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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.16 no.3 São Paulo dez. 2014

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

Psicoterapia Analítica Funcional feminista: possibilidades de um encontro

 

Feminist Functional Analytical Psychotherapy: possibilities of an encounter

 

Psicoterapia Analítica Funcional feminista: posibilidades de un encuentro

 

 

Marcela Nayara Duarte FidelesI; Luc VandenbergheI
I Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia – GO – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O presente estudo reflete sobre o encontro dos posicionamentos da Terapia Feminista (TF) e da Psicoterapia Analítica Funcional (Functional Analytic Psychotherapy – FAP) na clínica. Um estudo de literatura foi feito para comparar seus estilos clínicos. Sua compatibilidade destacou-se quanto ao manejo da relação terapêutica, à inclusão de elementos sociais e culturais, à ênfase sobre a aquisição de habilidades para modificar o ambiente, ao fato de o terapeuta e o cliente assumirem seus valores e sentimentos, e à validação da vivência emocional do cliente em vez da tentativa de modificá-la. As qualidades do estilo clínico das duas abordagens são muito próximas. Porém, seus registros conceituais se baseiam em sensibilidades diferentes: a pragmática clínica para a FAP e os valores políticos para a TF. O estudo sugere que a junção dessas perspectivas pode produzir uma visão clínica mais ampla, além de ser uma estratégia viável para o acolhimento de temas de gênero na atuação clínica.

Palavras-chave: Terapia feminista; terapia comportamental; Psicoterapia Analítica Funcional; empoderamento; relação terapêutica


Abstract

The present study reflects on the encounter of Feminist Therapy (FT) and Functional Analytic Psychotherapy (FAP). A study of the literature compared their clini­cal styles. It highlighted the compatibility of their views concerning the management of the therapeutic relationship; inclusion of social and cultural elements in treatment; emphasis on the acquisition of abilities to transform the client's environment; openness about therapist and client values and feelings; and the validation of the client's emotional experience instead of trying to change it. On these points the two clinical styles are highly similar to each other. Their conceptual registers, however, are based on different sensibilities, namely clinical pragmatics in the case of FAP and political values in the case of FT. The study suggests that joining the perspectives of the two therapies can produce a broader clinical vision and provide a relevant and viable strategy to work on gendered themes in clinical practice.

Keywords: Feminist therapy; behavior therapy; Functional Analytic Psychotherapy; empowerment; therapeutic relationship


Resumen

En este estudio se refleja en el encuentro de la Terapia Feminista (TF) y la Psicoterapia Analítica Funcional (PAF) en la clínica. Un estudio dela literatura comparó los estilos de los dos tratamientos, destacando su compatibilidad con respecto a la gestión de la relación terapéutica, la inclusión de elementos sociales y culturales, el énfasis en la adquisición de competencias para modificar el entorno, encajamiento, por el terapeuta y el cliente, con sus valores y sentimientos, y la validación de la experiencia emocional del cliente en lugar de tratar de modificarlo. Las cualidades del estilo clínico de los dos enfoques son muy cerca. Sin embargo, sus registros están basados ​​en sensibilidades conceptuales disímiles: la pragmática clínica de la FAP y los ideales políticos de la TF. Una alianza entre las dos formas de pensar puede producir una visión clínica más amplia, además de ser una alternativa viable para la recepción de las cuestiones de género en el trabajo clínico.

Palabras clave: Terapia feminista; terapia conductual; Psicoterapia Analítica Funcional; empoderamiento; relación terapéutica


 

 

O feminismo é um movimento de luta pelos direitos das mulheres cujo principal alvo de crítica é a cultura androcêntrica. Ele parte de um ideário que reconhece as diferenças de experiências entre homens e mulheres, e reivindica que ambos devem ser tratados como possuidores de um mesmo valor (Narvaz & Koller, 2006). A primeira fase do feminismo eclodiu no Brasil na década de 1920 e reivindicava direitos políticos para as mulheres. Em 1932, o Código Eleitoral concede à mulher o direito de votar e de ser votada. Desde então, o movimento feminista continua a delinear-se em uma agenda específica, questionando as opressões e discriminações entre homens e mulheres (Narvaz & Koller, 2007b).

