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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717versão On-line ISSN 1981-0490
Cad. psicol. soc. trab. v.10 n.2 São Paulo dez. 2007
ARTIGOS
Refletindo sobre desemprego e agravos à saúde mental
Reflections on unemployment and mental health damages
Letícia Ribeiro Souto Pinheiro1; Janine Kieling Monteiro2
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)
RESUMO
O presente artigo visa contribuir para a discussão das relações entre desemprego e saúde mental. Frente a isso, pauta-se nos principais constructos teóricos sobre a temática visando traçar um panorama atual das relações entre desemprego e agravos à saúde mental. Denota-se a escassez de produções nacionais que se proponham averiguar os impactos do desemprego na saúde mental, evidenciando um amplo e desafiador terreno a ser estudado. Enfatiza-se, dessa forma, a emergente necessidade dos profissionais de saúde de intervir na saúde mental daquele que está desprovido de trabalho e de reconhecimento social.
Palavras-chave: Trabalho, Desemprego, Saúde mental, Sofrimento.
ABSTRACT
This article aims to contribute to the discussion about the relationship between unemployment and mental health. Thus, it is based on the main theories on the topic, as well as it intends to point out a current view of the relationships between unemployment and mental health damages. Due to the lack of national productions on this issue, it is considered to be a broaden and challenging area to be explored. This way, we can also emphasize the urge that the health professionals interfere in one's mental health, especially if he/she is jobless and lacks social acknowledgment.
Keywords: Job, Unemployment, Mental Health, Suffering.
O mundo do trabalho e o “mundo sem trabalho”
O desemprego é na contemporaneidade um dos assuntos mais preocupantes, visto que se evidencia como um fenômeno mundial. Apesar de relevante, a relação entre desemprego e saúde mental tem sido ainda insuficientemente estudada. Diante disso, o artigo propõe-se a contribuir na discussão dessa temática ressaltando um olhar profundo ao trabalhador que se encontra em situação de desemprego. Para tanto, iniciaremos focando as transformações ocorridas no mundo do trabalho e suas repercussões na problemática do desemprego e saúde.
À luz dos estudos engendrados no campo da psicologia do trabalho existem tradicionais referências (Chanlat 1993; Codo 2000; Dejours 1999) nas quais expressam ênfase maior as questões do trabalho, sofrimento psíquico e a figura do trabalhador. Aos conteúdos atrelados às questões da subjetividade, da saúde mental, da identidade e do trabalho, os estudos demonstram questões específicas do sujeito trabalhador com sua subjetividade nos processos de trabalho (Fonseca, 2000; Nardi, 1999; Tittoni, 1994). No entanto, para o fenômeno do desemprego não existem variadas referências que se proponham a estudar especificamente - até mesmo de forma longitudinal - a problemática. Destarte, no estudo do desemprego mostra-se fundamental um olhar atento para o trabalho, pois em inúmeras vezes é no contexto de trabalho que começam a emergir agravos à saúde devidos ao medo do desemprego.
Cabe destacar, com muita relevância, a importância e a centralidade do trabalho na vida dos sujeitos e como elas repercutem no fenômeno do desemprego, a partir de Lima e Borges (2002):
Ao contrário de certos modismos teóricos contemporâneos, defendemos a centralidade do trabalho para o homem, mesmo nas suas formas mais entranhadas. Em outras palavras, não vemos como pensar o homem desconsiderando essa categoria e muito menos como pensar as conseqüências do desemprego desconsiderando o fato de que o trabalho foi e permanece central para o ser humano. Assim, as reações do desempregado à sua condição não são fruto apenas das perdas materiais que sofreu, mas, sim, da impossibilidade de expressar-se, desenvolver-se e deixar sua marca no mundo (p. 338).
O trabalho constituiu-se para o homem como um verdadeiro sentido de vida, sendo que, em muitas situações, ele passa a maior parte de seu tempo trabalhando, mais do que vivenciando situações fora do espaço de trabalho. É pertinente enfatizar aqui a definição de Borges e Tamayo (2001, p. 13):“ O trabalho é rico de sentido individual e social. É o meio de produção da vida de cada um, criando sentidos existenciais ou contribuindo na estruturação da personalidade e da identidade”.
