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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.12 no.1 São Paulo  2010

 



ARTIGOS

 

Freud e Darwin: ansiedade como sinal, uma resposta adaptativa ao perigo

 

Freud and Darwin: Signal Anxiety as an Adaptive Reaction to Danger

 

 

Milena de Barros Viana

Departamento de Biociências, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Nos últimos anos, o paradigma evolucionário tem norteado o estudo dos atualmente chamados "transtornos de ansiedade". Para a Psiquiatria evolutiva, as raízes da ansiedade encontram-se nas reações de defesa dos animais em face de estímulos que representam perigo/ameaça à sobrevivência, ao bem-estar ou à integridade física das diferentes espécies. Muito embora Sigmund Freud, ao longo de sua obra, tenha demonstrado interesse pelas origens evolutivas da mente humana, suas contribuições nessa área têm, frequentemente, sido desprezadas, sob a alegação de que são baseadas em um mecanismo evolucionário ultrapassado: a transmissão hereditária dos caracteres adquiridos, de autoria atribuída a Lamarck. O objetivo do presente trabalho é investigar a influência exercida por Darwin sobre uma formulação teórica de Freud, o conceito de ansiedade como sinal. Procurar-se-á demonstrar que o conceito de ansiedade como sinal parte do pressuposto de que a ansiedade pode ser uma reação adaptativa a situações de perigo, apresentando semelhanças com o que foi formulado por Charles Darwin na obra "A expressão das emoções no homem e nos animais" (1872). Para Darwin, o valor adaptativo dessa emoção encontra-se no fato de a ansiedade ter uma função biológica a cumprir. Para Freud, a ansiedade é adaptativa não apenas por preparar o animal para lidar com o perigo por meio da mobilização de energia psíquica, mas também por auxiliar na detecção antecipada de novas ocorrências do estado de perigo. Tanto a transmissão hereditária dos caracteres adquiridos quanto outros mecanismosevolutivos hoje desacreditados, como a teoria da recapitulação, são mecanismos utilizados extensivamente tanto por Freud quanto por Darwin.

Palavras-chave: Freud, Darwin, Lamarck, ansiedade, medo, evolução.


Abstract

The evolutionary perspective has long influenced the study of anxiety. For modern Evolutionary Psychiatry, anxiety disorders are nothing else than pathologies of the defense system. Although Sigmund Freud, throughout his career, was also interested in the evolutionary origins of the human mind, his contributions to the field have frequently been forgotten, based on the allegation that his evolutionary theory of psychopathology is founded on a discredited evolutionary mechanism: the "Lamarckian" idea of inheritance of acquired characteristics. The present study investigates the influence of Darwin over the Freudian concept of signal anxiety. It shows that the concept assumes that anxiety is an adaptive reaction to danger, an idea influenced by his readings of Darwin's "The expression of emotions in man and animals" (1872). Signal anxiety is adaptive not only because it prepares the animal to deal with danger through the mobilization of psychic energy, but also because it helps the anticipated detection of new occurrences of the state of danger. The "Lamarckian" use and inheritance law, and other so-called "discredited evolutionary mechanisms", such as theory of recapitulation, are extensively referred to by both Freud and Darwin.

Key-words: Freud; Darwin; Lamarck; anxiety; fear; evolution.


 

 

1. Introdução

Em 1915, Freud iniciou o projeto de elaboração de um livro que pretendia fixar os alicerces de toda a sua obra psicanalítica. Esse projeto foi, por razões desconhecidas, abandonado pouco tempo depois. Dos doze artigos escritos, apenas cinco foram publicados. Os demais se perderamou foram destruídos. Em 1983, Ilse Grubich-Simitis descobriu uma cópia do décimo segundo artigo em um baú que pertencia a Anna, filha de Freud. Esse artigo foi publicado sob o título de "A phylogenetic phantasy: overview of the transference neuroses", em 1987, e, posteriormente, traduzido para o português com o título "Neuroses de transferência: uma síntese" (1987). Essa é uma das principais obras de Freud que aborda a questão da evolução filogenética da mente. Nela, o autor propõe que os diferentes quadros neuróticos poderiam ser dispostos segundo sua ordem de surgimento na vida do indivíduo. O mais precoce seria a Angstneurose,1seguida da histeria de conversão (que, segundo Freud, pode ser desencadeada a partir dos quatro anos de idade), da neurose obsessiva (com surgimento por volta dos nove anos), da demência precoce (ou esquizofrenia, a partir da puberdade) e, finalmente, na maturidade, da paranoia e da melancolia-mania (atual transtorno bipolar). Apresentarse- ia assim, segundo Freud, a ordem sequencial de surgimento desses diferentes quadros clínicos, em termos ontogenéticos. Tal sequência seria, em grande parte, determinada pelo desenvolvimento da libido. Entretanto, além da sequência ontogenética, poder-se-ia também traçar outro paralelo tendo por base a filogenia. Curiosamente, a sequência filogenética acompanha, dirá Freud, a ontogenética (ou seja, há aqui uma menção à ideia de recapitulação2) (Freud, 1987).

Nesse sentido, Freud (1987) irá argumentar que, no princípio, nossos ancestrais viviam em um ambiente de grande abundância, uma espécie de paraíso original, tendo livre acesso à comida e à cópula. Entretanto, em função de mudanças climáticas ambientais drásticas (surgimento da era glacial), a humanidade foi forçada a alterar radicalmente seu comportamento. A Angstneurose surge a partir das incertezas em face das privações impostas pelas mudanças climáticas. Tendo em vista que o mundo se tornou uma fonte de perigos iminentes, a libido sexual sofre transformações, mantendo-se agora no "Eu" e não mais no objeto (Freud, 1987).

Com a continuação dos tempos glaciais, o homem, ameaçado em sua sobrevivência, renuncia ao prazer de procriar. Não há comida para todos. É necessário, portanto, limitar a procriação. Essa limitação afeta mais duramente as mulheres do que os homens. Tal situação, dirá Freud, corresponde à histeria de conversão (Freud, 1987).

A situação seguinte é decorrente das mudanças adaptativas que ocorreram nas duas fases anteriores. Em face das adversidades ambientais, o homem aprende a intervir sobre o mundo, dominando-o. Desenvolvese a linguagem, que, para o homem primitivo, se assemelha à magia: é a compreensão do mundo, por meio do próprio "Eu". Ao final dessa fase, a humanidade encontra-se dividida em hordas, cada uma sendo dominada por "um homem sábio, forte e brutal, como pai" (Freud, 1987, p. 77, parágrafo 1). A neurose obsessiva ("acentuação exagerada do pensar, onipotência do pensamento, tendência inviolável do pensamento", p. 77, parágrafo 2), dirá Freud (1987), reproduz as características dessa fase da humanidade.

Já em uma segunda fase do desenvolvimento da humanidade, apareceriam as neuroses narcísicas (Freud, 1987). Esta segunda fase encontrar-se-ia ligada ao surgimento de uma segunda geração, composta pelos filhos do chefe da horda. Freud (1987) parte da hipótese de que esse pai brutal nada permite aos filhos, expulsando-os da horda quando esteschegam à puberdade ou, pior, despojando-os de sua virilidade por meio da castração. O efeito da castração é a extinção da libido. A demência precoce parece repetir os efeitos da castração (Freud, 1987).

Poderia acontecer, entretanto, que os filhos ameaçados pela castração conseguissem fugir, organizando-se, a partir daí, em bandos de filhos fugitivos, nos quais a organização social podia ser edificada com base nas satisfações homossexuais. A paranoia seria, assim, uma espécie de defesa contra o retorno desta fase de organização social. A paranoia, dirá Freud, "tenta repelir a homossexualidade, que era a base dessa fraternidade e, ao mesmo tempo, tem de expulsar da sociedade o acometido de homossexualidade e destruir suas sublimações sociais" (Freud, 1987, p. 79, parágrafo 2).