Os questionamentos feitos pelo feminismo também se voltam para as formas de produção de conhecimento, bem como para os interesses a que esse conhecimento está servindo. A epistemologia feminista contesta o que é determinado como conhecimento, quem o define e como ele é obtido, assim como questiona a posição neutra do(a) pesquisador(a), pois observa-se que não há uma só forma de se fazer ciência. As distinções incluem: atitude distanciada versus envolvida, pensamento linear versus inter-relacionado e deduções lógicas versus abertura à experiência. Grande parte do conhecimento científico é tida como parcial, em função de ter sido construída, histórica e culturalmente, em uma ideologia universalista, privilegiando de maneira implícita o primeiro elemento de cada uma dessas três dualidades. Como alternativa, defende-se que o conhecimento é sempre situado e deve assumir abertamente seu ponto de vista (Costa & Sardenberg, 1994; Narvaz & Koller, 2007b).

A expressão "feminista" representa um espaço de contestação, não de domínio estável. A partir das diversas problematizações, as doutrinas do feminismo estão em constante alteração (Narvaz & Koller, 2006). No centro desse movimento, existe uma problematização do conceito de gênero, não mais visto como derivado da biologia, mas como significação de efeitos discursivos, uma construção social. A partir da desconstrução do conceito de gênero, este passou a ser uma categoria relacional e política (Narvaz & Koller, 2007b) que fornece um instrumento para questionar as inadequações das teorias existentes e entender as desigualdades persistentes entre mulheres e homens (Costa & Sardenberg, 1994).

O foco sobre as relações de poder possibilita que se assuma o empoderamento feminino por meio de seu potencial emancipatório (Neves & Nogueira, 2003). O empoderamento passa pela conscientização, por parte das mulheres, de suas competências e habilidades, desconsiderando a desqualificação social imposta a elas. É ressaltada a potencialização das mulheres por meio de informação e estimulação de suas ideias, ações e sentimentos, para que, assim, elas sejam capazes de exercer seu legítimo poder. Tem-se como objetivo a construção de uma ordem social na qual não imperem a hierarquia ou os privilégios baseados em estigmas injustificados (Yannoulas, Vallejos, & Lenarduzzi, 2000).

A TF se encaixa nessa vasta empreitada, começando por reconhecer a cliente como a pessoa mais bem posicionada para conhecer sua realidade. A experiência pessoal da cliente é considerada a versão vivida da realidade política. Por isso, a terapeuta feminista trata de respeitar a vivência tal como é definida por quem a vive. Contradizer ou validar a vivência subjetiva da cliente são atos políticos e sujeitos a uma análise crítica acerca das intenções da pessoa da terapeuta no contexto da distribuição de poder no relacionamento terapêutico. Tendo em vista essas implicações, a terapeuta feminista minimiza ativamente a diferença de poder no relacionamento, torna seus valores claros para a cliente e permite que esta influencie os posicionamentos da terapeuta (Evans, Kincade, & Seem, 2011).

Devido à não especificidade de um modelo de atuação, a expressão "terapia feminista" não é consensual. No entanto, a terapia pode ser qualificada como feminista sempre que estiver seguindo a prática e a teorização dos princípios feministas como já descritos aqui, destacando o respeito pelo processo igualitário de tomada de decisão; o compromisso com a transformação social; o princípio da igualdade, eixo norteador quando se fala em políticas de gênero; e o contextualismo e o comprometimento com valores (Neves & Nogueira, 2004).

A TF considera que a personalidade não é determinada pela infância, mas muda em interação com o ambiente interpessoal. Compreende emoções e pensamentos como resultado de contextos sociais e culturais (Worrel & Remer, 2003; Brown, 2013). Considera os sintomas psicológicos como estratégias adaptativas, ante a opressão e adversidade. A atribuição de sintomas a processos intrapsíquicos pelas psicoterapias convencionais é considerada uma forma de ocultar as relações de poder na família e na sociedade. Ao redefinir problemas psicológicos como resultado de interações sociais e não como produtos de conflitos intrapsíquicos, a TF pretende contribuir para o empoderamento da cliente para mudar as relações no seu ambiente (Brown, 2009; Evans et al., 2011).