Vasconcelos e Oliveira (2004) referem que uma grande parte dos trabalhadores tem no trabalho o único elo social fora do convívio familiar. Nessa perspectiva, mostra-se essencial refletir sobre a situação do trabalhador que encontra-se fora do meio de trabalho, o que pode trazer conseqüências para sua saúde mental, uma vez que o trabalho representa algo tão significativo na vida dos seres humanos e no reconhecimento social.
Vasconcelos e Oliveira (2004) enfatizam ainda que o trabalho, ao produzir no homem um sentido de inclusão social, revela quanto a sociedade dá importância àquele que está produzindo, destacando aquele indivíduo que tem vínculo empregatício, salário fixo e estabilidade, por mais que haja uma forte tendência para a economia e para o trabalho informal. Porém, o fato de não estar trabalhando, leva o homem a enfrentar um processo de desvalorização social.
O trabalho passa, dessa forma, a ser uma maneira de estar incluído e locado na sociedade. Wickert (1999) resssalta essa questão:
Sim, o trabalho passa a ser a via de acesso para o lugar social, pois o sujeito só tem o reconhecimento de sua existência, caso produza. Entretanto, quando já não é mais produtivo a sua locação deixa de existir, pois não tem mais como pagar o aluguel social (p. 68).
Grisi (2000) destaca que, além da importância social, o trabalho é representado na vida do sujeito como fonte de subjetivação. No mesmo âmbito, Tittoni (1994) enfatiza o trabalho como objeto de desejos e de aspirações dos homens, inscrevendo o ser humano nas relações com seus semelhantes e o seu autoconceito.
Desse modo, vista a amplitude do trabalho, constata-se que, de acordo com Sant'Anna (2001), o reconhecimento também encontra-se nessa temática. No entanto, a desenfreada busca por rentabilidade faz com que as pessoas fiquem cada vez mais carentes de reconhecimento e afeto. O mundo atual é miserável de afeto pelo outro, mas, como destacam Guattari e Rolink (1986), o ambiente de trabalho pode ser uma fonte de reconhecimento e troca de afeto.
Na contemporaneidade, Werner (2002) aponta como o maior inimigo na nova organização do trabalho o colega que está ao lado, pois com a competição provocada por movimentos individualistas, o colega de trabalho passa a ser uma ameaça ao seu emprego. O trabalhador passa a ver-se sozinho, isolado e desamparado, achando como solução a sujeição às exigências da empresa. A falta de relacionamentos sinceros e honestos é o resultado do estudo de Sherafat (2002), afirmando que essa pouca ou nenhuma confiança no outro faz com que o medo impere, gerando insegurança aos funcionários.
Entretanto, Lima (2003) destaca que não existe um consenso ainda claro, frente o nexo causal, entre a exposição às novas formas organizacionais e o desenvolvimento de transtornos mentais. Denota-se a necessidade de estudar de forma abrangente a problemática, incluindo as dimensões objetivas e subjetivas, coletivas e singulares das doenças mentais.
As mudanças tecnológicas, de acordo com Antunes (1995), trouxeram à tona um novo significado social do trabalho, deixando os trabalhadores desprevenidos quanto à sua estabilidade e segurança. Destacando, ainda, que o trabalho autônomo e o auto-empreendimento são, atualmente, formas de sobrevivência e não de escolha.
Essas profundas modificações remetem os trabalhadores à forte pressão psíquica da contínua ameaça de ficar desempregado e à sobrecarga física e psíquica devida às exigências de produtividade e à competição nos mercados (Leon & Iguti, 2003). Essas submissões representam o medo imperativo: o desemprego, a falta de trabalho no amanhã. Frente a esse temor, Seligmann-Silva (1994a) ressalta que o processo de adoecimento e os reflexos psicossociais do desemprego começam quando o trabalhador percebe o risco de ficar desempregado. Silenciar a própria dor e restringir a comunicação são efeitos do medo de perder o emprego, tornando esse indivíduo seu próprio refém e da empresa (Barreto, 2000).
