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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.12 no.2 São Paulo 2010
ARTIGOS
Falso self e patologia borderline no pensamento de Winnicott: antecedentes históricos e desenvolvimentos subsequentes1
Falso self on borderline pathology in winnicott's though: historic antecedents and subsequent developments
Alfredo Naffah Neto
Universidade São Paulo Pontifícia Universidade Católica
Resumo
Este artigo pesquisa os antecedentes teóricos dos conceitos winnicottianos de falso self e de patologia borderline na história da psicanálise, (chegando a Ferenczi, Fairbairn e H. Deutsch). A seguir, descreve as formulações teóricas desses conceitos realizadas por Winnicott, assinalando sua inconclusividade. Por fim, realiza um esforço no sentido de desenvolver esses conceitos, seguindo os passos de Winnicott e a partir de evidências clínicas.
Palavras-chaves: falso self, patologia borderline, Fairbairn, Deutsch, Winnicott.
Abstract
This article investigates the theoretical background of Winnicott's concepts of false self and borderline pathology in the history of psychoanalysis (reaching Ferenczi, Faribairn and H. Deutsch). Afterwards, it describes Winnicott's formulations of those concepts, pointing out their inconclusiveness. Finally, it makes an effort to develop those concepts, following Winnicott's steps and clinical evidences.
Key-words: false self, borderline pathology, Fairbairn, Deutsch, Winnicott.
1. Falso self saudável, falso self patológico e os conceitos de borderline e esquizoide
Primeiramente, gostaria de falar sobre o conceito de falso self (ou falso si-mesmo), tal qual aparece na obra de Winnicott2.
Grosso modo, pode-se dizer que Winnicott utiliza o conceito em dois sentidos diferentes. Primeiramente, designando algo saudável, comum a todos os indivíduos, falso self como significando, por assim dizer, a faceta social do self, aquela que faz contato direto com o mundo externo, recoberta em grande parte pelas identificações secundárias, pelo funcionamento do processo secundário e apoiada nas operações mentais. O termo "falso" designa aí aquele quantum de autotraição necessário, o preço que todos temos de pagar por sermos seres sociais.
Sobre esse primeiro sentido, Winnicott afirma que Freud já dera as bases primeiras para a distinção entre falso e verdadeiro self quando propôs uma divisão do ego "... em uma parte que é central e potencializada pelos instintos (ou pelo que chamou de sexualidade, pré-genital e genital), e uma parte que é voltada para fora e relacionada com o mundo" (Winnicott, 1965m[1960]/1990, p. 140).
Pode-se afirmar que o falso self saudável funciona basicamente conectado ao self verdadeiro, como uma espécie de representante deste no mundo sociocultural. É inevitável, entretanto, que existam sempre algumas lacunas, zonas de dissociação entre o funcionamento dos dois selves, mesmo nos indivíduos mais saudáveis, já que as questões importantes que envolvem o mais íntimo de cada um nem sempre têm correspondência direta com as suas responsabilidades sociais ou com as exigências adaptativas inerentes à sua inserção no mundo externo. Winnicott pressupõe, inclusive, que faz parte da saúde um núcleo central do self verdadeiro que é isolado e incomunicável.
Entretanto, não se trata aí, de forma alguma, de um funcionamento cindido, já que – ainda que tardiamente –, Winnicott distinguiu cisão de dissociação:
A cisão é o estado essencial em cada ser humano, mas ele não necessita se tornar significante, se o escoramento da ilusão é possibilitado pelo manejo materno. (...) Gradualmente, na medida em que o desenvolvimento prossegue, o indivíduo pode cingir as cisões que existem na personalidade; então, a falta de inteireza é chamada dissociação. (...) Dissociação é o termo que descreve a condição de uma personalidade relativamente bem desenvolvida, na qual há uma falta de comunicação – razoavelmente exagerada – entre vários elementos (Winnicott, 1988/1988, pp. 136-137).
Entretanto, nesse mesmo texto, Winnicott salienta que, na ausência de uma adaptação ativa suficientemente boa por parte da mãe, as cisões essenciais vêm a se tornar significantes, fazendo que a raiz espontânea do self verdadeiro permaneça incomunicável, devido à interposição de um "... falso self ligado ao que denominamos realidade externa, com base na complacência" (Winnicott, 1988/1988, p. 136).
A cisão é, pois, característica do segundo sentido que assume o conceito de falso self e que designa, por assim dizer, a sua versão patológica. Forma-se no início da vida e constitui uma proteção contra as agonias impensáveis. Sem querer me estender aqui sobre um tema demasiadamente complexo, direi simplesmente que quando o ambiente inicial do bebê não é suficientemente bom, no sentido de acolher as suas necessidades, deixando-o à mercê seja de invasões ambientais, seja do impacto traumatizante de demandas instintivas não satisfeitas, o falso self patológico forma-se para manter o self verdadeiro (do bebê) inacessível às condições traumáticas, protegendo-o das agonias impensáveis3. Designa uma espécie de escudo protetor, formado por mimetizações de traços ambientais, que tem por função tentar seduzir o ambiente às necessidades do pequeno ser. Diz Winnicott:
Uma sedução bem-sucedida desse tipo pode produzir um falso self que parece satisfatório para o observador incauto, muito embora a esquizofrenia esteja latente e venha, no final, clamar por atenção. O falso self, desenvolvido numa base de submissão, não pode atingir a independência da maturidade, exceto talvez uma pseudo-maturidade, num ambiente psicótico. (Winnicott, 1953a[1952]/1992, p. 225; os itálicos são meus)
Nesse caso, cisões essenciais têm de ser mantidas e exacerbadas, com vistas a impedir que o impacto sofrido pelo falso self (advindo das intrusões ambientais e/ou das excitações traumáticas dos instintos não satisfeitos) se propague até o self verdadeiro. Por isso, costumo designar essa formação como falso self cindido. Grande parte das vezes ele se forma por meio de uma hipertrofia intelectual, já que o intelecto (ou mente) forma-se, entre outras coisas, para controlar as variações ambientais e emitir sinais sobre o inesperado traumatizante que possa advir daí.
Quanto à esquizofrenia latente que Winnicott diz subjazer ao falso self cindido, ele costumava designá-la por meio de dois conceitos: o de estados borderline e o de estados esquizoides. Essas duas noções – de borderline e esquizoide – aparecem nos seus textos de forma heterogênea, ora se recobrindo – pelo menos parcialmente –, ora se distinguindo.
A esquizoidia é definida num texto de 1952 (Winnicott, 1953a[1952]/1992, pp. 222-227) como uma forma de retraimento, usado como única defesa possível diante de um ambiente invasivo. Nesse mesmo texto, Winnicott explica que a atividade de integração do self do bebê leva comumente a uma paranoia potencial, geralmente neutralizada pelo amor e pelos cuidados maternos. Entretanto, quando o ambiente falha, isso pode levar a uma "introversão patológica defensiva". Nesse caso, a criança passa a viver permanentemente no seu mundo íntimo, que não se torna, entretanto, firmemente organizado. Ou seja, a perseguição externa é neutralizada às custas de uma não integração. Nesse caso, a criança flutua para dentro e fora desse mundo íntimo, que está sujeito, mais ou menos, ao seu controle onipotente, embora – Winnicott adverte – não seja um controle forte. E diz: "É um mundo de magia, e quem está nele se sente louco" (Winnicott, 1953a[1952]/1992, p. 227). Para o relacionamento – sempre precário – com o mundo exterior, a criança esquizoide se utiliza do falso self cindido.
O termo borderline, por sua vez, é definido num texto tardio, de 1968:
Pelo termo "caso borderline" pretendo significar um tipo de caso no qual o centro do distúrbio é psicótico, mas o paciente possui suficiente organização psiconeurótica para sempre apresentar desordens psiconeuróticas ou psicossomáticas quando a ansiedade psicótica central ameaça irromper de forma crua (Winnicott, 1969i[1968]/1997, pp. 219-220).
Ou seja, trata-se de uma definição muito mais abrangente do que a da dinâmica esquizoide e mais próxima da ideia de uma esquizofrenia latente, no sentido amplo do termo, quer dizer, de uma psicose que está sempre ameaçando irromper de forma crua e que pode ser contida por sintomas psiconeuróticos ou psicossomáticos, que têm por base o funcionamento adaptativo e contentor do falso self protetor.
Nessa mesma direção, num texto de 1963, ao descrever um de seus casos clínicos, Winnicott inicialmente o apresenta como parte dos pacientes borderline que atendeu ao longo de sua trajetória (Winnicott, 1965vd[1963]/1990, p. 235); entretanto, mais adiante (cf. pp. 237-238), define-o como esquizoide. Ou seja, o termo borderline parece significar, aí, a presença da esquizofrenia latente, num sentido mais amplo, enquanto, num sentido mais específico, a patologia da paciente se define como esquizoide. Aqui, os dois termos se recobrem parcialmente.
Entretanto, há um texto iniciado em 1959 e concluído em 1964 em que os termos borderline e esquizoide aparecem lado a lado, separados pela palavra "ou", como se definissem dois tipos diferentes de patologia-limite. A frase é a seguinte: "A dependência do analista no caso do paciente esquizoide ou do caso borderline é uma realidade de fato..." (Winnicott, 1965h[1959]/1990, p. 134; os itálicos são meus).
E, finalmente, no livro "Playing and reality", editado em 1971, aparece a dinâmica esquizoide definida como "introvertida" (até aí, nada de novo), mas como distinta de uma outra patologia limite, definida como "extrovertida", mas não nomeada. Winnicott diz:
Pessoas esquizoides não estão satisfeitas consigo mesmas, assim como extrovertidos que não conseguem ter contato com o sonho. Esse dois grupos de pessoas vêm para psicoterapia, num caso porque não querem levar suas vidas irrevogavelmente fora de contato com os fatos da vida, noutro caso porque se sentem marginalizados do sonho (Winnicott, 1971a/1971, p. 67; os itálicos são meus).
Ou seja, na dinâmica esquizoide, que é uma introversão patológica defensiva, o paciente perde contato com os fatos da vida, quer dizer, com a realidade externa, enquanto nessa outra dinâmica, definida como uma extroversão patológica defensiva, ele não tem acesso ao mundo íntimo, no qual acontece o sonhar.
Pode-se, daí, concluir que essa outra dinâmica extrovertida descreve o sentido mais específico que assumiu o termo borderline na fase final de Winnicott? É possível que sim; entretanto, ele faleceu sem nos esclarecer a esse respeito, de forma inequívoca.
Tampouco me parece que as noções de introversão e extroversão, tomadas emprestadas ao universo junguiano, sejam conceitos incorporados, de fato, ao sistema teórico winnicottiano, sendo apenas, a meu ver, maneiras provisórias de descrever algo que não chegou a assumir forma conceitual definitiva.
2. A personalidade esquizoide, de Fairbairn e a personalidade "como se", de Hélàne Deutsch como precursoras do falso self cindido de Winnicott
Masud Khan (Khan, 1960/1974) nos conta que Fairbairn foi o primeiro psicanalista a definir os processos mentais dos assim designados casos-limites, por meio de seu texto "Schizoid factors in the personality", publicado em 1940.4
Grosso modo, os esquizoides, descritos por Fairbairn, experimentam um sentimento de privação afetiva e de inferioridade, em função seja da indiferença ou do caráter possessivo de suas mães, as quais eles acreditam firmemente não os terem amado verdadeiramente. Assim, Fairbairn conta-nos:
Em razão de uma regressão à atitude da fase oral, não somente o investimento libidinal numa "mãe-seio", já interiorizada, se intensifica, mas o processo de interiorização em si mesmo se estende de maneira excessiva às relações com outros objetos e resulta daí uma supervaloração do mundo interior, às expensas do mundo exterior (Fairbairn apud Khan, 1960/1974, pp. 37-38).
Os esquizoides caracterizam-se, além disso, segundo Fairbairn, por uma atitude onipotente, uma despersonalização do objeto e uma retirada das emoções das relações objetais. Evidentemente, não há aí nenhuma postulação direta de algo como um falso self cindido, mas apenas indícios sintomáticos que podem sugerir algo nessa direção, qual seja a afirmação de que os esquizoides tendem a lidar com o ambiente interpretando papéis (quer dizer, numa dimensão de pura "casca" exterior), além de terem recrudescidas as suas defesas intelectuais (relembrando, aqui, que a maior parte dos falsos selves cindidos se forma por hipertrofia intelectual).
Se o esquizoide de Fairbairn constitui um precursor da patologia "introvertida", posteriormente descrita por Winnicott, a sua contraparte, qual seja a patologia "extrovertida", encontra um precursor na personalidade "como se", descrita por Hélàne Deutsch no artigo "Some forms of emotional disturbance and their relation to schizophrenia", publicado em 1942. Ela assim descreve a conduta de um indivíduo de personalidade "como se":
É como a performance de um ator tecnicamente bem treinado, mas a quem falta a centelha necessária para tornar suas personificações verdadeiras à vida. (...) O mesmo vazio e a mesma falta de individualidade que são evidentes na vida emocional também aparecem na estrutura moral. Completamente sem caráter, inteiramente desembuída de princípios, no sentido literal do termo, a moral dos indivíduos "como se", seus ideais, suas convicções são simplesmente reflexos de outra pessoa (...). Ligando-se com grande facilidade a grupos sociais, étnicos e religiosos, eles buscam, por adesão ao grupo, dar conteúdo e realidade ao seu vazio interno e estabelecer a validade de sua existência por identificação (Deutsch, 1942, pp. 303-305).
Assim, trata-se de indivíduos que vivem totalmente voltados para o mundo exterior, sem qualquer contato com algo que possa advir de um mundo subjetivo ou interno, que parece totalmente precário – ou mesmo inexistente – , assim como é precário todo o seu desenvolvimento afetivo. Sem eixo próprio, buscando amalgamar-se a indivíduos ou grupos em busca de referenciais, mimetizam e copiam padrões e atitudes. Mas tão logo a fonte se esgota, abandonam seus antigos modelos, sem qualquer sinal emocional de perda ou de luto.
São, também, bastante sugestionáveis e submissos ao ambiente. Ainda, segundo H. Deutsch, tais indivíduos geralmente não têm qualquer consciência de seus distúrbios emocionais, que somente são percebidos por pessoas de fora, em função de sua falta de criatividade própria, que os leva a viverem dependurados em modelos externos. Assim, pode-se dizer que encarnam um tipo de vida onde tudo é aparência, "como se fosse", sem sê-lo verdadeiramente.
Aqui, pois, os sintomas de um falso self cindido – em que pese a ausência do conceito – já aparecem muito mais evidentes.
3. Singularidades da formulação winnicottiana
Em que pesem possíveis influências de tais autores nas teorizações de Winnicott5, é inegável, entretanto, que as suas formulações distinguiram-se das anteriores em pelos menos três aspectos:
1) Primeiramente, por meio da própria postulação de um falso self patológico, criado com a finalidade de proteger a criatividade primária do self verdadeiro, mantendo-a encoberta, à espera de melhores condições ambientais para vir a se desenvolver. Há de se destacar, sem nenhuma dúvida, a contribuição original desse conceito, e o grande serviço que vem prestando à clínica psicanalítica dos casos borderline e psicóticos.
2) Em segundo lugar, por meio da ideia de que o paciente-limite não possui verdadeiramente uma sexualidade formada, no sentido forte do termo, já que o seu self verdadeiro, tendo permanecido em estado embrionário, não possuía capacidade para se apropriar dos impulsos instintivos, elaborá-los imaginativamente e imprimir-lhes um sentido erótico. Trata-se, pois, quase sempre, de uma "falsa sexualidade", que não funciona orientada pela busca do prazer, mas atende sempre a necessidades mais arcaicas. Lembro, aqui, de um paciente meu que, quando emergiam angústias de desintegração corporal, necessitava sair à cata de prostitutas e "fazer sexo" para manter um mínimo de coesão psicossomática.
3) Em terceiro lugar, finalmente, por meio da formulação de que os mecanismos de cisão, constitutivos desses tipos de patologia, não são originários do antagonismo entre as pulsões ou instintos de vida e de morte (com os quais o bebê supostamente teria de se defrontar, segundo a versão kleiniana), mas produzidos por falhas ambientais. Como sabemos, Winnicott (de forma análoga a Fairbairn) não achava produtivo ou necessário o conceito de instinto de morte, concebendo a agressividade do bebê a partir de outros referenciais teóricos.
Assim, é possível concluir que Winnicott, ao mesmo tempo em que é parte da tradição psicanalítica, inova-a sobremaneira. Sem nunca pretender uma originalidade absoluta, na qual não acreditava, ele disse, certa vez, a Augusta Bonnard, numa carta na qual sublinhava, justamente, a pouca importância de determinar quem é o primeiro "pai" de determinada ideia: "... vamos desfrutar de sermos nós mesmos e deleitar-nos ao vermos aquilo que fazemos quando o encontramos nos trabalhos dos outros" (Winnicott, 1987b/1999, p. 117).
4. Desenvolvimento posterior dos conceitos
Eu gostaria de iniciar esta parte com uma consideração importante: a de que toda proposta a ser desenvolvida aqui atende basicamente a objetivos diagnósticos, capazes de nos orientar minimamente na clínica. Esse "minimamente" é de suma importância, já que é raro encontrarmos na realidade empírica quadros puros, como os que aqui serão descritos. Assim, muito embora eu descreva aqui dois tipos de paciente borderline, é muito comum a existência de dinâmicas compostas que combinam, em diferentes instâncias, várias características dos exemplares aqui expostos.
Nesse sentido, é sempre necessário estudar cada caso e reestruturar a teoria em função de cada novo acontecimento clínico singular, fazendo-a funcionar como um conjunto de ferramentas conceituais flexíveis, sem qualquer caráter universal ou dogmático. Assim, espero que se possa tomar esses esforços de teorização que se seguem como uma conjunto de indicações – abertas e provisórias – mais do que qualquer outra coisa.
Quando, em 2006, resolvi retomar a teorização de Winnicott sobre o conceito de falso self, no contexto das patologias de tipo borderline, para dar-lhe um desenvolvimento teórico-clínico mais apurado, conhecia o trabalho de dois autores que já haviam empreendido tal tarefa. Um deles era Elsa Oliveira Dias, na sua tese de doutorado, da qual eu fora, inclusive, o orientador (Oliveira Dias, 1998); o outro era A. J. Painceira, num artigo publicado numa coletânea de textos sobre Winnicott (Painceira, 1997).
Naquele período, os desenvolvimentos teóricos propostos por Elsa sobre esse tema, na sua tese de doutorado, encontravam-se em fase de reelaboração e revisão para posterior publicação, segundo relato pessoal dela feito a mim; os de Painceira, por outro lado, eram incongruentes, em grande parte, com os meus achados. Por essas razões, resolvi tomar a experiência clínica de Winnicott, juntamente com a minha, como os guias primordiais nessa pesquisa.
Comecei pelos pontos que Winnicott não esclarecera. O primeiro deles era a "tendência introvertida" ou "extrovertida" nas patologias de tipo borderline, ou seja, por que alguns indivíduos, tendo sofrido falhas ambientais severas nos primeiros tempos, buscam um recolhimento esquizoide como proteção, e outros, ao contrário, passam a viver quase que exclusivamente na casca exterior do falso self cindido, totalmente estranhos a qualquer espaço subjetivo?
Como não existe, na teoria winnicottiana, nenhuma tipologia "introvertido-extrovertido" – como na formulação junguiana, por exemplo –, achei que esses adjetivos explicavam quase nada, apenas indicando a direção assumida pelo tipo de defesa.
Havia, entretanto, o caso B, descrito por Winnicott em Holding and interpretation e diagnosticado como um caso de esquizoidia com sintomas depressivos. Este paciente apresentava como sintoma principal o medo de completar experiências, devido à sua mãe perfeccionista, que tentara controlar as suas mamadas quando bebê (com o objetivo de criar uma mamada perfeita), arrancando-o bruscamente da ilusão onipotente de ter criado um seio subjetivo, a fim de lhe impor um outro seio, objetivo, segundo o padrão materno. Nas palavras de Winnicott (ditas como interpretação, numa das sessões), B tinha pavor "... do conteúdo violentamente hostil da satisfação no final da refeição, o que significava aniquilação do desejo e do seio subjetivo, seguido da hostilidade ao seio objetivo que subsistia" (Winnicott, 1989a/1989, p. 10)6. Ou seja, tudo indica que, nesse caso, o recolhimento esquizoide visava a proteger a relação do bebê com um seio subjetivo constituído – ainda que precariamente –, produzindo um falso self cindido para relacionar-se com o seio objetivo, aterrorizante. Tratava-se, pois, da produção de uma relação objetal dupla e cindida: a primeira – vivida no recolhimento esquizoide –, entre o self verdadeiro do bebê e o seio subjetivo; a segunda, voltada para fora (numa operação de tipo "boi de piranha"), na qual o falso self do bebê enfrentava o seio objetivo, aterrorizante, interpondo-se entre ele e a relação objetal protegida.
Nessa época, eu tinha, então, um paciente esquizoide que passava horas, às vezes dias, sugando o dedo diante da televisão ligada, totalmente recolhido e indiferente ao ambiente externo. Aí também, o recolhimento parecia proteger um objeto subjetivo, precariamente constituído, representado pelo dedo sugado7 . Nas suas relações com o meio exterior, esse paciente usava um falso self bastante precário, que sofria desintegrações em face da intensificação de qualquer demanda ambiental, o que o levava a estados fusionais com os objetos e gerava grande sofrimento.
Tinha, além disso, outro paciente, no caso uma mulher, que inicialmente era uma borderline tipicamente "extrovertida", sem contato com qualquer espécie de mundo subjetivo, mas que, tão logo constituiu, via análise, um arcabouço de mundo subjetivo, entrou numa dinâmica de recolhimento esquizoide, nele permanecendo por um longo tempo.
A partir desses casos, formulei a hipótese de que o que produz o recolhimento esquizoide é a necessidade de proteger uma relação de objeto subjetiva constituída – volto a repetir: ainda que precariamente – de um ambiente imprevisível e, por isso mesmo, ameaçador. As possíveis intrusões ambientais tornam-se ainda mais temidas quanto mais os processos de integração do self do bebê, em curso, possam gerar angústias de tipo paranoide, conforme Winnicott descreveu. Recolher-se, aí, significa, pois, proteger-se de qualquer possível ataque vindo do exterior.
Entretanto, quando as falhas ambientais são ainda mais intensas, e o bebê não consegue constituir nenhuma experiência subjetiva que valha a pena ser protegida, o recolhimento esquizoide não ocorre, e tampouco a dupla relação objetal. Nesse caso, o único contato que resta é o do falso self cindido com os objetos exteriores, a quem ele tenta seduzir de inúmeras formas, ao mesmo tempo em que protege o self verdadeiro das invasões ambientais. Isso leva o paciente a ter de habitar essa "casca", permanecendo sem contato com quaisquer elementos subjetivos.
Mas, para nomear esse tipo patológico "extrovertido", eu necessitava de um outro conceito, já que uma necessidade de precisão conceitual levara-me a assumir o termo borderline no sentido mais amplo que lhe é dado por Winnicott, ou seja, ligado à ideia de uma esquizofrenia latente, lato sensu.
Achei, então, que a noção de personalidade "como se" de Hélàne Deutsch servia-me bem, pelo menos em sua constelação sintomática; por isso a tomei emprestado, muito embora tenha-lhe proposto uma outra caracterização psicodinâmica, a partir da teoria winnicottiana.
Quando o artigo foi publicado, em 2007 (Naffah Neto, 2007), ele descrevia, então, dois tipos de patologia borderline: a personalidade esquizoide e a personalidade "como se", procurando desdobrar as características típicas do falso self cindido de ambos os quadros clínicos.
Grosso modo, o que propus lá e no qual ainda acredito, é que o falso self cindido dos esquizoides tem uma constituição mais frágil do que o seu congênere, já que aí o eixo do indivíduo jaz no mundo subjetivo e não nas relações com o mundo exterior. Por isso, muito mais facilmente, esse tipo de falso self sofre desintegrações em face de demandas ambientais mais pesadas ou perdas traumáticas impossíveis de serem elaboradas (sob a forma de luto). Nessas ocasiões, o mundo subjetivo perde o seu escudo protetor, ficando exposto às invasões ambientais, o que leva o esquizoide à necessidade de multiplicar os processos de cisão, a fim de proteger o seu self verdadeiro das agonias impensáveis. Vem daí o termo esquizoide, já que o prefixo grego "skhízo", etimologicamente, significa separar, dividir, fender.
Isso descreve o que geralmente denominamos surto psicótico, ou seja, o self verdadeiro tem de se defrontar diretamente, sem quaisquer mediações, como o mundo externo e com o ímpeto dos impulsos instintivos (ainda não apropriados8) . Nessas condições, a fragilidade do self – característica do estado de não integração em que se encontra –, leva-o a sucumbir e ser penetrado pelas forças do mundo e dos instintos, advindo estados de pânico, de tipo paranoide, que o obrigam a cindir-se em vários pedaços, a fim de se proteger das agonias impensáveis. Esse processo, que Winnicott denomina desintegração ativa, atua ampliando, acentuando e rearranjando as cisões já existentes; a vantagem é que, aí, quem produz o mecanismo é o próprio psiquismo do indivíduo, com algum tipo de controle no intuito de se proteger 9.
Os surtos psicóticos designam, nesse sentido, períodos em que a esquizofrenia latente vem a se tornar o que poderíamos designar como esquizofrenia manifesta. A interpenetração entre as constelações do mundo subjetivo e as forças da realidade externa (e das moções instintivas, ainda não apropriadas pelo self) gera estados confusionais de grande magnitude, povoados por alucinações e delírios. Entretanto, podemos dizer que a alucinação é uma espécie de lembrança que ganha contornos reais; o delírio, uma forma (distorcida) de pensamento; isso significa que esses mecanismos ainda buscam proteger o self verdadeiro do colapso total, da queda nas agonias impensáveis10.
Já o falso self cindido do tipo personalidade "como se" é bastante mais estruturado, resistente, e também mais facetado, já que constitui a "morada-mor" do indivíduo, seu eixo principal de subsistência. Concordo, também, com Painceira, quando diz que esse tipo de falso self pode ser composto de várias personagens dissociadas umas das outras, que podem, alternadamente, ocupar o lugar central, dando muitas vezes a ideia de "múltipla personalidade". Embora esse tipo de falso self também possa sofrer desintegrações, estas são mais raras, já que existe um grande investimento psíquico no sentido de preservá-lo e recuperá-lo, devido ao medo do colapso.
Nesse aspecto, entretanto, os indivíduos de personalidade "como se" vivem um grande paradoxo: se o falso self os protege efetivamente da psicose nua e crua, ao mesmo tempo essa existência no plano da pura impostura os leva a extremas sensações de irrealidade, futilidade e falta de sentido na vida, como um todo. E isso tudo produz uma grande desesperança, que, em casos extremos – Winnicott nos adverte –, pode levar ao suicídio como única forma de libertação.
Pois, diferentemente dos esquizoides, os indivíduos de personalidade "como se" são obrigados a viver na casca, não podendo se utilizar do retraimento defensivo – pelo menos, como habitat principal –, sob o risco de perderem a possibilidade de relação objetal (a menos que venham a constituir, via análise, um objeto subjetivo capaz de iniciar a criação de um mundo subjetivo e, posteriormente, de um mundo interno, capaz de introjetar objetos).
Tendo a discordar, entretanto, de Hélàne Deutsch quando diz que esses indivíduos raramente têm consciência de sua patologia, dado que experimentam esse sentimento de irrealidade e de falta de sentido na vida, anteriormente descrito. Pelo menos é o que a minha experiência clínica tem-me mostrado ao longo dos anos.
Nessa direção, penso que a clínica deve ser sempre soberana. É sempre pela dinâmica do par psicanalítico que devemos nos guiar e, a partir dela, retomar o processo de reconstrução teórica, todas as vezes em que isso for necessário. Da prática para e teoria e vice-versa, numa dialética sem síntese, num movimento interminável.
Referências
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Winnicott, D. W. (1997). Poscript: D. W. W. on D. W. W. In D. W. Winnicott (1997/1989a), Psycho-analytic explorations. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1989[1967]; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1989f[1967] [ Links ])
Winnicott, D. W. (1997). The use of an object and relating through identifications. In D. W. Winnicott (1997/1989a), Psycho-analytic explorations<. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1969[1968]; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1969i[1968] [ Links ])
Winnicott, D. W. (1999). The spontaneous gesture – selected letters of D. W. Winnicott. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1987; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1987b)
Endereço para correspondência
E–mail: naffahneto@gmail.com
Recebido em 25/05/2010 Aprovado em 15/12/2010
1 Este artigo foi originalmente uma conferência proferida no "XV Colóquio Winnicott Internacional – O verdadeiro e o falso si-mesmo", realizado em São Paulo, nos dias 13, 14 e 15 de maio de 2010. Sua forma final contou com a leitura do amigo psicanalista Luis Cláudio Figueiredo, a quem agradeço as sugestões.
2 Para isso, utilizo-me principalmente das formulações de Winnicott em "Ego distortion in terms of true and false self" (Winnicott, 1965m[1960]/1990), acrescentadas de informações coletadas do restante da obra, além de conclusões próprias, oriundas da leitura e interpretação desses textos.
3 As agonias impensáveis, e suas defesas, são definidas como: "1. retorno a um estado de não integração (defesa: desintegração); 2. cair para sempre (defesa: autossustentação); 3. perda do conluio psicossomático, falha no vir a habitar (o corpo) (defesa: despersonalização); 4. perda do senso do real (defesa: exploração do narcisismo primário etc.); 5. perda da capacidade de relacionar-se com objetos (defesa: estados autistas, relacionando-se somente com fenômenos do self), e assim por diante" (Winnicott, 1974/1997, pp. 89-90).
4 Talvez Khan tenha razão se pensarmos numa teorização mais sistemática. Entretanto, não podemos esquecer das pesquisas de Sandor Ferenczi com pacientes-limites, relatadas principalmente no seu "Diário clínico", escrito em 1932 (e nunca concluído), portanto anteriores ao trabalho de Fairbairn. A questão é que esse livro só veio a ser publicado mais tarde por iniciativa de Michael Balint e permanece até hoje muito pouco acessível aos não iniciados, já que suas anotações dispersas e fragmentárias geram muitas confusões e mal-entendidos, além de constituir um verdadeiro labirinto a ser percorrido com paciência. Mas não se pode, por essa simples razão, esquecer que esse experimentador clínico foi o primeiro a desbravar essas questões intrincadas. E que o fez, aliás – diga-se de passagem – com muita coragem.
5 Pelo menos a obra de Fairbairn sobre os esquizoides, Winnicott a conhecia bastante, tanto assim que (juntamente com Masud Khan) teceu comentários críticos ao seu texto: "Schizoid factors in the personality" (Winnicott, 1989a/1997, pp. 413-422). O nome de H. Deutsch não encontrei em nenhum dos índices (de nomes e conceitos) que aparecem sempre no final dos livros de Winnicott. De qualquer forma, ainda que a cite em algum de seus textos, provavelmente não considerava a influência dela sobre as suas ideias como algo significativo, tanto assim que, no texto em que presta tributo a todos aqueles a quem deve alguma contribuição teórico/clínica, aparece o nome de Fairbairn, mas não o de Hélàne Deutsch" (Winnicott, 1989f[1967]/1997, pp. 569-573).
6 Winnicott, num outro texto datilografado e intitulado "Fragmentos de uma análise", em que fala do primeiro período da análise de B. (nunca publicado em vida, mas reproduzido por M. Khan na introdução de "Holding and interpretation"), nos diz: "Há inúmeras maneiras pelas quais a ansiedade pode ser produzida pela ideia de finalização de um trabalho, e com esse paciente o acento estava numa direção, qual seja o desaparecimento do seio alucinado ou do bom objeto subjetivo externo, no momento da gratificação e da cessação do desejo" (Winnicott, 1989a/1989, p. 9; os itálicos são meus). Ora, para que algo "desapareça", necessita ter estado antes em cena, o que significa ter sido criado, ainda que precariamente. Assim, tenho de supor que a atuação perfeccionista da mãe de B. acontecia sempre no final das mamadas, quando seu bebê estaria supostamente "satisfeito" e ela, por pura imposição, realizava um gesto que interrompia brusca e traumaticamente a amamentação, tirando de cena o "bom objeto subjetivo" e fazendo aparecer, em seu lugar, um seio objetivo totalmente desconhecido para o bebê e, por isso mesmo, aterrorizante.
7 Fairbairn falaria aí, provavelmente, da relação libidinosa com o objeto mãe-seio internalizado, mas sabemos que para Winnicott não é disso que se trata, já que, para ele, pacientes desse tipo não chegam a constituir uma sexualidade, no sentido próprio do termo, conforme já salientei. Para Winnicott a sucção do dedo, nessas condições, visa a prolongar a fantasia onipotente de controle sobre o objeto pela manutenção da sua presença, ainda que apenas no plano da alucinação.
8 Cabe lembrar que, nas patologias de tipo borderline, a terceira zona – espaço potencial não se – forma (ou se forma de maneira precária), já que o encobrimento do self verdadeiro pelo falso self, ao impedir a sua experiência de contato com o mundo exterior, impede o advento do brincar, dos fenômenos transicionais e de toda a formação simbólica que daí deriva. No lugar do espaço potencial advém o falso self cindido, que opera por mimetizações e introjeções ambientais. Nesse caso, a mente hipertrofiada e desconectada do mundo emocional fará as aprendizagens simbólicas necessárias à adaptação (como a aquisição da linguagem, por exemplo). Mas isso significa que, quando o falso self cindido se desintegra, não existe terceira zona para mediar as relações com o exterior (e com as moções instintivas).
9 Elsa Oliveira Dias entende ser a desintegração ativa o mecanismo de defesa central da personalidade esquizoide, mas numa formulação teórica ligeiramente diferente da que estou propondo aqui. Em primeiro lugar, porque entende que esse mecanismo de defesa substitui a criação de um falso self patológico, proposição esta da qual discordo inteiramente. Em segundo lugar, porque não propõe a introversão esquizoide como forma de proteger um objeto subjetivo (precariamente) constituído. Então, sem essa operação de tipo "boi de piranha", anteriormente descrita, as razões da introversão esquizoides permanecem sem explicação.
10 Evidentemente existem diferentes tipos de esquizofrenia, com características próprias, em função dos mecanismos de defesa implicados: na catatônica, por exemplo, a defesa é manter o corpo rígido, imóvel (numa formação de falso self que mimetiza o morto), enquanto o self verdadeiro se recolhe numa introversão autista; este estado pode ser quebrado, de repente, pela irrupção descontrolada de intensos impulsos destrutivos. Pôr-se de morto e acordar agredindo e destruindo tudo em volta constitui, pois, também, uma forma de evitar as agonias impensáveis: primeiramente por meio de um enrijecimento/amortecimento corporal e, em seguida, pela via oposta, de uma intensa mobilização do corpo que dá vazão total aos impulsos destrutivos. Enquanto isso, o self verdadeiro permanece isolado, protegido. Esta defesa pode evitar, por exemplo, a experiência do pânico paranoide e a necessidade da desintegração ativa. De qualquer forma, é importante salientar que Winnicott entende as próprias defesas (contra as agonias impensáveis), quaisquer que sejam elas, como constituindo o núcleo das esquizofrenias.