Originada em outra tradição acadêmica, a saber, a análise do comportamento, a Psicoterapia Analítica Funcional (Functional Analytic Psychotherapy – FAP) usa a relação terapêutica como fonte de mudança comportamental para auxiliar o cliente em uma vida significativa e produtiva. Suas ideias advêm do modelo de aprendizagem operante que postula que o sofrimento psicológico é resultado de processos de interação com o ambiente. Não considera o comportamento deste como resultado de patologia intrapsíquica, mas como oriundo dos mesmos processos de aprendizagem que moldam o comportamento do próprio terapeuta. Isso convida o terapeuta a adotar uma posição de igualdade com o cliente (Tsai, Kohlenberg, Kanter, Holman, & Loudon, 2012).

A literatura da FAP usa a expressão "análise funcional" não para descrever um procedimento experimental, mas para se referir à conceptualização de interações entre pessoas em termos de princípios comportamentais, destacando estímulos antecedentes que evocam e consequências que reforçam ou enfraquecem o comportamento­. Essa conceptualização é geralmente baseada na observação direta e na comparação com os relatos do cliente a respeito do seu cotidiano. Ao construir a análise funcional, o terapeuta presta atenção especial às relações entre o comportamento do cliente e o seu e ajuda o cliente a detectar as consequências de seu comportamento sobre o terapeuta, as quais são funcionalmente similares aos efeitos que o cliente tem ou pode vir a ter sobre relacionamentos importantes na sua vida cotidiana. Para poder atuar, o terapeuta, por sua vez, observa minuciosamente os efeitos de seus comportamentos sobre o cliente e vice-versa (Tsai et al., 2012).

Quando há atenção declarada nos valores pessoais e no aumento de consciência social de cliente e terapeuta, fala-se em Green FAP (expressão derivada do movimento verde). Esta parte do pressuposto de que a consciência social e ecológica tanto auxilia os objetivos individuais dos clientes quanto beneficia a comunidade de uma maneira mais ampla. O terapeuta pode informar ao cliente, no início do tratamento, que, além de trabalhar problemas e objetivos individuais em terapia, também está interessado em ajudar seus clientes a se conectar com suas perspectivas sobre os problemas mais abrangentes da sociedade. Ao agir assim, o terapeuta, na Green FAP, traz seus valores para dentro da sessão (Tsai, Kohlenberg, Bolling, & Terry, 2011).

Por focar a interação do cliente com seu ambiente social, o terapeuta depara-se também com o contexto político dos problemas que são tratados na sessão. As questões de gênero se tornam especialmente presentes na terapia de casal. A divisão de responsabilidades tipicamente masculinas e femininas pode ser parte constitutiva do problema psicológico, incluindo a partilha desigual das tarefas, a cobrança social sobre a função da maternidade e as desigualdades nas tomadas de decisões. Em muitas famílias, tradicionalmente, ainda é papel feminino abordar os problemas conjugais com o objetivo de resolvê-los, enquanto os homens aprenderam a se retirar em tempos de conflitos conjugais. Tais padrões são reconhecidos como estereótipos descabidos quando discutidos explicitamente. Porém, implicitamente, são apoiados às vezes de forma insidiosa e sutil pela comunidade verbal em que o casal está inserido. Se não está atento a isso, o terapeuta arrisca-se, despercebidamente, a reforçar esses padrões. Entretanto, pode optar por intencionalmente usar seu relacionamento com o casal para promover uma cultura mais flexível e justa (Rabin, Tsai, & Kohlenberg, 1996; Vandenberghe, Nasser, & Silva, 2010).

O presente artigo é resultado de discussões, durante a supervisão clínica, sobre as vivências da primeira autora como terapeuta, usando a FAP como estilo clínico, quando temas feministas se tornam presentes no processo terapêutico. O objetivo é refletir sobre as superposições entre a TF e a FAP e sobre os pressupostos que subjazem às similaridades no estilo clínico.