A demissão, pensada pelos funcionários como punição por não corresponder às exigências e pressões, de acordo com Merlo et al. (2003), também caracteriza o sofrimento no trabalho. O medo, para Dejours (1992), encontra-se presente nas mais diversas e diferentes ocupações profissionais, sendo que pode tomar uma dimensão importante. Esse receio faz com que as relações mudem, passando a exercer de forma ímpar o individualismo, aumentando a competição e a fragilização dos laços emocionais.
As incertezas geradas pela desenfreada globalização e quanto ao futuro profissional (Castel, 1998) podem fazer com que o indivíduo desempregado torne-se alvo de discriminações e exclusões. O distanciamento do meio social torna-se inerente, uma vez que ocorrem rupturas dos laços de sociabilidade que foram constituídos no mundo do trabalho.
Frente a essa perspectiva de sociabilidade, Jacques (2003) destaca a importância do trabalho enquanto ser social, pois entende a identidade de trabalhador como representatividade da identidade do eu. A ruptura social advinda com o desemprego permeia o afastamento do sujeito das principais referências de seu cotidiano e, assim, ele pode encontrar na doença um refúgio (Seligmann-Silva, 1994a). A representatividade de estar doente passa a ser menos constrangedora socialmente do que a de estar desempregado. Dejours (1992) afirma que o desemprego possui uma imagem de negatividade na sociedade. Compreende-se, a partir do exposto, que a identidade de trabalhador na atual sociedade é excessivamente valorizada e vista ainda como um dever moral. Diante disso, o ócio também é altamente considerado, uma vez que se preconiza a capacidade produtiva. Assim, nessa sociedade, observa-se que o trabalho é mais que trabalho e o não trabalho é mais que desemprego (Chauí, 2000).
Constata-se que o labor é mais que um dever para os indivíduos. Trabalhar passar a ser condição sine qua non para viver, tanto pela questão material quanto pelo reconhecimento social. O medo de entrar na situação oposta ao emprego faz com que torne-se possível suportar trabalhar em empregos e em atividades nos quais é difícil perceber qualquer característica de dignidade e humanidade. O risco que se corre é de naturalizar a dor e o sofrimento impostos pelas condições de trabalho (Sato & Schmidt, 2004).
É sabido que o desemprego assusta, fragiliza e afeta a condição subjetiva do trabalhador (Vasconcelos & Oliveira, 2004). A escala crescente de desemprego faz com que surjam dois pólos: de um lado, aqueles trabalhadores à procura de emprego em tempo integral e, de outro, aqueles trabalhadores desmotivados, que já não procuram mais emprego. As taxas de desemprego tendem a ser cada vez mais crescentes, sendo que ocorre também o aumento na aquisição de tecnologias sofisticadas por partes das empresas. Dessa maneira, cada vez mais, a economia produz bens e serviços tecnológicos empregando cada vez menos a força humana de trabalho (Rifkin, 1995).
Guimarães (1998) propõe uma leitura do desemprego com base da perspectiva histórica, na qual até então se constatava o fenômeno como transitório. Atualmente, ocorre uma ruptura do nexo entre emprego e desemprego. A expansão da produção ocorre sem um aumento do emprego, delineando-se assim o desemprego estrutural e a perda dos direitos dos indivíduos.
O desemprego apresenta-se hoje em dia como uma das conseqüências causadas pela desenfreada globalização. Essa reestruturação da produção propiciou também a deterioração das condições de trabalho bem como das relações nele estabelecidas. Nessa perspectiva, cabe ver a importância de como essas novas formas de trabalho interferem no desemprego, na desfiliação e na exclusão social (Castel, 1998).
Jahoda (1988) propõe um modelo que parte da concepção de que o desemprego priva o indivíduo de vários ganhos, tais como os benefícios da remuneração, uma função manifesta do emprego, e mais cinco funções ocultas: a estruturação temporal do cotidiano, contatos com pessoas fora da família, metas e propósitos que transcendem o individual, status e identidade. A autora enfatiza que a principal característica comum a todos os que se encontram desempregados é a exclusão abrupta de uma instituição social, a qual dominava suas vidas anteriormente.
