dicionários personalizados, a análise resultou em um total de cinco ciclos, sendo um para cada caso. Contrariamente ao esperado, o emprego dos dicionários personalizados resultou, portanto, numa tendência de diminuir o número de ciclos terapêuticos, com exceção do caso A em que não houve modificação.
Para verificar em que medida a diferença no número de ciclos terapêuticos se refletiria no conteúdo dos temas identificados nos momento-chave, procedeu-se então a uma análise qualitativa dos temas focalizados por um dos participantes. Escolheu-se para isso o participante D, pois foi o caso em que houve maior diferença no número de ciclos terapêuticos quando se utilizaram os dicionários padrão (n = 3), personalizados (n = 1) e ambos (n = 1). Sua narrativa foi feita sempre na primeira pessoa, com situações vividas por ele. O Gráfico 1 apresenta os dados do TCM que integram as falas do participante e do entrevistador (smoothed Language Pattern Patient and Therapist), em que se utilizaram os dicionários padrão (superior), personalizados (do meio) e ambos integrados (inferior).
Nos ciclos identificados com os dicionários padrão, apareceram temas como o tráfico de drogas e a vontade do adolescente de parar (blocos 2, 3, 4 e 5); cena de violência policial presenciada pela sua mãe (blocos, 19, 20 e 21); o controle do uso de drogas (blocos 33 a 37) e o estigma que sofre por usar drogas e a relação com o pai (blocos 37 a 40/final do ciclo). Com os dicionários personalizados, assim como com a integração deles com os padrão, foi identificado apenas um ciclo, no meio da entrevista – início no bloco 23 e fim no 45 –, em que o adolescente falava do uso de drogas e seu controle sobre isso (bloco 33) (negando que fosse dependente delas); uma situação de confronto com policiais (blocos 22 a 28); o estigma que sofre por usar drogas e a relação com o pai, conivente com suas atividades no tráfico (blocos 38, 39 e 40) e cobrança de dívidas de drogas (bloco 43).
As análises do TCM apontaram, portanto, momentos da entrevista em que conteúdos sensíveis estavam sendo abordados. No entanto, com os dicionários personalizados, ou quando estes foram combinados aos dicionários padrão, foi possível identificar com mais precisão o momento em que teria havido maior mobilização emocional e cognitiva, e todo o esforço do jovem para aparentar ter o controle e o domínio de situações que podiam comprometer sua integridade física e psíquica, a saber: o uso de drogas, suas atividades no tráfico e o confronto com policiais. Dentro dessa trama, destaca-se a atitude complacente dos pais ante o consumo de drogas do filho e a conivência diante de suas ações ilícitas.
Considerações finais
Pode-se afirmar que o desenvolvimento de dicionários personalizados para o TCM parece ser uma alternativa interessante para a identificação e o estudo de momentos-chave de narrativas de pessoas que utilizam formas peculiares de comunicação, como é o caso de adolescentes em conflito com a lei. Ainda que não se observem modificações nos padrões de emoção/abstração utilizados, a maior frequência de palavras identificáveis pelos dicionários personalizados confere maior precisão às análises, na medida em que permite a identificação de um maior número de termos do discurso do participante que são significativos do ponto de vista emocional e cognitivo. Soma-se a isso a vantagem de se conseguir analisar um grande volume de textos, num curto espaço de tempo. E, finalmente, cabe lembrar a facilidade com que os dicionários podem ser ampliados e combinados com outros já existentes, constituindo-se, portanto, em ferramenta muito versátil para pesquisas em psicoterapias e para análises de textos em geral. Apesar das qualidades positivas do TCM, cabe ressaltar que o tamanho reduzido da amostra sugere cautela quanto à generalização dos resultados. Ademais, as análises com o TCM foram realizadas com base no mesmo material utilizado para o desenvolvimento dos dicionários personalizados. Ainda que se trate de um estudo exploratório, essas limitações metodológicas deverão ser evitadas em pesquisas futuras.
Referências
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Endereço para correspondência
Contato
Eduardo Khater
e-mail: eduardokhater@gmail.com
Tramitação
Recebido em janeiro de 2011
Aceito em março de 2011