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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.13 no.2 São Paulo set. 2010

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O trabalho do deficiente como fator de desenvolvimento1

 

The work of the handicap as a development factor

 

 

Rafaella Portes Diniz Ribeiro2; Maria Elizabeth Antunes Lima3

Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende trazer uma reflexão sobre as possibilidades de desenvolvimento das pessoas com deficiências, considerando as diferenças entre aquelas que superam suas dificuldades e as que permanecem limitadas à sua condição de incapacitadas. O aspecto central da reflexão proposta concerne ao lugar ocupado pelo trabalho nesse processo de desenvolvimento. Para isso, foram realizadas entrevistas em profundidade com dois sujeitos deficientes, inseridos no mercado do trabalho, através do método biográfico proposto por Louis Le Guillant (2006). Além disso, foram realizadas entrevistas focais com outros deficientes que também vivenciaram, em sua trajetória, experiências que ilustram o tema abordado. Os resultados confirmam a grande influência do meio social e familiar no desenvolvimento de pessoas com deficiência, assim como o importante papel exercido pelo trabalho nesse processo.

Palavras-chave: Deficiência, Trabalho, Meio social, Desenvolvimento.


ABSTRACT

This article intends to provide a reflection on the possibilities of development for people with disabilities, considering the differences between those who overcome their difficulties and those who remain confined to their condition of disabled. The focus of the discussion concerns the role that the work activity plays in the development process. For this, in-depth interviews were conducted with two disabled people, who have already entered the labor market, using the biographic method proposed by Louis Le Guillant (2006). Furthermore, focal interviews were conducted with other disabled people who also experienced, in their life, experiences that illustrate the theme of this article. The results confirm the great influence of the social and family environment in the development of people with disabilities, as well as the important role played by labor in this process.

Keywords: Handicap, Work, Social environment, Development.


 

 

Introdução

O problema da inserção do deficiente no mercado de trabalho tem sido objeto de considerável discussão, sobretudo, após o estabelecimento, pelo Estado, de cotas de contratação de deficientes pelas empresas, cujo cumprimento vem sendo bastante exigido.

As deficiências podem ser físicas, sensoriais (visão ou audição) ou intelectuais, podendo ainda ser congênitas ou surgir após o nascimento, em função de doença ou acidente. Elas podem ter consequências brandas sobre a capacidade de trabalho e de interação do sujeito com o ambiente físico e social, ou causar um impacto maior, levando-o a necessitar da assistência de outros (Gil, 2002).

Na Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999), que constitui um conjunto de orientações normativas que visam a assegurar o pleno exercício dos direitos das pessoas com deficiência, pode-se encontrar o seguinte conceito de deficiência:

Art. 3º: Para efeitos deste Decreto, considera-se:

I. deficiência - toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II. deficiência permanente - aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e

III. incapacidade - uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida (p. 1).4

Os problemas enfrentados pelos deficientes variam, desde a falta de acessibilidade, como transporte, adaptação dos ambientes públicos, passando por um sistema educacional mal equipado para trabalhar com a diversidade, até o preconceito manifestado pelas pessoas ditas normais. Nesse sentido, pode-se dizer que as limitações do espaço físico, além das diversas formas de discriminação tendem a levar à exclusão desses sujeitos, afastando-os do convívio social mais amplo e privando-os de viver experiências comuns à maioria das pessoas, inclusive, aquelas relativas ao exercício de uma atividade profissional.

Sabe-se que a inserção de deficientes no contexto do trabalho formal sempre representou um problema. O mercado de trabalho, que nunca deixou de ser concorrido e competitivo, apresenta cada vez mais essas características e, frequentemente, as exigências quanto à qualificação dos possíveis candidatos não são preenchidas por eles. Dessa forma, nos processos seletivos, as pessoas com alguma limitação física, sensorial ou mental tendem a ficar em posição de desvantagem e perdem na competição com os demais candidatos.

Foi por esse motivo que o Estado criou, em 1991, a Lei 8.213, que estabelece que as empresas privadas com mais de 100 empregados devem cumprir cotas de contratação de pessoas com deficiência, ficando definido que aquelas que possuem entre 100 e 200 empregados devem reservar 2% de suas vagas, entre 201 e 500 empregados, 3%, de 501 a 1000, 4% e, acima de 1001 empregados, 5%.

No entanto, alguns críticos dizem que a simples existência dessas cotas já sugere uma espécie de discriminação, pois fica implícito que essas pessoas não são capazes de competir no mercado de trabalho em igualdade de condições. Embora tal objeção não seja de todo incorreta, devemos considerar também que, em decorrência do longo tempo de segregação, muitos desses indivíduos encontram-se, de partida, sem o devido preparo para responder às exigências impostas pelo mercado. Ou seja, as restrições quanto ao convívio social podem ter dificultado o acesso à educação formal e às qualificações necessárias ao seu ingresso no mercado de trabalho, conforme constata Baú (2006), ao dizer que:

Na verdade, o preconceito em relação às pessoas com deficiência está inscrito em nossa história, atingindo indistintamente as pessoas com deficiência física, mental, visual, auditiva ou múltipla. A discriminação é ampla e adquiriu, na sociedade contemporânea, o conteúdo de exclusão social, suprimindo essas pessoas do convívio na comunidade e privando-lhes dos mais elementares direitos de cidadania, entre eles o direito à educação e ao trabalho.

À medida que se aperfeiçoa o meio urbano e se proporciona um acesso mais amplo da população à educação formal, torna-se mais visível a presença de pessoas com deficiência no espaço público. Além disso, é possível notar sua crescente inserção no mercado de consumo, já que, não estando mais restritas ao âmbito doméstico, novas necessidades emergem e podem ser satisfeitas também nesse campo.