Caldas (2000) sinaliza que o aspecto da atemporalidade remete à situação na qual se encontra o desempregado hoje. A falta de requisição e de compromissos, advindos da condição do desemprego, pode gerar excesso de tempo e redução de exigências no geral. Essa dificuldade para preencher o tempo por falta de atividade pode acarretar distintas reações de natureza emocional, psicológica, física, comportamental, familiar, econômica, profissional ou social.
Para Leon e Iguti (2003), o desemprego também representa perdas e rupturas nas mais variadas dimensões da vida do ser humano, sendo que suas repercussões estendem-se não apenas ao indivíduo desempregado, mas também a todo o seu contexto familiar. Destaca-se o desequilíbrio econômico devido à perda de poder aquisitivo. Na mesma perspectiva, Ezzy (1993) afirma que esse momento representa um período de mudança, de passagem, algo como uma transição social, porém acima disso significa a perda de status social.
A expulsão do mundo do trabalho e, conseqüentemente, a exclusão da sociedade faz com que os indivíduos desempregados passem a ser impedidos de uma vida dotada de algum sentido (Antunes, 2002). O trabalho até então tinha um cunho de referência econômica, social, cultural e, principalmente, psicológica (Castel, 1998). Mostra-se notório a demasiada importância que o trabalho assume na vida dos seres humanos, sendo que ao cortar essa ligação depara-se com a perda de todo esse investimento e de reconhecimento social e subjetivo.
Visto isso, Cardoso (2000) acrescenta que o desemprego torna-se freqüentemente sinônimo de exclusão. Sendo assim, surgem os riscos negativos do desemprego e do medo de continuar desempregado: aceitação de trabalhos precários e baixos salários (Estramiana, 1992). O processo de desvalorização é quase inevitável, sendo que os trabalhadores buscam estratégias de sobrevivência e recolocação no mercado de trabalho a qualquer custo (Azevedo et al., 1998).
Podemos considerar, pelo que foi exposto acima, que há uma influência mútua nas conseqüências adversas de agravos à saúde no trabalhador que está trabalhando - principalmente pela ameaça do desemprego - e naquele trabalhador que está em situação de desemprego, pelas faltas demarcadas pela ruptura com o trabalho.
Considerações acerca dos estudos da relação entre desemprego e saúde mental
A perda do emprego e suas conseqüências é objeto de estudo desde os anos 30. Contudo, Estramiana (1992) afirma que não há uma profunda continuidade nos estudos, evidenciando certo atraso frente ao sujeito desempregado. Os estudos até então desenvolvidos demonstram que as conseqüências do desemprego não se limitam apenas aos fatores econômicos (Blanch, 2001). O desemprego trás no seu bojo questões mais específicas da clínica, que se estendem desde o prejuízo na auto-estima (Sarriera, 1993) até os casos relacionados com suicídio (Gunnell et al., 1993).
Ferrara, Acebal e Paganini (1976) definem a saúde mental como a expressão de luta do ser humano perante os seus conflitos, procurando enfrentá-los, abrindo assim a perspectiva de um novo diálogo. Codo, Soratto e Menezes (2004) propõem uma leitura da saúde mental fazendo um contraponto com Freud, de maneira a incluir no conceito o amar e trabalhar. Ou seja, os distúrbios mentais instauram-se pela incapacidade de amar e de trabalhar, sendo que um retroalimenta e produz o outro. Para tanto, a saúde mental encontrar-se-ia situada na capacidade humana de construir-se a si própria.
A saúde é definida por Dejours (1986) como algo dinâmico. Não sendo ausência de dor ou sofrimento, mas ao contrário o sujeito demonstrar condições de interferir no que os causa. Dessa forma, a saúde é entendida como a possibilidade de alterar situações que provoquem sofrimento:
A saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir novas normas em situações novas (Caguilhem, 1990, p. 143).