Por fim, surgiria a melancolia-mania. Em termos evolutivos, esse quadro clínico seria decorrente, por um lado, do triunfo da fraternidade sobre o pai brutal (por meio da sua morte) e, por outro lado, do luto, já que todos o "admiravam como tipo ideal" (Freud, 1987, p. 80, parágrafo 1). Resta saber como essas características psíquicas seriam transmitidas de geração a geração. Aqui, ao que parece, Freud refere-se a uma espécie de memória orgânica, que tem por base a herança dos caracteres adquiridos, de autoria atribuída a Lamarck.

Dois anos após escrever "Neuroses de transferência" (1987), Freud publica "Conferências introdutórias sobre psicanálise" (1976c), onde aborda a questão da ansiedade, estabelecendo uma distinção entre ansiedade realística e neurótica, e já introduzindo o que virá a ser conhecido como a grande contribuição de sua segunda teoria sobre a ansiedade, a noção de ansiedade como sinal.

Embora, aparentemente, as referências tanto à teoria da herança dos caracteres adquiridos quanto à ideia de recapitulação estejam presentes (ver próximas seções), a discussão traçada por Freud acerca do valor adaptativo da ansiedade apresenta semelhanças com o que foi formulado pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), na obra "A expressãodas emoções no homem e nos animais" (1872/2000). De acordo com as ideias evolutivas de Darwin, é possível propor que o valor adaptativo da ansiedade encontra-se, justamente, no fato de ela ter uma função biológica a cumprir, como reação a um estado de perigo. No caso de Freud, a ansiedade seria adaptativa, não apenas por preparar o animal para lidar com o perigo por meio da mobilização de energia psíquica, mas também por auxiliar na detecção antecipada de novas ocorrências do estado de perigo em questão.

O objetivo do presente trabalho é, portanto, investigar como a formulação do conceito de ansiedade que funciona como sinal assemelhase ao que foi proposto por Charles Darwin na obra "A expressão das emoções no homem e nos animais" (1872/2000). Para tanto, em um primeiro momento, o conceito freudiano será apresentado. Em seguida, as ideias de Darwin acerca da expressão das emoções serão abordadas. Em um terceiro momento, as principais semelhanças existentes entre as elaborações teóricas de ambos os autores serão discutidas. Para concluir, propõe-se que a relação de Freud com a Biologia Evolutiva configura-se em um interessante campo a ser explorado, havendo, talvez, aqui, uma possibilidade de diálogo com a Psiquiatria moderna, mais precisamente com a Psiquiatria Evolutiva, ramo da Psiquiatria que se dedica, em especial, ao estudo da origem evolutiva das diferentes psicopatologias. No que diz respeito à ansiedade, é justamente o paradigma evolucionário que tem norteado, nas últimas décadas, o estudo do tema em questão. Para a Psiquiatria Evolutiva, as raízes da ansiedade e do medo estariam nas reações de defesa dos animais em face de estímulos que representam perigo ou ameaça à sobrevivência, ao bem-estar ou à integridade física das diferentes espécies. E, nesse sentido, quadros de ansiedade seriam, acima de tudo, patologias dos sistemas de defesa.

 

2. Freud e a questão da ansiedade

Freud depara-se pela primeira vez com o tema da ansiedade ao tratar das neuroses atuais. Nessa época, encontra-se imerso em sua tentativa de expressar os dados da psicologia, em termos quantitativos e fisiológicos, tentativa esta que dará origem ao "Projeto para uma psicologia científica" (1976i), apenas publicado após sua morte. Utilizando-se de termos encontrados no "Projeto" (1976i), faz uso da ideia do princípio de constância,3 de acordo com o qual havia uma tendência inerente ao sistema nervoso de reduzir, ou de manter constante, o grau de excitação nele presente. Quando, a partir de observações clínicas, constata que em casos de Angstneurose sempre era possível descobrir certa alteração da descarga da tensão sexual, afirma que a excitação acumulada escapava sob a forma "transformada" de ansiedade (Freud, 1976i).

Mas por que a tensão sexual física se transforma em ansiedade quando há acumulação? Em seu artigo inaugural sobre a Angstneurose (Freud, 1976i), Freud recorre à ideia do "princípio da constância": nãosendo possível a fuga dos estímulos sexuais endógenos, só é possível interromper a estimulação por meio de uma reação específica, que evita um novo surgimento da estimulação. A tensão cresce por somação, sendo percebida apenas acima de um limiar. A partir desse limiar, passa a ter significação psíquica, pois entra em contato com determinados grupos de ideias. Logo, a tensão sexual física acima de certo nível desperta a libido psíquica, que induz ao coito (e, nesse caso, o coito funciona como uma reação específica). Entretanto, se a reação específica não se realiza, a tensão físico-psíquica aumenta, tornando-se uma perturbação (Freud, 1976i). O que ocorre na Angstneurose é que a tensão física aumenta, atingindo o nível/limiar em que desperta afeto psíquico, mas a conexão psíquica que lhe é oferecida, por algum motivo, permanece insuficiente (Freud, 1976i). Assim, um afeto sexual não pode ser formado. A tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em ansiedade. E isso pode acontecer devido, por exemplo, ao desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica (é o que ocorre em virgens), ao declínio desta (é o que ocorre na senilidade) ou ao alheamento que pode ocorrer às vezes entre a sexualidade física e a psíquica4 (Freud, 1976i). Em todos esses casos, a tensão sexual se transforma em ansiedade (Freud, 1976i).

A ideia de que a excitação sexual acumulada irá ser transformada em ansiedade, entretanto, sofre algumas modificações em obras mais tardias de Freud. Na "Conferência XXV" das "Conferências introdutórias sobre psicanálise" (1976c), que, como o próprio autor afirma em seu prefácio, constituiu uma completa abordagem sobre a questão da ansiedade, na época em que foi proferida, ele distingue dois tipos de ansiedade: a ansiedade realística e a neurótica. Ou seja, encontra-se nessa obra a ideia de que a ansiedade não é exclusividade dos neuróticos. Aansiedade realística seria racional e inteligível e, nas palavras do próprio Freud, é definida como "uma reação à percepção de um perigo externo - isto é, de um dano que é esperado e previsto" (p. 459, parágrafo 2). Esse tipo de ansiedade estaria também "relacionado ao reflexo de fuga e pode ser visualizada como manifestação do instinto5 de autopreservação" (p. 459, parágrafo 2). Mais adiante, Freud irá dizer que "a reação ao perigo consiste numa mistura de afeto de ansiedade e ação defensiva" (p. 460, parágrafo 2). O que a ansiedade, portanto, possibilita é a preparação para o perigo (e, apenas nesse sentido, ela é vantajosa, argumenta Freud). Essa preparação é levada a cabo por meio de um aumento da atenção e da tensão motora, decorrendo daí a fuga do perigo ou a defesa ativa, a luta.

Assim, na "Conferência XXV" (1976c), Freud já menciona também o que virá a ser entendido como a grande contribuição da sua segunda teoria sobre a ansiedade, e que será amplamente explorada em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1976f), a noção de ansiedade que serve como um "sinal":

Tanto mais a geração da ansiedade limitar-se a um início meramente frustrado - a um sinal - tanto mais o estado de preparação para a ansiedade se transformará, sem distúrbio, em ação, e mais adequada será a forma assumida pela totalidade da sucessão dos fatos. (p. 460, parágrafo 3)

Ao dizer que a ansiedade sinaliza o perigo, o autor pressupõe a participação necessária de processos mnemônicos. Por isso mesmo, neste texto, Freud afirma, também, à semelhança do que já é encontrado em sua primeira teoria, que a ansiedade é um afeto, já que um afeto é a repetição de uma determinada experiência significativa:

Um afeto inclui, em primeiro lugar, determinadas inervações ou descargas motoras e, em segundo lugar, certos sentimentos; estes são de dois tipos: percepções das ações motoras que ocorreram e sensações diretas de prazer e desprazer que, conforme dizemos, dão ao afeto seu traço predominante. Não penso, todavia, que com essa enumeração tenhamos chegado à essência de um afeto. Parecemos ver em maior profundidade no caso de alguns afetos e reconhecer que o cerne que reúne a combinação que descrevemos é a repetição de alguma experiência significativa determinada. Essa experiência só poderia ser uma impressão recebida num período muito inicial, de natureza muito genérica, situada na pré-história, não do indivíduo, mas da espécie. Para fazer-me mais inteligível - um estado afetivo seria formado da mesma maneira que um ataque histérico, e, como este, seria o precipitado de uma reminiscência. (p. 461, parágrafo 3)

Nos mesmos termos, o autor acrescenta que o afeto da ansiedade repete uma vivência original, e esta é uma das primeiras menções feitas pelo autor ao tema, ou seja, o trauma do nascimento. Esta seria, na verdade, "a origem e o protótipo do afeto de ansiedade" (p. 463, parágrafo 2). É interessante observar que, para Freud, a experiência traumática do nascimento também envolve, à semelhança do que é encontrado em sua primeira teoria sobre ansiedade, um acúmulo de excitação, que permanece na esfera somática (Freud, 1976c). Entretanto, diferentemente do que é observado na Angstneurose, o nascimento envolve um perigo para a sobrevivência do indivíduo. Trata-se assim, portanto, de uma ansiedade realística e não neurótica.

"Inibições, sintomas e ansiedade" (1976f) é a última grande exposição do autor direcionada primordialmente à investigação do tema da ansiedade. Freud a inicia traçando a distinção entre sintoma e inibição. Afirma que a inibição tem relação com a função e não necessariamente é patológica. Já o sintoma sempre denota a presença de uma patologia. A inibição refere-se a uma redução da função, e o sintoma a uma alteração patológica dessa função. Para exemplificar a relação entre inibição e função, fala de algumas funções (a função sexual, a do comer, a da locomoção e a do trabalho profissional), argumentando, entretanto, que em qualquerum desses casos, a inibição é sempre a expressão de uma restrição da função do Ego (Freud, 1976f). Já um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação instintual que permaneceu em estado latente, ou seja, é consequência do processo de repressão,6 que se dá a partir do Ego, quando este, talvez por ordem do Superego, se recusa a associar-se com uma catexia instintual que foi provocada pelo Id (Freud, 1976f). O Ego impede, assim, a ideia-veículo do impulso repreensível de tornar-se consciente. Entretanto, essa ideia persiste como formação inconsciente (Freud, 1976f).

Portanto, o Ego, ao se opor a um impulso instintual, dá o sinal de desprazer (ansiedade). Tendo em vista, dirá Freud, que o Ego se encontra em contato tanto com estímulos exógenos quanto com estímulos endógenos, ele reage contra os perigos externos e internos de modo semelhante. No caso de um perigo externo, recorre a tentativas de fuga, retirando a catexia7 da percepção do objeto perigoso e realizando movimentos musculares, de tal forma a afastar-se do perigo (Freud, 1976f). A repressão é um equivalente a essa tentativa de fuga. O Ego retira sua catexia do representante instintual que deve ser reprimido e utiliza tal catexia para liberar o desprazer (ou seja, liberar a ansiedade). Sendo assim, argumenta Freud (1976f), o Ego é a sede real da ansiedade. Logo, acrescenta o autor, faz-se necessário abandonar o ponto de vista anterior de que a energia catexial do impulso reprimido é, automaticamente, transformada em ansiedade8 (Freud, 1976f).

Mas, pergunta-se o autor, como surge a ansiedade? Mais uma vez aqui a resposta é que a ansiedade é reproduzida como um estado afetivo, em conformidade com uma imagem mnêmica já existente. Os estados afetivos são resultados de experiências traumáticas primevas. Quando ocorre uma situação semelhante, são apenas revividos como símbolos mnêmicos.

Também, em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1976f), para definir a função à qual a ansiedade se presta, Freud retoma a distinção entre ansiedade automática (espontânea ou realística), patológica (neurótica) e ansiedade como sinal. Retornando ao que já havia sido discutido, nas "Conferências introdutórias sobre psicanálise" (1976c), afirma que a ansiedade automática surge originalmente como uma reação a um estado de perigo, sendo reproduzida sempre que um estado dessa espécie se repete. E, nesse sentido, acrescenta, é possível falar de duas outras formas segundo as quais a ansiedade pode surgir: de uma maneira inadequada (ansiedade neurótica ou patológica), quando tenha advindo uma nova situação de perigo, ou de uma maneira conveniente, a fim de dar um sinal e impedir que a situação ocorra (esta é a definição encontrada, no texto, do termo "ansiedade como sinal). Nesse sentido, alega, a ansiedade como sinal é uma resposta do Ego à ameaça de ocorrência de uma situação traumática. Tal ameaça constitui ela própria uma situação de perigo. A ansiedade como sinal funciona como uma espécie de desprazer moderado, sendo utilizada pelo Ego para inibir algum processo excitatório do Id que seja condição de perigo.

Se a ansiedade é definida como a reação a uma situação de perigo, resta saber o que pode ser vivenciado pelos indivíduos como "situações de perigo". Freud enumera diversos eventos específicos que são capazes de precipitar situações de perigo, em diferentes épocas da vida, como o nascimento, a separação da mãe, o perigo da castração e o medo da perda do amor do Superego. Em quaisquer desses casos, o sinal de ansiedade reproduziria, de forma atenuada, a reação de ansiedade vividaprimitivamente em uma situação traumática, permitindo o desencadeamento de operações de defesa.

Entretanto, embora os determinantes de ansiedade se modifiquem ao longo da vida do sujeito, um neurótico se comporta como se as antigas situações de perigo ainda existissem, apegando-se a todos os antigos determinantes de ansiedade (Freud, 1976f). A ansiedade patológica, portanto, diferentemente do sinal de ansiedade, não surge de uma maneira conveniente. Não é, pois, adaptativa. Ela aparece de maneira inadequada, como se o antigo sinal de perigo ainda estivesse presente. De fato, dirá Freud (1976f), um número relativamente grande de pessoas continua infantil em seu comportamento referente ao perigo, e não supera os determinantes de ansiedade ultrapassados.

 

3. Darwin e "A expressão das emoções no homem e nos animais"

Em 1859, Darwin publica o que viria a ser sua obra mais conhecida, "Sobre a origem das espécies através da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida". Quase vinte anos depois, a mais psicológica de suas obras, "A expressão das emoções no homem e nos animais" (1872/2000), é publicada. "A expressão das emoções" (1872/ 2000) volta-se para o estudo dos aspectos biológicos das emoções e do comportamento animal, partindo do que Darwin chamará de os três princípios gerais da emoção, "responsáveis pela maioria das expressões e gestos involuntários usados pelo homem e os animais inferiores, sob a influência das mais variadas emoções e sensações" (p. 35, parágrafo 1). São eles:

1) o princípio do hábito associado útil; 2) o princípio da antítese; e 3) o princípio das ações, devidas à constituição do sistema nervoso,totalmente independentes da vontade e, num certo grau, do hábito (ou princípio do transbordamento da excitação excessiva).

Com relação ao primeiro princípio, Darwin argumenta que a força do hábito faz que movimentos complexos sejam repetidos, mesmo em situações onde, aparentemente, esses movimentos já não possuem nenhuma utilidade. Isto se deve ao fato de que alterações físicas são produzidas nas células nervosas: "caso contrário, fica impossível compreender como a tendência para certos movimentos é herdada", acrescenta (p. 37, parágrafo 3).9 Também em função dessas alterações fisiológicas, algumas ações, mesmo que reprimidas pela vontade, se podem relacionar à ativação de músculos menos submetidos ao controle da vontade. E, finalmente, existem casos, alega Darwin, em que a contenção de um movimento habitual qualquer requer que outros pequenos movimentos sejam levados a cabo.

A aplicação do seu primeiro princípio da expressão das emoções (do hábito associado útil) é ilustrada por Darwin a partir da análise tanto do comportamento humano quanto animal. Por exemplo, um cão, emseu habitat natural, tenderá a andar em círculos em torno do local onde planeja deitar-se e utiliza as patas dianteiras para livrá-lo de galhos e pedras. Porque essa ação possibilitou que o animal dormisse de maneira mais confortável, ela é realizada todas as noites, pela força do hábito, mesmo não havendo, aparentemente, necessidade para tanto. Ou seja, se um animal é recompensado a partir da emissão de um determinado comportamento, ele tenderá a realizá-lo em outras circunstâncias, mas agora não de maneira consciente, e sim automática.

O segundo princípio, o princípio da antítese, pode ser observado em estados de espírito opostos àqueles que levam a ações habituais úteis. Nesses estados, a realização de movimentos de natureza contrária é constatada. Assim, por exemplo, um cão feroz caminha ereto e tenso, com a cabeça levemente levantada, a cauda erguida, o pelo arrepiado, as orelhas em pé, voltadas para frente, e o olhar fixo. Quando alegre, em função da presença de seu dono, o mesmo cão curva-se todo, abaixa a cauda, abanando-a, e mantém as orelhas voltadas para o chão. Também na espécie humana existem numerosos exemplos de aplicação do princípio da antítese. Segundo Darwin, o gesto de encolher os ombros é um dos melhores exemplos de um gesto contrário a outro; expressa impotência ou desculpa, ou seja, o contrário da postura assumida quando se está confiante e seguro.

Por fim, o terceiro princípio trata de comportamentos que resultam diretamente da atividade do sistema nervoso, e que, portanto, são independentes da vontade (ou seja, são involuntários). Darwin o define da seguinte maneira:

Quando o sensório é intensamente estimulado, gera-se força nervosa em excesso. Esta é transmitida em certas direções, dependendo da conexão entre as células nervosas e parcialmente do hábito; ou o fornecimento de força nervosa pode ser, aparentemente, interrompido. Os efeitos assim produzidos são por nós reconhecidos como expressivos. Esse primeiro princípio pode ser chamado, para efeito de síntese, de ação direta do sistema nervoso. (p. 37, parágrafo 2)

Diversos exemplos, oriundos do repertório comportamental animal e humano, são utilizados para ilustrar a aplicação prática desse terceiro princípio. Um bom exemplo, segundo o próprio Darwin, é o tremor dos músculos que acompanha uma emoção: o medo. Trata-se de um comportamento involuntário, resultado da atividade direta do sistema nervoso autônomo em função da estimulação excessiva. À semelhança da musculatura estriada, acrescenta Darwin, alguns órgãos e, também, algumas glândulas, como o coração, o fígado, os rins e as glândulas mamárias, são afetados por emoções intensas.

Os três princípios propostos por Darwin aplicam-se à expressão de diferentes emoções. Assim, a partir do capítulo 6 de "A expressão das emoções" (1872/2000), Darwin detém-se na exposição de diferentes emoções, enfatizando como cada um dos princípios expostos responderia por sentimentos de sofrimento, de desânimo, de ansiedade, de medo, de tristeza, de alegria, de ódio, entre outros.

Com relação à ansiedade, Darwin a define como a expectativa do sofrimento, mantendo íntima conexão com a desesperança ou desespero. Já o medo é largamente tratado no capítulo 12. Darwin atribui especial atenção às alterações fisiológicas, somáticas, que acompanham a expressão da emoção. Argumenta que essa é uma emoção que, aparentemente, faz parte de um contínuo que vai desde um estado de atenção aumentada, passando por um estado de sobressalto, indo até o terror extremo ou horror. Conclui afirmando que:

Alguns dos sinais podem ser explicados mediante os princípios do hábito, da associação e da hereditariedade - por exemplo, a ampla abertura da boca e dos olhos, com as sobrancelhas erguidas, para poder olhar rapidamente à volta e distinguir qualquer som que nos chegue aos ouvidos. Pois é dessa forma que habitualmente nos preparamos para descobrir e encontrar qualquer perigo. Alguns outros sinais de medo também podem ser explicados, pelo menos em parte, por esses mesmos princípios. O homem, ao longo de inúmeras gerações, lutou para escapar de seus inimigos ou dos perigos, fugindo ou lutando violentamente; e esses esforços imensos faziam o coração bater mais rápido, a respiração acelerarse, o peito arquear e as narinas se dilatarem. Como esses esforços, muitas vezes, foram prolongados ao máximo, o resultado teria sido uma prostração completa, palidez, transpiração, tremor nos músculos ou seu completo relaxamento. E, agora, toda vez que a emoção do medo é fortemente sentida, mesmo que não leve a nenhum esforço, os mesmos efeitos tendem a reaparecer pela força da hereditariedade e da associação. (p. 288, parágrafo 1)

O último capítulo de "A expressão das emoções" (1872/2000) traz uma recapitulação dos três princípios e de algumas das ideias norteadoras da obra. Nesse capítulo, Darwin afirma que, se em um primeiro momento, a expressão das emoções era feita voluntariamente, com o passar do tempo e tendo por base a força do hábito, tornou-se hereditária, sendo então realizada mesmo contra a vontade do indivíduo. Esta afirmação deixa clara sua crença na herança dos caracteres adquiridos.10

Por fim, é possível também afirmar que, em "A expressão das emoções" (1872/2000), Darwin retoma duas das principais ideias de sua autoria, defendidas em "A origem das espécies" (1859/2002), as ideias de evolução e de seleção natural, argumentando, ademais, que a observação de que as principais emoções exibidas pelo homem são hereditárias e encontradas em todo o mundo, entre as diferentes culturas e civilizações:

[...] acrescenta um novo argumento a favor da teoria de que as inúmeras raças descendem de um mesmo tronco parental, que deveria ser já quase totalmentehumano na estrutura e, em grande medida, na mente, antes do período no qual as espécies divergiram. Sem dúvida, estruturas semelhantes, adaptadas com a mesma finalidade, com frequência foram adquiridas independentemente, mediante variação e seleção natural, por espécies distintas. (p. 335, parágrafo 2)

 

4. Darwin, Freud e a ansiedade: pontos afins

A influência de Darwin sobre a obra de Freud é marcante (Ritvo, 1990; Sulloway, 1992). Lucille Ritvo (1990), ao analisar a obra do autor, faz referência a, pelo menos, 20 passagens distintas, nas quais o nome de Darwin ou menções a sua obra são encontrados. Também, segundo Ritvo (1990) e Sulloway (1992), a Biologia, à época de Darwin, era objeto de grande interesse por parte de Freud, sendo que, ao longo de toda a sua obra, Freud continuou a tê-la em grande consideração. De fato, em um texto de 1937, "Análise terminável e interminável", Freud admite que "(...) para o campo psíquico, o campo biológico realmente desempenha o papel de fundo subjacente" (Freud, 1976a, p. 287, parágrafo 2).

Portanto, não é surpresa que um tema amplamente explorado por Freud ao longo de toda a sua obra, como é o caso do tema da ansiedade, se encontre marcado pela influência do "grande Darwin", como o chamou Freud por mais de uma vez. É possível enumerar pelo menos dois principais pontos de parentesco entre as elaborações de Freud, referentes à questão da ansiedade, e as ideias defendidas por Darwin, em especial em "A expressão das emoções" (1872/2000). São eles: 1) as ideias de adaptação e conflito; 2) os princípios gerais da expressão emocional, particularmente os princípios 1 e 3 (do hábito associado útil e do transbordamento da excitação excessiva).

Com relação ao primeiro ponto, é importante relembrar que, embora Darwin não tenha sido o primeiro a falar sobre adaptação (Rose Lauder, 1996), é com a publicação de "A origem das espécies" (1859/ 2002) que o conceito (e sua relação com a ideia de conflito) passa a ser central para a discussão da evolução (Ritvo, 1990; Sulloway, 1992). Também para Freud, a ideia de conflito é essencial para pensar sintomas neuróticos de maneira geral (Sulloway, 1992). Quando Freud trata da questão da ansiedade nas psiconeuroses, por exemplo, a ideia de conflito encontra-se presente. O que gera ansiedade é a rejeição das demandas da libido por parte do Ego, argumenta Freud. E disso resulta um conflito, estabelecido entre uma demanda inaceitável e o próprio Ego. Embora o conceito de Ego tenha permanecido pouco definido, até a publicação de "O ego e o id" (1976g), a teoria estrutural, inaugurada a partir daí, enfatiza o papel do Ego como órgão de adaptação, responsável pela mediação de conflitos internos e externos (Ritvo, 1990). Essa definição do Ego, também, já pode ser encontrada em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1976f). O Ego é entendido como a sede real da ansiedade. Entendendo o Ego como órgão de adaptação, torna-se mais fácil entendê-lo também como sede real da ansiedade. Pois o sinal de ansiedade gerado pelo Ego possibilita a preparação do organismo para lidar com o perigo, sendo, nesse sentido, também vantajoso, ou seja, adaptativo. Portanto, se levarmos em consideração as obras freudianas que tratam do desenvolvimento filogenético da mente, talvez seja possível afirmar que o valor adaptativo da ansiedade encontra-se justamente no fato de ela funcionar como um sinal, como uma reação a um estado de perigo. A ansiedade é adaptativa não apenas por preparar o animal para lidar com o perigo, por meio da mobilização de energia psíquica, mas também por auxiliar na detecção antecipada de novas ocorrências do estado de perigo em questão (e aí se tem a importância do conceito de ansiedade como sinal).

Também é notória a influência dos princípios da expressão das emoções de Darwin na obra de Freud. Ritvo (1990) faz referência a um trecho extraído do caso clínico de Frau Cäcelie M., em "Estudos sobre a histeria" (1976d):

Ao tomar uma expressão verbal literalmente e ao sentir a "punhalada no coração" ou a "bofetada na face", após uma observação desatenta, como um fato real, o histérico não toma liberdades com as palavras, mas simplesmente revive as sensações às quais a expressão verbal deva sua justificativa. (p. 230, parágrafo 2)

Freud continua discorrendo sobre o primeiro princípio e conclui dizendo que "[...] todas essas sensações e inervações pertencem ao campo da 'Expressão das Emoções', que, como Darwin nos ensinou, consiste em ações que originalmente possuíam um significado e serviam a uma finalidade" (p. 230, parágrafo 2).

Ao tratar da questão do afeto, na "Conferência XXV" (1976c), Freud faz uso do primeiro princípio do hábito associado útil, afirmando ser o afeto a mera repetição de alguma experiência prévia de importância para o indivíduo, sendo justamente aí que se encontra o seu significado. Ou seja, é a ideia de que a força do hábito leva à repetição, mesmo em situações em que aparentemente essa repetição não encontra nenhuma utilidade. Em outras palavras, tem-se aqui uma espécie de compulsão à repetição (e é por isso que, para Freud, o sintoma do neurótico tem que ser descoberto!).

Em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1976f), Freud irá afirmar que "a ansiedade não é recentemente criada na repressão; é reproduzida como um estado afetivo, em concordância com uma imagem mnêmica já existente..." (p. 114, parágrafo 2). À semelhança do proposto por Darwin, essa ideia pressupõe uma teoria da memória. De fato, em "Projeto para uma psicologia científica" (1976i), Freud propõe que o processo subjacente à formação de memórias decorre de um aumento da comunicação neuronal, que resulta na facilitação do que o autor chama de "barreiras de contato" em um sistema de neurônios permeáveis (isto é, responsáveis pela memória, os chamados neurônios "psi" ou simplesmente ψ). Tais facilitações, obviamente, dependem do número de repetições de um determinado processo (ou seja, das experiências de vida do sujeito). Isto significa dizer que, com o aprendizado, o sistema nervoso vai sendo moldado, passando,a partir daí, a funcionar de uma maneira específica. Na verdade, essa é uma noção que parece se manter no transcorrer da obra de Freud (Simanke, 2005). A ideia de ansiedade que funciona como sinal é um bom exemplo. São as modificações que o aprendizado impõe ao organismo que determinarão a maneira como ele reagirá às novas situações de perigo.

Também é interessante observar que uma das decorrências do primeiro princípio de Darwin, a de que "algumas ações, mesmo que reprimidas pela vontade, podem relacionar-se à ativação de músculos menos submetidos ao controle da vontade", é um corolário que se aproxima da concepção hierárquica proposta para o funcionamento do sistema nervoso por John Hughlings Jackson, segundo a qual o sistema nervoso central organiza-se em uma série de níveis hierárquicos, superpostos, que vão sendo acrescentados à medida que se ascende na escala evolutiva (Ritvo, 1990; Simanke, 2006). Tal é o modelo adotado por Freud.11

Na obra de Freud, é possível também encontrar referências ao princípio do transbordamento da excitação excessiva (terceiro princípio), desde "Estudos sobre a histeria" (1976d) (Ritvo, 1990). No caso clínico de Emmy von M., a seguinte formulação encontra-se presente:

Algumas das marcantes manifestações motoras, reveladas por Frau von M., eram simplesmente expressão das emoções e podiam ser facilmente reconhecidas como tal. Assim, a maneira pela qual estendia as mãos diante dela, com os dedos separados e retorcidos, expressava horror, como, também, o seu jogo facial. [...]Outros de seus sintomas motores estavam, de acordo com ela própria, relacionados com suas dores, brincava incansavelmente com os dedos (1888) (p. 92) ou esfregava as mãos uma na outra (1889) (p. 123), a fim de impedir-se a si mesma a gritar. Esta razão leva alguém a lembrar-se, forçosamente, de um dos princípios formulados por Darwin para explicar a expressão das emoções - o princípio do extravasamento da excitação (Darwin, 1872, Cap. III) [...]. (p. 136, parágrafo 2)

A partir principalmente das considerações teóricas de Breuer, presentes no capítulo terceiro da obra, o princípio do transbordamento da excitação passa a ser conhecido, em Psicanálise, como "princípio da constância" (Ritvo, 1990), e, segundo alguns autores, referências diretas ou indiretas a esse princípio podem ser encontradas, a partir daí, em toda a obra metapsicológica de Freud (Pribram & Merton, 1976; Ritvo, 1990). Conforme mencionado, as formulações teóricas encontradas no "Projeto" (1976i) norteiam a discussão em torno da questão da ansiedade nas neuroses atuais. O "Projeto" (1976i) parte justamente das noções de neurônio e "quantidade" (Q), e do postulado de que um organismo complexo funciona segundo o princípio da constância, mantendo Q em um nível ótimo, constante (ver nota de rodapé 3). Em 1926, ao publicar as ideias que deram fundamento à sua segunda teoria sobre a questão da ansiedade, Freud, ao longo de todo o texto, faz menção ao termo catexia (Besetzung), termo que se refere ao quantum de energia psíquica de que uma determinada pessoa ou objeto estão investidos (Green, 1973), afirmando, mais uma vez, ser a ansiedade resultado de uma perturbação econômica, provocada por um acúmulo de quantidades de estímulo que precisam ser eliminadas (ou, em outra palavras, de um transbordamento da excitação excessiva, terceiro princípio de Darwin).

Portanto, com base no uso que Freud faz da noção de quantidade, é possível inferir que a ideia do princípio de constância também é mantida no texto de 1926. Para Freud, o aparelho psíquico funciona segundo esse princípio, e a ansiedade resulta de um tensionamento do aparelho, que decorre do acúmulo de Q investida, de energia psíquica (de catexia). Aansiedade, para o Freud de "Inibições, sintomas e ansiedade" (1976f), é, portanto, um estado afetivo, com caráter acentuado de desprazer, resultante de um acúmulo de Q investida sobre o aparelho psíquico (catexia), ou seja, de uma excitação excessiva. No mesmo texto, Freud define esse estado afetivo como acompanhado por sensações físicas, referidas a determinados órgãos do corpo (à semelhança de Darwin, portanto, ao descrever o terceiro princípio) e com atos de descarga ao longo de trilhas específicas. O autor ainda acrescenta tratar-se de um quantum de energia livre e flutuante, que pode ou não se ligar a alguma ideia (Freud, 1976f). A definição de afeto envolve, portanto, a noção de que traços de memória podem ser formados em decorrência de um aumento da excitação. E é esta característica do afeto que lhe confere sua dimensão psíquica. Entretanto, deve ser resguardada a dimensão quantitativa que distingue uma representação de um afeto. No afeto, a Q é excessiva e, por isso mesmo, "ingovernável, exigindo a descarga, rebelde..." (Green, 1973, p. 56, parágrafo 1). Já na representação tem-se uma Q domável, passível de ser manejada e, pelo mesmo motivo, capaz de ligar-se, associar-se de maneira efetiva. Assim, em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1976f), Freud argumenta que o afeto pode nascer do Id, passando para o Ego como uma força psíquica muito grande para ser dominada. Tal é a noção de ansiedade automática. Trata-se de um desprazer psíquico, não representado por meio da linguagem verbal. A linguagem em questão é a do Id, a das exigências pulsionais, em face de um Ego impotente. Aqui, segundo Green (1973), o afeto se manifesta de maneira econômica. Entretanto, em outras circunstâncias, o afeto pode ativar determinadas reações de defesa no Ego. A partir daí, Q pulsional pode ser filtrada, reduzida, de tal maneira que apenas uma quantidade moderada penetra no Ego (Green, 1973). Tem-se aí a ansiedade como sinal. O afeto chega, assim, ao Ego "com seu correlato de representações e traços mnêmicos" (Green, 1973, p. 84, parágrafo 2). Aqui, o Ego, sede real da ansiedade, é, portanto, o local onde o afeto é trabalhado. Pode ser obtido,a partir daí, um encadeamento representativo, de tal maneira que o perigo temido adquire significado e torna-se consciente por meio da linguagem.12 Tem-se, aqui, um afeto sinal, que se manifesta simbolicamente.

 

5. Conclusões: O que dizer então do Freud evolucionista?

Muito embora Freud, ao longo de sua obra, tenha mantido um interesse pelas origens evolutivas da mente humana, desenvolvendo uma teoria evolutiva dos quadros neuróticos, suas contribuições nessa área têm frequentemente sido desprezadas. De acordo com Young (2006), isto provavelmente se deve à crença de que suas ideias, com relação à evolução, foram construídas a partir da utilização de mecanismos evolutivos hoje desacreditados, como a herança dos caracteres adquiridos, de autoria atribuída a Lamarck, e a teoria da recapitulação, proposta pelo zoólogo alemão Ernst Haeckel. Entretanto, uma das principais obras que parece ter influenciado as ideias evolutivas de Freud foi "A expressão das emoções no homem e nos animais", publicada por Darwin em 1872. Segundo diversos autores, foi com a publicação de "A expressão das emoções" (1872/ 2000) que se deu a inauguração do estudo dos aspectos biológicos do comportamento, hoje uma importante vertente das Neurociências e da Psiquiatria moderna (ver Blanchard, Blanchard & Rodgers, 1991; Rodgers, Cao, Dalvi & Holmes, 1997; Graeff, 1999; Shuhama, Del-Bem, Loureiro & Graeff, 2007). Segundo Graeff (1999):

A perspectiva biológica implica em enquadrar a ansiedade dentro do paradigma evolucionário [...]. O próprio Charles Darwin, em sua The Expression of Emotion in Man and in Animals, publicada em 1872, apontou o caminho, seguido em nosso século pela Etologia, de buscar o valor adaptativo dos processos comportamentais e psicológicos. Sob este ângulo, a ansiedade e o medo têm suas raízes nas reações de defesa dos animais, verificadas em resposta a perigos comumente encontrados no meio ambiente. (p. 136, parágrafo 4)

Se, por um lado, Darwin apontou o caminho para a busca do valor adaptativo dos processos comportamentais e psicológicos, a Freud cabe apenas uma menção histórica. Graeff (1999) dirá, por exemplo, que, com Freud, a ansiedade ganha proeminência na Medicina, tendo sido ele o responsável por separar a neurose de ansiedade da neurastenia e a ansiedade crônica dos ataques de ansiedade, hoje conhecidos como ataques de pânico. De fato, Freud foi o primeiro a atribuir importância clínica à ansiedade, sendo que as primeiras classificações dos estados de ansiedade contidas nos manuais de diagnóstico em Psiquiatria, Classificação Internacional das Doenças (CID) e Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), e que caracterizavam os quadros neuróticos, tinham por base as ideias de Freud (Pereira, 1997).

Mas, à parte essa contribuição histórica, menções quanto à proximidade entre as suas ideias e as de Darwin sobre a expressão das emoções são frequentemente deixadas de lado. A atribuição de neolamarckismo a Freud pode, sem dúvida, ter contribuído para que, raramente, seu nome seja citado em associação com o de Darwin. Por exemplo, em um capítulo de livro cujo objetivo era abordar a questão da ansiedade a partir de um ponto de vista histórico, Klein (2002) afirma que:

A era moderna nasce com Darwin, cujas ideias acerca da evolução biológica através da seleção natural têm recentemente ganhado a atenção da Psiquiatria. As conclusões a que Darwin chegou, de que emoções eram produtos adaptativos do nosso desenvolvimento filogenético, foram obscurecidas pelo lamarckismo freudiano, sua ênfase nas pulsões e defesas, e o seu tratamento das emoções como epifenômenos. (p. 296)

É verdade que a teoria evolutiva de Freud inclui não apenas a ideia da herança dos caracteres adquiridos, segundo Ritvo (1990) erroneamente atribuída a Lamarck, mas também outros mecanismos evolutivos, hoje desacreditados, como a teoria da recapitulação. Entretanto, como sugerido ao longo deste trabalho, também Darwin e outros evolucionistas de sua época fizeram uso desses conceitos. Conforme já mencionado (ver nota de rodapé 2), a observação de que os estágios embrionários de espécies relacionadas são semelhantes corrobora a discussão evolutiva sobre ancestrais comuns e características homólogas, e foi confirmada pela Biologia Evolutiva moderna (Ritvo, 1990; Medicus, 1992). O que não se mostrou verdadeiro, portanto, foi a asserção de que a condição adulta do ancestral se encontra repetida no desenvolvimento embrionário, larval ou infantil. E o que dizer da herança dos caracteres adquiridos? Nos últimos anos, diversos estudos têm demonstrado que o ambiente pode alterar não apenas o comportamento dos indivíduos, mas o de sua prole, ou seja, o ambiente é capaz de induzir alterações na própria expressão gênica (para uma revisão, ver Diamond, 2009). Trata-se de estudos conduzidos na área da Epigenética, um novo ramo da Biologia moderna que investiga os mecanismos moleculares por meio dos quais o ambiente controla a atividade genética. Esses estudos demonstram que a maioria dos nossos genes se encontra em estado latente, e que o ambiente é capaz de "esculpir" a expressão do genoma (Diamond, 2009). Parece, então, que Lamarck não estava tão errado assim...

É nesse sentido que, para Young (2006), em um artigo intitulado "Remembering the evolutionary Freud" ("Relembrando o Freud evolucionista"), as teorias evolutivas de Freud são, em certo sentido, muito semelhantes às narrativas evolucionárias modernas13 (Price, 1967; Price,Sloman, Gardner, Herbert & Rohde, 1994; Nesse, 2000), com uma única diferença principal: enquanto Freud fornece uma explicação abrangente para diferentes subtipos de psicopatologias (as neuroses de transferência - histeria de ansiedade, histeria de conversão e neurose obsessiva - e as neuroses narcísicas - demência precoce, paranoia e melancolia-mania, cada uma delas sendo descrita como reação a diferentes períodos do desenvolvimento filogenético humano), as narrativas modernas são espécies de "drama em ato único" (Young, 2006, p. 186, parágrafo 3). Isto é, explicam as origens evolutivas de classificações diagnósticas específicas, como a depressão, o transtorno bipolar ou as fobias simples, seguindo a lógica estabelecida a partir da publicação da terceira versão do DSM, considerado por alguns como um marco de ruptura entre a Psicanálise e a Psiquiatria moderna (Wilson, 1993; Pereira, 1997; Houts, 2000).14 Uma lógica questionável, como já apontado por setores influentes, oriundos da própria comunidade psiquiátrica (Wilson, 1993; Houts, 2000). A esse respeito, vale ressaltar o ponto de vista que vem sendo defendido pela Psiquiatria Evolutiva. Segundo Nesse:

Um grande esforço tem sido dedicado à investigação dos transtornos de ansiedade, com o objetivo de entender se, de fato, a ansiedade é um fenômeno unitário que se encontra subjacente aos diferentes transtornos propostos, ou se estamos falando de quadros clínicos específicos. A perspectiva evolucionária sugere que as manifestações da ansiedade foram parcialmente diferenciadas, pela seleção natural, em subtipos, também apenas parcialmente distintos, cada um desenvolvido para lidar com um tipo particular de ameaça. Se isto estiver correto, torna-se menos urgente conceituar a fobia social e a ansiedade generalizada, por exemplo, como subtipos específicos de ansiedade ou não. Ambos são padrões de resposta sobrepostos a perigos de certa forma relacionados. (Nesse, 1999, p. 8, parágrafo 2)

Neste sentido, talvez não seja tão tarde para relembrar o Freud evolucionista.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mviana@unifesp.br

 

 

Enviado em 29/9/2009
Aprovado em 08/11/2010

 

 

1 Traduzida neste artigo como "neurose de ansiedade" ou "neurose de angústia". Definir comparativamente os termos "ansiedade" e "angústia" é um problema fundamental para todo autor de língua românica (Pereira, 1997). Etimologicamente, ambos os vocábulos são aparentados. Derivam do termo grego "agkhô" (αγχθ), que significa estrangular, sufocar, oprimir. De acordo com Pichot (1996), deste termo surgem, na língua latina, os verbos "ango" e "anxio", também significando apertar, constringir fisicamente. No francês e no português, surgem daí os termos técnicos "angústia" (em francês "angoisse") e "ansiedade" ("anxieté"). Embora no inglês encontrem-se tanto o termo "anxiety", quanto "anguish", este último possui quase que exclusivamente sentido literário, não sendo utilizado como termo técnico (Pereira, 1997). Já no alemão, tem-se o termo "Angst". Laplanche (1998) traça uma discussão interessante sobre o termo alemão. Assinala, que em diversas passagens da obra de Freud, a palavra é utilizada como sinônimo de medo. Ou seja, a distinção comumente adotada, tanto no francês quanto no português, entre os termos angústia (ou ansiedade) - como não possuindo um objeto determinado - e medo - como possuindo um objeto determinado - não pode ser aplicada ao termo "Angst". A "Angst" alemã é, portanto, tanto angústia quanto medo. Já a palavra alemã "Furcht" é frequentemente traduzida como medo. O verbo derivado daí é transitivo: "Ich fürchte" (tenho medo, ou melhor, eu temo). Por outro lado, a angústia é reflexiva: "Ich habe Angst" (eu tenho angústia, ou, ainda, eu me angustio). No entanto, é possível afirmar em alemão, como nas fobias: "Ich habe Angst vor dem Pferd" (eu tenho angústia de cavalo). Ou seja, "não se tem medo, mas angústia diante de um cavalo" (citado em Pereira, 1997, p. 24, parágrafo 2). É interessante, entretanto, apontar que em algumas passagens de sua obra, o próprio Freud propõe-se a distinguir as nuances teóricas existentes entre os termos alemães "Angst" (medo, ansiedade), "Furcht" (terror, medo) e "Schrek" (susto) (ver Freud, "Além do princípio do prazer", p. 23; 1976f, pp. 189-190; e 1976c, último parágrafo), acentuando o caráter antecipatório e a ausência de um objeto definido em "Angst", embora, conforme demonstrado, o uso real desse termo na língua alemã não obedeça estritamente a essa diferenciação. Assim, em seu estudo clássico sobre a "anxiété morbide" (1950), Henri Ey propõe que ambos os termos sejam considerados sinônimos (Pereira,1997). Esta parece ser, na verdade, a tendência contemporânea na maioria dos países de língua românica (Pereira, 1997). Para finalizar, é importante salientar que o próprio Freud, em um de seus textos escrito originalmente em francês, "Obsessões e fobias: seu mecanismo psíquico e sua etiologia", publicado em 1895, pouco tempo após a publicação de "Sobre os critérios para separar da neurastenia uma síndrome particular intitulada 'neurose de angústia'", traduz o termo alemão "Angstneurose"por "névrose d'angoisse", mas em determinados momentos utiliza também o termo "anxiété", com a mesma conotação do inglês "anxiety". No presente trabalho, portanto, os termos "ansiedade" e "angústia" serão utilizados como sinônimos.
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A teoria da recapitulação é um desenvolvimento da chamada lei de Meckel-Serres, originalmente proposta pelo embriologista francês Étienne Renaud Augustin Serres, na primeira metade do século XIX. Serres acreditava ter observado, em embriões de pintos, formas em órgãos que eram réplicas de partes correspondentes de seus ancestrais na idade adulta. A ideia era, também, defendida pelo anatomista alemão Johann Friedrick Meckel, com quem Serres trabalhou. O zoólogo alemão Ernst Haeckel foi um defensor entusiasta da teoria, divulgando o termo "recapitulação" para expressar a ideia de que o desenvolvimento ontogenético do indivíduo acompanhava o desenvolvimento filogenético da espécie. Segundo Ritvo (1990), a teoria da recapitulação foi reintegrada à Biologia moderna por Darwin, no capítulo 13 de "A origem das espécies" (1859/2002), como a "explicação da ampla diferença, em muitas classes, entre o embrião e o animal adulto, e da estreita semelhança dos embriões dentro da mesma classe (Darwin apud Ritvo, 1990, p. 102, parágrafo 1). Embora a teoria da recapitulação tenha sido rejeitada, no início do século XX, sua formulação mais simples, que preconiza serem semelhantes os estágios embrionários de espécies relacionadas, sendo possível, a partir daí, falar de ancestrais comuns e de características homólogas, é aceita pela Biologia Evolutiva moderna (para uma revisão, ver Medicus, 1992).
3 A ideia do "princípio da constância" foi atribuída por Freud a Fechner e pode ser encontrada diversas vezes na obra de Freud. No "Projeto para uma psicologia científica" (1976i), Freud argumenta que à proporção que a complexidade do organismo aumenta, o sistema nervoso passa a receber estímulos do próprio elemento somático, os estímulos endógenos. Estes criam as grandes necessidades da vida: fome, respiração, sexo. Desses estímulos, o organismo não tem como se esquivar. Na verdade, eles irão cessar apenas mediante uma ação específica que o organismo deverá realizar no mundo externo. Em consequência disso, o organismo se vê obrigado a abandonar sua tendência à inércia e passa a tolerar um acúmulo de quantidade de energia (representado no Projeto como "Q") suficiente para a realização da ação específica. Passa, assim, a não mais manter Q = 0, mas a manter Q no mais baixo nível possível, resguardando-se contra qualquer aumento desta, ou seja, mantendo-a constante. A ideia do "princípio da constância" assemelha-se à de homeostase, proposta pelo fisiologista americano Walter Bradford Cannon. Embora Cannon tenha cunhado o termo, foi de fato o fisiologista francês Claude Bernard o mentor da ideia de que a tendência de um organismo vivo era manter a estabilidade do meio interno, dentro de determinados limites fisiológicos (Gross, 1998).
4 O caso das psiconeuroses levantava uma complicação, pois nestas a presença de fatos psicológicos não podia ser excluída. Mas, com relação ao surgimento da ansiedade, a explicação continuava a mesma: como nas neuroses atuais, a excitação acumulada era transformada diretamente em ansiedade.
5 O termo "instinto" como tradução de Trieb é adotado pela edição Standard das obras completas de Freud, de onde foi retirada a citação, e também pela tradução do alemão realizada por Paulo César de Souza (ver Freud, 2010).
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O termo repressão (em substituição a recalque) também é adotado na nova tradução do alemão realizada por Paulo César de Souza.

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O termo "catexia" ("Besetzung") refere-se ao quantum de energia psíquica de que uma determinada pessoa ou objeto encontram-se investidos (Green, 1973). Portanto, para alguns autores (Green, 1973; Pribram & Merton 1976), não existem grandes diferenças entre a noção de catexia e a noção de quantidade de energia (Q) empregada no "Projeto" (1976i).
8 A repressão é um dos mecanismos de defesa dos quais o Ego, como sede real da ansiedade, faz uso. Portanto, ao contrário do que havia sido defendido em sua primeira teoria, Freud irá dizer que: "Foi a ansiedade que produziu a repressão, e não, como eu anteriormente acreditava, a repressão que produziu a ansiedade" (Freud, 1976f, p. 131, parágrafo 1).
9 Ao afirmar que a tendência para certos movimentos é herdada, Darwin deixa clara sua crença em uma espécie de memória orgânica, que passaria de geração a geração. Ou seja, trata-se de uma herança de caracteres adquiridos. Na verdade, de acordo com Ritvo (1990), a herança dos caracteres adquiridos é um princípio biológico erroneamente atribuído a Lamarck. Trata-se de uma antiga crença popular, que pode ser encontrada na mitologia grega e, também, no Antigo Testamento, sendo que poucos a questionaram até o século XIX. Em "A origem das espécies" (1859/2002), a herança de caracteres adquiridos aparece lado a lado com os conceitos de evolução e seleção natural como um dos importantes princípios que governam a variabilidade (Ritvo, 1990). Em obras posteriores, como "Variação de plantas e animais sob domesticação", de 1868, o princípio é enfatizado, juntamente com outros dois: "os efeitos da ação do clima e alimentação" e a "correlação do crescimento". O papel mais importante, entretanto, era atribuído por Darwin à herança dos caracteres adquiridos (Ritvo, 1990). Já na época de Darwin, porém, alguns estudiosos começam a expressar dúvidas com relação à validade biológica do princípio, embora tenha sido apenas na primeira metade do século XX que a herança de caracteres adquiridos tenha sido completamente rejeitada pela comunidade científica. Ainda segundo Ritvo (1990), é também provável que a crença de Freud na importância desse mecanismo evolutivo, para o desenvolvimento filogenético das diferentes espécies, tenha se dado a partir da sua leitura da obra de Darwin.
10 Também, a ideia de recapitulação é defendida por Darwin, em "A expressão das emoções no homem e nos animais" (1872/2000) (ver nota de rodapé 2). Ao descrever, por exemplo, a aquisição do ato de lacrimejar em bebês, Darwin afirma que este só tem início gradualmente, apenas podendo ser claramente observado quando a criança já conta com alguns meses de vida. Estabelecendo paralelos com a filogenia, afirma que, em termos filogenéticos, trata-se também de uma expressão adquirida, "desde o tempo em que o homem se separou, a partir do ancestral comum do gênero Homo, dos macacos antropomórficos que não lacrimejam" (p. 146, parágrafo 1).
11 A partir do seu contato com as obras de Charles Darwin e Herbert Spencer, o neurologista inglês John Hughlings Jackson passa a propagar uma visão evolucionista do sistema nervoso, contrapondo-se ao ponto de vista localizacionista, então em voga (Sacks, 1998). Para Jackson, o sistema nervoso estaria organizado em níveis hierárquicos de desenvolvimento, partindo de estruturas responsáveis pelos reflexos mais primitivos até àquelas relacionadas à consciência e ao comportamento voluntário. Em estados patológicos, essa sequência de organização hierárquica é quebrada, podendo ocorrer uma involução ou regressão, de tal maneira que funções primitivas, normalmente sob o controle de funções superiores mais desenvolvidas, são "liberadas". A concepção jacksoniana da qual Freud faz uso já pode ser encontrada em um trabalho publicado pelo autor em 1891, intitulado "Sobre a afasia" (Simanke, 2006).
12 Green (1973) aponta para a relação entre afeto-economia e afeto-símbolo. A significação do afeto é inseparável da força de trabalho do Ego e do trabalho efetuado sobre esta força pulsional, em termos econômicos. Por outro lado, sua função simbólica só é compatível sob o ponto de vista de uma organização que se caracteriza por quantidades de energia reduzidas e ligadas, a partir de um nível de investimento egoico. Logo, a economia é simbólica e o simbólico é economia, afirma Green (1973).
13 Young (2006) faz menção especial a um estudo conduzido pelo psiquiatra inglês John Price (1967), que é um dos principais artigos que renova o interesse da Medicina pela Psiquiatria Evolutiva. No artigo, Price (1967) fala sobre as origens evolutivas da depressão, um transtorno comum na população em geral, com um componentegenético importante, mais encontrado entre mulheres em idade reprodutiva. Tratase, portanto, de um transtorno que traz consigo uma desvantagem reprodutiva significativa. A depressão seria uma síndrome que se originou como uma adaptação comportamental às condições de vida do período Paleolítico. A seleção natural a tornou parte do patrimônio genético humano. Price (1967), à semelhança de outros psiquiatras evolutivos de sua época, propunha que nossos ancestrais do Paleolítico viviam em um nicho ecológico semelhante ao habitado pelos babuínos do leste africano. Como esses animais, nossos ancestrais eram agressivos e competitivos, com uma organização social hierárquica. A sobrevivência do grupo dependia, assim, segundo Price (1967), de um mecanismo que permitisse aos animais ascender e descender na escala hierárquica, evitando, entretanto, uma mortalidade excessiva. Na visão do autor (Price, 1967), esse mecanismo baseava-se em uma resposta de consentimento da autoridade do vencedor pelos perdedores, o que Price (1967) chama de "yielding response". Ainda segundo Price (1967), esse é o tipo de resposta observada em pacientes deprimidos: são ideias de inferioridade e comportamentos associados (diminuição do apetite e da libido). Tais respostas, em termos evolutivos, foram desenvolvidas para impedir um indivíduo de almejar um determinado status social. Embora Price (1967) não mencione Freud, as semelhanças entre sua descrição da organização social dos babuínos do leste africano e a horda primal de Freud são notórias (Young, 2006). Ainda de acordo com Price (1967), a "yelding response" funcionaria como uma espécie de herança filogenética e explicaria não apenas a depressão mas também o poder de cura da própria Medicina psiquiátrica. De maneira semelhante aos babuínos, que se voltavam para o líder dominante do grupo na busca por segurança, o paciente voltase para o médico, percebido como "poderoso, confiante, seguro" (Price, 1967 apud Young, p. 180, parágrafo 2). Também na horda primal de Freud, embora o pai brutal expulse e castre os filhos, ele é visto como tipo ideal, e sua morte é seguida de culpa e tristeza (Young, 2006).
14 É possível falar que se instaura uma ruptura entre a Psiquiatria da primeira metade do século XX, de inspiração eminentemente psicanalítica e psicossocial, e a Psiquiatria fundamentada nas classificações propostas pelo DSM-III, ancoradas, por sua vez, em observações farmacoclínicas (mas desprovidas de uma explicação etiológica, psicodinâmica e fisiopatogênica) (Pereira, 1997). Foram essas observações, aliás, que impulsionaram estudos direcionados à investigação dos mecanismos neurobiológicos subjacentes aos diferentes quadros clínicos, aproximando (ou reaproximando) a Psiquiatria da Biologia. Em função do seu caráter operacional, as novas classificações favoreceram a pesquisa científica em Psiquiatria, contribuindo também para restituir-lhe sua credibilidade enquanto disciplina médica. Por outro lado, faltam às novas categorias nosológicas (e, consequentemente, à Psiquiatria, que apenas se dedica ao trabalho em pesquisa com essas categorias) uma dimensão funcional, uma concepção psicopatológica que lhe dê respaldo e que possa contribuir para o entendimento desses quadros clínicos.