 

Método

Para subsidiar esta reflexão, realizou-se uma busca por “Terapia Feminista” na seção brasileira da biblioteca eletrônica SciELO. Foram resgatados apenas dois artigos: Narvaz e Koller (2007a) e Neves e Nogueira (2003). A expressão “psicologia feminista” encontrou cinco itens no SciELO, entre os quais apenas três artigos em português, incluindo os dois já mencionados. Somente estes últimos eram dedicados à prática clínica. No Google Acadêmico, “Terapia Feminista” ainda permitiu resgatar um artigo de Neves e Nogueira (2004). Apesar de a literatura norte-americana sobre a TF ser extensa, optou-se por focar trabalhos científicos publicados em língua portuguesa. Como a TF se alimenta de uma crítica da cultura, o foco nas perspectivas expressas nesse espaço linguístico resguardam a relevância cultural do estudo.

Também foram verificados os resumos da base de literatura da FAP (http://functionalanalyticpsychotherapy.com) na procura por textos que tratam de questões de gênero. Apenas três textos foram identificados: Rabin et al. (1996), Vandenberghe et al. (2010) e Terry, Bolling, Ruiz e Brown (2010). As buscas foram realizadas em março de 2012 e repetidas em 3 de janeiro de 2013, com os mesmos resultados para TF. Quanto à FAP, foi publicado nesse intervalo o livro de Tsai et al. (2012), conforme verificado no referido site; o livro contém alguns trechos dedicados a questões de gênero. O levantamento escasso de artigos em língua portuguesa evidencia a necessidade de maior atenção para os posicionamentos feministas na teorização psicoterápica, assunto para o qual o presente estudo pode contribuir. A carência de publicações referentes a gênero, na literatura da FAP, por sua vez, indica que a área de contato entre as duas abordagens não está adequadamente desenvolvida.

Todos os textos identificados foram lidos e contribuíram para a introdução do presente artigo. Os três artigos em língua portuguesa que tratam da TF foram estudados para identificar as grandes temáticas dessa prática clínica. Sua leitura minuciosa permitiu organizar as características da TF discutidas nesses textos em sete categorias amplas e compará-las com as práticas da FAP. Três dessas categorias resumem similaridades no estilo clínico: viés contextual; relação terapêutica igualitária e mudança bidirecional; e validação da perspectiva e da vivência da cliente. Outras quatro categorias resumem apreços e motivos subjacentes que, apesar de similares, expressam nuances importantes entre o pensamento da FAP e da TF, resumidas no Quadro 1.

 

Resultados

A busca realizada permitiu observar que a literatura dedicada à TF, em língua portuguesa, acessível na internet, é escassa. Chamou a atenção o fato de que, também no âmbito internacional, a produção concernente às questões de gênero no ponto de vista da FAP continua escassa. O Quadro 1 compara conceitos da TF com os da FAP.

 

 

Viés contextual. As abordagens clínicas de cunho feminista entendem os problemas psicológicos das clientes no contexto social. Investigam o lugar do grupo no qual a cliente está inserida, em termos da distribuição de papéis e privilégios atribuídos em função de gênero e de outras construções sociais, como orientação sexual, classe e cultura. Questionam como essas variáveis interferem na vida da cliente, em suas possibilidades de fazer valer seus direitos, de garantir sua integridade e de realizar suas escolhas. Ao problematizarem construções teóricas que localizam a causa de sofrimento e de opressão dentro da vítima, substituem os construtos intrapsíquicos tradicionais pelos fatores contextuais. A atenção para o poder que a cliente possui (ou que a ela é negada) de regular o comportamento dos grupos aos quais pertence decorre de um posicionamento político. Porém, a atenção possui implicações clínicas claras, já que essa análise permite buscar a remediação para os problemas psicológicos no ambiente social e na mobilização das possibilidades que a cliente possui ou pode adquirir para mudar esse ambiente (Narvaz & Koller, 2007a; Neves & Nogueira, 2003).