Entende-se que a saúde passa a ser sinônimo de possibilidade de transformação, produzindo novos modos de pensar as experiências e de agir. Então, como isso se processa no desemprego? Dejours (1994) aponta que o sofrimento no trabalho começa quando o trabalhador não mais satisfaz as imposições da organização do trabalho, gerando pressão no ambiente de trabalho. Há, portanto, um desafio aqui exposto: como transformar de forma criativa, sem adoecimento, a situação do desemprego? Já que o indivíduo sofre igualmente com a perda do emprego ou se permanece numa organização rígida, sem possibilidade de criação.
A evolução no processo de adoecimento psíquico do desempregado pode ser pensado em quatro fases propostas por Lira e Weisntein (1985, citados por Seligmann, 1994b). No primeiro momento ocorre a reação do indivíduo que busca soluções para seu desemprego, contudo ele já demonstra alguns sintomas, como mudança de humor e insônia. A segunda fase caracteriza-se pela transição, na qual presencia-se desânimo, tristeza e o início de um processo de isolamento. A adaptação patológica frente à situação é a terceira fase, sendo que pode ocorrer o alcoolismo. O último momento caracteriza-se pelo embotamento afetivo e a deterioração da auto-imagem, acentuando o desalento.
A relação existente entre o desemprego e os transtornos mentais ainda não está totalmente compreendido. Contudo, alguns autores (Ezzy, 1993; Graetz, 1993) destacam a existência de certos tipos de desemprego, como por exemplo, a saída de um emprego monótono e repetitivo, limitador das habilidades do indivíduo, como fonte de conseqüências positivas, da mesma forma que certos empregos têm efeitos negativos sobre a saúde mental.
Os estudos encontrados posicionam-se, basicamente, na área da saúde mental e trabalho (Martinez, 2002; Peterson & Dunnagan, 1998), sendo que essa abordagem normalmente está relacionada à saúde do trabalhador. Seligmann-Silva (1994a) traz à luz a questão do desemprego ao mencionar que as modificações do mundo do trabalho têm tornado cada vez mais tênues as fronteiras entre a psicopatologia verificada no trabalho e o que tem sido denominado como psicopatologia do desemprego. A gravidade dessa problemática foi constatada por Angerami e Santos (1984) ao entrevistarem sobreviventes de suicídios em diferentes prontos socorros de São Paulo, sendo que 33% dos entrevistados pensaram no suicídio relacionado ao desejo de desaparecer em decorrência do desemprego.
Stewart (2001) pesquisou a respeito do impacto da condição de saúde na permanência em desemprego de longa duração. Uma de suas conclusões é que os indivíduos com saúde precária tendem a permanecer mais tempo em desemprego e por isso constituem parcela significativa dos desempregados. Evidencia-se, dessa forma, que a relação entre desemprego e saúde é extremamente relevante.
A autora destaca ainda que o mundo dos que trabalham está cada vez mais pressionado pelo mundo dos sem-trabalho, uma vez que as patologias constituídas no trabalho, muitas vezes, acarretam a própria perda do emprego. Além disso, a perda de emprego pode representar o ponto culminante de uma escalada de desgastes, configurando um verdadeiro trauma para a auto-estima e, portanto, para a identidade, interferindo na saúde mental. Denota-se aqui que ocorre uma interação entre o campo do trabalho e do desemprego, porém sem debruçar-se especificamente neste, evidenciando, assim, a necessidade de um olhar mais profundo para o campo do desemprego e saúde mental.
Em uma pesquisa com desempregados, Caldana (2000) detectou que o apego ao plano espiritual serviu como estratégia para enfrentar a situação de desemprego. A pesquisadora concluiu que havia consciência, por parte dos desempregados, da importância da manutenção da saúde para lidar com a situação de desemprego e, uma vez que existe relação entre o bem-estar mental com aumento das chances de se reempregar. Constatou, ainda, que o apego ao plano espiritual pode ser uma estratégia eficaz frente à situação de desemprego.
Svensson e Zollner (1985) destacam em seu estudo que indivíduos desempregados e suas famílias sofrem um significativo aumento no risco de adquirir doenças mentais ou psicológicas, podendo levar à morte prematura, quando comparados com a população empregada.
