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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.18 no.2 São Paulo ago. 2016
https://doi.org/10.15348/1980-6906/psicologia.v18n2p34-45
PSICOLOGIA CLÍNICA
Frida Kahlo: considerações sobre o trauma e a reinvenção do corpo
Frida Kahlo: consideration about the trauma and the reinvention of the body
Frida Kahlo: consideraciones sobre el trauma e la reinvención del cuerpo
Eduardo Bernardes NogueiraI; Gustavo Adolfo Ramos de Mello NetoII
IFaculdade Guairacá, Guarapuava - PR - Brasil
IIUniversidade Estadual de Maringá, Maringá - PR - Brasil
RESUMO
Este artigo tem como objetivo compreender a relação entre o corpo e o trauma na vida e obra da pintora mexicana Frida Kahlo. Adotamos como objeto de análise, análise psicanalítica, seus autorretratos - mais precisamente A coluna quebrada, de 1944. Do ponto de vista do método, utilizamos a noção de psicanálise extramuros ou extraclínica, que diz respeito a estudos em que o que se analisa não advém diretamente da clínica, mas da cultura. O que, então, se supôs serem traumas de Frida Kahlo foi tratado a partir da ideia de reconstrução do corpo sexual por meio da arte. Um acidente de ônibus aos 18 anos parece ter reativado o trauma da poliomielite, que sofrera aos 6 anos, fazendo retornar à artista o problema de seu corpo frágil. Neste sentido, a arte aparece como modo de lidar com este trauma ao mesmo tempo que simula um corpo, lócus originário da sexualidade.
Palavras-chave: Frida Kahlo; trauma; psicanálise; corpo; arte.
ABSTRACT
This article aims to comprehend the relation between the body and the trauma in the life and work of the Mexican painter Frida Kahlo. We adopted as an object of analysis, psychoanalytical analysis, the self-portraits of Frida Kahlo - more precisely The broken column (1944). We used, from the point of view of the method, the idea of psychoanalysis extra-walls or extra clinic, which relaties to studies in which it is analyzed does not come directly from the clinic but the culture. We treated what we supposed being traumas of Frida Kahlo as a reconstruction of the sexual body throw art. A bus accident ate the age of 18 seems to reactivated the trauma of poliomyelitis that take place at 6 years old, returned to the artist the problem of a fragile body. In this sense, her artwork appears as a way to deal with the trauma at the same time that simulated the body, locus of the origin of sexuality.
Keywords: Frida Kahlo; trauma; psychoanalysis; body; art.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo comprender la relación entre el cuerpo y el trauma en la vida y obra de la pintora mexicana Frida Kahlo. Adoptamos como objetivo de análisis, análisis psicoanalítico, los autorretratos de Frida Kahlo - y específicamente La columna quebrada (1944). Desde el punto de vista del método, utilizamos la noción del psicoanálisis extramural o extraclínica, que se refiere a los estudios en los que se analiza no viene directamente de la clínica, pero de la cultura. Aquello que se supone fueron traumas de Frida Kahlo fueron analizados a partir de la reconstrucción del cuerpo sexual a través del arte. Un accidente de bus a los 18 años parece haber reactivado el trauma de la poliomielitis que afecto a Frida a los 6 años haciendo retornar a la artista al problema de su cuerpo frágil. En este sentido su arte aparece como un modo de lidiar con este trauma al mismo tiempo en que simula un cuerpo, locus originario de la sexualidad.
Palabras clave: Frida Kahlo; trauma; psicoanálisis; cuerpo; arte.
Este artigo tem como objetivo discutir a relação entre o corpo e o trauma na vida e obra da pintora mexicana Frida Kahlo. Para tanto, utilizamos como referencial teórico a psicanálise freudiana e a Teoria da Sedução Generalizada (TSG), de Jean Laplanche, bem como autores influenciados por estas teorias.
O estudo psicanalítico da arte surge neste contexto como uma das formas possíveis de investigar o traumático e sua relação com o psiquismo. O presente texto é inspirado em uma dissertação de mestrado que, dentre outros temas, investiga relações do corpo com o traumático na vida e na obra de Frida Kahlo.