Por sua vez, a FAP adota o viés da contextualidade ao localizar a gênese das dificuldades individuais nas interações entre pessoas. Essa opção decorre de uma tentativa de procurar as causas e os fatores mantenedores do comportamento-problema e das melhoras almejadas nas contingências interpessoais. Por trás dessa estratégia, está a conjectura de que uma análise detalhada dos eventos que antecedem e sucedem diferentes instâncias de um comportamento permite identificar quais variáveis controlam a frequência desse comportamento. Juntos, o cliente e o terapeuta, examinam sequências típicas de interações com outras pessoas no cotidiano do cliente, procurando descobrir que antecedentes e consequências evocam e reforçam o comportamento e o que seria necessário para que o comportamento-problema não ocorresse, mas que, no lugar dele, o cliente possa obter um êxito mais desejável com comportamento mais saudável (Terry et al., 2010; Tsai et al., 2012).

Relação terapêutica igualitária e mudança bidirecional. Igualdade no relacionamento terapêutico é um modo de devolver o poder às mulheres. A TF considera a relação terapêutica como equivalente à vida social. Em ambos os contextos, podem ocorrer opressão, exploração ou violência emocional, bem como podem ser impostos papéis que prejudicam a cliente e limitam sua autonomia. Cogita-se que as práticas terapêuticas não podem ser apolíticas. Por isso, a relação terapêutica está sujeita às mesmas críticas feitas a outras relações sociais. A terapeuta deve realizar também uma análise honesta do impacto que as questões de gênero exercem sobre sua forma de atuar, ou seja, nas suas intervenções e, em especial, nas suas formas de relacionar-se com a cliente (Neves & Nogueira, 2004). A ênfase na igualdade e equidade de direitos no seio da díade terapeuta-cliente é uma implicação lógica da valorização do potencial das clientes e uma maneira de validar a cliente como especialista de suas vivências (Narvaz & Koller, 2007a; Neves & Nogueira, 2003).

Igualdade e emancipação são valores explícitos que norteiam a TF. E o compromisso com a mudança social sustenta a recusa de considerar a imparcialidade como um objetivo para a terapeuta. Considerando que as práticas terapêuticas são permeadas de valores, a terapeuta deve atentar constantemente para suas próprias atitudes e para o modo como estas interferem no processo terapêutico. Já que a terapeuta assume sua parcialidade, ela deve estar sempre aberta a questionar os próprios valores, porque tanto ela quanto a cliente estão influenciadas pelos estereótipos e pelas expectativas sociais sobre os gêneros e sujeitas às armadilhas que os discursos dominantes montam (Narvaz & Koller, 2007a; Neves & Nogueira, 2003, 2004).

Na FAP, o relacionamento terapeuta-cliente é visto como uma amostra dos relacionamentos interpessoais do cliente. Suponha que haja um cliente que não batalha pelas suas necessidades, é demasiadamente submisso em relacionamentos sociais e procurou a terapia por problemas de depressão. Numa sessão, ele consegue criticar a forma como o terapeuta o trata. Outro cliente que passa despercebido no seu dia a dia pela pobreza de expressão das suas emoções consegue perturbar ou provocar o terapeuta. Em ambos os casos, o novo comportamento do cliente pode evocar sentimentos negativos no profissional. Porém, para poder reforçar o progresso do cliente, é preciso permitir que ele influencie o comportamento do terapeuta. O modelo clínico da FAP deixa explícito que a mudança é bidirecional, no sentido de que ocorre a mudança nos comportamentos do terapeuta e do cliente. Somente se o cliente tiver a oportunidade de mudar o terapeuta, seu comportamento poderá ser reforçado (Terry et al., 2010; Tsai et al., 2012).

O terapeuta concede abertura plena para os direitos do cliente na sessão e lhe permite negociar o poder num nível de igualdade. Essa abertura torna possível ao cliente desenvolver novos comportamentos assertivos e recíprocos que, primeiro, beneficiam o tratamento e, depois, podem ser generalizados nas situações de vida fora do consultório, em que o cliente poderá usá-los para enfrentar seus problemas. Ao recusar ser influenciado pelo cliente, arrisca-se a invalidar qualquer comportamento assertivo deste. Portanto, é importante observar os efeitos – ou as reações – que o cliente provoca no terapeuta, pois eles representam as consequências naturais que reforçam ou enfraquecem o comportamento clinicamente relevante do cliente. Para que esse processo se realize, é imprescindível que o terapeuta se deixe mudar pelo cliente (Terry et al., 2010; Tsai et al., 2012).