No entanto, mesmo quando podem ter acesso a novas oportunidades, alguns deficientes parecem presos a uma condição de incapacidade, enquanto outros conseguem superar o preconceito, a discriminação ou mesmo a própria limitação e se desenvolvem, assumindo novas posições em suas vidas. Nesse sentido, concluímos ser válido procurar conhecer o que diferencia basicamente esses dois grupos, ou seja, quais seriam as condições favoráveis a tal desenvolvimento e quais atuariam de forma a impedir que seja alcançado.

Este artigo pretende trazer uma reflexão sobre o processo de desenvolvimento de pessoas com deficiência, lançando também luz sobre os impactos do trabalho em suas vidas. Ou seja, sua finalidade é, igualmente, a de refletir sobre o lugar do trabalho nesse processo, tendo em vista o conhecimento já acumulado a respeito da importância da atividade laboral no desenvolvimento das potencialidades humanas.

Na tentativa de obter respostas a tais questões, foram realizadas entrevistas em profundidade, visando à elaboração de dois estudos de caso de pessoas com deficiência inseridas no mercado de trabalho. A opção foi pelo método biográfico, proposto por Le Guillant (2006) e que consiste, fundamentalmente, no resgate minucioso das trajetórias pessoal e profissional do sujeito, de modo a apreender suas vivências subjetivas, mas sempre de forma integrada com suas condições concretas de existência. Busca-se, por meio desse método, apreender o mais detalhadamente possível a história do indivíduo, tentando explicitar "suas formas de julgar e de se conduzir", além das "representações do mundo forjadas por essa história" (p. 347).

A fim de enriquecer e ampliar os achados obtidos através dos estudos de caso, foram realizadas entrevistas focais com outros deficientes que também vivenciaram, em sua trajetória, experiências que ilustram o tema abordado.

 

Os resultados da pesquisa

Os estudos de casos individuais, assim como as entrevistas realizadas com os outros deficientes, trouxeram dados instigantes a respeito dos fatores que favorecem ou impedem o desenvolvimento desses indivíduos, além do lugar ocupado pelo trabalho nesse processo.

Ambos os sujeitos cujas histórias resgatamos de forma mais aprofundada, foram vítimas de medicamentos ingeridos pelas suas mães durante a gravidez, deixando sequelas de maior ou menor gravidade. Um deles nasceu sem os membros superiores e o outro com má formação da mão esquerda e ausência de três dedos.

De imediato, chamou nossa atenção o fato de que ambos são bem sucedidos profissionalmente e aprenderam a lidar bem com suas deficiências, graças à maneira pela qual suas famílias, sobretudo, seus pais, reagiram a elas, desde seu nascimento. Ou seja, os dois sujeitos relatam que jamais foram tratados de forma diferente ou poupados pelos pais devido às suas limitações. Tal postura teve um papel fundamental na sua própria forma de encarar o problema, reduzindo o impacto em suas vidas e dando-lhes mais condições de lidar com as dificuldades impostas pelo mundo externo ao espaço doméstico.

Da mesma forma, não sofreram qualquer tipo de impedimento ou de direcionamento na escolha de suas profissões, o que lhes permitiu optar por atividades normalmente vetadas às pessoas com seu tipo de deficiência. Um deles se tornou artista plástico e o outro, técnico em mecânica. Este último, apesar da ausência de três dedos em uma das mãos, praticou vários tipos de esportes, inclusive a ginástica olímpica, sendo que sua performance não se diferenciava em nada daquela apresentada pelos outros ginastas.

Ou seja, nenhum dos dois jamais se sentiu percebido ou tratado como incapaz, nem foi objeto de qualquer tipo de proteção especial por parte dos pais. Estes dispensaram a ambos os mesmos cuidados e a atenção oferecidos aos outros filhos, sendo que isso parece ter criado um contexto favorável à aceitação da deficiência e ao desenvolvimento de estratégias que lhes permitiram realizar satisfatoriamente suas atividades cotidianas. Ricardo5, por exemplo, como não possui os membros superiores, aprendeu a realizar todas as tarefas diárias e, mais tarde, a pintura, utilizando os dedos de um dos pés para segurar os objetos. Mateus também aprendeu a lidar com sua deficiência, não pela sua negação, mas aprendendo com ela, jamais a confundindo com incapacidade.

O apoio recebido da família permitiu que enfrentassem melhor as atitudes preconceituosas daquelas pessoas que, ao desconhecerem suas potencialidades, tentaram impedi-los de ingressar nas escolas ou de exercer determinadas atividades. O incentivo que receberam para se inserir, desde cedo, no meio social mais amplo, fez com se tornassem capazes de estabelecer vínculos, integrando-se e adaptando-se ao mundo das pessoas ditas normais, o que lhes impediu de ver suas diferenças como um empecilho ao seu desenvolvimento, ou mais do que isso, como um handicap, uma incapacidade.

Eles não deixam de ressaltar que foi essa forma escolhida por suas famílias para lidar com suas deficiências que serviu de base para seu desenvolvimento e impediu que se sentissem incapazes. Mas sua educação permitiu, sobretudo, que escolhessem uma atividade profissional, fonte de realização, de valorização pessoal e de independência. Dessa forma, o trabalho assumiu uma importância decisiva em suas vidas. No caso de Ricardo, por exemplo, percebemos que sua profissão representa não apenas uma fonte de renda ou uma forma de preencher seu tempo, mas, principalmente, a possibilidade de alcançar a condição de sujeito independente e livre para realizar suas próprias escolhas. Percebe-se que o trabalho lhe confere uma identidade, ou seja, seu significado vai muito além da satisfação de necessidades materiais, ao dar um real sentido à sua vida.

Contudo, é fato que para ingressar no seu ramo de atividade e, mais do que isso, para conseguir firmar-se profissionalmente, ele precisou superar suas limitações, além de ter de enfrentar as barreiras normalmente impostas ao artista plástico. Ou seja, além da condição física, que lhe obrigou a desenvolver formas alternativas para pintar, teve de lidar com as dificuldades típicas do seu meio profissional, o que não lhe impediu de conquistar sucesso e reconhecimento.6

Assim, à medida que enfrentava as limitações impostas pela sua deficiência, descobria potencialidades até então desconhecidas, tornando-se cada vez mais capaz de lidar com o mundo externo e com o seu próprio mundo interior.

Quanto a Mateus, chamou nossa atenção, sua busca constante por conhecimento e o gosto que desenvolveu pelos estudos das mais diversas áreas, tais como astronomia, filosofia e poesia, graças, segundo ele, à influência exercida por seu pai. Sua deficiência jamais representou um empecilho para o seu desenvolvimento, sendo, hoje, capaz de realizar diversas atividades com as duas mãos e se considerando ambidestro. Além disso, como já foi dito, o fato de ser deficiente não o impediu de atuar também na área esportiva, praticando atividades que, a princípio, poderiam ser vetadas a alguém na sua condição, como por exemplo, a ginástica olímpica. Sabe-se que essa modalidade esportiva exige o uso constante das mãos e a ausência de três dedos na mão esquerda, poderia representar um impedimento, caso ele não tivesse se submetido a exaustivos treinamentos. Ele foi também atleta do SESI e jogador no futebol amador, chegando a participar de torneios.

Assim como ocorreu com Ricardo, o pai de Mateus sempre o incentivou, não apenas nos estudos, mas também na escolha da carreira profissional, levando-o a ingressar ainda jovem no mercado de trabalho. Ele iniciou como estagiário na empresa onde trabalha há mais de 20 anos, tendo sido efetivado, algum tempo depois, devido ao seu bom desempenho. Contudo, relata que sua admissão nesse grupo empresarial não se deu de maneira tranquila. Na época, alguns colegas de estágio também estavam realizando os exames para admissão na empresa e, quando seu chefe percebeu a demora para a divulgação dos resultados e a aprovação de sua admissão, fez uma intervenção a seu favor, até que, finalmente, foi admitido. Descobriu depois que estava sendo vetado pelo setor médico, que o considerou incapaz para realizar suas atividades, por serem essencialmente manuais e exigirem grande destreza. Hoje, atua como uma espécie de coordenador informal de sua área, devido à competência com a qual cumpre suas atribuições, além de sua habilidade no trato com os colegas.

Entretanto, para aprender a lidar tão bem sua deficiência, foi necessário um treinamento contínuo ao longo de sua trajetória pessoal, treinamento este que lhe permitiu não apenas aprender a realizar suas atividades diárias, mas também tomar consciência de sua condição e superá-la. Tudo isso, evidentemente, foi favorecido pelo seu meio social imediato no qual, desde pequeno, foi tratado como uma pessoa capaz. Ele reconhece que, ao longo de sua vida, precisou enfrentar diversas barreiras, mas afirma que sua persistência permitiu-lhe crescer e tornar-se a pessoa que é hoje. Afirma ter sido educado para ser alguém que luta pelo que acredita, o que fez com que desenvolvesse características que chama de "herança da infância". Dessa forma, deixa claro que seu desenvolvimento só foi possível devido ao ambiente favorável no qual cresceu, a forma como as pessoas em seu meio o influenciaram, incentivando-o a superar suas limitações e a não desanimar diante das dificuldades. Ele ressalta também a importância que o trabalho tem tido em sua vida, exercendo um papel fundamental no seu desenvolvimento enquanto sujeito. Como foi admitido ainda muito jovem pela empresa atual, considera que sua experiência profissional foi muito importante para o seu crescimento. A aprendizagem que teve ao longo da vida, além das exigências impostas pela sua atividade, fez com que se tornasse um profissional confiante e seguro de suas competências.

 

Análise dos casos

Deficiência ou handicap?

No bojo das discussões em torno da inserção de deficientes nas empresas, é comum surgir a dúvida sobre até que ponto esses sujeitos são capazes de exercer uma profissão de forma competente ou ocupar um posto de trabalho de modo a atender adequadamente as exigências impostas pelo mercado.

Sabe-se também que, diante das barreiras que têm de enfrentar, muitas pessoas com deficiência podem se apegar às suas limitações, apresentando sérias dificuldades em sair de sua condição e avançar rumo ao seu autodesenvolvimento.

Clot (2006b) apoia-se nas reflexões de Vygotsky ao abordar esse tema e discorrer sobre a diferença entre o deficiente que não se desenvolve e permanece na condição de incapaz e aquele que, apesar de possuir uma deficiência, consegue superar sua condição inicial ou mesmo desenvolver habilidades surpreendentes, como vimos no caso de Ricardo. Para melhor fundamentar sua reflexão, Clot apoia-se na diferença proposta pelo psicólogo russo entre deficiência e handicap,7 dizendo que deficiente é aquele que possui uma falta, se for comparado às pessoas ditas normais, mas que consegue superá-la, fazendo com que não represente um limite ao seu desenvolvimento pessoal e profissional. Em contrapartida, o sujeito se torna portador de um handicap quando toma sua deficiência como um empecilho para desenvolver-se, para conectar-se com o mundo, com o seu meio social ou mesmo para ser produtivo e independente. Portanto, de acordo com essa perspectiva, ser deficiente não é o mesmo que ser incapaz ou portador de um handicap.

Se concordarmos com tal distinção, veremos que, nos dois casos estudados, temos portadores de deficiência, mas não de handicaps. Ambos os sujeitos, cujas trajetórias foram expostas acima, buscaram superar suas limitações, cada um à sua maneira, conseguindo desenvolver suas potencialidades e tornando-se pessoas independentes, integradas ao seu meio e bem sucedidas em suas profissões.

Assim, para ilustrar melhor as diferenças entre os deficientes que não superam suas limitações e aqueles que crescem e se desenvolvem, vale a pena retomar os casos. A experiência de vida de Ricardo revela que a habilidade que adquiriu para se desenvolver e superar as dificuldades decorrentes de sua deficiência foi graças, principalmente, ao apoio que recebeu dos pais, que lhe dispensaram o mesmo tratamento oferecido aos outros filhos, incentivando-o a integrar-se ao seu meio como qualquer outra criança do bairro. Ele recebeu de sua família todo o apoio e incentivo necessários para seu desenvolvimento, sentindo-se livre para escolher a direção que queria dar à sua vida.

Da mesma forma, na história de Mateus, é possível perceber a forte influência dos pais, que também não lhe deram um tratamento diferente daquele oferecido aos outros filhos, não lhe poupando de enfrentar as dificuldades, mas, ao contrário, estimulando-o sempre que se sentia desanimado frente aos obstáculos.

Ambas as trajetórias ilustram bem as reflexões de Clot (2006b), quando afirmou que "se uma pessoa é deficiente e luta contra e além de sua deficiência, às vezes, torna-se capaz de desenvolver capacidades superiores às capacidades dos sujeitos ditos normais". O leitor atento já deve ter identificado aí o fenômeno denominado por Vygotsky (1931) como supercompensação, que ocorre quando a perda de certas funções instiga a criação de novas, correspondendo à reação da pessoa diante de seu déficit e à compensação no seu processo de desenvolvimento.

Portanto, de acordo com Vygotsky (1996), "as pessoas podem não só lutar contra esses defeitos, compensando as fraquezas congênitas, mas frequentemente até mesmo supercompensando-as". Para ele, a partir do comportamento natural defeituoso, surgem técnicas e habilidades culturais, dissimulando e compensando o defeito. Assim, torna-se possível enfrentar uma tarefa inviável pela utilização de novos caminhos, pois "o comportamento cultural compensatório sobrepõe-se ao comportamento natural defeituoso" Dessa forma, para nosso autor, um defeito não deve ser visto como algo estático e permanente, pois ele coloca em ação vários dispositivos que não apenas podem enfraquecer seu impacto, mas até mesmo compensá-lo ou supercompensá-lo: "uma deficiência natural não continua necessariamente sendo uma falha por toda a vida de alguém, pode ser preenchida e compensada no correr da vida por outros dispositivos artificiais" (Vygotsky, 1996).

Mas é importante ressaltar que a capacidade de supercompensar refere-se também à habilidade desenvolvida pelo sujeito ao recorrer a outros meios para superar os obstáculos encontrados, transformando a sua condição de deficiente em um novo modo de existir e de agir. É por isso, diz Clot (2001), que ao tratar dessa questão, Vygotsky propunha que o sujeito fosse visto como a sede de um potencial de energia e de força oculta, que seria utilizada no enfrentamento de dificuldades. Dessa forma, a supercompensação transforma a intoxicação em imunidade, ou seja, aquilo que poderia ser uma limitação torna-se um impulso, um potencial de energia frente às barreiras. O organismo compensa o dano e cria uma proteção contra ele (Clot, 2001).

Em suma, para Vygotsky (1931), a compensação nada mais é do que uma ação que leva a uma reação por parte do organismo, já que, diante de uma anomalia, ela visa desenvolver os componentes psíquicos que poderão transformar um organismo fraco em um organismo forte e resistente, utilizando-se das dificuldades causadas pela deficiência como uma força que impulsiona essa transformação.

As histórias de Ricardo e Mateus ilustram bem essa análise, já que ambos alcançaram um desenvolvimento superior ao de grande parte da população. Ricardo não apenas alcançou um perfeito domínio da técnica de pintura, como também conseguiu tornar-se autônomo na realização de suas atividades cotidianas, a despeito da ausência de seus membros superiores. Mesmo diante de uma grave deficiência que, a princípio, sugeria a impossibilidade de tornar-se um pintor, ele reagiu, desenvolvendo habilidades raras até mesmo entre as pessoas ditas normais. Já no caso de Mateus, tal desenvolvimento pode ser observado no exercício de sua profissão, mas também na sua atuação como ginasta olímpico o que, inicialmente, parecia ser impossível, tendo em vista a ausência de dedos essenciais para o equilíbrio do sujeito durante a execução dos exercícios.

Ao tratar do processo saúde-doença, Clot (2001) oferece elementos que nos permitem avançar ainda mais na compreensão dos casos aqui analisados. Apoiando-se nas análises de Canguilhem (1966), ele conclui que a saúde representa a superação da doença e não seu esquecimento. Ou seja, saúde representa o acesso a uma nova experiência, a uma nova função da doença na vida do sujeito e, até mesmo, a um novo uso dessa doença. Como consequência, ocorre o desenvolvimento do sujeito mesmo na doença, podendo ter dois destinos: um triunfo sobre os obstáculos ou uma fixação no comportamento defensivo e nos sintomas. É por isso que Vygotsky afirmava que não basta saber de que doença um homem sofre, mas é necessário conhecer como se comporta o homem doente, ou seja, como ele desenvolve a sua doença (Clot, 2001).

Dessa forma, a promoção da saúde, para Clot (2001), não corresponde somente à preservação da normalidade, mas consiste em ir além e ser criativo para reinventar novas formas de viver, já que, para ele, a resposta criativa engrandece o homem enquanto que a defesa apenas o protege. Ele considera, portanto, que existem dois destinos a serem dados às atividades internalizadas na experiência da deficiência: o uso dessa condição como defesa ou a resposta a ela pela supercompensação.

Contudo, nosso autor sinaliza que até mesmo a supercompensação pode tomar a via defensiva e se ater a um sintoma fictício de compensação. É por isso que concorda com Vygotsky quando este diz que não é correto pensar que a luta do organismo contra a doença sempre termina bem, ou seja, que todo organismo vence em todas as condições. Se fosse assim, argumenta ele, toda doença ou deficiência poderiam ser vistas como um beneficio, já que por elas é que estão dadas as forças que permitem superá-las (Clot, 2001). Portanto, supercompensação é apenas um dos caminhos possíveis nesse processo. A outra via seria o oposto, aquela da compensação falha, frustrada, que poderia constituir-se através da negação da deficiência ou mesmo da dificuldade de socialização em função da diferença, tornando-se uma forma de defesa.

Mas Clot (2001) avança ainda mais nessa questão ao dizer que a deficiência só se torna fonte de força, de desenvolvimento, se o sujeito encontra os recursos de compensação junto às pessoas que lhe são próximas, "na vida sócio-coletiva ou na pluralidade social dos mundos nos quais se encontra engajado". A supercompensação exige, portanto, que o sujeito estabeleça relações sociais adequadas com seu meio, pois necessita de recursos que estão fora de si para conseguir supercompensar, ou seja, ele precisa do outro para ser bem sucedido nesse processo. Caso renuncie ou não consiga mais se beneficiar dos recursos externos, ficará à mercê de sua própria deficiência e esta poderá se transformar em handicap. É o que concluiu Vygotsky quando afirmou que "a criança deficiente que se tornou portadora de um handicap, é aquela que abandonou as possibilidades de energia coletiva, ou aquela que foi isolada, que foi desprezada, que foi deixada no canto" (Clot, 2006b).

Diante dessa importância do meio, no sentido de evitar que uma deficiência se torne uma incapacidade, fica fácil concluir que o handicap é um processo social. Isso porque, como já foi dito, as relações sociais são os recursos por excelência sobre os quais o sujeito pode se apoiar para conseguir supercompensar, vencendo sua deficiência. Sendo assim, não é toda deficiência que está fadada a se tornar um handicap, pois tudo vai depender da qualidade das relações sociais vividas pelo sujeito (Clot, 2006b).

Tudo isso nos permite concluir que uma deficiência não cria apenas obstáculos para a pessoa, mas também pode influenciar no seu desenvolvimento ao estimular a compensação do defeito, criando assim, conforme diz Vygotsky (1996), uma nova reorganização de sua personalidade:

Um defeito natural organiza a mente, dispõe-na de tal modo que é possível o máximo de compensação. E, o que é mais importante, cria uma enorme persistência em exercitar e desenvolver tudo quanto possa compensar o defeito em questão. (...) Um defeito pode funcionar como poderoso estímulo no sentido da reorganização cultural da personalidade (Vygotsky, 1996).

Para Vygotsky (1996), nesse processo de compensação, a cultura e o meio ambiente têm um papel fundamental, não apenas por oferecerem experiência e conhecimento, mas também por propiciarem a produção de determinadas técnicas para o indivíduo desenvolver suas próprias capacidades e superar a deficiência. Ou seja, pode-se entender que a compensação parte das interações sociais, assim como, segundo esse autor, as formações psicológicas resultantes dessa transformação são frutos do ambiente cultural externo. Ele reforça, assim, a noção de desenvolvimento humano como um processo social.

Os dois casos aqui analisados ilustram perfeitamente as teses acima, pois revelam que a deficiência também pode ser uma fonte para o desenvolvimento, por fornecer, sob certas circunstâncias, o incentivo e a energia necessários para a sua superação. Vimos que, tanto Ricardo, quanto Mateus encontraram no seu meio os recursos necessários para lutar contra suas próprias deficiências e as limitações que estas lhes impunham, o que reforça o fato de que tais processos de desenvolvimento acontecem na relação do indivíduo com seu meio social.

O trabalho pode ser um fator de desenvolvimento?

Um dos aspectos essenciais de nossa análise consiste, conforme já sinalizamos, na compreensão do lugar do trabalho no desenvolvimento do deficiente. Nosso ponto de partida, na busca dessa compreensão, foi a constatação alcançada - tanto pelas investigações que temos conduzido (Brescia, 2003; Brun, 2007; Couto, 2007), quanto pelas empreendidas por diversos teóricos (Clot, 2006a; Freissenet, 1995; Organista, 2006; Perret, 1997) - de que o trabalho é uma atividade essencial na constituição do sujeito e de sua identidade.

Os resultados obtidos por todas essas investigações convergem para um mesmo ponto, ou seja, o de que o trabalho é um dos principais gêneros da vida social sendo "fundamental na construção do valor que cada um atribui a si mesmo" (Clot, 2006a, p. 69). É esse mesmo autor que vincula trabalho, promoção da saúde e desenvolvimento do sujeito, visto que a definição de saúde está vinculada à criatividade e, no trabalho, o sujeito cria a todo momento sua tarefa, que não pode ser assimilada à simples reprodução de uma prescrição. Assim, quando as condições de trabalho são favoráveis ao processo criativo, permitindo que o sujeito transforme o mundo e carregue consigo as responsabilidades de seus atos, ele estará de posse de elementos essenciais para o seu desenvolvimento (Clot, 2007).8

Uma das funções psicológicas do trabalho, consiste, ainda segundo Clot, na possibilidade de inserção do sujeito em um projeto coletivo, permitindo-lhe tornar-se autor de sua história, no intercâmbio com seus semelhantes. Portanto, através do trabalho o indivíduo passa a fazer parte do meio social mais amplo, a partir dos laços e vínculos que cria com os demais. Consequentemente, ele é envolvido por toda uma teia de normas estabelecidas por um meio cultural já existente. Ou seja, no contexto laboral ocorre o encontro do sujeito com um outro objeto que é regido por outras normas e regras, diferentes das subjetivas. Nesse sentido, é dito que o trabalho é uma inscrição do sujeito em uma outra história, "uma história coletiva cristalizada em gêneros sociais, em geral, suficientemente equívocos e discordantes para que cada um deva dar sua própria contribuição e sair de si" (Clot, 2006a, p. 74). Em suma, trata-se da inscrição do sujeito entre os demais, sem, contudo, renunciar a si mesmo.

Assim, o trabalho é, simultaneamente, um fato subjetivo e um fato social, pois, além de dar a sua contribuição, o sujeito se constrói, sendo que, quanto mais organizada e diferenciada for essa coletividade na qual ele está inserido, mais complexo será seu mundo interior. Mas para que exerça esse importante papel na vida e na própria constituição do sujeito, é necessário que as barreiras que o trabalho impõe sejam superadas por quem se propõe a realizá-lo. Pois, como diz Clot (2006a), "o trabalho é o lugar em que se desenrola para o sujeito a experiência dolorosa e decisiva do real" (p. 59).

Além disso, se é verdade que "a atividade é uma prova subjetiva em que cada um enfrenta a si mesmo e aos outros para ter uma oportunidade de conseguir realizar aquilo que tem a fazer" (Clot, 2006a, p. 116), pode-se concluir que a superação prática desse conflito, pelo sujeito, tende a tornar-se uma fonte de desenvolvimento pessoal. Assim, são as barreiras e os conflitos presentes no contexto de trabalho que irão exigir que o trabalhador desenvolva meios para lidar com eles.

Na história de Ricardo, tais dificuldades foram ainda maiores, tendo em vista sua opção pela arte e a imposição de desenvolver a habilidade de pintar com os pés. A seu modo, Mateus também lutou para superar as barreiras, desde suas primeiras experiências laborais, quando teve de desenvolver estratégias para utilizar os instrumentos de trabalho com a mão deficiente ou necessitou enfrentar o preconceito e o desconhecimento do serviço médico, que tentava impedir sua entrada na empresa.

Ao tratar mais especificamente do tema deste artigo, (Clot, 2006b) afirma que, nos contextos de trabalho, uma das condições para o desenvolvimento dos deficientes consiste na aceitação, dentro dos coletivos profissionais, de sua vulnerabilidade. É por isso, diz ele, que a maior dificuldade enfrentada por profissionais que atuam na reintegração de deficientes encontra-se não do lado destes últimos, pois, para que se integrem ao coletivo, é necessário que o próprio coletivo também experimente seus limites.

Assim como ocorreu com Ricardo e Mateus, vimos que outros deficientes deparam-se com dificuldades diversas ao tentar se ingressar no mercado de trabalho. Como foi discutido anteriormente, tais dificuldades podem ser geradas pela relação com a própria deficiência, por uma infraestrutura inadequada nas empresas, pela relação com o coletivo profissional ou mesmo com a família.

As entrevistas realizadas com os outros deficientes ilustram bem esses aspectos, iluminando sobretudo o último, ou seja, a interferência da família ou do meio imediato no processo de desenvolvimento desses sujeitos. Ao contrário do que ocorreu com Ricardo e Mateus, constatamos que algumas famílias preferem superproteger o deficiente, acreditando estar, assim, evitando seu sofrimento. No entanto, conforme constatamos, elas conseguem apenas impedir seu desenvolvimento. Um exemplo disso foi visto no caso de W. M. P., 34 anos, solteiro, com sequelas de paralisia infantil e que sempre viveu sob a proteção familiar. Ele não sai de casa e depende totalmente da ajuda financeira dos pais, sendo que estes preferem que não trabalhe. W. M. P. afirma ter gostado dessa situação enquanto era "moleque" e "achava bom ficar na mordomia", mas agora preferiria conseguir seu dinheiro com o próprio esforço. Segundo ele, a família sempre o desestimulou quando tentava conseguir um emprego, dizendo-lhe que as portas estavam fechadas para ele e que deveria desistir. Atribui essa atitude dos pais à culpa que acha que sentem pela sua deficiência, já que sua paralisia originou-se de uma vacina que foi aplicada de forma errada na infância. Ao se comparar com os amigos, constata diferenças que o fazem sentir-se como um "parasita": "eu comecei a ver meus amigos tudo casando, tendo a vida deles e eu tava ficando pra trás, que nem os sanguessugas, fica só sugando dos outros, um parasita. (...)".

A história de W. M. P. ilustra também com clareza que, para evitar que a deficiência se transforme em handicap, é necessário que o sujeito estabeleça relações sociais ricas, que lhe permitam desenvolver formas de superar seus limites e supercompensar. Além disso, ele sugere em seu depoimento que o trabalho é o espaço que lhe permitiria alcançar a independência, estabelecer novos vínculos e tornar-se uma pessoa mais autônoma e madura.

Um outro entrevistado relatou que esteve convicto, durante anos, de que não era capaz de exercer uma atividade profissional, mas a oportunidade de inserir-se no mercado de trabalho acabou revelando competências que ele próprio desconhecia. Observando o relato de A. B. E., 42 anos, casado, segundo grau incompleto, é possível perceber que o trabalho ocupa um lugar central em sua vida, embora tenha sido levado a acreditar que era incapaz de exercer qualquer profissão. Um quadro de osteomielite fez com que ficasse com uma das pernas atrofiada, sendo mais fina e mais curta do que a outra. Como achava que não iria conseguir trabalhar, tentou aposentar-se, mas, durante as perícias, sempre ouvia que era forte e que não deveria aposentar-se. Em certa ocasião, um amigo propôs que fizesse um serviço que ninguém havia conseguido fazer. Segundo ele, tratava-se de retirar a cerâmica do revestimento de um prédio, mas para realizar a atividade tinha de ficar suspenso e preso por um cinturão. Os colegas diziam que o cinturão incomodava muito, mas A. B. E. conseguiu cumprir a tarefa sem muita dificuldade. Desde então, tem atuado nessa área e em outras, sentindo-se satisfeito por descobrir que é capaz de fazer coisas que até mesmo as pessoas ditas normais não conseguem.

Uma outra evidência importante foi encontrada no relato de A. V. S. P., com paralisia cerebral parcial, 30 anos, solteiro, primeiro grau em curso. Ele considera que foi apenas quando começou a trabalhar que teve início seu desenvolvimento: "comecei a falar aos 9 anos e a andar com 10, porque eu usei aquela bota de ferro até em cima, mas tudo começou mesmo quando a APAE me inseriu no mercado para trabalhar com horta". Hoje, ele atua em um movimento da paróquia de sua cidade, é funcionário efetivo da prefeitura, vice-presidente do movimento do autodefensor da APAE de Minas Gerais, faz parte do Conselho Municipal de Saúde e do Conselho Municipal da Assistência Social, além de ministrar palestras através da APAE. Foi também convidado para ser vereador em sua cidade, aceitando o convite. Ele atribui grande parte do seu sucesso à postura de sua família frente sua deficiência: "cheguei onde cheguei por causa de Deus, da minha vontade e por causa da minha família, que não me colocou no canto, não me isolou. Ela me jogou no mundo, me tratou como uma pessoa real".

Outro exemplo é o de J. N. R., 46 anos, casado, primeiro grau incompleto, com um encurtamento de um dos membros inferiores adquirido aos 17 anos, quando foi vítima de um erro médico, durante uma cirurgia. Ele já trabalhou como cobrador e fez "bicos" como pedreiro. Considera que, além de torná-lo independente, o trabalho também lhe confere dignidade e o faz sentir-se útil: "Meus irmãos falaram pra eu ficar em casa e não trabalhar, porque eles tavam bem de vida e eles iam me ajudar, me dar um dinheiro, mas eu achei melhor trabalhar. Acho que o trabalho dignifica o homem e a gente sente que é útil para a comunidade".

Finalmente, o relato de R. A. A. - 24 anos, solteira, terceiro grau em curso, cuja deficiência consiste na má formação do braço esquerdo, com ausência da mão esquerda - ilustra bem a influência do meio na forma pela qual o sujeito vai lidar com sua deficiência. De início, ela expressou o incômodo que sente ao se deparar com pessoas que não acreditam na sua capacidade e que tendem a tratá-la como incapaz, dizendo sentir-se magoada quando, por exemplo, vai pegar um objeto e alguém se apressa para fazer isso por ela. Ao perceber que tem dificuldade em realizar algo, diz que prefere chegar em casa e treinar até conseguir. Assim como ocorreu em outros casos aqui expostos, desde pequena, R. A. A. se esforça em aprender a lidar com as situações que se apresentam no seu dia-a-dia, evitando solicitar a ajuda dos outros. Ela diz que foi incentivada por sua mãe a fazer suas tarefas diárias sozinha, começando a trabalhar aos 15 anos e, apesar de ter sido obrigada a conviver com pessoas que não acreditavam na sua capacidade, o apoio que sempre recebeu de sua família, além das exigências do próprio trabalho, propiciaram seu desenvolvimento:

Desde cedo, eu já procurava emprego, porque eu não queria ficar parada e, também, via meu irmão que, desde os 13 anos, já corria atrás. Já fiz de tudo, trabalhava em casa de família, bordava vestido. Mas sempre tinha alguém pra falar que eu não dava conta, que era pra eu aposentar. Eles colocam um rótulo na gente. (...) Antes, eu tinha vergonha das pessoas. Aí, quando eu comecei a trabalhar, mudou, porque eu tinha que lidar com as pessoas e depois eu tinha que atender. Ainda bem que a minha mãe me falava pra eu trabalhar, porque senão eu não ia melhorar. E foi assim que eu melhorei.

 

À guisa de conclusão

Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez.

Jean Cocteau

A pesquisa que serviu de base para este artigo teve por objetivo maior avançar no desvendamento da realidade vivida pelas pessoas com deficiência, tentando lançar luz sobre sua relação com o trabalho. Ou seja, além de aprofundar a compreensão do que leva uma pessoa deficiente a se desenvolver, enquanto outra torna-se incapaz de avançar no seu processo de crescimento, tentamos explicitar o lugar ocupado pelo trabalho em ambas as situações. Cabe ressaltar que, tendo em vista a amostra reduzida e o método adotado, é evidente que os resultados acima reportados não são passíveis de generalização. No entanto, eles representam, no nosso entender, um passo no alcance das respostas às questões que originaram a investigação.

Vimos, em primeiro lugar, que duas posturas podem ser adotadas por esses sujeitos: a de deficiente e a de portador de handicap, sendo que apenas a primeira parece permitir seu desenvolvimento. Ou seja, nossos achados confirmam o que já foi demonstrado por Vygotsky (1994), ao concluir que deficiência não é sinônimo de incapacidade, mas, ao contrário, pode ser um fator a mais no processo de crescimento do indivíduo.

Dentre os possíveis fatores que determinam qual das duas direções acima será tomada, um apareceu de forma especial: a influência da família e do meio social imediato. Tanto nas histórias de Ricardo e Mateus, como nos diversos depoimentos colhidos junto aos outros deficientes, uma evidência emergiu de forma sistemática: aqueles que não contaram com o suporte da família ou de pessoas próximas, tiveram mais dificuldade em superar suas limitações e as barreiras impostas pela sociedade ou mesmo pela vida profissional. Além disso, eles se mostraram mais incapazes de estabelecer vínculos, de participar ativamente da vida social, de modo a manter contatos satisfatórios com o mundo externo e superar a posição de inválidos.

Nesse sentido, parece evidente que não basta o Estado estabelecer leis de cotas, obrigando as empresas a admitir pessoas com deficiência nos seus quadros de empregados. É necessário também todo um esforço junto às famílias, à sociedade em geral e, principalmente, junto às próprias empresas, no sentido de aumentar sua compreensão sobre a realidade vivida por essas pessoas. Só assim estarão aptos para acolhê-los e, ao mesmo tempo, tratá-los como sujeitos capazes de se desenvolver e de produzir. Conforme afirmam estudiosos do assunto, à medida que as pessoas se tornarem mais conscientes dessa realidade, ao invés de ignorá-la, aprenderão a lidar melhor com as diferenças:

Para vencer a discriminação, é preciso começar combatendo a indiferença. O atendimento às pessoas com deficiência não pode continuar restrito a algumas entidades especializadas e não podemos admitir que a grande maioria dessas pessoas continue isolada e confinada em casa, para não incomodar aquelas consideradas 'normais'. Mais do que isso, não se pode confundir limitações que, eventualmente decorrem de alguma deficiência, com incapacidade social, afetiva ou profissional (Baú, 2006).

Assim, pode-se concluir que, a partir do momento em que o deficiente for exposto aos desafios e às dificuldades presentes no meio social mais amplo, suas chances de crescer e desenvolver suas potencialidades tendem a ser aumentadas. Além disso, à medida que avançar nesse processo, poderá buscar uma melhor qualificação, tornando-se mais capaz de responder às exigências do mercado de trabalho e de reivindicar seus direitos, exigindo soluções para dificuldades cotidianas, como por exemplo, o conhecido problema de acesso a locais públicos.

Há algum tempo, o tema da deficiência vem sendo mais contemplado, tendo em vista, inclusive, o que essas pessoas representam para o país em termos numéricos. O uso de parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde fez com que alguns dados viessem à tona, superando, em parte, os problemas do passado, quando se subestimava essa dimensão, muitas vezes, pela ausência de critérios mais precisos para classificar as deficiências. O Censo de 2000 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), por exemplo, apontou a existência de 24,5 milhões de brasileiros com dificuldade de enxergar, ouvir, locomover-se ou com alguma outra deficiência física ou mental (Baú, 2006). Esse dado por si só já é revelador da importância do tema aqui tratado.

No entanto, estamos cientes de que nem todas as respostas foram alcançadas e outros estudos precisam ser realizados, com o intuito de aprofundar a compreensão do tema aqui tratado. Apenas assim será possível ampliar a definição de deficiente comumente oferecida pelos dicionários. Ao invés de ser definido apenas como uma pessoa com uma "1. falta, falha, carência, 2. imperfeição, defeito, 3. insuficiência" (Ferreira, 1999), ele poderá ser posto também como alguém capaz de se desenvolver, ao superar a discriminação e outras barreiras com as quais se deparar no seu caminho.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
rafaella.ribeiro@oi.com.br

Recebido em: 11/03/2009
Revisado em: 04/01/2010
Aprovado em: 26/01/2010

 

 

1 Este artigo foi baseado na monografia intitulada O trabalho como fator de desenvolvimento da pessoa com deficiência, apresentada por Rafaella Portes Diniz Ribeiro ao curso de Especialização em Psicologia do Trabalho da UFMG, em fevereiro de 2008.
2 Especialista em Psicologia do Trabalho pela UFMG.
3 Professora Associada do Departamento de Psicologia da UFMG.
4 Posteriormente, o Artigo 3º do Decreto Nº 914, de 6 de Junho de 1993, definiu a pessoa portadora de deficiência como "aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura, ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividades, dentro do padrão considerado normal para o ser humano" (Carmo & Jaime, 2005).
5 Os nomes dos entrevistados são fictícios.
6 Hoje, Ricardo expõe e vende seus quadros em Belo Horizonte e em várias cidades do Brasil, sendo também o principal provedor de sua família.
7 Em palestra proferida na Unicamp, em Campinas, no ano de 2006, Clot (2006b) esclarece que, embora não existam, na língua portuguesa, duas palavras para designar deficiência, o conceito de handicap que vem do inglês e que está presente também no francês, é bastante útil para se pensar a questão.
8 Palestra proferida na UFMG, Belo Horizonte, em 21 de setembro de 2007.

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