Rocha, Carvalho e Barreto (1999) realizaram um estudo referente ao impacto do desemprego na saúde de homens e mulheres no município de São Paulo. Detectaram a desvalorização profissional, na medida em que os desempregados aceitariam qualquer tipo de trabalho. Observaram ainda o medo de permanecer desempregado, a perda de dignidade, valor e reconhecimento, as dificuldades para a sobrevivência, assim como os limites impostos à vida e ao viver. As autoras destacam os principais impactos do desemprego como vivências depressivas, desânimo, pensamentos suicidas,tensão, insegurança, insônia, dores generalizada, mau humor e brigas familiares.
Semelhante a essas descobertas, Hammer (1996) voltou-se para o estudo de jovens expostos a longo período de desemprego. Os resultados demonstram problemas mentais associados a nervosismo, insegurança, medo e falta de pertencimento em relação à sociedade, sugerindo a partir desse estudo que pessoas com agravos de saúde mental têm maior probabilidade de desemprego contínuo. Quanto à questão do reconhecimento, Cobb e Kasl (1979) demonstram que indivíduos em longa data de desemprego são menos respeitados do que aqueles reempregados.
Silva (2006) aponta que a perda do vínculo com o emprego formal pode conduzir o indivíduo a manifestar o surgimento de gastrites, úlceras, desenvolvimento de cânceres, estresse, fadiga, entre outros. A autora sinaliza que as manifestações podem ocorrer também no desenvolvimento de problemas emocionais, como neuroses, psicoses, síndrome de pânico, depressão, fobia social, ansiedade e outros.
A ótica do desemprego, sob um olhar mais qualitativo, aponta para conseqüências individuais psicológicas relevantes, principalmente porque se percebe que há um estímulo ideológico para levar o homem a assumir a responsabilidade pessoal pelo fato de estar desempregado, ou seja, carregando uma culpa que, segundo Bárbara (1999):
...pode estar respondendo à comunidade verbal que reforça este comportamento por ser importante para a sociedade, pois, assim, exime-se da responsabilidade pelos desequilíbrios em sua forma de organização da produção e da distribuição de riquezas (p. 36).
Destarte a desqualificação do trabalhador possa ser conseqüente da falta de condições financeiras para instrumentalizar-se e competir em um mercado de trabalho de ofertas enxutas, não parece, por si só, ser responsável pelo estado de desemprego. Bárbara (1999) afirma que mesmo se os trabalhadores tivessem a qualificação, ainda assim não existiriam postos de trabalho para todos e, dessa maneira, o discurso ideológico deveria encontrar outra razão para justificar a exclusão.
Esse contexto, de modelo econômico excludente, proporciona ao trabalhador um sentimento de culpa por estar desempregado e até mesmo desqualificado para o mercado, gerando sentimentos de fracasso e baixa auto-estima. Percebe-se, então, que esse sentimento de fracasso pessoal vem acompanhado de variadas conseqüências psicológicas, que dizem respeito à saúde mental, sendo sinônimos de insegurança, depressão e isolamento.
A saúde física torna-se alvo conseqüente do desemprego, contudo. os comprometimentos mostram-se extensivos à saúde mental e aos relacionamentos sociais (Murphy & Athanasou, 1999). Corroborando esse estudo, Caldana e Figueiredo (2002) demonstram semelhantes constatações no que diz respeito ao prejuízo à saúde física e mental, sendo utilizada pelos desempregados várias estratégias de enfrentamento, como por exemplo, a mudança de cidade, o apoio financeiro da rede familiar e a aceitação de trabalhos precários.
O desemprego é causa de sofrimento e doenças na medida em que desorganiza as relações familiares, quebra os laços afetivos, gera relações conflituosas, que, em alguns casos, culmina com separações, retorno da família à cidade de origem e intensificação de doenças pré-existentes ou aparecimento de novas doenças (Rocha, Carvalho & Barreto, 1999).