Os valores do terapeuta devem estar abertos ao questionamento, porque, assim, ele se permite responder de forma terapêutica aos comportamentos do cliente. Se o terapeuta não estiver atento aos seus próprios valores, poderá, por exemplo, reforçar qualquer comportamento condizente com os papéis de gênero socialmente aceitos dos seus clientes. Poderá reforçar, acidentalmente, algum comportamento que esteja de acordo com conceitos culturais, provenientes do grupo do terapeuta, sem perceber que esses comportamentos não ajudarão os clientes. A fim de evitar tais falhas, é indicado que o terapeuta torne seus valores explícitos no início da terapia, para que o cliente possa reagir a eles (Tsai et al., 2012; Terry et al., 2010).

Validação da perspectiva e da vivência da cliente. A TF não se alinha à ideia de que o problema psicológico reside no interior do indivíduo. Critica as práticas remediativas ligadas aos modelos intrapsíquicos dos problemas psicológicos. Considera que as dificuldades emocionais sentidas pela cliente são resultado das circunstâncias na família, no trabalho, nos relacionamentos amorosos e na cultura mais ampla. Em última instância, as emoções são válidas quando as condições sociais que levaram a mulher a se sentir assim são compreendidas. O alvo de mudança não é a reação negativa da cliente perante condições induzidas pelas relações sociais, mas as próprias relações sociais, que são alvos de mudança. Baseada nessa visão, a TF valida os sentimentos e busca habilitar a cliente para mudar seu ambiente, ao invés de promover uma mudança da vivência interior (Neves & Nogueira, 2003; 2004).

O terapeuta da FAP procura entender a vivência interior dos clientes como efeito colateral das mesmas contingências que determinam seus comportamentos. A FAP propõe que os sentimentos do cliente são o resultado das contingências do seu dia a dia. Assim, não teria sentido modificar os sentimentos, mas usá-los como pistas valiosas para entender as contingências que os geraram. A aceitação de eventos privados como resultado das contingências motiva a validação desses eventos privados pelo terapeuta. Contingências aversivas ou falta de reforço positivo, ao mesmo tempo que produzem comportamentos problemáticos, geram sentimentos negativos. Se o cliente se sente triste e vazio, sua experiência interna não deve ser alvo de intervenção. Os sentimentos são acatados como indícios das relações interpessoais que os produzem. O terapeuta precisa prestar atenção à vivência interior, tanto a do cliente quanto a dele próprio, para poder identificar as contingências interpessoais que estão atuando. E são estas que devem ser alvo de mudança. Ajudar o cliente a se sentir melhor sem ajudá-lo a modificar as variáveis que causam os sentimentos negativos seria uma ação paliativa, que deixa intocada a raiz dos problemas psicológicos (Tsai et al., 2012).

Apreços e objetivos subjacentes. Na visão feminista, poder e privilégio constituem o contexto da psicopatologia. Por isso, cultura e ideologia são continuamente colocadas em questão, e o objetivo nunca é que a cliente se adapte à sociedade sem considerar seus direitos e suas necessidades (Neves & Nogueira, 2004). Mudanças sociais não são efeitos secundários da intervenção terapêutica, mas objetivos fulcrais na TF. Instrumento importante é o empoderamento da cliente, que ocorre por meio da ampliação da sua consciência política, da valorização do seu potencial, auxiliando-a na obtenção de acesso à informação e na mobilização dos recursos sociais disponíveis em seu ambiente (Neves & Nogueira, 2004). A terapeuta auxilia as mulheres a identificar suas capacidades e competências, a fim de esboçarem estratégias de resistência diante das variáveis sociais das quais seus problemas são oriundos. Orientando-as na busca dos recursos comunitários e legais, a TF envolve-se ativamente com o empoderamento das mulheres perante diversas formas de discriminação e violência. Articulam-se, assim, terapia e política numa prática comprometida com a crítica da sociedade, em busca de relações mais justas e igualitárias (Narvaz & Koller, 2007a; Neves & Nogueira, 2003).