A arte sempre foi um campo em interface com a psicanálise. Tanto o psicanalista quanto o artista - cada um a sua maneira - se relacionam com aquilo que costumamos chamar de expressões do inconsciente (Kris, 1968). Mesmo assim, a relação entre a arte e a psicanálise é conflituosa (Green, 1994). Diante da disparidade das aproximações entre arte e psicanálise, corroboramos as opiniões de Ernst Kris (1968) e de André Green (1994) segundo as quais - sem entrar no campo específico do estudo da arte, o que poderia nos levar a erros - podemos nos aproximar da arte e da díade artista/obra a partir do próprio aparato teórico da psicanálise. A psicanálise da arte nos permite fazer avançar a psicanálise em estratos específicos, como o do trauma, da sexualidade e da TSG, que são os que nos interessam aqui. Considerando as expressões artísticas um campo de investigação que se tem mostrado acessível à psicanálise, propomos abordá-lo com o intuito de investigar o corpo como origem e expressão da sexualidade, retomando seu lugar primordial na gênese do psiquismo.
Frida Kahlo, no que concerne à sua relevância e adequação à nossa investigação, é considerada a mais importante artista plástica latino-americana e uma das melhores do século XX. O reconhecimento de sua obra veio ainda em vida e, depois de sua morte, ganhou ainda mais destaque, tornando-a um ícone da arte moderna (Crenn, 2013).
Frida Kahlo, nascida em 1907, em Coyoacán, na época um vilarejo próximo à Cidade do México (hoje um bairro da capital mexicana), vivenciou dois episódios que deixaram marcas significativas em seu corpo. Aos 6 anos, Frida sofreu de poliomielite, o que a obrigou a ficar nove meses acamada e deixou sequelas na perna direita. Aos dezoito, sofreu um acidente que quase a levou à morte. O ônibus no qual Frida e seu namorado estavam se chocou com um bonde. Segundo os biógrafos, o acidente foi de proporções graves e houve várias mortes (Zamora, 1990; Herrera, 2011). Neste episódio, Frida teve fraturas por todo o corpo e, além disso, sua pélvis foi atingida por uma barra de ferro, componente de algum dos veículos envolvidos no acidente, que lhe atravessou o corpo e saiu pela vagina. Depois do acidente, passou por um longo período de recuperação. O desejo de ser médica, que alimentara até então, é abandonado e a pintura se torna uma "forma de sobreviver" e ilustrar a "própria realidade" (Herrera, 2011).
Ao longo de quase toda a sua vida, Frida teve de lidar com seu corpo doente. Pas-sou por 22 cirurgias (Herrera, 2011) e, mesmo tendo de lidar com um corpo doente e frágil, Frida pintou com uma capacidade e energia consideráveis. Ao todo, foram estimadamente 170 quadros, sendo cerca de 55 autorretratos, produções marcantes em sua obra. Muitas de suas pinturas fazem referência a um corpo ferido, doente ou debilitado.
O impacto e o reconhecimento de Frida no mundo das artes são tão notáveis quanto a relação de seu sofrimento com sua produção. Ao longo de sua obra, Frida faz reiteradas menções ao seu corpo doente (Crenn, 2013). A vida e a morte dialogam intensamente em sua obra e na incessante produção de pintar a si mesma. Às vezes, com mais vida, às vezes, com a morte mais próxima - e, às vezes, com vida e morte muito próximas - Frida atualiza frequentemente seu corpo psíquico - e dado que é psíquico, é sexual - traumatizado.
Frida Kahlo - sua vida e obra - parece-nos fornecer elementos importantes para nossa análise. Se, por um lado, existem muitas produções sobre a artista, como se tudo sobre sua vida e obra já tivesse sido escrito e dito, por outro, "Frida continua um enigma" (Grimberg, 2008, p. 14). Segundo Grimberg (2008), dependendo do prisma pelo qual se olha para Frida, vê-se algo diferente sempre. A artista parece ter conseguido com êxito expressar em suas obras aquilo que é mais singular em cada um, a dor, o corpo e a sexualidade, pintando a si mesma. Propomos, pois, a ideia de que a produção de autorretratos por Frida Kahlo nos permite adentrar os temas da psicanálise da arte.
Foi, no entanto, necessária uma visita à Cidade do México para que, vendo as obras in loco, pudéssemos avançar na experiência estética que é a base deste trabalho.
Partimos da hipótese de que o corpo representado por Frida como frágil e ferido é uma forma de simbolizar o horror do trauma e coloca a questão da sexualidade em primeiro plano. Para essa análise, selecionamos principalmente a obra de 1944, A coluna partida.
