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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717
Cad. psicol. soc. trab. vol.13 no.2 São Paulo set. 2010
ARTIGOS ORIGINAIS
O cotidiano de aposentados que continuam trabalhando de maneira informal na indústria calçadista: percepções sobre a aposentadoria e o trabalho atual
The daily life of retirees who continue working informally in the footwear industry: perceptions about retirement and the current job
Thais Silva Cintra; Daniela de Figueiredo Ribeiro; Antônio dos Santos Andrade
Centro Universitário de Franca-UniFACEF
RESUMO
A presente pesquisa teve como objetivo conhecer a perspectiva de aposentados que atualmente trabalham, de modo informal, com a costura manual do sapato em suas residências, em um polo industrial calçadista do interior de São Paulo. Os aspectos investigados foram o trabalho e o processo de aposentadoria. A pesquisa de campo foi executada em duas etapas: na fase exploratória foram realizadas observações em 10 residências, visando compreender o contexto geral em que se inserem os participantes da pesquisa. Em uma segunda etapa, intitulada fase focalizada, foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas com 5 aposentados. Os dados dos diários de campo e as transcrições literais das entrevistas foram analisados por meio de análise de conteúdo tradicional e posteriormente foi realizada uma análise hermenêutica-dialética. Foi possível apreender que os aposentados, nesse contexto específico, representam a aposentadoria não como uma fase de inutilidade e de desengajamento social, mas como uma maneira de complementar a renda, ampliar os vínculos e vivenciar o trabalho de maneira mais leve.
Palavras-chave: Trabalho, Aposentadoria, Indústria calçadista.
ABSTRACT
The present research, carried out in an industrial footwear pole in São Paulo countryside focused on the prospects of pensioners who work , informally, with shoes' handmade sewing from home. The investigation was based on aspects of work and retirement process. The fieldwork research comprised two phases, an explanatory one and the focused one. In the first case, ten houses ,where ten participants were inserted, were observed with the purpose of understanding their general context .During the focused phase, individual semi-structured interviews with five pensioners were carried out. Data from the fieldwork diary and the literal transcriptions of the interviews were scrutinized through a traditional content analysis and, later on, another hermeneutic-dialetic analysis was applied. It was possible to observe that the pensioners, in this particular context, look at retirement not only as an unproductive time and social disengagement, but also as a way of increasing income, enlarging and deepening bonds and experiencing lighter work.
Keywords: Work, Retirement, Footwear industry.
Introdução
Na cidade onde o atual estudo foi realizado, a indústria calçadista é um setor intensivo de trabalho, porém o custo da mão-de-obra é importante nos gastos das empresas. Dessa forma, a competitividade das empresas calçadistas foi associada à capacidade de redução de custos, principalmente os de mão-de-obra. Em consequência dessa situação, tem crescido a informalidade nas relações de trabalho (Suzigan, 2000). Os serviços nas fábricas são fragmentados e passam a ser realizados dentro das próprias residências de trabalhadores (Barbosa & Mendes, 2003).
Nesse cenário, o setor informal torna-se uma opção para aposentados que necessitam complementar sua renda, já que o mercado formal procura substituir funcionários mais velhos pelos mais jovens, devido à maior capacidade de produção.
Dados estatísticos revelam que em 1980 a cidade pesquisada possuía 9.301 habitantes idosos. Contudo, projeções mostram que a média esperada para 2010 é de 29.324 habitantes, demonstrando um grande aumento da população idosa, o que requer real atenção para a situação desta população (Poloni, Pacheco, Filho & Lessa, 2000).
Diante do contexto local dos aposentados e da estimativa de aumento da população idosa, mostrou-se importante conhecer a perspectiva e a vivência de aposentados que, após a saída do mercado de trabalho formal, continuam realizando atividades profissionais em suas residências. Assim, a pesquisa teve como objetivo conhecer a perspectiva e as vivências de aposentados que trabalham informalmente na indústria calçadista, além de seu processo de aposentadoria e de seu trabalho atual.