Na visão comportamental, tanto atos quanto sentimentos são resultado da interação com o ambiente. E, como vivemos num ambiente social e político, a FAP o aborda como fonte de problemas psicológicos, o que implica trabalhar com contingências sociopolíticas. Ressalta-se a necessidade de detectar as contingências sociais e culturais discriminatórias que, muitas vezes, encontram-se camufladas, porque elas contribuem para a formação e manutenção dos problemas psicológicos. Se o terapeuta não estiver atento, elas poderão também influenciar o processo terapêutico. O terapeuta deve evitar, por exemplo, reforçar um comportamento do cliente que esteja de acordo com a ordem social estabelecida, sem verificar primeiro se esse comportamento vai ajudar ou prejudicar o cliente na resolução de seus problemas. Sem prestar atenção a influências político-sociais sobre sua atuação, o terapeuta pode, inadvertidamente, punir compor tamentos que representam progressos, tendo o contexto de vida do cliente em vista, ou reforçar comportamentos que não beneficiam o processo (Terry et al., 2010; Tsai et al., 2012, Vandenberghe et al., 2010).

O comportamento feminino assertivo foi discutido, nesse sentido, sobretudo no que diz respeito à partilha igualitária de direitos e deveres. É importante que o terapeuta responda à cliente de forma que promova o desenvolvimento de comportamentos que a ajudarão a tornar a relação com seu parceiro e sua posição na comunidade mais condizentes com suas necessidades (Rabin et al., 1996). A FAP enfatiza que a cliente influencia o relacionamento com o terapeuta e, dessa forma, desenvolve as estratégias para mudar outros relacionamentos. A desconstrução das diferenças de poder no relacionamento terapêutico permite ao terapeuta reforçar melhoras da cliente que contribuem para aumentar sua capacidade de modificar o ambiente do seu cotidiano (Tsai et al., 2012). Em um modelo de atuação no qual o terapeuta usa seu papel de terapeuta para impor, por exemplo, tarefas de casa à participante e está insensível às tentativas da cliente de questionar esse papel, perder-se-ia a oportunidade de reforçar comportamentos assertivos que ajudariam a cliente no seu cotidiano.

 

Discussão

Documentamos uma compatibilidade surpreendente entre TF e FAP no que diz respeito às práticas clínicas, mas também uma diferença marcante quanto aos motivos que estão por trás delas. Ambas optam por uma visão contextualista, por uma relação igualitária, que permite o questionamento dos valores do terapeuta e a validação da vivência interior da cliente, incorporando a importância de fatores político-sociais a partir de uma crítica da sociedade e da cultura. As sensibilidades da TF por trás dessas opções clínicas dizem respeito às repercussões de processos macrossociais no nível micro da experiência. Os motivos da FAP para adotar os mesmos princípios na clínica iniciam-se numa microanálise das similaridades entre as trocas na díade terapeuta-cliente e nas relações interpessoais no cotidiano do cliente.

O viés contextual sobre os problemas clínicos sustenta a validação da vivência interna (porque os sentimentos da pessoa são resultado do contexto interpessoal ou social em que vive) e a atenção dada à capacitação do cliente para enfrentar condições de vida (porque a capacidade de mudar o seu contexto interpessoal ou social é necessária para a melhora clínica). Porém, a TF ampara esse contextualismo numa crítica da sociedade, e a FAP a sustenta na sua análise da interação entre o indivíduo e seu ambiente. A validação da perspectiva da cliente é uma exigência lógica da visão da FAP de que essa perspectiva é o resultado das contingências vividas e do compromisso da TF com o ativismo social. Precisa-se admitir que a validação da perspectiva da cliente é necessariamente relacionada com os valores do terapeuta, também na FAP, já que a aceitação dos sentimentos da cliente não é genuína se não decorre das experiências internas do terapeuta (Tsai et al., 2012).

A diferença entre os dois estilos clínicos pode ser sutil. Examine-se o exemplo de uma terapeuta que diz: “Eu gostaria de saber o real motivo de você, constantemente, não realizar as tarefas de casa propostas por nós duas”. A terapeuta considera que essa atitude rebelde pode ser uma dificuldade ou um progresso no tratamento. Caso a cliente, no seu cotidiano, sabote suas oportunidades de crescimento por assumir uma posição passiva, esperando que os outros resolvam seus problemas, obedecendo nisso ao papel que sua família atribui às mulheres, a terapeuta pode identificar a falta de engajamento nas tarefas da terapia como uma manifestação do mesmo comportamento- problema. A terapeuta decide, então, desafiar a atitude da cliente em relação às tarefas de casa e, ao pedir mais informações, pode perceber se há razões culturais por trás da resistência que mereçam ser abordadas.