Procuramos, pois, verificar as pistas desta relação entre arte e trauma; buscamos empreender uma escuta analítica das obras e da vida de Frida Kahlo e o que do inconsciente e do trauma está nas obras. Acreditamos que o fazer artístico de Frida pode nos oferecer pistas relevantes de como se dá a relação do trauma com o corpo e do que do inconsciente se articula e pode ser representado como excesso pulsional.
Corpo e teoria da sedução generalizada
Abordamos o corpo a partir das propostas de Freud e Dejours. Com Freud (1923/2006), concordamos com a ideia, explicitamente formulada no texto O ego e o id, de que o corpo é o primeiro estatuto do Eu e por meio do qual este se origina. Essa gênese do Eu pelo corpo acontece em um momento em que este último já se encontra no processo de erotização, sendo, portanto, um corpo pulsional, sexual.
Dejours (2009, p. 24), ciente da concepção freudiana de um corpo libidinal, introduz a ideia de "subversão libidinal do corpo fisiológico". Para o autor, o corpo erótico, libidinal, não se constitui desde o início em uma totalidade, mas é uma conquista tributária da relação da criança com o adulto, ou seja, o corpo erótico do humano seria uma subversão do aparelho fisiológico em que a função seria substituída pela pulsão ao longo dessa conquista.
A partir destas proposições sobre o corpo e a psicanálise, Dejours (2009) traz a TSG. Esta teoria consiste em uma proposta de arcabouço teórico para a psicanálise, novos princípios para a psicanálise, digamos, criada por Laplanche e inspirada em Freud. Laplanche (1992) resgata a teoria da sedução das primeiras publicações psicanalíticas de Freud, precocemente abandonada em 1897, denominada pelo psicanalista francês como sedução restrita, para avançar e torná-la generalizada, isto é, presente na vida de todo ser humano. Laplanche (1992) introduz, na gênese do psiquismo, o outro humano como elemento essencial, base da concepção de Dejours (2009) sobre a conquista do corpo erótico.
Laplanche (1992) propõe uma Situação Antropológica Fundamental (SAF) a que todo ser humano foi exposto, conjuntura originária do psiquismo e que se configura a partir do encontro assimétrico entre adulto e criança.
Toda criança se faz pela relação com o adulto. A gênese do psiquismo e do inconsciente teria lugar pelas mensagens emitidas por um adulto "portador" de um inconsciente sexual e destinadas a uma criança que não o "tem" ainda (Laplanche, 2003). Essa última seria desguarnecida de elementos psíquicos, simbólicos e linguísticos para elaborar ou, ainda, traduzir tal mensagem, que seria parasitada por elementos enigmáticos e sexuais do adulto. Disso decorreria então o inconsciente sexual e ao mesmo tempo um trabalho de tradução da mensagem (Laplanche, 1992). O inconsciente, na criança, seria resultante das partes dessas mensagens que não alcançaram tradução. Seria como se estas caíssem no fundo de um recipiente imaginário e, por causa de seu peso, dessem origem a um novo sistema psíquico.
A mensagem do adulto, e este último ignora o conteúdo polimorfo-perverso de sua própria sexualidade, contém elementos enigmáticos para si próprio. A invasão da mensagem desencadeia na criança uma tentativa de tradução que necessariamente falha. Sabemos, como indica Laplanche (1992), que a tradução completa das mensagens do outro é impossível. Ela, portanto, falhará sempre, mesmo no caso adulto-receptor possuidor de um psiquismo mais capaz de assimilá-las. No entanto, no recém-nascido, a impossibilidade de tradução se deve a não haver elementos significantes mínimos em que se ancore a decodificação.
Laplanche (2003) afirma que as mensagens enigmáticas convocam a uma tradução, entendendo que estamos no campo da linguagem e da comunicação. A criança, receptor das mensagens, realiza essa tradução falha, deixando restos a serem traduzidos. Esses restos são efetivamente o que constitui o inconsciente recalcado. Rodrigues (2013, p. 35) afirma que os "restos não traduzidos, ou seja, o recalcado, dão origem aos objetos-fonte da pulsão, que continuarão incitando novas traduções, como uma pulsão de tradução". Essas partes da mensagem sexual que ficariam sem tradução, ou seja, os objetos-fonte da pulsão, Laplanche (1992) aproximará da noção freudiana de representação-coisa, ou seja, resquícios inconscientes da excitação das zonas erógenas e que estariam sempre buscando tradução, metabolização.