Vasconcelos e Oliveira (2004) destacam a amplitude da influência do desemprego, que afeta não apenas as relações sociais mas também desequilibra o ambiente familiar, a autoconfiança e, conseqüentemente, reflete de maneira negativa nos vínculos socioafetivos. Tais conseqüências sociais e psicológicas, causadas pelo crescente nível de desemprego, podem vir a gerar diversas formas de transgressão e delinqüência. Essas formas não saudáveis acabam por atrair indivíduos que antes eram trabalhadores e que hoje se vêem privados da atividade produtiva e de recursos financeiros necessários para a sua sobrevivência e a de sua família.
A melhor forma de lidar com o desemprego, conforme Kaul e Kvande (1991, citados por Silva 2006), é a busca por um novo emprego, pois isso pode ajudar na manutenção da identidade ocupacional do indivíduo e no aumento de suas possibilidades de ser reempregado. Na visão da sociedade, a busca por emprego é o único papel legitimado do desemprego. Contudo, os autores ressaltam as situações adversas dessa procura quando fracassada, sendo que não encontrar emprego pode representar uma falha individual, ocasionando baixa da auto-estima e, conseqüentes, problemas mentais.
Considerações finais
A maioria dos estudos traz referência ao nexo entre saúde e doença no contexto do trabalho, sendo tais achados importantíssimos para o desenvolvimento da promoção e da prevenção nos processos de saúde-doença ocupacionais. Nesse sentido, Lima (2003) considera que já existem evidências que indicam que o exercício de certas profissões expõe os indivíduos a elementos nocivos à sua saúde mental.
Contudo, denota-se imperativo questionar: como fica a saúde mental do indivíduo que se encontra fora do mercado de trabalho formal? Não se pode deixar de considerar as contribuições feitas à saúde do trabalhador, mas é necessário debruçar-se também sobre outro objeto de estudo da contemporaneidade: o desempregado, aquele que vivencia a falta de renda, a exclusão do mundo trabalho e que vive à margem da sociedade, por não ser reconhecido como um cidadão ativo e produtivo.
Vê-se que as conseqüências adversas do desemprego podem acarretar a desestruturação de laços sociais e afetivos, a restrição de direitos, a insegurança socioeconômica, a redução da auto-estima, o sentimento de solidão e fracasso, o desenvolvimento de distúrbios mentais, bem como o aumento do consumo ou dependência de drogas.
A situação do desemprego, sob a ótica de outro âmbito, pode também proporcionar uma outra possibilidade: fazer os sujeitos olharem para si mesmos, sendo que, muitas vezes, esse movimento é feito pela primeira vez nessa situação de perda de emprego. Dessa condição pode emanar uma inusitada possibilidade de liberdade e autonomia frente ao futuro, ampliando, assim, os limites antes impostos pelo “ser-trabalhador”, uma vez que o trabalho ao mesmo tempo que sustenta e forma identidade, também a engendra.
Frente a esse outro aspecto da perda do emprego, Moura (2001) ressalta que enfrentar o desemprego significa esvaziar-se, desapropriar-se, desalojar-se de si mesmo, abrir-se às desestabilizações. Destarte, o desemprego pode oportunizar uma reconstrução, propiciando possibilidades de ressignificação da vida e do trabalho.
Coutinho e Graça (2004) destacam a importância de traçar o perfil do desempregado a fim de propor ações concretas para trabalhar os sentimentos decorrentes da situação na qual vivenciam, sejam tais anseios de culpabilização ou vitimização.
Cabe ainda refletir, a partir dos desdobramentos teóricos, a importância do papel dos profissionais da área da saúde buscando intervir nas reações simbólicas e materiais causadas pelo desemprego, juntamente com seus familiares, contribuindo desse modo para prevenir, aprimorar e amenizar agravos à saúde física e mental advindos dessa situação.
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Endereço para correspondência
E-mail: janinekm@unisinos.br, leticia.rsp@terra.com.br
Recebido em: 27/06/2007
Revisado em: 08/08/2007
Aprovado em: 11/08/2007
1 Mestranda em psicologia, Unisinos, São Leopoldo, RS.
2 Professora do mestrado em psicologia da Unisinos. Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS.