SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número2Physis, Natura - Heidegger e Merleau-PontyAplicação das idéias de Winnicott na clínica de pacientes difíceis (esquizóides, fronteiriços e psicóticos) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.6 n.2 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Em busca da linguagem para um dizer não-metafísico

 

Looking for a non-metaphysical language

 

 

Ernildo Stein

PUCRS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

o presente artigo examina a abordagem feita por Heidegger do contexto condicionante do aparecimento da metáfora no uso da linguagem. Este contexto é de cunho metafísico, na medida em que supõe o dualismo clássico da história da metafísica: o mundo sensível e o mundo supra-sensível. A figura adequada para tematizar esse contexto condicionante seria a da metonímia, e a função de uma tal tematização é de natureza filosófica: fixar a oposição entre os tipos de linguagens adequados ao dizer que respeita a diferença ontológica.

Palavras-chave: Heidegger, Linguagem, Metáfora, Metafísica.


ABSTRACT

the present article examines Heidegger's approach to the conditioning context of the appearance of metaphor in the use of language. This context is of metaphysical nature to the degree to which it supposes the classical dualisms of the history of metaphysics: the sensible world and the supra-sensible world. The adequate figure to schematize this conditioning context would be the metonymy, and the function of such a scheme is of philosophical nature: establish the opposition between the types of language adequate to speech that respect ontological difference.

Keywords: Heidegger, Language, Metaphor, Metaphysics.


 

 

O metafórico somente se dá no âmbito da metafísica.
(Heidegger)

 

I

Um texto que trata da metáfora deveria explorar o que as teorias da linguagem, da literatura e da filosofia foram capazes de desenvolver sobre uma das palavras mais antigas e mais carregadas de peso histórico da cultura ocidental. É por isso que em torno dela se desenvolveram discussões e aplicações as mais divergentes e criativas. Mas elas sempre permaneceram dentro de certos limites comprometidos com a história conceitual.

Afirma-se, no sentido limitativo, que, na linguagem mesma onde funciona a metáfora, dá-se um evento subterrâneo, que somente pode ser descrito mediante um abandono do campo de uso possível da metáfora. Pois é exatamente esse abandono que se propõe ao tentar descrever uma dimensão condicionante da linguagem e da metáfora. Nessa dimensão, funcionaria a metonímia como figura adequada ao dizer referido a essa condição.

As razões que levam a introduzir um tal contexto de afirmações acerca da metáfora e da metonímia são de origem filosófica. A função desta introdução consiste em fixar de um modo plástico a posição entre uma linguagem natural que fala de pessoas, fatos, coisas e processos, no mundo ôntico, e uma linguagem que se move num outro nível, o ontológico. Com isso, diante da linguagem, fixam-se os limites para uma diferença que é introduzida e legitimada desde a linguagem não-natural, portanto, construída. Assim, introduz-se a diferença ontológica encoberta pela metafísica que, em lugar de enfrentar a diferença, no nível formal, prático, duplica os mundos (o sensível e o supra-sensível) e estabelece relações instáveis e oscilantes entre esses dois mundos, ao situá-los no coração da linguagem comprometida, desse modo, com o dualismo, remetendo sempre à metáfora.

Heidegger pretende sustentar, pela metonímia, o elemento mobilizador dessa dimensão de condição de possibilidade. Mas o filósofo não separa mais os dois níveis da condição e do condicionado, como se tivessem uma relação de fundante e fundado. Essa unidade nova não visa uma explicação de um dos níveis pelo outro. Descreve apenas o modo como sempre estamos operando quando falamos. Há um pré-compreender que serve de espaço para todo dizer e que, ao mesmo tempo, é desencadeado por este. Aí nós nos compreendemos em nosso ser, sempre que compreendemos tudo o que é.

 

II

A insistência, na obra de Heidegger, em torno da questão da linguagem, poderia ser vista sob diversos pontos de vista:

1. Ela não é, primeiro, referente a uma filosofia da linguagem, portanto, a um conjunto sistemático de enunciados filosóficos sobre a linguagem.

2. Ela não é, em segundo lugar, um abordar a linguagem com a finalidade de uma análise da linguagem.

3. A insistência heideggeriana na questão da linguagem constitui, positivamente, uma preocupação com o modo de dizer a sua filosofia.

4. Essa insistência revela uma preocupação em distinguir sua linguagem construída, em Ser e tempo, por exemplo, da linguagem das línguas naturais.

5. Mas ela manifesta também e principalmente uma preocupação com o dizer de seu objeto.

6. O objeto das análises de Ser e tempo é abordado por enunciados que remetem a uma dimensão não-empírica, mas estrutural, transcendental no sentido não-clássico.

7. Mas essa dimensão estrutural não quer ser metafísica e, por isso, o filósofo pensa poder encontrar uma linguagem não-metafísica para ela.

8. Desse modo, a insistência na linguagem constitui uma crítica à metafísica com seus conceitos objetificadores.

9. Heidegger pensa poder encontrar essa linguagem através do método fenomenológico, pelo qual se trabalha com conceitos que vão se constituindo pela descrição por indícios formais e não com material conceitual pronto, trazido pela linguagem objetificadora da metafísica.

10. A insistência na linguagem visa uma adequação ao dizer da manifestação fenomenológica do ser, para separá-lo do dizer dos entes da metafísica.

11. Essa nova linguagem serviria de instrumento para o método fenomenológico que, justamente, sempre joga com uma ambigüidade entre velamento e desvelamento na relação entre ser e ente.

12. Dessa insistência e preocupação com a linguagem e com a ambigüidade da relação entre ser e ente irá nascer o nível apofântico e o nível hermenêutico - o enquanto apofântico e o enquanto hermenêutico -, onde se situa a matriz de uma nova linguagem possível.

13. Finalmente, dessa forma, surge a possibilidade de uma linguagem ligada ao compreender do ser no sentido fenomenológico do acontecer, do manifestar-se pelo acontecer.

14. A afirmação de que o "metafórico somente se dá no âmbito da metafísica" aponta para uma crítica específica da linguagem metafísica.

15. Vamos examinar o modo como isso será mais uma tentativa na busca de um dizer adequado daquilo que é a "tarefa do pensamento".

 

III

É bem conhecida na nossa linguagem a operação com a qual transferimos significados não-sensíveis para imagens ou remetemos elementos sensíveis a esferas não-sensíveis. Para podermos realizar tais deslocamentos de um âmbito para o outro, temos já como pressuposto, intuitivamente, que existem dois mundos. A distinção entre sensível e supra-sensível tem uma história central na tradição metafísica. Basta, no entanto, mostrarmos que a distinção entre sensível e supra-sensível corresponde à distinção entre corpóreo e espiritual, o que significa diferenciar entre ser animal e ser racional. Basta analisarmos manifestações de múltiplos autores, na história da metafísica, para vermos que essa separação levou à dimensão essencial pela qual se define o homem ocidental como animal racional. Podemos compreender animal racional no sentido aristotélico de zoon logon echon, o ser vivo que possui linguagem. Essa definição também parece participar daquelas convicções intuitivas no pensamento ocidental. Assim como também a própria linguagem, quando levamos em consideração a distinção fundamental entre sensível e não-sensível, encontra-se no lado do não-sensível.

A distinção metafísica entre sensível e supra-sensível, entre o corpóreo e o espiritual, entre o animal e o racional, não é apenas deslocada para a concepção da linguagem, mas termina por carregar a linguagem, mesmo que a situemos do lado do supra-sensível, com os elementos das referidas dualidade. Assim, passamos a incorporar, na concepção metafísica da linguagem, uma divisão que tem duas conseqüências. De um lado, ganhamos a vantagem de podermos dilatar nosso esforço de significação de modo praticamente infinito; de outro lado, criamos uma dependência dessa possibilidade, que passa a viciar qualquer esforço de linguagem em direção à superação do mundo concreto para nos movermos num contexto apenas conceitual. Com essa capacidade de lidarmos, com facilidade, com o deslocamento de algo que é propriamente não-sensível para uma imagem, nós conseguimos tornar sensíveis contextos não-sensíveis de significação e, ao descrevermos essa operação, já estamos operando com o pressuposto da dualidade. A mais clara conseqüência dessa distinção, que passa a ser uma característica da linguagem, é a metáfora. Passamos, então, a olhar a linguagem como marcada essencialmente por uma elasticidade que nos permite o jogo do deslocamento, pelo qual fazemos a ponte entre os dois lados duma distinção trazida pela metafísica. Dessa maneira, estamos diante de uma situação surpreendente. Criamos uma dualidade, separando o sensível e o supra-sensível, e, então, dotamos aquele ser, ao qual aplicamos essa dualidade, com uma capacidade para superar essa divisão através de uma operação realizada na linguagem.

Se partirmos de um exame acurado de tudo o que está implicado com o conceito de metáfora, temos de convir que a linguagem metafórica somente existe aí onde o homem, como animal racional, é a base da determinação da linguagem. Essa conseqüência foi assumida pela metafísica, convertendo, em seu contexto, a questão da metáfora num dos temas mais comuns e ao mesmo tempo mais essenciais para o pensamento metafísico. No entanto, no contexto da metafísica, repete-se algo daquilo que referimos acima. De um lado, força-se a linguagem a ser dualista e, de outro lado, sofrem-se conseqüências inarredáveis para o pensamento que procura ultrapassar o dualismo. Mas, com isso, surge também uma questão muito mais séria. Como pensar uma experiência da linguagem que não incorpore a distinção metafísica de sensível e supra-sensível, de animal e racional? Trata-se da questão de uma linguagem sem metáforas. Uma vez livre da metafísica e da distinção entre sensível e supra-sensível, que nela é determinante, podemos falar de uma linguagem sem metáforas? Isso teria como conseqüência a necessidade de uma introdução da questão de uma linguagem e de um pensamento não-metafísicos.

 

IV

Heidegger tinha uma percepção nítida desse problema da relação entre sensível e supra-sensível que, desde os gregos, passando pela Idade Média, atravessava toda a metafísica ocidental. Mas o filósofo tinha, além disso, uma consciência historicamente elaborada das conseqüências de uma tal distinção intuitiva para todo o pensamento ocidental.

Em seu livro, Der Satz vom Grund (O princípio da razão), Heidegger nos faz uma clara exposição da gênese do problema da relação entre sensível e supra-sensível. Passemos a citar uma página importante que nos situará no coração do problema:

Aos pensadores gregos antigos era familiar o pensamento que por vezes demais apresentamos de modo superficial: o igual somente pode ser conhecido pelo igual. Com isso se quer significar: que aquilo que nos invoca é somente percebido através de nosso corresponder. Nosso perceber é em si um corresponder. Goethe, na introdução de sua Farbenlehre (Teoria das cores), retorna a esse pensamento grego e procura expressá-lo, da seguinte maneira, em rimas germânicas:

Se o olho não fosse solar,
Como poderíamos olhar a luz?
Se não vivesse em nós a própria força de Deus,
Como poderia o divino nos encantar?

Parece que até hoje não meditamos suficientemente em que consiste a dimensão solar do olho e em que repousa a própria força de Deus em nós; não meditamos suficientemente em que medida ambas as coisas se co-pertencem e nos dão o aceno para um ser (Sein) do homem pensado mais profundamente, aquele do ente (Wesen) que pensa. Basta-nos, aqui, a seguinte consideração. Pelo fato de nosso ouvir e ver jamais serem um simples receber sensível, por isso permanece também insuficiente afirmar que pensamento como escutar e ver é apenas uma transposição, a saber, a transposição do aparentemente sensível para o não-sensível. A idéia de "transpor" e da metáfora reside na distinção, quando não separação, do sensível e não-sensível como duas dimensões subsistindo por si.

O estabelecimento dessa separação do sensível e não-sensível, do físico e do não-físico é um traço fundamental daquilo que significa metafísica e que determina de modo predominante o pensamento ocidental. Com a descoberta de que a citada distinção do sensível e não-sensível permanece insuficiente, perde a metafísica o nível de pensamento predominante.

Com a descoberta do limitado da metafísica, também se torna caduca a predominante representação de "metáfora". Pois ela nos dá a medida para a nossa representação da linguagem. Por isso, a metáfora serve como instrumento auxiliar muito utilizado na interpretação das obras poéticas e na criação artística em geral. O metafórico somente se dá no âmbito da metafísica (os itálicos são meus) (1957, pp. 88-9).

Essa notável passagem do filósofo não exigirá de nós uma análise que só poderia vir a perturbar a nitidez da questão que Heidegger consegue descobrir na separação entre sensível e supra-sensível. É suficiente apontar a situação da metafísica, quando entra em crise essa separação, arrastando para dentro dessa crise toda a metafísica. A conseqüência que aqui nos interessa examinar é o que isso representa para a linguagem. Deve ficar para outras considerações o que Heidegger acrescenta como admoestação essencial: "As indicações somente nos devem situar diante de uma precaução para que não consideremos, apressadamente, o dizer do pensar como um escutar e um ver, apenas uma simples metáfora, não considerando esse dizer com a devida seriedade" (ibid., p. 89).

 

V

Portanto, assim como a metáfora somente se dá no âmbito da metafísica, será próprio da história da metafísica o pensar metafórico. Com a crise da metafísica, entra também em crise todo o pensar metafórico e, portanto, o dizer da metafísica. Sabemos que a metafísica é o tipo de conhecimento que está sempre em busca de um fundamento. Desse modo, o pensar metafísico, com caráter metafórico, é um pensar em busca do fundamento. Entretanto, na interpretação de Heidegger, a metafísica, enquanto busca o fundamento, percorre várias épocas da história ocidental, caindo sempre na armadilha inevitável de pensar o ser através de um ente determinante. Heidegger chamará isso de entificação do ser, que tem como conseqüência o encobrimento do ser, tornando-se a metafísica a história do esquecimento do ser. Como o vínculo do pensar metafísico se faz com a história do esquecimento do ser, o pensar metafórico está na raiz desse esquecimento.

Essa questão do fundamento está ligada com o princípio da razão, pois a metafísica pensou a razão como fundamento. Todo o ente, portanto, tem um fundamento. Entretanto, Heidegger mostra como a própria idéia de fundamento pode ser interpretada de maneira diferente. Segundo o filósofo, ser teria o caráter de fundamentalidade e, nesse sentido, "ser tem um fundamento" significaria "ser acontece fenomenologicamente em si como o que escava o fundamento". Esse escavar o fundamento seria o sentido oculto encoberto pela separação entre sensível e não-sensível. Desse modo, "o princípio do fundamento (da razão) é um dizer do ser". Temos, desse modo, diante de nós, a tarefa de pensar o confronto da linguagem metafísica e da outra linguagem, no próprio contexto de um princípio da metafísica. "Mas esse pensar não necessita do refúgio à gramática" (ibid., p. 89-90).

Dessa maneira, quando o filósofo afirma que o pensar metafísico se realiza através da linguagem metafórica, ele irá concluir que, com a linguagem da metafísica, tendencialmente, se irá encobrir o ser e que o pensar metafísico não é, portanto, adequado para pensar a questão do ser. Assim, impõe-se um outro modo de pensar que se situe para além da metáfora. Como o filósofo distingue, em Que significa pensar? (Heidegger, 1953), entre o pensar da psicologia (o pensar I) e o pensar da lógica (o pensar II), e apela para o mais digno de ser pensado, o pensar que é da filosofia: denomino este pensar o pensar III. Um tal pensar terá como característica fundamental aquilo que é o teorema do pensar número III, a saber, a diferença ontológica. Assim, a superação da metafísica, através de um pensar não-metafórico, terá de realizar-se, no contexto de uma análise da história do esquecimento do ser pela entificação do ser, utilizando como elemento condutor o pensar da diferença ontológica. Mas pensar a partir da diferença ontológica terá como primeira conseqüência que não mais se estabeleça como fundamento um ente determinado que seja responsável pelo fundamento. Como vimos, é preciso pensar de outro modo essa questão do fundamento. Assim, o ir em busca do fundamento nos apresenta sinais de um pensar que solapa o fundamento e que leva, então, a um possível dizer do ser. O pensar não-metafísico irá substituir o presumido pensar metafísico, que se move no âmbito, não da diferença ontológica, mas na distinção metafísica do dualismo, entre sensível e supra-sensível e, ainda, no âmbito da definição do ser humano pela animalidade e pela racionalidade. Assim, como o pensar metafísico está no dualismo da definição de homem na antropologia, ele também, necessariamente, irá determinar, de modo dualista, todo o mundo da cultura e da história humana. Em todas as formações culturais da história ocidental irá infiltrar-se, então, o pensar metafórico e, portanto, uma linguagem que sempre se moverá no âmbito da metáfora.

A empresa heideggeriana de estabelecer, ao lado do pensar I e II, o pensar III tem, particularmente, a função de evitar que se estabeleça o pensar metafísico de tal modo que comprometa, pelo dualismo, o pensar I e II. Esse pensar dualista viciaria tanto o pensar I como o pensar II, pela objetificação, levando-os, como conseqüência, a buscar um fundamento adaptado àquilo em que ele se dá: o âmbito da metáfora. Desse modo, não se evitaria a confusão constante entre os três modos de pensar que, mesmo que pudessem ser separados, inevitavelmente apareceriam como um único pensar comandado pela metafísica, já que ela é o pensar do ente através da metáfora, isto é, através do dualismo. Assim, foram determinados, em toda a história da metafísica ocidental, sempre, o mundo da ciência, da arte, da lógica, da psicologia e da linguagem. O modelo entificado de qualquer época marca todas as manifestações da cultura daquela época e todo o dizer será dualista.

A tarefa da filosofia de Heidegger será, portanto, não simplesmente insistir em evitar o metafórico, mas estabelecer um modo de pensar e de dizer que precede e torna possível qualquer metáfora. Mas esse pensar não pretende estabelecer um fundamento. Como ele se dá no âmbito da compreensão do ser, não pode estabelecer uma diferença ôntica ou não pode fixar um fundamento dos entes representado por algum ente privilegiado. Há apenas um privilégio para o pensar III que Heidegger estabelece: a condição onticamente ontológica do Dasein, porque, através dele, ou melhor, nele, o ser possui o lugar de sua emergência, através da compreensão do ser. Assim, os dois teoremas que comandam esse pensar, não mais metafórico, serão os teoremas da finitude: o círculo hermenêutico e a diferença ontológica.

 

VI

Quando Heidegger, por exemplo, pergunta Que significa pensar?, ele acena para esse pensar não-metafórico que constitui o âmbito em que qualquer pensar acontece enquanto, através dele, não mais se objetifica o ser humano, aplicando a ele a definição dualista de animalidade e racionalidade. O homem enquanto Dasein, enquanto o aí do ser, é o ponto de partida hermenêutico, mas não o ponto de partida ôntico, e não apenas hermenêutico como decifração da condição metafórica, mas sim hermenêutico enquanto o Dasein já desde sempre se compreendeu em sua dimensão de ser. É assim que a fenomenologia hermenêutica de Heidegger encontra, no caminho da compreensão de ser, o primeiro aceno para o outro passo da história do ser que deverá ser mostrada, através do adentramento da metafísica, no esforço de superação do esquecimento do ser. Nisso se enraíza o outro modo de dizer.

Que significa pensar? não é uma pergunta que quer propriamente uma resposta através de uma definição. O que ela pretende suscitar é aquilo que move o Dasein, na sua condição de ser-no-mundo, compreendendo o ser e desencadeando a partir daí uma história do ser que deve ser desvendada em seus desvios produzidos pelo pensar metafísico e expressa numa linguagem adequada. Como o pensar III, que Heidegger liga a essa história do ser, está tendencialmente encoberto, importa acenar justamente para o perigo e para a ameaça de não pensarmos o que dá o que pensar. Dessa maneira, o filósofo acena e mantém também a linguagem apropriada que falta, fazendo com isso um apelo para a vigilância para que se pense o perigo que acompanhou toda a história da metafísica ocidental, na medida em que o dualismo sujeito-objeto da metafísica reduziu o pensar filosófico e o dizer a um pensar e dizer dos entes ou da dife rença ôntica. Quando Heidegger afirma com o verso do poeta: "Ali onde está o perigo, cresce também a salvação", ele promete a salvação através do pensar que não mais pensa o ente como fundamento, que não mais entifica o ser, que não mais objetifica o ser humano.

Conhecemos muitas obras e muitos ângulos de abordagem em que o filósofo nos fala de um dizer ou dessa tarefa que é saber do perigo da entificação e encontrar a salvação, num modo novo de pensar e dizer o ser, que é o único modo que faz justiça à diferença ontológica. O pensar III constitui, portanto, a meta de toda a obra do filósofo, sendo assim possível descobrir-lo, muito antes de o terceiro Heidegger chamar a atenção para o pensar III em Que significa pensar?. Podemos encontrar, certamente, referências a esse pensar no primeiro e segundo Heidegger. É no segundo Heidegger, que realiza a interpretação da metafísica ocidental como o acontecer do ser, que iremos encontrar as melhores referências a um pensar que não mais se confunde com o pensar da metafísica e que procura, em meio à linguagem metafórica da metafísica, uma outra linguagem adequada para falar do ser. É, sobretudo, no seu livro Contribuições para a filosofia (do acontecimento-apropriação), que as extensas análises desse outro pensar que não é mais metafísico aparecem numa linguagem que, positivamente, conduz ao pensar pelo qual podemos encontrar, na história do ser da metafísica, uma outra história, a história do encobrimento. É a essa história que Heidegger visa com o pensar III.

 

VII

Esse pensar III, que procura falar do ser, tenta evitar a linguagem metafórica da metafísica, procurando uma linguagem adequada. Pelo que podemos observar na obra de Heidegger, nela se multiplicam as queixas contra a linguagem da metafísica, desde o começo de Ser e tempo. De certa maneira, o filósofo deve resignar-se a falar dentro da linguagem metafísica. No entanto, nela mesma ele procura superar a dimensão metafórica que sempre joga com o modelo dos dois mundo e a relação entre sensível e supra-sensível.

Em vez de falar da questão do ser através de uma semântica que ainda o comprometeria com a entificação do ser, o filósofo introduz uma linguagem de aceno, uma linguagem de aproximações. Isso quer dizer que os recursos da fenomenologia para mostrar o que se oculta por baixo de qualquer semântica são explorados na direção da constituição de uma linguagem que não pretende mais aceitar a metáfora. O filósofo passa do modelo enunciativo da linguagem para o modelo operativo colado ao mundo prático do modo de ser-no-mundo que opera com a compreensão (do ser). É por isso que não existe em toda a obra heideggeriana um exemplo para o conceito de ser. Pois todo o exemplo remete a um mundo metafórico que objetifica.

Se não existe a possibilidade de exemplificar aquilo que o pensamento III de Heidegger tematiza, é justamente porque, nas palavras do filósofo, se rompe com a possibilidade de duplicar, pela imagem, aquilo que ele pensa:

O pensamento que aqui procuro eu o denomino pensar tautológico. Este é o sentido originário da fenomenologia. Esta maneira de pensar permanece ainda aquém de todas as distinções possíveis entre teoria e práxis. Para compreender isso, devemos aprender a distinguir entre caminho e método. Na filosofia, há somente caminhos; nas ciências, ao contrário, apenas métodos, isto é, procedimentos. (1972, p. 132)

Talvez possamos levar a sério isso que Heidegger chama de tautológico em seu pensamento e em sua linguagem, pois, assim, ele confirma o seu dizer do mesmo. Mesmo não tem nada a ver com igual. Justamente expressões como "o mundo munda" ou "a linguagem fala" são exemplos desse constante retorno do mesmo. Por isso, as expressões podem ser traduzidas por "o mundo se manifesta ou acontece fenomenologicamente como mundo" e "a linguagem se manifesta e acontece como linguagem". A mesma coisa diríamos com relação ao "ser que é": das Sein west, ou das Sein ist, "o ser se manifesta ou acontece fenomenologicamente".