É interessante notar que a "invasão" do sexual na criança não se dá apenas pela mensagem verbal. Como Laplanche (1992) bem explica, é o aspecto linguageiro em geral do humano que se apresenta. Assim, Dejours (2009) aponta que esse aspecto sexual se veicula também pelos cuidados corporais e pelos jogos infantis.
A referida pesquisa de mestrado que originou este artigo se insere no projeto maior O discurso psicanalítico sobre o trauma atual depois de Freud, vinculado ao Laboratório de Pesquisas e Estudos em Psicanálise e Civilização (LEPPSIC) e ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (PPI-UEM). Esse projeto nos convida a pensar nas diversas formas de aproximação e análise do discurso psicanalítico sobre o traumatismo depois de Freud. Tal como se diz no texto desse projeto, ao qual se filia o presente trabalho, hoje o campo psicanalítico se vê obrigado a aceitar o trauma como seu objeto privilegiado. Assim, nossa proposta é de nos valer da expressão artística como elemento central da cultura para adentrar no terreno do traumático.
O trauma e a reinvenção de um corpo
Aos 6 anos, Frida Kahlo contrai poliomielite que a obriga a ficar nove meses acamada. Como consequência da doença, a perna direita dela fica acentuadamente mais fina e mais fraca que a esquerda; o que provoca comentários zombeteiros de outras crianças, que a chamam de perna de pau. Doze anos mais tarde - em 1925 -, Frida se envolve em um acidente de ônibus, conforme mencionamos, que a deixa com ossos quebrados, com hemorragia interna e vários outros ferimentos. Novamente, Frida tem de passar por longos períodos de recuperação, por muitas cirurgias e, em muitos momentos, tem que ficar imóvel em sua cama (Herrera, 2011).
A partir de então, Frida começa sua produção artística, usando durante certo tempo um aparato acoplado em sua cama que a permite pintar deitada (Zamora, 1990). É também nesse momento que Frida inicia sua trajetória de intenso sofrimento físico e de ter de lidar com a decadência do corpo. A nosso ver, aí se apresenta um movimento de ressignificação do trauma relativo ao corpo.
Nossa hipótese é de que só no acidente posterior, o do ônibus, é que um corpo debilitado pôde ressurgir como resultado de uma invasão do outro. Pensamos, pois, que o trauma de Frida é o trauma do próprio corpo e que se evidencia no trauma do acidente, apesar da poliomielite anterior. Vejamos como isso se apresenta.
Partimos da ideia de que o corpo está imbricado no campo egoico, ou seja, os mecanismos que o fazem pouco a pouco se tornar unificado e próprio são mecanismos formadores do Eu. Segundo Freud (1923/2006, p. 3): "O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície". O corpo como Eu, portanto, sexual, dado que o Eu está ligado às pulsões de vida, surge a partir dos cuidados dispensados pelo adulto à criança, bem como do que Dejours (2009) nomeia jogos infantis em que uma parte do corpo é objeto de brincadeiras.
Laplanche (1982) afirma que é no processo de ganhar contorno e limite que este corpo se constitui como um Eu-corpo. O princípio da formação do Eu acontece via corpo físico, e o trauma de Frida é o trauma do corpo, dado que a violência sofrida pela artista é da ruptura e invasão deste limite corporal. O que está em jogo no trauma seria algo originário do psiquismo e da relação com o outro. Um estímulo externo que a invade de forma violenta, colocando em risco a própria integração corporal parece ativar essa relação precoce com o mundo. Assim, podemos entender que a mensagem a ser traduzida no caso de Frida é o próprio enigma original: "O que [o outro] quer de mim?" (Laplanche, 2001, p. 269). Ou, quer me amar ou quer me destruir?
Laplanche (1989 citando Freud, 1920), nos diz que a força de um traumatismo externo tem como equivalente uma excitação pulsional. Assim, o trauma apresenta um excesso pulsional que demanda ligação ou enlace de representações, que ficaria como energia livre, a serviço da pulsão de morte: "Já que não é possível impedir que grandes quantidades de estímulos inundem o aparelho psíquico [assim, grande excitação pulsional], só resta ao organismo tentar lidar com esse excesso de estímulos capturando-o e enlaçando-o psiquicamente para poder então processá-lo" (Freud, 1920/2006, p. 154). É de se pensar, então, que a violência dos traumas de Frida desencadeia um excesso pulsional, uma exigência de trabalho. Por um lado, Frida executa parte desse trabalho pelo exercício de sublimação, na atividade artística, por outro, a quantidade de autorretratos pode demonstrar algo que faz pensar na compulsão à repetição.
Freud (1920/2006, p. 165) nos diz também que em relação à exigência de satisfação da pulsão recalcada "todas as formações substitutivas ou reativas, bem como as sublimações, são insuficientes para remover sua tensão contínua". O autor fala em pulsão recalcada, mas mesmo a pulsão não recalcada não haveria de se portar de forma diferente. Fazendo uma leitura laplancheana e pensando segundo seu modelo tradutivo, temos que o que não teve tradução constantemente exigirá tradução. Nos casos, então, do que Laplanche (1992) denominou intromissão, e esse é o caso do trauma, as mensagens invadem o indivíduo psíquico de forma violenta e, então, ocorre uma forte resistência à tradução, dado não haver ligação da pulsão com representações. Laplanche (1999) denomina "inconsciente encravado" o lócus psíquico em que mensagens violentas e intrometidas ficariam armazenadas, permanecendo quase que intocadas no psiquismo. Isso nos parece remeter ao destino forclusivo da mensagem que Laplanche (1999, p. 6) situa como "aquilo que se introduz no interior, mas continua sendo um corpo estranho não metabolizável". Trata-se do não traduzido.
Devemos considerar também que Laplanche (2003) nos diz que toda mensagem que alcança o psiquismo guarda algo de não traduzível e que constantemente demanda tradução. Podemos pensar então em níveis de tradução das mensagens.
O que parece acontecer com Frida é uma tradução parcial do trauma. É interessante observar que ela não parece manifestar sintomas de repetição, como nos casos de neuróticos de guerra descritos por Freud, por meio de sonhos que atualizam a situação traumática ou sintomas conversivos comuns às neuroses traumáticas. Mas Frida repete em sua pintura, sobretudo na representação de seu corpo. O que talvez seja, ainda, um forte indicador da repetição de Frida é a quantidade de obras e em especial de autorretratos. Cerca de 55 obras são autorretratos, em que seu corpo está à mostra e, por vezes, ferido.
A repetição de Frida Kahlo se dá como atividade que toma sua vida inteira. É provável que os pensamentos de morte que Frida relatava na época do acidente fossem o retorno do traumático em uma tentativa de ligação. Contudo, o que há de mais importante é essa repetição por meio do simbólico como próprio de uma sublimação, ou seja, a repetição se expressa mesmo na atividade simbólica de pintar.
Assim, o que Frida repete é a cena de seu corpo passivo, ferido, sendo olhado pelo outro (dado que é uma obra de arte). Seu corpo e, mais especificamente, seu corpo ferido, podem ser vistos em muitas de suas obras.
De mais interessante, vimos que há em Frida, em suas repetições, algo que se liga à compulsão de repetir e que tem a ver com o trauma e o aquém do princípio de prazer. Todavia, há também algo erótico nessas repetições e que diz respeito ao erotismo do pintor, o erotismo de se exibir e que, diferentemente da compulsão a repetir, está do lado do princípio de prazer. Sabemos desde Freud (2006/1920) que uma coisa não elimina a outra, o erótico pode conviver com o não ligado, o que para Freud estava num além do princípio do prazer. Mas, em adição, podemos pensar que esse erótico exibicionista aí pode muito bem ter a função de ligar o traumático, de dar-lhe representações e pô-lo do lado de Eros, mesmo que a repetição ainda se faça presente.
O corpo de Frida e sua recriação nas obras aparece então como ponto crucial da relação do traumático com sua arte. Como dissemos, compreendemos o corpo como algo que está na base da construção do Eu. Freud (2010/1923, p. 32) afirma que "o Eu deriva [...] das sensações corporais, principalmente daquelas oriundas da superfície do corpo". O Eu, diz ainda Freud (1923/2010, p. 32) "é sobretudo corporal".