Para Zanelli e Silva (1996), na sociedade contemporânea o trabalho é definidor do sentido da existência humana e, mesmo antes da criança entender o significado do trabalho, já está sendo preparada para ele através do processo de socialização. A vida humana atual é organizada pelo trabalho, por seus horários e atividades, e os relacionamentos pessoais são determinados a partir dele.
Bruns e Abreu (1997) afirmam que a própria sociedade define um "tempo útil" e "um limite" na vida das pessoas, estabelecidos pela aposentadoria, que se apresenta como um dispositivo legal criado pelo sistema a fim de impor o "limite da mais valia do corpo". Portanto, torna-se comum a desorientação da pessoa quando para de trabalhar, sentindo-se inútil e desestruturada emocionalmente.
Nessa perspectiva, o trabalho é visto como núcleo da vida do adulto e, quando é tirada a oportunidade de conviver naquele ambiente e com aquele grupo de pessoas, é comum ocorrer um processo de negação, principalmente se a aposentadoria vier de forma abrupta. As consequências podem ser o medo da instabilidade econômica, de doenças e da velhice. Tem ocorrido, também, maior ocorrência de separações conjugais entre aposentados, bem como de suicídios nos primeiros anos ou meses da aposentadoria (Zanelli & Silva, 1996).
Veloz, Nascimento-Schulze e Camargo (1999) concluíram em seu estudo sobre representação social do envelhecimento, com professores universitários aposentados, que a principal característica dessa fase da vida é ser uma fase de não-trabalho, refletindo a crença de que a aposentadoria significa o começo do desengajamento social.
Gatto (2002) afirma que a perda de ordem econômica-social chega junto com a aposentadoria, quando há uma ruptura do vínculo profissional e do papel social. Torna-se comum, portanto, o surgimento de doenças e de forte depressão, "consequências da não elaboração de um fechamento de ciclo importante" (p. 111).
Segundo Veras, Ramos e Kalache (1987), na maioria dos países, os sistemas de aposentadoria foram fundados há pouco mais de meio século. No início, foram instituídos como uma forma de assistência e, cada vez mais, desenvolvem-se como um direito do trabalhador. Durante o período ativo, é obrigatória a contribuição do indivíduo, assim, após o período funcional, a aposentadoria garante uma renda vitalícia a fim de manter a subsistência de quem a recebe.
Segundo Sinésio (1999), a conquista dos trabalhadores pelo direito à aposentadoria contribuiu para amenizar as condições a que os trabalhadores foram submetidos após a revolução industrial. No caso do Brasil, que é marcado por profundas desigualdades sociais, a fase da aposentadoria é enfrentada com bastante dificuldade em virtude, também, das péssimas condições de trabalho oferecidas. Os humilhantes salários obrigam os trabalhadores a trabalharem mais tempo, ocasionando esgotamento físico e mental, o que favorece doenças e acidentes de trabalho, que ocorrem frequentemente no Brasil. Dessa forma, muitas vezes a aposentadoria dá-se por invalidez.
Para Medeiro (1992), o sistema capitalista provoca no trabalhador, que é considerado mercadoria, desgaste físico e emocional e, se ele não cumprir bem suas tarefas, será dispensado e substituído. Assim, o trabalhador esforça-se cada vez mais, exigindo muito de si, tendo muitas vezes sua saúde prejudicada, o que o impede de trabalhar ou o leva a reduzir a qualidade do serviço que realiza.
A própria palavra "aposentar" representa uma imagem negativa. Ela pode ser entendida como "pôr de parte, de lado", ou seja, a imagem é de inutilidade.
A aposentadoria decreta funcionalmente a velhice, ainda que o indivíduo não seja velho sob o ponto de vista biológico. Por outro lado, a aposentadoria manteve uma relação direta com a questão da produtividade. Os trabalhadores idosos, seja pela perda da força física, seja pelo desconhecimento ou inadaptação às novas técnicas são menos preferidos. Assim, a aposentadoria é uma forma de produzir a rotatividade da mão-de-obra no trabalho, pela troca de gerações (Salgado, 1989, citado por Medeiro, 1992, p. 4).
A previdência social estimula os trabalhadores mais velhos a se aposentarem. O argumento usado é que eles ocupam o lugar dos jovens que estão ingressando no mercado de trabalho e que estes necessitam mais. O fato de os trabalhadores jovens ganharem menos também estimula que indústrias ofereçam pensões aos trabalhadores mais velhos, o que torna a aposentadoria mais atraente (Skinner & Vaughan, 1985).
A partir da década de 80, o capitalismo internacional gerou transformações na estrutura socioeconômica do país. As revoluções tecnológica, produtiva, comercial e financeira decorrentes do processo da globalização afetaram os modos de pensar, sentir e agir das pessoas. Os trabalhadores passaram a ser valorizados pela sua capacidade produtiva, ou seja, por responderem positivamente às necessidades próprias do sistema capitalista (Igarashi, 2001).
Neste contexto do mundo atual, as pessoas mais velhas enfrentam grandes dificuldades em aprender e utilizar as novas tecnologias, além de enfrentar a aposentadoria como um desrespeito, sendo sua renda insuficiente para manter a família e a si próprio (Gianni, 2001). Dessa forma, a fim de complementarem sua renda, submetem-se ao subemprego (Pelozo & Neves, 1998).
Assim, o trabalho informal caracteriza-se como uma solução para os aposentados. Porém, esse setor do trabalho está relacionado, na maioria das vezes, com ocupações precárias e salários baixos (Giatti & Barreto, 2003).
Silva e Barbosa (2001) constataram que no Rio de Janeiro dois terços da mão-de-obra informal é formada por homens entre 25 e 59 anos, sendo que metade encontram-se na faixa dos 40 anos ou mais. A partir dessa estatística, dois aspectos foram considerados: primeiro, a idade como limite na permanência prolongada no setor formal; segundo, a experiência profissional como produtora de novos caminhos ou meios autônomos para se completar a renda (Guimarães, 2004).
Método
Percurso teórico-metodológico
A pesquisa realizada está fundamentada na abordagem qualitativa, em que se busca estudar o fenômeno em seu acontecer natural. Segundo André (1995), leva-se em conta "todos os componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas" (p. 17).
No Brasil, a pesquisa qualitativa em educação assumiu, predominante, a característica etnográfica e essa foi a abordagem metodológica predominante na presente pesquisa. No entanto, os autores reconhecem uma sobreposição, em diversos aspectos, com a etnometodologia, que, segundo Bogdan e Biklen (1994), busca "compreender o modo como as pessoas percebem, explicam e descrevem a ordem no mundo que habitam" (p. 60), citando como exemplo a forma como as pessoas "constroem" o seu gênero sexual. Os autores enfatizam ainda que os etnometodólogos distinguem-se de outros pesquisadores qualitativos por tenderem a "lidar mais com microquestões, com conteúdos específicos de conversas e vocabulário e com detalhes relativos à ação e à compreensão".
Conforme André (1995), a etnografia, tendência que se desenvolveu na antropologia, é classificada como "a tentativa de descrição da cultura" (p. 19).
O trabalho etnográfico utiliza técnicas como a observação participante, entrevista intensiva e análise de documentos. Os dados são mediados pelo próprio pesquisador, portanto, "o pesquisador é o instrumento principal na coleta e na análise dos dados" (André, 1995, p. 28).
Esse tipo de pesquisa envolve um trabalho de campo, em que as pessoas, as situações e o estilo de vida em certa sociedade são observados e apreendidos em sua situação natural pelo pesquisador. Enfim, a pesquisa etnográfica visa a descoberta de novos conceitos, novas relações e novas formas de entendimento da realidade.
Participantes
Na primeira etapa da pesquisa foram realizadas observações informais e não sistemáticas, sendo sete visitas de duas horas de duração, em dez residências. Cada pesquisadora procurou conhecer o cotidiano dos trabalhadores que mais poderiam contribuir com o tema a ser pesquisado. Dessa forma, o grupo de pesquisa obteve uma diversidade de dados, compreendendo algumas singularidades do contexto de trabalho daquela comunidade. Nessa fase exploratória, dois aposentados foram observados em suas residências e em diferentes situações do seu cotidiano.
Na segunda etapa de coleta de dados, foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas com cinco aposentados, em suas residências. Dentre eles, dois foram identificados na primeira fase da pesquisa e outros três foram contatados posteriormente com o auxilio dos participantes da primeira etapa. Observa-se a seguir as características dos participantes1 dessa fase da pesquisa:
A partir da caracterização dos participantes da pesquisa, foi possível perceber que a aposentadoria, nesse contexto, não é representada somente por pessoas idosas, ao contrário disso, a maioria dos participantes ainda não atingiu a terceira idade.
Descrição da coleta de dados
A primeira visita ao bairro escolhido para a efetivação do estudo ocorreu no segundo semestre de 2006. A entrada no campo deu-se através do contato com a assistente social que realizava trabalho técnico e social no bairro. Os líderes comunitários foram então contatados e, por meio deles, os moradores que possuíam bancas de pesponto em suas residências.
Todo o processo de relacionamento foi realizado com muita cautela. Na primeira visita, foram relatadas aos líderes comunitários quais eram as intenções do grupo de pesquisa, sendo que este era composto por nove alunas do curso de psicologia, e que tinham o intuito de pesquisar sobre a realidade dos trabalhadores calçadistas informais da cidade de Franca. Inicialmente, foi esclarecido que o real objetivo da pesquisa era conhecer os modos de vida, os interesses, as expectativas e os desejos da população que trabalha com o sapato dentro das próprias residências. Os responsáveis pela comunidade demonstraram interesse com relação ao trabalho apresentado, abrindo as portas para sua efetivação.
No segundo encontro, o grupo de pesquisadoras, juntamente com os líderes comunitários, saíram às ruas do bairro para a apresentação do grupo de pesquisa às famílias em cujas residências seriam feitas sessões de observação.
A ida a campo para o início da coleta de dados aconteceu na semana seguinte, conforme a data combinada com os donos das casas. O tempo de duração de cada sessão de observação foi de duas horas, acontecendo durante sete dias consecutivos, em horários diferentes, para que a totalidade das vivências dos participantes fosse apreendida. Cada pesquisadora adentrou no universo cotidiano de uma residência, tendo sido investigadas dez residências no total.
Instrumentos
Na primeira fase da pesquisa, chamada de fase exploratória, o instrumento utilizado para coleta de dados foram as observações realizadas em dez residências, durante sete sessões de duas horas. As observações foram feitas em horários diversos, a fim de se apreender a rotina cotidiana ao longo do dia dos trabalhadores. O roteiro de observação incluiu os seguintes itens: o bairro, a fábrica na residência, atividades diárias, meio semântico, ambiente humano.
Na segunda fase da pesquisa, chamada de fase focalizada, o instrumento utilizado foi a entrevista individual, semiestruturada e de profundidade: técnica que consistiu em apresentar os temas a serem discutidos e dar um tempo para que o participante fizesse, inicialmente, uma associação livre. Em seguida as ideias suscitadas foram aprofundadas na entrevista. Os temas suscitados foram: trabalho, envelhecimento e aposentadoria. Foi possível, também, obter relatos significativos sobre a história de vida dos entrevistados, compreendendo melhor a realidade de cada trabalhador. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra para posterior análise.
Procedimento de análise dos dados
A análise dos dados foi realizada a partir da abordagem hermenêutica-dialética, segundo os moldes propostos por Minayo (1996).
Operacionalmente, os dados foram inicialmente ordenados para a construção de um mapa horizontal das descobertas em campo: transcrição de fitas, organização dos relatos, reorganização do material e dos dados de observação. A classificação dos dados foi feita a partir da leitura exaustiva e repetida dos textos, permitindo apreender as ideias centrais sobre o tema. As categorias analíticas foram construídas com base na literatura específica sobre a área. Em seguida, as categorias empíricas foram organizadas a partir da prática.
Realizou-se, assim, a construção de um corpus de comunicações. A seguir foi feito um enxugamento dos temas mais relevantes, buscando responder a hipóteses ou objetivos do trabalho. Em seguida, as categorias foram agrupadas para seguir uma lógica unificadora. A análise final implicou em um movimento incessante do empírico para o teórico e vice-versa, constituindo um movimento dialético que embasa a construção do texto final, que é sempre provisório.
Resultados e discussão
Na primeira fase da pesquisa foi possível conhecer a história do bairro pesquisado, como foi sua formação, o quanto se desenvolveu e como se caracteriza o cotidiano dos moradores que trabalham com a costura manual de sapatos em suas residências.
O bairro foi criado a partir de um programa de habitação popular realizado por um banco federal e a prefeitura municipal, tendo menos de dez anos de existência. Localiza-se na periferia da cidade e as casas possuem o mesmo padrão de construção e tamanho. No entanto, atualmente muitas casas já passaram por reformas, tendo sido construídas garagens, varandas, muros e calçadas. Assim, as residências já se diferenciaram umas das outras.
O bairro não possui igrejas, clubes, praças, postos de saúde, creches ou escolas. A prefeitura oferece ônibus escolar e transporte público, sendo realizada a ligação bairro-centro. É importante notar que essa conquista deu-se a partir da solicitação da associação de moradores do bairro. Há também a coleta de lixo realizada pela prefeitura e a coleta do lixo reciclável é realizada por uma família moradora do bairro. Há uma biblioteca para os moradores, localizada na casa de uma das famílias, onde os donos da casa recebem doações de livros e mantêm um acervo disponível.
Os cultos religiosos também são realizados em casas de moradores. Os seguidores da religião católica realizam quermesses e outros eventos frequentemente, com a intenção de arrecadar dinheiro para a construção de uma igreja no bairro.
Nas dez residências observadas, ainda é mantido o modelo padrão de construção: dois quartos, um banheiro, sala e cozinha. Em algumas, as varandas foram cimentadas, enquanto outras continuam sendo de terra. Três residências possuem um cômodo separado, onde fica a banca de pesponto, local de trabalho. Em sete casas, onde acontece a costura manual do calçado, o local de trabalho é a sala ou a varanda.
As bancas de pesponto ficam em uma parte separada das residências, são pequenas e possuem ventilador, rádio e televisão. Há café e água à disposição dos funcionários. Uma das bancas de pesponto observadas é tida como grande quando comparada às outras, já que possui dois cômodos, dez máquinas e quinze funcionários, sendo todos registrados.
Na costura manual, que é realizada dentro da residência, não há divisão entre local de trabalho e de moradia, tudo se mistura. Em todas as residências o trabalho é feito com um fundo musical, sendo o som oriundo de rádio ou televisão. Como trabalham na sala e na varanda, a iluminação e a ventilação são boas, pois na sala a porta e as janelas ficam abertas.
Os aposentados participantes da pesquisa demonstraram uma situação marcada por uma profunda desigualdade social, além das péssimas condições de trabalho. Dos cinco participantes, dois se aposentaram por invalidez - Maurício, com 49 anos, sendo que a causa foi epilepsia, e Maria, com 33 anos, devido a problemas na coluna. Nota-se que os baixos salários obrigaram os trabalhadores a submetem-se a jornadas excessivas de trabalho, ocasionando esgotamento físico e mental, que favorece doenças e acidentes de trabalho.
Os resultados obtidos a partir das entrevistas individuais mostraram que não houve preparo nem planejamento dos participantes, enquanto jovens, para a chegada da aposentadoria. Gatto (2002) afirma que geralmente a aposentadoria vem acompanhada de um declínio do padrão de vida e a pessoa enfrenta essa nova etapa sem estar preparada emocionalmente.
Porém, a maior dificuldade revelada pelos entrevistados foi a questão financeira. Todos disseram que continuam trabalhando devido ao baixo valor da aposentadoria. No entanto, em momento algum revelaram sentimentos de inutilidade, dependência ou questões negativas perante a situação de aposentadoria, afinal, continuam inseridos socialmente.
Para Maurício, o processo da aposentadoria gerou sofrimento, porque ele gostava do local e das pessoas com quem convivia no trabalho. Os outros quatro entrevistados desejavam a aposentadoria devido à necessidade de um complemento de renda. O relato de Maurício pode ser observado a seguir:
(...) eu fui dispensado da empresa e aquilo me abalou muito, porque eu gostava de trabalhar lá (...) eu achava bom porque trabalhava com outras pessoas, a gente via outras pessoas (...) eu fiquei muito decepcionado (Maurício).
Outro entrevistado, Pedro, de 52 anos e que se aposentou por tempo de serviço, encontrou dificuldades no andamento do pedido da aposentadoria, pois teve problemas com o advogado. Para os outros três participantes, o processo da aposentadoria foi mais tranquilo. Os relatos de Pedro e José podem ser verificados a seguir:
(...) esse processo foi bem complicado (...) o primeiro advogado me enrolou durante seis anos e eu já era pra estar aposentado há cinco anos atrás, né? Mas ele não montou nada, não fez nada... num trabalhou (Pedro).
(...) o processo foi tranquilo porque eu me aposentei dentro do tempo, né? Então, o processo foi tranquilo, chegou a aposentadoria no momento em que eu estava esperando mesmo, então isso foi muito bom (José).
Sobre a maneira com que se deu o processo de aposentadoria, observa-se que somente um entrevistado mostrou sofrimento, devido à perda de vínculos sociais. Contudo, aqui há uma contradição com o que é frequentemente encontrado na literatura. Segundo Gatto (2002), Veloz, Nascimento-Schulze e Camargo (1999), Zanelli e Silva (1996), a perda de ordem econômica-social chega junto com a aposentadoria, quando há uma ruptura do vínculo profissional e do papel social. No entanto, quatro dos entrevistados desejaram e lutaram pela aposentadoria, sendo que, para esses aposentados, o que parece ocorrer é um ganho econômico e a perpetuação dos papéis sociais.
Sobre o trabalho após a aposentadoria, quatro dos cinco aposentados relataram que trabalhar após se aposentar é uma forma de acabar com o estigma de que aposentado é um ser inútil e que dá trabalho para os outros. Um deles, Jair, disse que estar ativo também ajuda na manutenção da saúde do corpo e da mente, como pode ser verificado em seu relato:
(...) ficar a toa não dá... tem que fazer qualquer coisa... senão fico meio sufocado... você vai lá dentro, volta, saí pra rua andando a toa... ah! Não tem o que fazer... num tem rumo... tem que tá mexendo (...) porque você tem que mexer o corpo, né? Não fica aí sentado numa cadeira, né? tem que mexer os braços, pernas, a cabeça... (Jair).
Nota-se que o sentimento de utilidade está intrinsecamente ligado ao trabalho, o que se deve ao processo de socialização que é imposto na sociedade atual, sendo o trabalho definidor do sentido da existência humana (Zanelli & Silva, 1996). Também para Caldas (1997), o trabalho não é somente fonte salarial, mas representa um lugar na hierarquia social, além de envolver uma série de movimentos corporais que penetram na vida psicológica.
Dos cinco entrevistados, somente Maria, referida acima, revelou o desejo de não precisar trabalhar, não identificando o trabalho à inserção social: "(...) porque se ganhasse assim... se fosse pra eu ganhar bem, a aposentadoria, assim... aí eu não trabalhava não... aí eu queria descansar (...)".
De qualquer forma, os cinco aposentados afirmaram que o trabalho é necessário para complementar a renda, já que o salário da aposentadoria é insuficiente, como pode ser observado no relato de Maurício:
(...) a aposentadoria é pouca, é um salário mínimo, aí já aperta né? você tem que fazer alguma coisa, trabalhar para poder complementar o orçamento, porque tem a despesa de casa, dessas coisas tudo que a gente tem, então a gente acaba trabalhando para poder complementar a renda (Maurício).
No Brasil, a aposentadoria é tida como um desrespeito, sendo a renda insuficiente para manter a família e a si próprio (Gianni, 2001). Dessa forma, a fim de complementarem sua renda, os aposentados submetem-se a atividades de subemprego (Pelozo & Neves, 1998).
No caso em questão, como é necessário continuar trabalhando para complementar a renda, os participantes não associaram o termo aposentadoria a um rompimento com as atividades exercidas, pelo contrário, afirmaram o surgimento de novas atividades no cotidiano. Para José e Maria, a chegada da aposentadoria revela uma tendência a trabalhar-se com maior liberdade, sem grandes cobranças.
Nesse momento, trabalha-se, mas ao mesmo tempo desfruta-se de atividades de lazer e de amizades, que antes eram impossibilitadas, como pode ser observado no relato de José:
(...) a diferença é que o vínculo, ele aumenta, porque aí você tem mais tempo pra tá buscando, pra tá aceitando um convite, por exemplo, chega um convite, vamos sexta-feira pro rancho, pra chácara, então você tem como aceitar, porque você não tem aquele compromisso com o trabalho, né, de ser um funcionário (José).
Assim, a aposentadoria parece ser representada para alguns participantes como um tipo de "linha flexível"2 no trabalho, já que se aposentar proporciona o encontro de novos caminhos. Na realidade específica estudada, com a possibilidade do trabalho domiciliar, esses trabalhadores conseguem escapar de um patrão, de uma vida regrada pelo trabalho e atualizam os antigos hábitos criando espaços para o devir.
Com relação aos vínculos sociais, três aposentados disseram que após a aposentadoria passaram a ter vínculos sociais mais fortes com as pessoas de suas comunidades religiosas. Maurício disse que frequenta um centro espírita, José e Maria possuem contato com a comunidade da igreja, como pode ser observado nos seguintes relatos:
(...) o meu vínculo familiar e social é o seguinte, eu sempre tenho uma grande amizade... né? Não familiar de primeiro grau, mas sim os meus amigos, esses meus amigos da igreja, que são pessoas católicas, né, apostólica... e eu vivo muito bem com isso, então, esse meus amigos da igreja esses sim são meus amigos de verdade, né? (...) (José).
(...) eu quase não era muito de amizade assim, fui ter mais agora... passei a ter mais, porque agora assim convivendo na igreja... antes eu num tinha, porque eu vivia trabalhando, só dentro de casa, então era mais eu e a família mesmo (Maria).
Dois entrevistados apontaram a manutenção da amizade com pessoas com quem trabalharam, vínculos que foram mantidos devido ao grau de importância que os amigos desenvolveram em suas vidas, como pode ser verificado no relato de Jair: "(...) todo mundo é meu colega do mesmo jeito, de vez em quando, quando sobra tempo aí eu vou lá vê eles... lembrar aqueles tempos ainda (...)".
Os cinco entrevistados revelaram um aumento de tempo livre após a aposentadoria, o qual investem em relacionamentos sociais. Segundo Zanelli e Silva (1996), a vida humana atual é organizada pelo trabalho, pelos seus horários e atividades, assim os relacionamentos pessoais também são determinados de acordo com ele. Pode-se dizer que o trabalho é o núcleo da vida do adulto e é a própria sociedade que define um "tempo útil", "um limite" na vida das pessoas, estes estabelecidos pela aposentadoria, que se apresenta com um dispositivo legal criado pelo sistema a fim de impor o "limite da mais valia do corpo". Assim, o não trabalho faz com que a pessoa sinta-se inútil e desestruturada emocionalmente (Bruns & Abreu, 1997), sofra com o surgimento de doenças e depressão, consequência da não elaboração de um fechamento de ciclo importante - a ruptura com a vida produtiva (Gatto, 2002) -, além da ocorrência de separações conjugais e suicídios surgidos após a aposentadoria (Zanelli & Silva, 1996). Diante dessas constatações, foi verificado neste estudo que a aposentadoria não é representada como uma fase de desengajamento social, podendo-se levantar a hipótese de que isto não ocorre porque esses aposentados continuam trabalhando.
A partir dessa peculiar realidade foi possível perceber uma nova maneira de se viver a aposentadoria, esta não representando o começo do desengajamento social (Veloz et al., 1999), mas, pelo contrário, uma possibilidade de vivenciar o trabalho de forma mais flexível. Mesmo com a existência de uma estrutura rígida, em que é preciso cumprir as cotas exigidas pelas fábricas, os trabalhadores conseguem determinar seu próprio tempo, realizando a costura dos sapatos, mas também usufruindo de atividades de lazer e de relacionamentos sociais fora do ambiente de trabalho. Essa flexibilidade torna-se possível porque esses trabalhadores podem definir a quantidade de pares de sapatos que desejam costurar, uma vez que o trabalho é somente uma renda complementar da aposentadoria.
Tradicionalmente, a palavra aposentadoria é entrelaçada à velhice ou ao envelhecimento. Porém, o que se revela na pesquisa é uma situação contrária, em que a aposentadoria é representada por aposentados não idosos. Diante dessa realidade, é importante refletir sobre os sentidos diferentes que a aposentaria pode adquirir dependendo da fase do ciclo vital em que ocorre. Três entre os cinco entrevistados não são idosos e não mostraram ter o envelhecimento como tema em suas vidas.
Isso ocorre porque o sistema capitalista está o tempo todo idolatrando a juventude e, dessa forma, acaba negando os temas relacionados ao envelhecimento natural do ser humano, ou seja, aquele é tratado somente no sentido de um adiamento. Em nossa sociedade, ser velho geralmente significa estar excluído de vários ambientes sociais, já que o principal aspecto da vida configura-se como o mundo do trabalho (Bosi, 1979; Mercadante, 2002). Assim, como traz a literatura, os dados da pesquisa revelaram que o envelhecimento realmente não é um tema fácil de ser abordado pelas pessoas.
Este estudo revelou, ainda, que a representação sobre a aposentadoria pode distinguir-se de acordo com a necessidade ou não do aposentado em ter que continuar sua vida produtiva. Enquanto para muitos aposentados a chegada da aposentadoria é uma passagem difícil, com grandes perdas e rompimento de vínculos sociais (Gatto, 2002), para alguns, como os participantes da pesquisa, essa passagem é sutil e não se caracteriza como uma fase de perdas.
Considerações finais
Compreender as especificidades do grupo estudado possibilitou adentrar em uma realidade vivida pela camada social baixa de uma cidade tipicamente industrial do interior do estado de São Paulo. Os participantes, no geral, possuem dificuldades sociais, mas mostraram estar conseguindo potencializar suas vidas, pois, como não cessam suas vidas produtivas, continuam se sentindo úteis e desfrutando de atividades de lazer.
Outro aspecto observado no estudo está ligado à idade com que as pessoas se aposentam, podendo ela também intervir nas percepções sobre a aposentadoria. Os participantes não-idosos da pesquisa mostraram não relacionar aposentadoria ao processo de envelhecimento. Pelo contrário, a aposentadoria é vista como positiva e, quanto mais cedo vier, melhor, pois assim se tem um "salário" pago pelo governo e outro pelo seu trabalho informal.
Observou-se, ainda, que para a maioria dos entrevistados o trabalho após a aposentadoria é vivido de forma peculiar, principalmente porque os aposentados declaram sentirem-se como sendo seus próprios patrões, ou seja, não há uma fiscalização externa que controle a quantidade de pares de sapatos que devem ser costurados por dia ou em que horários devem ser feitos. Assim, os trabalhadores determinam, parcialmente, seu próprio tempo. No entanto, pode-se pensar que essa flexibilidade é alcançada porque os aposentados possuem uma segurança financeira com o benefício da aposentadoria, tendo então uma maior liberdade em aceitar ou não o pedido da fábrica para costurar os sapatos ou até mesmo estipular a quantidade desejada, já que esse trabalho é somente um complemento da renda. Ainda que tal fato não possa ser generalizado para todos os trabalhadores domiciliares/terceirizados de Franca, pois há dados de pesquisa indicando exatamente o contrário, essa pode ser uma realidade para alguns trabalhadores aposentados. É importante que essa questão seja aprofundada em estudos posteriores, que busquem investigar condições em que o trabalho é vivido de forma mais tranquila e com maiores possibilidades de usufruto de momentos de lazer e de relacionamento social.
Referências
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Endereço para correspondência:
thais_cintra@hotmail.com
Recebido em: 10/08/2009
Revisado em: 03/03/2010
Aprovado em: 09/03/2010
1 Os nomes dos participantes são fictícios.
2 Para Deleuze e Guattari (1996), a linha de estratificação flexível se revela como uma forma de criar novos hábitos sem quebrar totalmente com os antigos, seria como um "jogo de cintura" na forma de agir e de desempenhar papéis.