Imagine-se, porém, que a cliente responda: “Eu não gosto de fazer tarefas. Esse formato de terapia não está bom pra mim”. Já que essa cliente, no seu cotidiano, se prejudica por se submeter demasiadamente às regras que recebe de outras pessoas, a terapeuta pode entender que a rebeldia perante as tarefas de casa seja uma melhora que ocorre ao vivo durante a sessão. A terapeuta acata a recusa e compartilha o efeito que a negociação teve sobre ela. Explica à cliente o que ela aprendeu graças a essa recusa e mostra o que ganhou com seu posicionamento explícito: “Fico muito aliviada de você ter me contado sua dificuldade. Agora eu sei como você se sente e podemos procurar melhores maneiras de você obter os resultados que queremos”.

A terapeuta, no exemplo, trabalha de acordo com a FAP ou a TF? Em ambos os casos, aceitará que a cliente pode ter plena razão ao discordar da sua atuação. Porém, essa desconstrução das diferenças de poder ou de saber no processo terapêutico pode visar a diferentes preocupações. Na perspectiva da FAP, é necessário que a terapeuta mude em resposta ao novo comportamento da cliente, porque somente assim pode reforçar a melhora clínica. Tentar convencer a cliente de que a tarefa será boa para esta ou motivá-la a fazer a tarefa sem considerar a função do comportamento de recusa no seu contexto mais amplo anularia uma possibilidade de progresso clínico. Quando o fato de a cliente negociar abertamente com a terapeuta representa uma melhora ao vivo, esse comportamento deve ser reforçado, para aumentar a probabilidade de a cliente repeti-lo em situações parecidas no seu dia a dia.

Para a TF, trata-se de um posicionamento ideológico. As diferenças de poder ou de saber que desqualificam a vivência real da pessoa são destacadas como causas de problemas psicológicos pela psicologia feminista; logo, reproduzir essa mesma injustiça na relação terapêutica reduziria o desenvolvimento da cliente até nesse contexto em que ela está procurando ajuda psicológica e transformaria a terapia em mais um instrumento de opressão. Apesar de uma visão similar se anunciar no advento da Green FAP, os motivos da FAP para adotar a mesma atitude são sustentados por preocupações de eficiência técnica e funcional.

Percebe-se, então, que uma mesma atuação clínica decorre de considerações pragmáticas, no caso da FAP, e de um posicionamento político, no caso da TF. A primeira adota um viés contextual, busca construir uma relação bidirecional, em que a terapeuta se torna vulnerável, especificando seus valores e sentimentos, para poder oferecer um relacionamento genuíno e intenso o suficiente para poder evocar e moldar os comportamentos clinicamente relevantes da cliente. A segunda assume as mesmas opções para construir uma sociedade e uma cultura clínica mais equitativas. A complementaridade das sensibilidades que as duas abordagens trazem consigo é o que pode tornar esse encontro valioso.

A maior limitação do presente estudo é seu embasamento em publicações. Limita-se à produção científica na língua portuguesa acerca da TF e na literatura acerca da FAP. Resultados mais consistentes poderiam ser obtidos ao se pesquisarem os motivos e os pontos de vista de terapeutas na prática. Os resultados devem ser considerados um ponto de partida a serem comparados com futuros estudos que examinam as opiniões e vivências de terapeutas por meio de entrevistas. Estas poderiam sondar diretamente as práticas de terapeutas em relação a questões de gênero no consultório.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Luc Vandenberghe
Caixa Postal 144, Ag. Correios Central, Praça Cívica, Setor Central
Goiânia – GO – Brasil. CEP: 74001-970
E-mail: luc.m.vandenberghe@gmail.com

Submissão: 21.5.2013
Aceitação: 1.9.2014

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