Podemos, então, ver o Eu como aquilo que surge a partir do corpo, mas também a parte psíquica que o integra como unidade. Laplanche (1982) nos mostra como é que, no complexo de castração, o Eu como unidade corporal se formará tanto pela imagem no espelho e os cuidados parentais como pela possibilidade de uma penetração que colocaria este corpo em risco. O corpo inicialmente seria apenas um conjunto disperso de sensações e zonas erógenas, e pelo narcisismo e pela constituição do eu, esse corpo se tornaria unificado. "No narcisismo, por sua vez, o corpo começa a ser elevado à condição de si pela sua própria erotização" (Lazzarini & Viana, 2006, p. 245). É de se supor que o corpo só pode ser compreendido como tal a partir do surgimento do sexual e de certa autonomia desse em relação ao campo autoconservativo (Laplanche, 1989). O corpo fisiológico está lá desde o início, porém, só será percebido quando do surgimento do Eu-corpo, já erotizado, ou seja, quando a subversão da função pela pulsão já instaurou sua marca e fez do corpo algo não mais meramente fisiológico (Dejours, 2009).
Assim, a nosso ver, o corpo psíquico deve ser entendido como Eu, ou seja, pertencente ao campo da sexualidade. Isso sugere que um estímulo ou ataque externo ao corpo é sentido como ataque ao Eu bem, como um ataque interno, pulsional, pode ser sentido como ataque ao corpo. Do mesmo modo, um corpo fragilizado pode ser sentido como uma ameaça à integridade do Eu, como se estivesse sempre em perigo. Frida, então, é de se supor, tenta repetidas vezes construir um corpo capaz de evitar a sua própria desintegração.
A coluna partida
Dos vários autorretratos que analisamos, mostramos, neste artigo, apenas um: A coluna partida (1944). Fazemo-lo por motivos de espaço, mas também por julgarmos que essa pintura é, dentro de certos limites, uma representante de tantas outras e, então, nos permite compreender como o corpo e o trauma aparecem na obra de Frida Kahlo. Essa obra talvez seja uma das mais contrastantes e, por isso mesmo, uma das mais conhecidas da pintora. Nela, Frida aparece em primeiro plano com o deserto mexicano e o céu azul no plano de fundo. O contraste na obra se dá pelo horror diante do dorso de Frida aberto, como uma fenda aberta no solo por um terremoto, em comparação com a beleza do corpo feminino e a "impassibilidade resoluta" de Frida (Herrera, 2011, p. 100). Dentro do dorso está uma coluna jônica rachada no lugar em que estaria sua própria coluna vertebral. Seu corpo está nu a não ser por um pano cobrindo a região pélvica e suas pernas. Seu corpo se mantém unificado por um colete ortopédico branco (igual a muitos que utilizou na vida).
Outro ponto contrastante na obra é a presença de pregos por todo o corpo em contraposição à figura de seus "seios cuja beleza perfeita faz com o rasgo que desce do pescoço até a cintura pareça ainda mais medonho" (Herrera, 2011, p. 101). Vejamos que esses seios à mostra reservam algo de Eros, o exibicionismo, a sedução e, quem sabe, essa seja a prova fundamental de que esse corpo se mantém unido.
Frida apresenta nesse quadro a violência e o horror do trauma e a beleza do corpo num jogo metafórico de simular a si mesma. É metafórico porque condensa no mesmo corpo a sensualidade da nudez e a fragilidade física. Se, contudo, em algumas obras, o que aparece é um corpo belo e integrado e, em outras, o que se mostra é um corpo ferido e aberto, em A coluna partida, Frida une os dois elementos que a constituem: a sexualidade - ou digamos, a sedução - e o sofrimento.
O que nos permite avançar na interpretação dessa obra e da criação artística de Frida é que ela aponta para a contínua produção de autorretratos da artista como uma reconquista do corpo erótico. Dejours (2009) afirma que o aparecimento do sexual é uma subversão, pois o corpo físico se transforma em corpo sexual. É pela relação desigual com o adulto que a criança, de que fala Laplanche (1992), "descobre seu corpo e a afetividade absoluta da vida. E o lugar essencial do encontro da criança com o adulto é o corpo: os cuidados com o corpo e os jogos com o corpo" (Dejours, 2009, p. 231). É nesse movimento que as partes do corpo físico se tornam zonas erógenas.
O que Dejours (2009, p. 231) ainda indica é que essa conquista subversiva do corpo erótico é inacabada, ou seja, "o corpo erótico é sempre a se reconquistar". A obra de Frida Kahlo parece ir nesse sentido, de movimento contínuo de reconquista do corpo sexual ao pintar-se sucessivamente.
Para além de pensar que Frida retrata a si mesma como uma tentativa de ressignificar o passado, podemos interpretar que este processo de reconquista do corpo erótico pelos autorretratos é como uma forma de produzir um corpo.
Dadvarl, Kamarzarrin, Mansorvar e Khaledian (2013) partem da ideia de que o excesso produzido pelos traumas vivenciados por Frida aparece em seus quadros como a saída encontrada. Mais que isso, avança em sua interpretação afirmando que, para além de uma saída, o "foco dos autorretratos não é representar, mas, sim, simular a imagem de Frida, bem como evidenciar seu estado emocional interno" (Dadvarl et al., 2013, p. 16).
Boese (2005) propõe que a função da arte como produto da criatividade é de ser um mensageiro entre áreas dissociadas da experiência e da consciência. Nesse sentido, crê que a arte serve para integrar áreas dissociadas ou suscetíveis de desintegração, dado que a concretude da obra de arte instaura no mundo algo que de outra forma ficaria dissociado e indisponível. Boese (2005), ainda, contrapõe-se à Lowe (1995), que afirma que os autorretratos de Frida são como máscara que dão suporte para suas emoções. Diz-nos Boese (2005) que, antes disso, eles são o modo como ela consegue manter unificada a imagem de si mesma diante da destruição.
A dissociação - perda de si mesmo -, segundo Boese (2005), é a mais frequente reação à violência do trauma. Outro perigo é do outro interno se perder ou se dissociar.
A partir desses do que se vê nesses dois últimos trabalhos, o de Dadvarl et al. (2013, p. 16) e o de Boese (2005), fica mais evidente a possibilidade de pensarmos a arte como solução, como saída ao trauma. Em vez de apenas considerar a arte como produto do trauma, como consequência, podemos pensar na arte como produtora de uma realidade psíquica. Essa ideia não é novidade para a psicanálise. Todavia, propomos pensar que essa solução via arte não se presta apenas a um destino pulsional de descarga. Para além de pensar a produção artística como forma de ligar a pulsão a representações e assim arrumar um destino para energia, um alívio do pulsional, pensamos a arte - como processo sublimatório - como uma forma de renovar o sexual recriando caminhos psíquicos. Isso se contrapõe à ideia de descarregar a pulsão por caminhos - podemos pensar aqui em representações - conhecidos. O que pretendemos afirmar é a importância de perceber a arte como uma produção de realidade psíquica, como produção de mensagem, em boa parte nova, como resposta aos enigmas da existência do artista. Na produção de um quadro, Frida simula, forja um corpo, ao mesmo tempo que convida o outro a olhá-lo, erotizando-o, recriando sua relação com a sexualidade.
Considerações finais
A obra de Frida apresenta uma profunda relação entre sua vida e sua produção artística. Podemos identificar representações de seus sentimentos, angústia e afetos em seus quadros.
Do ponto de vista da psicanálise, o que nos chama a atenção é que Frida, ao pintar, parece construir um corpo ao mesmo tempo que lida com a reminiscência do trauma do corpo. Entendendo o corpo como sexual é também a sexualidade que é resgatada e reconquistada neste movimento criativo. Se é do corpo que Frida padece, é exatamente ele que será constantemente representado e recriado. Laplanche (1989) argumenta que a sublimação é uma forma de neocriação da sexualidade por ativar novas formas de satisfação pulsional, e as obras de Frida parecem caminhar neste sentido.
Por outro lado, Frida é capaz de dar forma à sexualidade como traumática e feminina, representando seu corpo penetrado e ferido. Nada mais originário do que o modo como a artista apresenta, supomos, a passividade da gênese da sexualidade e do psiquismo. Neste ponto, apontamos para a capacidade da arte de mostrar aquilo do ser humano que é mais singular, ou seja, sua constituição psicossexual. É o horror e a beleza da sexualidade e a mensagem invasora do outro, preço que se paga com o próprio corpo - ou com a subversão dele - para sermos sujeito do inconsciente.
Referências
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Endereço para correspondência:
Eduardo Bernardes Nogueira
Faculdade Guairacá, secretaria de Psicologia
Rua XV de Novembro, 7050, 2º andar, Centro
Guarapuava, Paraná - PR - Brasil. CEP: 85010-000
E-mail: eduardobnogueira@yahoo.com.br
Submissão: 10.08.2015
Aceitação: 15.3.2016