Desse modo, estamos nos movendo no espaço da metonímia, isto é, nunca possuímos o todo, ele apenas se manifesta na parte. E, quando falamos da parte, só o podemos porque já a englobamos pela diferença com o todo. Desse modo, a diferença ontológica se constitui como o núcleo de uma nova linguagem, que é a linguagem não-metafórica, e que remete para o campo da metonímia.

 

VIII

Naturalmente, como estamos residindo na tradição da metafísica ocidental, toda a escuta que realizamos da linguagem heideggeriana nos situa, num primeiro momento, dentro da semântica dessa metafísica. Deslocar a compreensão do universo metafórico para a dimensão metonímica é sempre uma operação necessária na leitura dos textos produzidos pelo pensar III. Quando enfrentamos os textos do segundo Heidegger, recebemos grandes apoios que ele nos dá através de seu recurso aos poetas e à obra de arte. Aí aparecem descrições que se projetam no campo metonímico e que preservam, assim, a linguagem do dualismo da linguagem metafórica. Não devemos, portanto, estranhar o fato de termos de fazer uma espécie de deslocamento de uma linguagem que muitas vezes ainda se move no universo das expressões metafóricas, mas que remete sempre para aquilo que as precede e que constitui, justamente, a linguagem do ser.

O recurso às descrições fenomenológicas, que se situam fora do campo das definições de conceitos da tradição metafísica, é justamente a tarefa daquilo que Heidegger pretende com os indícios formais. Através da captação desses indícios pela descrição fenomenológica, vão se constituindo campos expressionais, em que se coagulam certas características que aparecem dispersas na multiplicidade de manifestações ônticas. Quando a aplicação bem-sucedida na busca dos indícios formais consegue constituir modos novos de dizer, estamos fora da conceitualização metafísica e entramos no campo onde aparecem as frágeis consistências de conceitos fenomenológicos. Estes não fazem parte do todo previamente dado do mundo metafísico. Mas eles são resultado de um operar fenomenológico que circunscreve determinadas regiões a partir das quais se produz uma espécie de povoamento por conceitos de origem fenomenológica.

Assim, desaparece a atitude apropriadora da objetificação que lida com conceitos previamente dados. Mas esse comportamento do fenomenólogo sofre sempre o rebate sobre ele mesmo, de tal modo que o acontecer que se situa através dos indícios formais, para além do objeto, converte também o fenomenólogo em um acontecer diante daquilo que é levado à manifestação. Desse modo, produz-se um espaço para o encontro do acontecer do homem e do acontecer do ente, por exemplo. Assim, se protege um âmbito que se situa para além da metáfora, portanto, um espaço para além do dualismo metafísico. Celebramos, desse modo, a superação da relação sujeito-objeto. Essa é justamente a proposta heideggeriana, a superação do dualismo que ainda se manifesta nessa relação que está no coração do projeto metafísico da fundamentação. Assim, poderíamos pensar as operações heideggerianas diante da sua nova tarefa do pensamento, em que ele se move naquilo que ele chama o tautológico, o lugar da manifestação do mesmo. Se o filósofo diz que esse pensamento é "mais que filosofia", ele simplesmente pretende dizer que não pode mais ser identificado com análises do dualismo da tradição ocidental. É isso que significa "o fim da filosofia e a tarefa do pensamento".

 

Referências

Heidegger, Martin 1953: Was heisst Denken. Tübingen, Niemeyer.        [ Links ]

_____1957: Der Satz vom Grund. Pfullingen, Günter Neske.        [ Links ]

_____1972: Vier Seminare. Frankfurt/M, Vittorio Klostermann.        [ Links ]

_____1986: Sein und Zeit. 17. Tübingen, Max Niemeyer.        [ Links ]

Heidegger, Martin 1989: Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Frankfurt/ M, Vittorio Klostermann.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ejstein@pucrs.br

Recebido em 27 de outubro de 2003
Aprovado em 3 de maio de 2004