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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.14 no.1 São Paulo  2012

 

Artigos

 

Kierkegaard, leitor da Fenomenologia da religião1

 

Kierkegaard, reader of the Phenomenology of religion

 

 

Alvaro L. M. Valls

Professor titular do Departamento de Filosofia da Unisinos
e-mail: alvalls@unisinos.br

 

 


Resumo

Como Kierkegaard leria o livro da Fenomenologia da vida religiosa, ou escutaria as Preleções de Heidegger? Neste trabalho retraçamos, com base no experimento hipotético suscitado por esta questão, as relações entre os horizontes conceituais das obras de Kierkegaard e Heidegger, bem como fazemos uma recensão histórica da recepção do filósofo dinamarquês pelo alemão.

Palavras-chave: Kierkegaard, Heidegger, Fenomenologia da vida religiosa, recepção.


Abstract

How Kierkegaard would read the book The Phenomenology of Religious Life and would listen to the lectures of Heidegger? In this paper we retrace, through the hypothetical experiment raised by that question, the relations between the conceptual horizons of the Kierkegaard's and Heidegger's works, as well as do a historical inventory of the reception of the Danish philosopher by the German one.

Keywords: Kierkegaard, Heidegger, The Phenomenology of Religious Life, reception.


 

 

I

Contribuir numa iniciativa que reúne tantos bons conhecedores de Heidegger assusta alguém que tem consciência de não o ser, mesmo tendo-o estudado com João Augusto Mac Dowell há mais de 40 anos. Poucos dirão que leram há tantos anos seu belo e instrutivo livro A gênese da ontologia fundamental de Martin Heidegger – Ensaio de caracterização do modo de pensar de Sein und Zeit (Mac Dowell, 1970). Mas a distância temporal às vezes pesa contra. O próprio Mac Dowell, que sempre aliou modéstia à enorme erudição, poderia dizer que, ao concluir, em 1968, sua tese da Gregoriana, nem todos os textos fundamentais do jovem Heidegger estavam disponíveis, e que seria preciso continuar acompanhando a pesquisa contemporânea. Argumentaria que o volume 60 das Obras, com as Vorlesungen de 1919-44, ainda não estava disponível, e por isso não citara a Fenomenologia da vida religiosa, que agora lemos, de algum modo, em português. Mas, utilizando pioneiramente os textos disponíveis, Mac Dowell compreendeu as viradas do pensamento do jovem fenomenólogo que tentava naquele tempo, radicalizando a fenomenologia, distinguir-se de Husserl. Vejamos como Mac Dowell descreve a situação:

Esta maneira neokantiana de encarar a questão é ultrapassada no novo programa de Heidegger. Não é investigando as categorias usadas de fato nas ciências históricas, mas sim observando diretamente a vida no seu acontecer específico, que se há de descobrir originalmente o fenômeno da história. O aflorar do tema da historicidade da vida no seu programa deve-se, provavelmente, à leitura de Dilthey. Como Husserl, Dilthey havia notado a originalidade da vida do sujeito, irredutível a qualquer objetivação. Entretanto, ao contrário do fundador da Fenomenologia, ele acentua, antes de tudo, a singularidade da vida, de tal modo, que a estrutura total do homem só pode ser colhida nas suas diversas manifestações históricas. Ao passo que Husserl pretende determinar a essência invariável dos atos intencionais de uma consciência absoluta e dos objetos por ela constituídos, Dilthey crê que a vida gera uma pluralidade de expressões e interpretações, condicionadas pelas épocas da história e pelas situações individuais. Destarte, não existe um sentido absoluto da vida, capaz de servir de norma para julgar as diversas concepções do mundo, surgidas no decurso da história. (Mac Dowell, 1970, pp. 85 e ss.)

Mac Dowell explica que Heidegger não assumia irrestritamente a visão de Dilthey e que trabalhava com duas mundivisões, a medieval e a moderna, fundadas numa diversa vivência das coisas. O trabalho de Mac Dowell, publicado no Brasil em 1970, já menciona a rejeição heideggeriana do par racionalismo-irracionalismo, ao descrever as relações entre escolástica e mística. Rejeição que ficava mais clara na preleção friburguense de 1920/21. O autor lembra que, para Heidegger, "a Filosofia não pode limitar-se a iluminar a vida na sua contingência fáctica" (Mac Dowell, 1970, p. 89), uma vez que "a função da Filosofia é manifestar o sentido da vida, a vida do homem" (Mac Dowell, 1970, p. 91), e continua sua tese apontando para a influência medieval sobre o pensamento de Heidegger. Talvez Mac Dowell hoje desse mais ênfase à influência do cristianismo primitivo, já nas cartas do apóstolo Paulo, como as dirigidas aos Gálatas e Tessalonicenses, e nos Atos dos Apóstolos, e que hoje se manifestasse também sobre as questões de Agostinho, Lutero e Kierkegaard, e não tanto ou tão exclusivamente sobre o pensamento cristão medieval marcado por Aristóteles.

 

II

Mac Dowell começara havia pouco tempo seu doutorado na Universidade Gregoriana quando Ernildo Stein publicou na Editora Ithaca, de Porto Alegre, sua pioneira obra Introdução ao pensamento de Martin Heidegger (Stein, 1966). Já na segunda página deste texto pode-se ler uma citação autobiográfica de Heidegger:

O que aconteceu entre os movimentados anos de 1910 e 1914 não se deixa dizer com segurança, mas apenas indicar por uma enumeração um tanto eclética: a segunda edição, aumentada em dobro, da "Vontade de Poder", de Nietzsche, as traduções das obras de Kierkegaard e Dostoiévski, o crescente interesse por Hegel e Schelling, os poemas de Rilke e as poesias de Trakl, as "Obras seletas" de Dilthey. (citado em Stein, 1966, p. 10)

Tais lembranças, extraídas da fala de Heidegger em sua admissão como membro da Academia de Ciências de Heidelberg a 10 de maio de 1958, testemunham, entre outras coisas, que ele teria lido Kierkegaard na segunda década do século XX, numa fase em que seu pensamento próprio se estava gestando. Os elogios dos anos 20 (em Sein und Zeit, por exemplo) são fortes, mas contidos, como este mestre costumava fazer em relação a autores mais decisivos. Stein (1966, p. 15) situa Heidegger num contexto neokantiano (de Marburg e de Baden) e, por outro lado, neoaristotélico, nos trabalhos de Trendelenburg e Brentano. – Nem todos sabem o quanto Kierkegaard apreciou e utilizou Trendelenburg, sem se prender a ele num aristotelismo lógico. Se revelássemos que Kierkegaard pensara em intitular de Problemas lógicos a obra que estou traduzindo, muitos iriam classificá-lo erroneamente entre os neoaristotélicos, sem mais. Ora, Stein segue adiante:

Mas a corrente subterrânea, que suscitara neokantismo e neoaristotelismo como dois movimentos defensivos, era a que lentamente tomaria vulto. Radicava ela em Kierkegaard e sua crítica ao cristianismo e principalmente na crítica por ele levantada contra o idealismo especulativo de Hegel, que esquecia a existência concreta, e em Nietzsche, cuja crítica violenta ao platonismo e ao cristianismo, como um "platonismo para o povo", chamava aos poucos as atenções no começo do século. O conceito de existência em Kierkegaard e o de vida em Nietzsche foram retomados sob outras formas pelos pensadores que cresciam nesta época. [...] A ausência de historicidade na visão tomista do homem e o esquecimento da finitude concreta do homem pelo idealismo seriam duas dimensões do que até aí era tradição, duramente alvos de crítica. Historicidade e finitude seriam as duas bandeiras levantadas em nome de uma filosofia que se voltava para o homem concreto e histórico. (Stein, 1966, p. 15)

Há que louvar Stein quando, nos anos 60 (época do existencialismo de Sartre), nosso colega mencionava o "conceito de existência" em Kierkegaard, percebendo que o pensador dinamarquês, como os verdadeiros pensadores, trabalhava sim com conceitos. Stein acrescenta, mais adiante:

Já Kierkegaard se atirara contra o idealismo porque a existência fáctica não tinha lugar no sistema. O esforço de captação da vida fora a luta insana de Nietzsche. [...] O esforço de Husserl, pleiteando com seu método fenomenológico a volta às próprias coisas, também se inseria na corrente em marcha para a reconquista do mundo da vida, como o último dirá, já quase no fim de seu caminho. (Stein, 1966, p. 33)

Parece haver, todavia, um contraste gritante entre o tratamento dado por Heidegger a Kierkegaard e o dispensado a Nietzsche. Saltemos por ora as obras dos anos 20, de Marburg e de Freiburg, e escutemos Heidegger no final de 1933, falando sobre A questão fundamental da filosofia, no livro Ser e verdade.

5. Filosofia não é a preocupação com a existência particular do homem individual como tal. De que modo isso se dá? No modo de um contragolpe dado no saber absoluto, no esquecimento do homem pelo idealismo alemão (Kierkegaard), de um contragolpe na dissipação do homem, na multiplicidade de seus poderes de fazer, na dispersão e dissolução em áreas separadas, "cultura", ciências. O homem reduzido a empregado e funcionário, nunca independente e autônomo. Na segunda metade do século XIX, Nietzsche tentou levar o homem para si mesmo, como um ser espiritual e histórico, e, na medida do possível, para além do homem atual: o super-homem, além do último homem. E, no entanto, os dois maiores admoestadores não retornaram para a tarefa propriamente dita. Devemos escutá-los, mas não servilmente. Eles sucumbiram debaixo do peso. Para conduzir-nos à liberdade do espaço livre, exige-se empenho pessoal e real no próprio destino. (Heidegger, 2007a, p. 28)

Heidegger costuma elogiar criticando ou criticar elogiando. Nos turbulentos anos da tomada do poder pelos nazistas esse filósofo está muito preocupado em definir o que a filosofia é e o que ela não é. Ela não se identifica com as cinco seguintes atividades ou atitudes: ciência, visão de mundo, fundamentação do saber, saber absoluto, preocupação pela existência do indivíduo. Distanciando-se assim dos neokantianos, dos hegelianizantes, dos políticos que queriam utilizar a filosofia como sua cosmovisão, Heidegger define-se contra um certo existencialismo genérico que se preocupava com a existência concreta do próprio indivíduo. Cada um deve cuidar de si, é óbvio, mas isto ainda não é filosofia. A esta compete elaborar indícios e conceitos que permitam interpretar o existir em geral, como tal. Ora, Heidegger resume toda a história da filosofia, antes e depois de Hegel:

Qual será esta posição capital, em que todas as forças essenciais da história do espírito ocidental se recolhem como num grande bloco? – É a filosofia de Hegel. Para trás é a completude da história da filosofia ocidental; e, ao mesmo tempo, é, para a frente, tanto direta quanto indiretamente, o ponto de arranque para a oposição dos grandes pregadores e desbravadores do século XIX: Kierkegaard e Nietzsche. [...] Hegel, para trás, significa completude e, para a frente, saída para Kierkegaard e Nietzsche. (Heidegger, 2007a, pp. 30; 32)

Temos aí uma questão, despertada pela citação feita por Stein. Se Heidegger lera as traduções de Kierkegaard, o que resultou daí para o seu próprio pensamento? Se a filosofia, depois de Hegel, é fundamentalmente Kierkegaard e Nietzsche, por que o silêncio gritante sobre o dinamarquês, enquanto Nietzsche é tão estudado em meados dos anos 30? Podemos detectar vestígios de uma resposta graças a pequenas menções salpicadas aqui e ali, em Ser e tempo, em Os conceitos fundamentais da metafísica e mesmo ao final dos volumes sobre Nietzsche. Mas antes de respigar o se diz sobre Kierkegaard, ouçamos o que este teria a dizer a respeito dos esforços iniciais do discípulo de Husserl que radicalizava o método do mestre, criando uma via própria de pensamento. Escutemos o fantasma, não do Comendador, mas de Kierkegaard.2

 

III

O que Heidegger conhecia de Kierkegaard? Suas traduções. Na Academia de Heidelberg, como vimos, declarou ter lido a Vontade de poder, de Nietzsche, bem como "as traduções das obras de Kierkegaard e Dostoievski". Ora, não é vergonha não saber russo ou dinamarquês (apesar de Nietzsche, talvez para agradar a Brandes, lamentar numa de suas últimas cartas que, "idiota, não sabia ler sueco ou dinamarquês..."). Mas a questão que se põe, para esclarecer essa declaração a fim de penetrarmos melhor no pensamento de Heidegger da década de 20, e, em especial, na sua Fenomelogia da vida religiosa é saber a cronologia das traduções de Kierkegaard ao alemão.

Antes de passarmos então a uma leitura em comum da Vorlesung de Heidegger, algumas palavras sobre a questão das traduções. Morto Kierkegaard em 1855, em meio à polêmica com a igreja oficial, pastores protestantes, dissidentes ou mesmo desligados da igreja, foram traduzindo textos de Kierkegaard ao alemão, desde 1861 (Christentum und Kirche...) e 1862 (Zur Selbstprüfung), ou 1872 (Einladung und Aergernis), 1874 (Aus und über Søren Kierkegaard), 1875 (Zwölf Reden...), 1877 (Lessing und die objective Wahrheit aus Søren Kierkegaard Schriften). Até aí são antes coletâneas de textos, e não os mais centrais e de maior peso, de problemática em geral polêmico-religiosa. Se Heidegger os tivesse lido, poderia ter-se confirmado na ideia que desenvolverá depois da vida cristã como elemento sempre polêmico: a luta faz parte dela, já o dizia o apóstolo. Na década de 80 do século XIX aparecem afinal Die Krankheit zum Tode (1881), Furcht und Zittern (1882), Entweder-Oder (1885) e Stadien auf dem Lebensweg (1886). Já As obras do amor apareceram em alemão, sob o título modificado para Leben und Walten der Liebe somente em 1890, com uma segunda edição só em 1924, então integrada na série das Reden que acompanham as Werke de Jena, das quais trataremos logo. Coisa curiosa: O tratado da angústia (como diz SZ) e as Migalhas aparecem em 1890 em Leipzig quase ocultas sob um título comum, altamente interpretativo (e präjudizierend): Zur Psychologie der Sünde, der Bekehrung und des Glaubens. Zwei Schriften Søren Kierkegaards!

Essa era a situação à época do nascimento de Heidegger. Uma edição mais crítica, mais completa e uniforme, virá à luz entre os anos 1909 e 1922, com as Gesammelte Werke de Jena (12 volumes). Stein citou o mestre falando dos anos 1910 a 1914, quando teria lido as traduções das obras... Estavam disponíveis os seguintes volumes das Gesammelte Werke:

- 1909: Bd. 3 Furcht und Zittern, dialektische Lyrik von J. de Silentio/Wiederholung, ein Versuch in der experimentierenden Psychologie von Constantin Constantius (1843); e Bd. 12 Der Augenblick (1855)

- 1910: Bde. 6 e 7 Philosophische Brocken (1842) (com o Pós-escrito às Migalhas!)

- 1911: Bd. 1 Entweder=Oder I; e Bd. 8 Die Krankheit zum Tode, eine christl.=psychologische Entwicklung (1849)

- 1912: Bd. 5 Der Begriff der Angst (1844); e Bd. 9 Einuebung im Christentum (1850)

- 1913: Bd. 2 Entweder=Oder II

- 1914: Bd. 4 Stadien auf dem Lebensweg (1845)

Dois volumes da coleção, entretanto, só aparecem em 1922:

Bd. 10 Der Gesichtspunkt fuer meine schriftstellerische Wirksamkeit (1848-1851); e Bd. 11 Zur Selbstpruefung der Gegenwart empfohlen „Richtet selbst" (1851)

As duas traduções de Der Begriff der Ironie surgirão simultaneamente em 1929. Tal atraso impediria, de qualquer modo, que o parágrafo inicial da Dissertação de Kierkegaard, de 1841, pudesse inspirar diretamente o filósofo da fenomenologia. Mas aí a questão já era a da relação do begreifen sistemático dos hegelianos com o fenômeno, cuja forma feminina alemã (Erscheinung) é ressaltada com alguma graça e muita irreverência:

Se há algo que se tem de louvar no empenho [Stræben] filosófico recente em sua grandiosa aparição, é certamente a potência genial com que agarra e segura o fenômeno. Ora, se condiz ao fenômeno, que é propriamente foeminini generis (do gênero feminino), devido à sua natureza feminina, entregar-se ao mais forte, também se pode exigir, do cavalheiro filosófico, por uma questão de equidade, a respeitosa decência, a profunda exaltação de um apaixonado [sværmeri], no lugar das quais às vezes só se escutam o retinir das esporas e a voz do dominador. O observador deve ser um erótico, nenhum traço, nenhum movimento pode ser indiferente para ele; mas, por outro lado, ele deve também perceber a sua superioridade, que entretanto só usará para auxiliar o fenômeno a se manifestar completamente. [...] importa [...] que o fenômeno não seja violentado, e se veja o conceito surgindo a partir do fenômeno. (Kierkegaard, 1991, p. 23)

Após a Dissertação sobre a ironia, em que Kierkegaard mostra muita compreensão para a historicidade dos conceitos, sua obra pública inaugura-se com um volume duplo, cujo título em alemão é Entweder/Oder (chamaríamos em português: A alternativa I e II). O primeiro volume, supostamente escrito por um jovem esteta, poeta romântico, sedutor (que até descobre/inventa um tal de Diário do sedutor), contém aforismos e ensaios, além desse Diário. O segundo volume, escrito por um juiz, funcionário público, bom cristão, bastante hegeliano, bom esposo que insiste no valor estético do matrimônio e no equilíbrio do estético e do ético para a formação da personalidade, é dirigido como uma resposta ao primeiro, o qual, julga o juiz, trai uma vida de desespero, com fugas para o romantismo e o idealismo, descomprometido com os deveres éticos. Uma boa pergunta poderia ser: o que o professor Heidegger teria extraído da primeira alternativa deste "ou isso ou aquilo"? Ora, se toda a reflexão sobre o estado de ânimo fundamental do tédio, de Os conceitos fundamentais da metafísica, não se alimenta fartamente daquele volume estético, então o contrário tem de ter acontecido: estimulado pela leitura do livro heideggeriano das lições do semestre de inverno de 1929/30, ditadas em Freiburg, o dinamarquês descreve longamente o que chama em sua língua de Stemning, que equivale ipsis litteris ao alemão Stimmung, no significado de estado de ânimo, atmosfera, afinamento ou tonalidade afetiva. Kierkegaard não abusa da expressão Grund, usando comumente só Stemning, mas outro pseudônimo declara que o primeiro volume é dominado por uma tonalidade afetivo-melancólica, que se manifesta como um enorme tédio e que no fundo não passa de desespero (Verzweiflung, em alemão). – Ainda não temos em português o ensaio intitulado Cultura alternada (Die Wechselwirtschaft), que trata justamente do tédio, quase um plágio completo, embora em menos páginas, da primeira metade de Os conceitos fundamentais da metafísica. Podemos esquematizá-lo, mui brevemente. Diz o autor que sua filosofia é simples, e contém apenas um enunciado duplo: "Todos os homens são tediosos [alle Menschen sind langweilig]". Os que não se entediam, entediam os outros; os que se entediam, divertem os outros. A plebe entedia os demais. Os nobres são os que se entediam (die vornehmen Menschen sind die, welche sich selbst langweilen). Os deuses se entediavam, daí criaram o homem; Adão se entediava, por isso Eva foi criada, e, como se entediaram, fizeram os filhos, para os quais procuramos babás que saibam distraí-los, para que fujam do tédio. A Langeweile é uma raiz de todos os males. A solução que o autor busca estaria na rotação das culturas, ou seja, na variação constante dentro do tempo, para ocupar o tempo e matar o tempo. A Langeweile é construída sobre o vazio (sie ist auf Leere gebaut). – Suspeitamos, porém, que Kierkegaard usou também algumas lições heideggerianas para as análises da melancolia e do desespero.

Melancolia também é uma Grundstimmung, cuja estrutura binária fica em dinamarquês mais clara do que em alemão, pois em vez de oporem Schwermut a Leichtsinn (mania), opõem diretamente (ou complementarmente, num par conceitual) Tungsind e Letsind, sendo Tung pesado (schwer), e o Sind correspondendo ao ânimo.

Em 1848, quando escreveu seu tratado conhecido em alemão como Die Krankheit zum Tode (A doença para a morte), outra vez o astuto dinamarquês se apropriou (palavra de que ele e Lutero gostavam muito) ou surrupiou outra expressão fundamental do acervo da fenomenologia: após escrever, na primeira página do Prefácio, conforme a tradução de Schrempf e Gottsched, que "Alles Christliche muβ in seiner Darstellung Ähnlichkeit mit dem Vortrag eines Arztes am Krankenbett haben [Tudo o que é cristão tem de ter semelhança em sua exposição com a fala de um médico à cabeceira de um enfermo]", perpetra logo o plágio (que desfigura o conceito, pondo-o em outro contexto):

Alles christliche Erkennen, wie streng auch seine Form sein mag, muβ besorgt sein; aber diese Sorge ist eben das Erbauliche. Die Sorge ist das Verhältnis zum Leben, zur Wirklichkeit der Persönlichkeit und so, christlich, der Ernst; die Erhabenheit des gleichgültigen Wissens ist, christlich, so wenig Ernst, daβ sie, christlich, Scherz und Eitelkeit bedeutet (Kierkegaard, 2006, p. 208). Tradução aproximada: Todo conhecer cristão, por mais rigorosa que seja sua forma, tem de ser apreensivo/preocupado; mas este cuidado é justamente o edificante. O cuidado é o comportamento para com a vida, para com a realidade efetiva da personalidade, e assim, em termos cristãos, a seriedade, a sublimidade do saber indiferente não é, em termos cristãos, mais seriedade, mas ela significa gracejo e vaidade.

Não por nada Thomas Sören Hoffmann, no Posfácio da reedição das traduções de Schrempf e Gottsched, diz que "o Kierkegaard de Heidegger e de Jaspers, o Kierkegaard de Adorno e Sartre, o Kierkegaard da ‘Teologia Dialética', de Kafka e de Hesse" é o dessas traduções.

 

IV

Após a perplexidade causada pela leitura simultânea de um ensaio estético de 1843 e dos Conceitos fundamentais da metafísica, formulemos a questão anunciada. Como Kierkegaard leria o livro da Fenomenologia da vida religiosa ou escutaria as Preleções de Heidegger em Freiburg (se pudesse escolher entre essas, de 1920/21, e as de Schelling, em Berlim, em 1842)? – Empreendamos um experimento mental, como ele tanto apreciava.

Kierkegaard o leria na língua original. Perceberia que o professor de 31 anos busca, com suas explorações da vida cristã primitiva, uma saída que lhe permita radicalizar a fenomenologia, afastando-se do intelectualismo unilateral de Husserl, o qual ainda não se preocupava seriamente com as questões da vida. Kierkegaard se entusiasmaria com a questão da formação de conceitos filosóficos para a compreensão da experiência fáctica da vida. Acompanharia Heidegger na distinção entre filosofia e ciências, e o encorajaria na fidelidade à cientificidade enquanto empenho para pensar a vida, e não somente para senti-la, pois respeitava a verdadeira erudição e a saudável racionalidade, ainda que concordasse depois com Heidegger em que racionalidade e irracionalidade não vigem como alternativa última. (Lembraria seu bordão: o Cristo que Paulo anuncia era e ainda é "loucura para os pagãos", ou seja, irracionalidade, ilogicidade na perspectiva da filosofia grega.) Aplaudiria Heidegger cada vez que esse citasse a expressão Vollzug e Vollzugssinn, pois o que mais o interessava era a performance, a realização (mesmo que o alemão o recriminasse como interessado só no existenciário/existenziell). Também o incentivaria a investigar o "Wie" (como), no fundo mais importante do que o "Was" (o quê, o conteúdo). Vibraria com a frase: "Na maioria das vezes é-se levado a analisar apenas teoricamente conceitos configurados do psíquico, porém, o si-mesmo [Selbst] não se torna problema. [Man pflegt meistens nur theoretisch ausgeformte Begriffe des Seelischen zu analysieren, aber das Selbst wird nicht Problem.]" Dir-se-ia consolado por ter escrito O conceito de angústia e A doença para a morte, problematizando o Selbst (o Selv: Selvet, em sua língua materna), entendido como relação que se relaciona consigo mesma e que para se relacionar verdadeiramente consigo mesma precisa relacionar-se com o que a colocou. Lembraria que O conceito de angústia era uma singela tentativa de fazer "psicologia filosófica" fora dos esquemas substancialistas, não obstante o enorme respeito por Aristóteles e pelo De anima.

Em relação ao capítulo 2, embora não tivesse convivido com Troeltsch nem com o teólogo Tillich (tampouco com Barth e Bultmann, pessoalmente), veria com bons olhos a colocação do tema da história, de maneira que se fugisse do platonismo, sem cair na dispersão total dos momentos históricos. Lembraria que as Migalhas filosóficas limitavam-se a contrapor algebricamente dois modelos, um "socrático" e um que teria apenas de ser "diferente do socrático". Para os que não conhecem a fundo sua obra, confessaria que o Sócrates das Migalhas não era o Sócrates histórico, mas apenas representava, como tantas vezes nos diálogos, a posição platônica, porém não só esta, incluindo as formas de platonismo até os nossos tempos. Talvez estranhasse um pouco a ausência da noção de "reminiscência" entre as categorias platônicas mencionadas (mímesis, paradeigma, eidolon, metéxis). Claro que para o modelo alternativo ao "socrático" seria decisivo o instante como "kairos", um corte na temporalidade, podendo dar-lhe um sentido eterno, isto é, dar a cada acontecimento da vida comum uma outra dimensão. Sussurraria ao pé da orelha do professor Heidegger que, no fundo, Climacus sempre colocava a hipótese do "Deus no tempo" em termos de uma possibilidade, como ficção, só para efeitos de raciocínio e de compreensão da questão do tempo. É certo que as consequências para quem aceitasse o segundo modelo implicariam uma mudança radical de comportamento, que até se poderia chamar de conversão, e numa mudança de significação (Bedeutsamkeit), ou importância, para toda a temporalidade, presente, passada e futura. Não deixaria de parabenizar seu pseudônimo Climacus por aquelas vinte páginas intituladas Interlúdio, tão densas, em que este discutia os seguintes conceitos: o devir, o histórico ("Tudo o que veio a ser é ipso facto histórico..."), o passado ("O que aconteceu, aconteceu assim como aconteceu...") e a concepção do passado ("O histórico propriamente dito é sempre passado" – diferenciando-se, é claro, da "plenitude dos tempos" [Gálatas], que não fica, porém, fora da história...). Ali Climacus, após declarar a fé como o "órgão do histórico" (do que devém), fizera a célebre afirmação: "A conclusão da fé não é uma conclusão, mas uma decisão [Des Glaubens Schluβ ist nicht Schluβ sondern Entschluβ]", afirmação de que Heidegger parece ter gostado bastante. Lembraria, enfim, que no início do Pós-escrito conclusivo não-científico às Migalhas filosóficas tratara de descartar toda tentativa de provar a verdade objetiva do cristianismo, o que aparentemente muitos filósofos da religião continuavam tentando. Com isso, o capítulo heideggeriano sobre o histórico como fenômeno central já estaria lido, e também o § 8, com sua análise do platônico. Toda tentativa de buscar um asseguramento na existência lhe pareceria a priori condenada, pois no Pós-escrito escrevera que só é possível ao existente, justamente por ser um existente, a Bestemthedens Ubestemthed (die Unbestimmheit der Bestimmtheit), a indeterminidade da determinidade ou a incerteza da certeza. Com algumas teses de seu admirável Lessing, Climacus aprendeu que a um ser existente não se dá a verdade absoluta, mas somente o esforço constante. – Aliás, se Heidegger diz que o ser "se dá", Kierkegaard afirma que a vida é Gabe (Gave) e Aufgabe (Opgave). A existência é dom ou dádiva, mas também tarefa, missão: donde facilmente seguiria que o "Dasein hat das Sein zu sein", pois o "zu sein" designa tarefa, realização, talvez até com alguma noção de responsabilidade. Chegando ao capítulo 4, Kierkegaard agradeceria a todos os deuses por ter aprendido alemão, pois se só soubesse português (que vem aprendendo, nos últimos anos), estaria em maus lençóis. Perceberia que o estudo de uma problemática tem de usar os meios de compreensão que lhe são adequados. Concordaria que o método depende do que está em questão, não havendo, pois, método científico ou filosófico absoluto, válido para tudo. E de novo lembraria o parágrafo inicial da Dissertação de 1841: para que a Erscheinung possa se desnudar, se desvelar, o comportamento do observador deve ser o de "um erótico", que compreende o outro sem violentá-lo. Em seu típico esforço pela compreensão, grande escritor que era, buscaria em Heidegger alguma formulação equivalente à sua metáfora do respeitoso "cavalheiro filosófico", encontrando ao menos essa: "In der formalen Anzeige dagegen handelt es sich nicht um eine Ordnung. Man hält sich bei ihr fern von jeder Anordnung, man läβt gerade Alles dahingestellt. [...] Das leistet eben die formale Anzeige. Sie hat die Bedeutung des Ansetzens der phänomenologischen Explikation" (Heidegger, 1995, p. 64).

Daí em diante se refestelaria com a leitura dos capítulos sobre as epístolas paulinas. Compararia os versículos ressaltados pelo jovem professor com as suas próprias referências a Gálatas e a Tessalonicenses. – Só da Carta aos Gálatas, por exemplo, utilizara cerca de 50 referências aos seus versículos, para nem lembrar que seu primeiríssimo Discurso edificante tratava exatamente desse contexto.

Kierkegaard respeitaria a opção pessoal do professor alemão de não se definir em termos religiosos, em termos de fé, enquanto se detinha a analisar o que os textos paulinos nos ensinam sobre a existência fáctica, propondo uma outra maneira de encarar nossa realidade. Sempre poderia alertar, enquanto cristão, que tentar "compreender" o Ser ou o Fundamento ainda não é, absolutamente, o mesmo que se fundar (com fé e confiança) no Fundamento (ou seja: Naquele que nos colocou). Nesse sentido, a realização pessoal de Heidegger poderia até ser julgada (mas somente por Deus) como ainda desespero. Kierkegaard teria Paulo, Agostinho e Lutero ao seu lado. O pensador de Copenhague era, contudo, demasiado socrático, ou seja, radicalmente irônico, para emitir tal tipo de juízo. Já Climacus no Pós-escrito escrevera que só posso conhecer a minha realidade ética, e só posso realmente me interessar pela minha realidade. A única outra realidade que me poderia interessar de verdade seria a daquele que se teria declarado, num certo momento da história, como Mestre e Senhor. Sobre os demais não podemos julgar, e, aliás: nem vale a pena! Pois o pensador subjetivo, preocupado consigo mesmo, com seu Selbst, não pergunta: "Será que Milcíades fez isso? Será que fez realmente isso?" Pois a ação real do outro só me alcança como uma possibilidade (aí mais importante que a realidade)! Pergunto, pois: "E eu, posso e devo também realizar isso? Quero realmente realizá-lo? Tem isso sentido e importância para mim?" O que não quer dizer, por outro lado, que Søren Kierkegaard, preocupado com sua realização por ser ele um existente individual, e com a dos outros enquanto escritor (mas nunca pregador!), não tenha dado importantes contribuições, também conceituais ou pré-conceituais, para a articulação dos existenciais. Ele apenas não considerava, parece, a tarefa filosófica (por que não dizer, fenomenológica) a única, e a mais importante de todas.

 

V

Já é hora de devolvermos a palavra a Heidegger, para ouvirmos o que mais ele disse de Kierkegaard. Na sua obra de referência, Ser e tempo, enquanto trata muitos temas que pode ter lido mais extensamente em Kierkegaard, o então professor de Marburg dedica duas notas de rodapé ao pensador dinamarquês. São lacônicas, porém muito incisivas, e mereceriam uma reflexão mais demorada. Eis a nota 6 do § 45:

No século XIX, S. Kierkegaard concebeu, explicitamente, o problema da existência como existenciário, refletindo a seu respeito com profundidade. A problemática existencial, contudo, lhe é tão estranha, que ele, no que tange à perspectiva ontológica, encontra-se, inteiramente, sob o domínio de Hegel e da filosofia antiga vista por este último. É por isso que há mais para se aprender, filosoficamente, com seus escritos "edificantes" do que com os teóricos, à exceção do tratado sobre o conceito de angústia. (Heidegger, 2008, p. 308; 1977, p. 235)3

Heidegger tem toda a razão ao enfatizar a importância filosófica dos escritos edificantes (que muitos confundiram com "sermões", o que o autor resolutamente rejeitou, justamente por serem filosóficos, não apelarem para a autoridade da Escritura nem se basearem num mandato ou ordenação da igreja). Lembremos que, dos primeiros, os Dois discursos edificantes de 1843, um, sobre A expectativa da fé (usando como mote Gálatas 3 23-29) por ocasião do dia do Ano-Novo, trata do sentido do tempo, enquanto o segundo, Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto (motivado por Tiago 1 17-22), trata do sentido do ser dos entes (cf. Kierkegaard, 2001), procurando, é claro, fazer a sua hermenêutica com base no cristianismo primitivo, como expresso nas Cartas paulinas.

Outros Discursos tratam de temas como silêncio, paciência, obediência, alegria, preocupações, cuidado, sentido do sofrimento, e assim por diante. Temas da vida fáctica, geralmente buscando uma interpretação próxima à do cristianismo primitivo. Aliás, na polêmica com a Igreja oficial dinamarquesa, através dos números de seu jornal O instante (Øjeblikket), o polemista cria uma espécie de "bordão", na fórmula: "o cristianismo do N.T." (Novo Testamento), o que não constitui, aliás, a rigor, um conceito (ele até se recusa a escrever novos livros para definir o que seria isto), mas que funciona como uma espécie de "indicação formal polêmica", o que não deixa de combinar com o que diz a Fenomenologia da vida religiosa, ao lembrar que "Paulo luta", "Lutero luta", etc., dando razão então a Kierkegaard, que evoca sempre a "ecclesia militans", contra o que seria a "ecclesia triunphans" na qual as testemunhas da verdade (mártires), em vez de perseguidas e mortas são "enterradas com banda de música".

Kierkegaard reaparece no quarto capítulo de SZ (Temporalidade e cotidianidade):

§ 68. A temporalidade da abertura em geral. a) A temporalidade da compreensão. "No instante", nada pode ocorrer. Ao contrário, enquanto atualidade em sentido próprio, é o instante que deixa vir ao encontro o que, estando à mão ou sendo simplesmente dado, pode ser e estar "em um tempo" (69).

Nota 69. Foi, sem dúvida, S. Kierkegaard quem viu com a maior profundidade o fenômeno existenciário do instante, o que não significa que ele tenha logrado uma correspondente interpretação existencial. Ele permanece preso ao conceito vulgar de tempo que determina o instante com o auxílio do agora e da eternidade. Quando K. fala de "temporalidade", ele quer referir-se ao "ser e estar-no-tempo" do homem. O tempo como intratemporalidade conhece apenas o agora e nunca o instante. Experimentado existenciariamente, o instante pressupõe uma temporalidade mais originária, embora existencialmente não explicitada. Com relação ao "instante", cf. K. Jaspers, Psychologie der Weltanschauungen. 3a. ed., p. 108 e ss. e também o „Referat Kierkegaard". (Heidegger, 2008, p. 424; 1977, p. 338)4

A questão do instante, central para ambos os autores, é mencionada explicitamente também em Os conceitos fundamentais da metafísica, que trazem as preleções já de novo de Freiburg in Breisgau, do semestre de inverno de 1929/30:

O que designamos aqui com a palavra "instante" aponta para o que Kierkegaard compreendeu realmente pela primeira vez na filosofia – uma compreensão, com a qual começa a possibilidade de uma época completamente nova da filosofia desde a Antiguidade. A possibilidade, digo. Hoje, quando, por razões diversas, Kierkegaard tornou-se moda, chegamos a um ponto tal, que a literatura sobre Kierkegaard e tudo o que tem a ver com ela cuida de todas as formas para que não compreendamos o que há de decisivo na filosofia kierkegaardiana. (Heidegger, 2003, p. 177)

Separemos as coisas: Heidegger reconhece o trabalho pioneiro de Kierkegaard, embora com reparos importantes, mas sem dúvida se enoja com sua recepção em língua alemã. Isso poderia explicar em boa parte o porquê de, ao final de 900 páginas do livro com seus cursos sobre Nietzsche, vermos apenas 4 páginas de apontamentos sobre Kierkegaard. Os apontamentos giram sobre o conceito de existência (em suas formas variadas na história da filosofia) e a questão do existenciário (que é como se tem traduzido a expressão alemã existenziell). No contexto, aparecem: Schelling, Kierkegaard, Jaspers e o Ser e tempo.

8. A existência no sentido de Schelling é restrita por Kierkegaard ao ente, que "é" na contradição entre temporalidade e eternidade: ao homem que quer ser ele mesmo. Existir como crer, isto é, manter-se na realidade efetiva do ente efetivamente real que o homem mesmo a cada vez é. Crer como o tornar-se manifesto diante de Deus, manter-se junto ao ente efetivamente real que é próprio ao fato de Deus ter-se tornado homem. Crer como ser Cristo no sentido do tornar-se Cristo.

9. Existência no sentido de Kierkegaard, apenas sem a ligação à crença cristã, ao ser Cristo. Ser si mesmo como personalidade a partir da comunicação com outros. Existência na ligação à "transcendência" (K. Jaspers).

10. Existência – temporariamente usada em Ser e tempo como a insistência ekstática na clareira do aí do ser-aí. (Heidegger, 2007b, p. 366)

Bastante semelhante a essa é a nota seguinte, também em forma esquemática e comparativa, que denuncia o encurtamento realizado por Kierkegaard no conceito:

1. A utilização acentuada do conceito de existência na distinção schellingiana entre a existência do fundamento e o fundamento da existência (ser como querer).

2. O encurtamento desse conceito de existência à crença dos cristãos por meio de Kierkegaard (existência - cristandade) (crença - teologia).

3. A assunção do conceito kierkegaardiano de existência na "filosofia da existência" (K. Jaspers). Existência: ser si mesmo – comunicação – metafísica.

4. Existência como o caráter do ser-aí em Ser e tempo (história do ser). Aqui não está nem em jogo o conceito kierkegaardiano, nem o conceito de filosofia da existência. Ao contrário, a existência é pensada com vistas ao caráter ekstático do ser-aí com o intuito de uma interpretação do ser-aí em sua ligação insigne com a verdade do ser. O emprego temporário do conceito de existência só é condicionado por essa questão. A questão não serve senão à preparação de uma superação da metafísica. Tudo isso se encontra fora da filosofia da existência e do existencialismo, permanece abissalmente diverso da paixão no fundo teológica de Kierkegaard, mas mantém-se, em contrapartida, em uma confrontação essencial com a metafísica. (Heidegger, 2007b, p. 367)

O terceiro esquema descreve com bastante exatidão o que Kierkegaard entenderia por existência:

Existência: um ser si mesmo – subjetividade [...]

Mas em Kierkegaard:

1. Limitada ao homem, só ele existe.

2. Existência – interesse na existência, realidade efetiva.

3. Esse interesse não é uma representação, mas um acreditar em..., dedicar-se ao efetivamente real, deixar que o efetivamente real se aproxime de si.

4. Acreditar em um outro, não como ligação com uma doutrina e sua verdade, mas como ligação ao verdadeiro enquanto o efetivamente real, crescer juntamente com ele, concretamente.

5. Acreditar que Deus esteve aí como homem, infinitamente interessado – acreditar como ser Cristo, isto é, tornar-se Cristo. A descrença como pecado. (Heidegger, 2007b, p. 367)

O quarto esquema refere-se ao existenciário:

O existenciário visa ao seguinte: em seu ser homem, o homem não está apenas ligado ao efetivamente real por meio de modos de comportamento. Ao contrário, enquanto existente, ele cuida de si mesmo, isto é, dessas ligações e do efetivamente real. [...] / O existenciário, considerado em uma aparente indiferença histórica, não precisa ser necessariamente compreendido de maneira cristã como em Kierkegaard, mas, segundo todos os aspectos da possibilidade de estabelecimento do homem, como uma obtenção do efetivamente real. [...] Por isso, o existenciário admite múltiplas interpretações. Sua ressonância, seu primado e a junção historicamente impossível de Nietzsche e Kierkegaard possuem seu fundamento no fato de o existenciário não ser senão o aguçamento do papel da antropologia no interior da metafísica em sua consumação. [...] A apresentação do encurtamento da essência da existência parte da distinção schellingiana entre "fundamento e existência". Precisamos mostrar: [...]

3. Como Kierkegaard assume essa distinção, na medida em que encurta o conceito de existência com vistas à cristandade do ser Cristo; com o que não se pretende dizer que o não-existente seria o não-efetivamente-real. Se só o homem é existente, então justamente Deus é o ente efetivamente real de maneira pura e simples e a realidade efetiva. (Heidegger, 2007b, p. 368 e ss.)

Tais juízos críticos, na pena de um pensador como Heidegger, são perfeitamente válidos e merecedores de profunda reflexão e uma boa discussão. Por outro lado, sempre se poderia lamentar que num país em que se procura economizar pensamentos os estudiosos, em vez de se sentirem estimulados pelo atento leitor e brilhante professor que foi Heidegger, desistam logo de perder seu precioso tempo com leituras do autor dinamarquês. Filósofos apressados percebem apenas a nota crítica, sem atentar aos justos louvores. Deixam de refletir, com isso, sobre passagens de profunda filosofia que aos poucos vão surgindo em nosso idioma. Citemos, para concluir nossas reflexões, uma dessas passagens, apenas como ilustração, no alemão das traduções a que Heidegger tinha acesso:

Dies ist nämlich die Formel, die den Zustand des Selbst beschreibt, wenn die Verzweiflung ganz ausgerrottet ist: im Verhalten zu sich selbst, und indem es es selbst sein will, gründet sich das Selbst durchsichtig auf die Macht, die es setzte (Kierkegaard, 2006, p. 216). Tradução aproximada: "Pois esta é a fórmula que descreve o estado do si mesmo quando o desespero foi completamente extirpado: no relacionar-se consigo mesmo e ao querer ser si mesmo, o si mesmo se funda transparentemente no poder que o pôs".

 

Referências

Heidegger, M. (1977). Sein und Zeit. Tübingen (AL): Max Niemeyer. (Trabalho original publicado em 1927)         [ Links ]

Heidegger, M. (1995). Phänomenologie des religiösen Lebens. Gesamtausgabe, Bd. 60. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann.         [ Links ]

Heidegger, M. (2003). Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão (M. Casanova, trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Trabalho original apresentado em 1929-39)        [ Links ]

Heidegger, M. (2007a). Ser e verdade. 1. A questão fundamental da filosofia; 2. Da essência da verdade (E. Carneiro Leão, trad.). Petrópolis, RJ/Bragança Paulista, SP: Vozes/Ed. Univ. São Francisco. [Corresponde ao volume 36/37; 1: semestre de verão de 1933; 2: semestre de inverno de 1933-34]

Heidegger, M. (2007b). Nietzsche II (M. Casanova, trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Heidegger, M. (2008). Ser e tempo (M. S. C. Schuback, trad.). Petrópolis, RJ/Bragança Paulista, SP: Vozes/Editora Universitária São Francisco.         [ Links ]

Kierkegaard, S. (1991). O conceito de ironia, constantemente referido a Sócrates (A. L. M. Valls, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Kierkegaard, S. (2001). Dois discursos edificantes de 1843 (H. N. Levinspuhl, trad. e ed.). Sem edição comercial.         [ Links ]

Kierkegaard, S. (2006). Der Begriff Angst/Die Krankheit zum Tode. Auf der Grundlage der Übersetzungen von Christoph Schrempf und Hermann Gottsched herausgegeben sowie mit einem Nachwort und Sacherläuterungen versehen von Thomas Sören Hoffmann.

Wiesbaden (AL): Marimax Verlag, 2., korrigierte Auflage.

Mac Dowell, J. A. (1970). A gênese da ontologia fundamental de Martin Heidegger – Ensaio de caracterização do modo de pensar de Sein und Zeit. São Paulo: Herder/Edusp.

Stein, E. (1966). Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: Ithaca.         [ Links ]

 

Recebido em 20/09/2011
Aprovado em 06/11/2011

 

 

1 Este trabalho recebeu o apoio da FAPERGS.
2 Percebendo, nos anos 80, que autores como Adorno e Heidegger já estavam sendo bem conhecidos e defendidos de modo competente no Brasil, passei os últimos 30 anos dando preferência à investigação daquele dinamarquês, cujas traduções para nosso idioma não podiam contentar a ninguém. De qualquer maneira, continuo convencido de que os leitores de Heidegger que só leem português podem hoje tirar algum proveito das leituras de obras de Kierkegaard, tais como O conceito de angústia, Migalhas filosóficas, Temor e tremor, A doença para a morte, As obras do amor, assim como tirariam proveito também se lessem em algum outro idioma, mesmo o castelhano, a Escola (ou prática) de cristianismo (de 1850). De minha parte, espero dar uma boa contribuição, nos próximos anos, com a tradução completa do Pós-escrito, talvez em dois volumes.
3 [Im 19. Jahrhundert hat S. Kierkegaard das Existenzproblem als existenzielles ausdrücklich ergriffen und eindringlich durchdacht. Die existentiale Problematik ist ihm aber so fremd, daß er in ontologischer Hinsicht ganz unter der Botmäßigkeit Hegels und der durch diesen gesehenen antiken Philosophie steht. Daher ist von seinen "erbaulichen" Schriften philosophisch mehr zu lernen als von den theoretischen – die Abhandlung über den Begriff der Angst ausgenommen.] – O começo da Nota não deixa de ser crítico (e talvez baseado num mal-entendido, compreensível ainda nos anos 20), mas no que toca à qualidade filosófica dos "discursos", a Nota é inequívoca.
4 Viertes Kapitel. Zeitlichkeit und Alltäglichkeit. § 68. Die Zeitlichkeit der Erschlossenheit überhaupt. a) Die Zeitlichkeit des Verstehens. [...] "Im Augenblick" kann nichts vorkommen, sondern als eigentliche Gegen-wart läβt er erst begegnen, was als Zuhandenes oder Vorhandenes „in einer Zeit" sein kann. (1) Note 1. S. Kierkegaard hat das existenzielle Phänomen des Augenblicks wohl am eindringlichsten gesehen, was nicht schon bedeutet, daβ ihm auch die existenziale Interpretation entsprechend gelungen ist. Er bleibt am vulgären Zeitbegriff haften und bestimmt den Augenblick mit Hilfe von Jetzt und Ewigkeit. Wenn K. Von „Zeitlichkeit" spricht, meint er das „In-der-Zeit-sein" des Menschen. Die Zeit als Innerzeitigkeit kennt nur das Jetzt, aber nie einen Augenblick. Wird dieser aber existenziell erfahren, dann ist eine ursprünglichere Zeitlichkeit, obzwar existenzial unausdrücklich, vorausgesetzt. Bezüglich des „Augenblicks" vgl. K. Jaspers, Psychologie der Weltanschauungen. 3. unveränderte Auflage 1925, S. 108 ff. und hierzu das „Referat Kierkegaard" S. 419-432.