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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.14 no.1 São Paulo  2012

 

Artigos

 

Leibniz e a teologia natural dos chineses

 

Leibniz and the natural theology of the Chinese

 

 

Antonio Florentino Neto

Pesquisador-colaborador do Programa de Pós-Doutorado da Unicamp, bolsista do CNPq.México
e-mail: floraneto@hotmail.com

 

 


Resumo

O início da interpretação filosófica do pensamento chinês, com Leibniz, ocorre no epicentro de uma complexa disputa metafísico-religiosa entre os missionários católicos, na primeira metade do século XVII, denominada "querela dos rituais", que teve como polos duas concepções distintas referentes aos métodos de catequização a serem empregados no processo de conversão dos chineses ao cristianismo. Neste contexto, Leibniz posiciona-se a favor de uma das partes e, ao justificar sua postura, relaciona elementos do pensamento chinês com aspectos de sua filosofia. A teoria da harmonia preestabelecida é o ponto de partida de sua interpretação do pensamento chinês. Leibniz refuta a acusação de materialismo no pensamento chinês, ao observar que os conceitos de substância originária, para os chineses, e o de matéria, na perspectiva escolástica, eram duas coisas completamente distintas. A oposição de Leibniz ao pensamento escolástico e cartesiano mostra-se em sua forma mais clara na abordagem do problema da comunicação das substâncias ao refutar o dualismo com sua teoria da harmonia preestabelecida e sua concepção do universo como uma unidade orgânica, e esses dois aspectos são os elementos principais que ligam Leibniz ao pensamento chinês.

Palavras-chave: Leibniz, pensamento chinês, harmonia preestabelecida, dualismo, unidade orgânica, Li, ki.


Abstract

The beginning of the philosophical interpretation of Chinese thought, with Leibniz, takes place at the epicenter of a complex metaphysical-religious dispute among Catholic missionaries in the first half of the seventeenth century called "quarrel of the rituals", which was stirred by two distinct catechization concepts used to convert the Chinese to Christianity. In this context, Leibniz stands in favor of one party and to justify his stance, he associates elements of Chinese thought to aspects of his philosophy. The theory of pre-established harmony is the starting point of his interpretation of Chinese thought. Leibniz refutes the accusation of materialism in Chinese thought, observing that the Chinese concept of original substance and the concept of matter according to the scholastic perspective are completely different. Leibniz's opposition to the scholastic and Cartesian thought becomes most clear when he addresses the problem of communication of substances refuting dualism by means of his theory of pre-established harmony and his conception of the universe as an organic unity. Those two aspects are the main elements that associate Leibniz to Chinese thought.

Keywords: Leibniz, Chinese thought, pre-established harmony, dualism, organic unity, Li, ki.


 

 

1. Introdução

Leibniz foi o primeiro filósofo alemão que escreveu sobre o pensamento oriental, especificamente sobre a filosofia chinesa. Ele viveu em um momento em que ocorreram os primeiros contatos científicos, filosóficos e teológicos entre Europa e China por intermédio dos missionários jesuítas envolvidos no projeto de catequização dos chineses na virada do século XVI para o século XVII.1 A China foi, no tempo de Leibniz, a grande descoberta cultural e o grande desafio para a Europa colonial, visto que a cultura chinesa era uma das mais antigas e detinha um conjunto de elementos que a igualava ao mundo europeu. Ao contrário dos povos das Américas e da África, que não apresentavam nenhuma resistência técnico-científica significativa, a China desenvolvera já uma escrita altamente complexa, uma técnica superior à técnica ocidental e, contrariamente ao que se afirma com frequência, desenvolvera também um conhecimento científico2 equiparável à ciência ocidental pré-renascentista, além de uma extraordinária teoria política e moral.

O nível de desenvolvimento técnico-científico da China exigiu, portanto, dos missionários católicos um procedimento de conversão estratégico especial, e foram os padres jesuítas que perceberam rapidamente essa necessidade, enviando à China competentes cientistas, principalmente matemáticos e astrônomos, para dar suporte ao trabalho de conversão dos chineses ao cristianismo. O resultado foi o encontro de duas culturas que estavam no mesmo plano dos pontos de vista intelectual e técnico-científico.

O empreendimento de catequização dos católicos europeus na China e seu desdobramento possibilitaram a Leibniz adquirir a fonte para a elaboração de seus scritos relativos à religião e filosofia chinesas. Todo o conhecimento sobre a China que Leibniz adquirira ou havia sido amplamente divulgado na Europa pelos padres jesuítas, ou havia sido enviado diretamente a ele, por cartas, por padres com quem Leibniz mantinha uma intensa troca de correspondência3. Ele esteve ao longo de toda sua vida em contato com o pensamento chinês e, como os intelectuais de sua época que se interessavam pela China, tinha acesso aos relatos de viagens sobre a china, que eram muito comuns no meio acadêmico europeu nesse período (Roy, 1972, p. 20). O que distingue a relação de Leibniz com o pensamento chinês, em relação a outros filósofos da época, é seu intenso envolvimento com os padres jesuítas em missão na China, que o mantiveram a par de uma disputa acirrada dentro da Igreja Católica, sobre os métodos de conversão a serem empregados em uma cultura tecnicamente mais avançada que a própria Europa, como Leibniz mesmo admitira.

Um fato, porém, que marca o duradouro interesse de Leibniz pelo pensamento chinês foi seu encontro com o padre jesuíta Claudio Filippo Grimaldi em Roma, no ano de 1689 (Robinet, 2000, p. 79). Este encontro influenciou decisivamente a postura de Leibniz em relação à China, pois foi a partir deste momento que ele tomou conhecimento de questões específicas sobre, principalmente, matemática e geometria chinesas. Seu contato com a China permanecerá, todavia, para sempre indireto, pois ele mesmo nunca esteve na Ásia. Grimaldi era um jesuíta influente e um extraordinário cientista que vivia na Ásia havia quase três décadas e retornara a Roma para tentar convencer o papa a não interromper o método de conversão usado pelos jesuítas na China. Para o encontro com Grimaldi, Leibniz prepara até mesmo um questionário (Leibniz, 1979, pp. 83-86) contendo trinta perguntas sobre a China, que abordavam questões referentes à física, matemática e técnica dos chineses, além das perguntas gerais sobre a vida na China e sobre os intelectuais chineses (Robinet, 2000, pp. 81-86).

 

2. Leibniz e a querela dos rituais chineses

O início da interpretação filosófica do pensamento chinês, com Leibniz, ocorre no epicentro de uma complexa disputa metafísico-religiosa entre os missionários católicos, na primeira metade do século XVII, denominada "querela dos rituais", que teve como polos duas concepções distintas referentes aos métodos de catequização a serem empregados no processo de conversão dos chineses ao cristianismo (Li, 2000a, p. 310-345; Roy, 1972). De um lado encontrava-se a grande maioria dos padres jesuítas, entre eles Grimaldi, que defendia a tese da compatibilidade entre os antigos rituais chineses, especificamente os cultos aos ancestrais, e os princípios do cristianismo; de outro lado situavam-se as outras ordens religiosas, alguns jesuítas, a Sorbonne e o Vaticano, que afirmavam haver uma incompatibilidade irremediável entre cristianismo e os rituais chineses. Esta controvérsia, porém, foi o pano de fundo de outra polêmica, que toca diretamente em questões fundamentais da teologia e da metafísica do cristianismo.

Na "querela dos rituais" as perguntas formuladas referiam-se a uma possível crença dos chineses em algum Deus, nos anjos e na imortalidade da alma; em suma, a questão posta referia-se em primeiro plano ao ateísmo dos chineses, à existência de uma clara concepção da distinção entre corpo e alma, o que significa, em última instância, a pergunta pela existência, no universo "espiritual" chinês, das pré-condições essenciais para que eles pudessem ser convertidos ao cristianismo. Como consequência dessa polêmica, surgem, por volta de 1700, numerosas publicações sobre a concepção de mundo chinesa, e, entre elas, se encontra o primeiro escrito de Leibniz sobre a China. Este texto é o prefácio de uma coletânea de artigos e relatos sobre aquele país, escritos por diversos autores sobre distintos temas, publicado em 1697.

A querela dos rituais representa não somente uma problemática religiosa, mas também uma dura disputa entre os países católicos europeus por poder e domínio nas empreitadas coloniais na Ásia (Hartmut, 2000, pp. 332-344). A partir do século XVII a perspectiva colonial do Ocidente tem como objetivo o esclarecimento dos povos denominados não civilizados por meio da propagação da doutrina cristã, que ao mesmo tempo preparava o solo para o desenvolvimento do novo modo de produção que se configurava na Europa. A história do domínio colonial europeu está diretamente vinculada às missões cristãs, mas como este tema distancia-se consideravelmente do propósito deste texto, concentrar-me-ei exclusivamente nos fundamentos teológicos e metafísicos do pensamento chinês antigo e seus correspondentes na teologia cristã.

A discussão sobre a compatibilidade entre elementos da cultura chinesa e da doutrina cristã, que surge nesse período, já foi tema de várias investigações (Li, 2000a). Retomá-la-ei aqui, porém, como elemento propulsor para a interpretação que Leibniz faz do pensamento chinês. Faz-se necessário, todavia, tecer algumas considerações gerais sobre as circunstâncias e o início da querela dos ritos, visto que os escritos de Leibniz sobre a China somente podem ser bem compreendidos com base em tais elementos. A genialidade das considerações de Leibniz sobre a cultura chinesa permanece até hoje como extraordinária para sua época, e a abrangência de tais considerações somente pode ser demarcada tendo em vista o contexto do conflito de interesses da Igreja Católica com as potências coloniais da época.

A querela dos rituais expressa, em primeiro plano, a disputa pelo poder dos controles das missões no interior da Igreja Católica, transferida para o âmbito da teologia e da filosofia. Tem início com a fundação das missões católicas na China pelo padre jesuíta Matteo Ricci. No ano de 1583 os padres Ricci e Ruggieri conseguem entrar em território chinês e dão início aos trabalhos missionários naquele país. A estratégia de conversão empregada por Ricci na China consistia essencialmente em se "adequar" à cultura local com o objetivo de conquistar a confiança dos chineses para a posterior divulgação dos princípios cristãos. Na China, com Ricci, dá-se início ao emprego do denominado método da acomodação, desenvolvido pelos padres jesuítas e usado inicialmente no Japão.

Ao chegar à China, Ricci veste-se inicialmente como monge budista como estratégia de integração, porém, ao perceber que os monges, muito respeitados pela população simples, não eram bem vistos pelos mandarins confucianos, que detinham o poder político, Ricci muda de estratégia e passa a vestir-se como um erudito. Esta mudança de estratégia visava um acesso mais rápido ao círculo dos mandarins e, consequentemente, um método de conversão mais rápido e efetivo (Schatz, 2000, p. 71). Com seu método da acomodação, Ricci torna-se o mais bem-sucedido missionário jesuíta na China. Ele era um extraordinário conhecedor da cultura chinesa e foi o primeiro a interpretar o confucionismo com base na doutrina cristã. Sua interpretação tornou-se referência para todos os defensores da teoria da compatibilidade entre o pensamento chinês e o cristianismo (Li, 2000a, p. 89).

Em 1687 o rei da França, Luís XIV, escolhe seis dos melhores matemáticos da Académie des Sciences, que eram também padres jesuítas, e os envia à China, equipados com os melhores instrumentos científicos da época (Widmaier, 1990, p. 271). Eles tinham como missão não somente o trabalho de conversão dos chineses ao cristianismo, como também colher a maior quantidade possível de informações científicas sobre a China e enviá-las à França (Collani, 1989, p. 14). Entre esses missionários cientistas, estava presente o padre Bouvet, que era um dos principais representantes do método de interpretação de textos heréticos, tais como os escritos chineses, denominado figurismo (Widmaier, 1990, p. 277). Este método consistia essencialmente na busca de elementos do cristianismo no pensamento chinês antigo, sobretudo nos textos do Tao Te King. O método desenvolvido por Bouvet aproximava-se, em muitos aspectos, do método da acomodação de Ricci, mas os dois procedimentos tinham pontos bem distintos entre si: Bouvet não somente buscava elementos que apontassem proximidades e compatibilidades entre o pensamento chinês antigo e o europeu de sua época, mas seu projeto ia além ao tentar provar que esses dois universos, aparentemente tão distintos, tinham a mesma origem (Widmaier, 1990, p. 277).

O figurismo não teve importância significativa para a querela dos rituais, mas Bouvet torna-se um dos correspondentes mais importantes de Leibniz, no que concerne à China, e em 4 de novembro envia a este uma carta, quase um pequeno ensaio, em que aponta uma possível correspondência entre os hexagramas do I Ching e o sistema numérico binário (Zacher, 1973) leibniziano (Widmeier, 1990, pp. 147-168).

Nesse contexto, Bouvet e Ricci foram os maiores defensores da importância do pensamento chinês antigo para o processo de catequização dos chineses. Ricci é o primeiro que define o pensamento chinês antigo como uma theologia naturalis4 e se torna, assim, uma referência para os escritos posteriores de Leibniz. De acordo com a perspectiva de interpretação de Ricci do confucionismo antigo, os chineses já possuíam uma clara concepção de Deus e da imortalidade da alma. Eles não teriam, porém, concepção alguma de uma teoria da criação (Li, 2000a, p. 92), ou nenhuma ideia do paraíso e do inferno, consequentemente, da recompensa das boas ações com o paraíso e da punição das más ações com o inferno, o que os privava da ideia da bondade de Deus.

Após a morte de Ricci, no início do século XVII, as discussões sobre os rituais chineses intensificam-se, e a chamada querela dos rituais torna-se central na discussão sobre a possibilidade de uma posição conciliatória entre o pensamento chinês antigo e os princípios do cristianismo. Neste contexto o padre jesuíta Nicolas Longobardi é nomeado sucessor de Ricci e superior geral das missões católicas na China. Longobardi é um dos principais críticos do método da acomodação de Ricci e outra referência fundamental para Leibniz, no que diz respeito às questões da China.

No ano de nascimento de Leibniz já existiam na Europa numerosos escritos sobre a China, que Leibniz teria lido. Nem todos os escritos sobre a querela dos rituais estavam, todavia, disponíveis para o público, mas restringiam-se ao âmbito clerical, e somente alguns padres tinham acesso direto a todo o material relativo ao tema. Isso explica, em parte, por que Leibniz só entra em contato tardiamente com textos importantes sobre a China, principalmente o texto de Longobardi. Leibniz tinha apenas 8 anos quando Longobardi morre, mas somente entra em contato com seus escritos graças a uma carta de Rémond,5 que conhecia bem o pensamento de Leibniz e pediu-lhe que comentasse o texto de Longobardi sobre a China. Antes, porém, Leibniz lera vários outros escritos sobre a China e em 1697 ele mesmo escreve o prefácio de uma coletânea sobre a China intitulada Novissima Sinica.

Os principais escritos de Leibniz sobre a China são, portanto, divididos em dois momentos bem distintos: o primeiro se dá com a publicação da Novissima Sinica, por ocasião da promulgação do ato de tolerância, em 1692, pelo imperador chinês Kang-Schi, no qual ele decretava o cristianismo como mais uma das religiões oficiais chinesas. Leibniz escreve o prefácio desta coletânea com o objetivo claro de fortalecer a posição conciliatória dos defensores do método da acomodação. O segundo momento se dá quase vinte anos depois, em 1716, quando Leibniz escreve o Discours sur la théologie naturelle des chinois em forma de carta.6 Esta carta, um tratado sobre o pensamento chinês, Leibniz escrevera em resposta à carta de Rémond (Leibniz, 2002, p. 5), que lhe enviara, na mesma correspondência, três outros tratados, pedindo-lhe que se posicione sobre suas diferentes posições. Nelas estão presentes as questões fundamentais da querela dos rituais.

Todos os tratados, porém, tinham um ponto em comum: uma clara posição contrária ao método da acomodação de Ricci. Entre os tratados, o Traité sur quelques points de la religion des chinois, de Longobardi (Leibniz, 2002, pp. 113-156), é a referência central de Leibniz. O segundo escrito é o do padre Antoine de Saint Marie, Traité sur quelques points importants de la mission de la Chine (Leibniz, 2002, pp. 157-223), é pouco citado por Leibniz, e o último dos textos, Entretien d'un philosophe chrétien & d'un philosophe chinois sur l'existence & la nature de Dieu, de Nicolas Malebranche (Leibniz, 2002, pp. 225-256), não é sequer mencionado por Leibniz nesse escrito. Leibniz menciona, en passant, várias vezes, e em diferentes obras e cartas, elementos da cultura e do pensamento chinês, mas só escrevera dois textos, bem distintos, sobre esse tema: o prefácio da Novissima Sinica e o Discours sur la théologie naturelle des chinois.

 

3. A Novisima Sinica: a China como a "Europa do Oriente"

O prefácio de Leibniz apresenta considerações sistemáticas extraordinárias, para a época, sobre diversos temas que são abordados em diferentes perspectivas. Abordarei aqui, porém, somente alguns pontos referentes à ousadia de Leibniz em propor uma relação de reciprocidade no processo de intercâmbio entre o pensamento ocidental e o oriental. Na verdade, o texto de Leibniz não apresenta novidades sobre a China, pois o que ele relata no prefácio já era de conhecimento público. A particularidade de seu escrito consiste, todavia, em sua disposição de abertura para um diálogo intelectual entre a Europa e uma cultura tão estranha ao mundo europeu, como era a cultura chinesa, em um momento tão eurocêntrico quanto o vivido por Leibniz.

Leibniz apresenta, já no início do prefácio da Novissima Sinica, o primeiro reconhecimento da cultura chinesa enquanto um contraponto ao mundo intelectual europeu, ao designar a China como a "Europa do Oriente" (Leibniz, 1979, p. 9), e ressalta, nesta mesma passagem, o elevado desenvolvimento técnico chinês. Com o prefácio, percebe-se, por parte de pensador europeu moderno, o reconhecimento de igualdade, e até mesmo de superioridade, de outro povo, em relação ao mundo cristão. Leibniz, ao comparar China e Europa, reconhece a igualdade destas duas culturas no âmbito da técnica, do uso de utensílios domésticos e na relação experimental com a natureza (Leibniz, 1979, p. 9). Ele estava bem informado sobre algumas invenções e descobertas chinesas que superavam tudo o que a Europa havia produzido, mas os chineses seriam inferiores aos europeus no âmbito das disciplinas teóricas, tais como matemática e física, visto que eles não possuíam, de acordo com Leibniz, interesse por áreas que não tivessem aplicações técnicas imediatas (Leibniz, 1979, p. 9).

O caráter predominantemente prático do confucionismo e sua imediata repercussão em todos os âmbitos da cultura chinesa, até mesmo na matemática, são ressaltados por Leibniz no prefácio, porém, a superioridade nas ciências teóricas na Europa não teria conduzido a resultados correspondentes no âmbito da ética e da política. De acordo com Leibniz, os chineses, com o conhecimento totalmente orientado para a prática, estariam, no âmbito da vida normativa, em uma situação superior à dos europeus, o que conduziria a uma superioridade no comportamento moral (Leibniz, 1979, p. 11). Após constatar que os chineses estariam, no âmbito da moral, mais bem preparados do que os europeus, Leibniz, propõe, de forma surpreendente para sua época, que a Europa pudesse abrir-se para o envio de missionários chineses, que fossem à Europa ensinar as bases e os fundamentos de sua moral, ou seja, ensinar a sua teologia natural, assim como os europeus enviaram missionários para a China, com o intuito de ensinar a doutrina cristã (Leibniz, 1979, p. 19).

Nessa proposta de Leibniz pode-se ver o início de uma disponibilidade para o diálogo entre o pensamento europeu e o chinês, mas ela não poderia se dar sem complicações. Pode-se perguntar como seria se os chineses de fato tivessem enviado missionários para ajudar na formação moral dos europeus, que Leibniz considerava como decadente. O hipotético convite de Leibniz foi, sem dúvida, um lance estratégico diante da querela dos rituais, visto que a moral cristã da teologia da revelação exclui qualquer outra perspectiva ética fora da orientação bíblica e que a teologia racional de Leibniz somente pode ser concebida em relação direta com as ciências europeias, principalmente em relação à matemática especulativa, como Leibniz a concebia.

Não se deve fazer matemática como um trabalhador manual, e sim como um filósofo. Virtude decorre de sabedoria, e a alma da sabedoria é a verdade, e quem se dedica à pesquisa das demonstrações matemáticas compreende a essência das verdades eternas e pode, por isso, distinguir o certo do incerto (Leibniz, 1979, p. 17).

Nessa passagem do prefácio pode-se perceber claramente uma objeção significativa ao possível convite de Leibniz para que intelectuais chineses fossem ensinar aos europeus uma moral melhor do que a que possuíam, pois ele vincula o acesso a uma postura moral correta ao estudo da matemática especulativa, o que os chineses não possuíam. A inferioridade dos conhecimentos teóricos dos intelectuais chineses seria, portanto, um empecilho para a realização do intercâmbio de missionários, proposto inicialmente por Leibniz, pois a ausência de conhecimentos matemáticos dos chineses era tida como uma deficiência grave. Por outro lado, Leibniz considerava a matemática como um dos principais instrumentos de conversão, pois poderia apontar, ao mesmo tempo, o correto comportamento moral.

Os mais importantes missionários enviados à China eram jesuítas com uma extraordinária formação acadêmico-científica, principalmente matemáticos e astrônomos, que deveriam converter os chineses ao cristianismo por meio do conhecimento científico ocidental, notoriamente superior (Li, 2000a, p. 257). Esta perspectiva de catequização correspondia perfeitamente à concepção do ideal de formação pré-iluminista que Leibniz tinha em vista. Entre os mais importantes missionários-cientistas enviados à China estavam os padres Ferdinand Verbiest, reconhecido matemático e astrônomo, discípulo do também matemático e astrônomo alemão Johann Adam Schall,7 que, como Leibniz afirma, teria despertado o imperador chinês Kang-Schi para a matemática ocidental (Leibniz, 1979, p. 15).

O exercício da matemática como método educativo para a formação de uma moral ideal tinha como pré-condição uma ciência especulativa, que os chineses não possuíam. A superioridade da ciência ocidental e sua importância na formação do caráter humano, em Leibniz, indica que sua proposta de abertura para um intercâmbio intelectual, no qual os chineses fossem para a Europa ensinar ética, era muito restrito, visto que os chineses não dispunham de tais conhecimentos matemáticos. Como os chineses poderiam ajudar os europeus em sua "decadência moral" sem o conhecimento científico do Ocidente? O prefácio da Novissima Sinica aponta para a única perspectiva do intercâmbio: os missionários chineses que deveriam ser enviados à Europa teriam que ser, antes de tudo, profundos conhecedores das ciências teóricas ocidentais para que pudessem ajudar os europeus.

Leibniz tinha um conhecimento muito restrito da ciência e do pensamento chinês antigo, mas isso não o impede de abordar questões relativas à postura do mundo cristão em relação ao pensamento chinês. No prefácio da Novissima Sinica Leibniz não trata de questões referentes a teologia e metafísica, fazendo-o posteriormente no Discours sur la théologie naturelle des chinois. No prefácio fica claro seu principal objetivo: apoiar o método da acomodação dos missionários jesuítas, com o objetivo posterior de organizar o envio de missionários protestantes para a China.

 

4. Leibniz e a teologia natural dos chineses

Um fato decisivo para o posicionamento de Leibniz na querela dos rituais e, por consequência, também para o surgimento do Discurso sobre a teologia natural dos chineses foi a carta de Rémond a Leibniz, que continha os três outros tratados, principalmente o de Longobardi. Leibniz pretendia, com o Discours, fortalecer a posição dos jesuítas na querela dos rituais, mas, em última instância, o problema posto é o da relação entre corpo e alma, que se desenvolve na filosofia ocidental a partir da obra As meditações, de Descartes. A controvérsia em torno dos rituais chineses transpõe o debate entre Leibniz e os cartesianos, sobre a comunicação das substâncias (Frémont, 1987, p. 22), para a China, e a querela dos rituais torna-se, deste modo, palco de uma acirrada discussão filosófica. É neste contexto que a controvérsia sobre a possibilidade de conversão dos chineses deve ser compreendida.

Para os jesuítas partidários do método da acomodação de Ricci, os chineses tinham referências morais puras, ou seja, independentes da religião. A possibilidade, porém, de uma moral sem recorrência aos fundamentos religiosos, sem o alicerce de uma substância eterna não poderia ser aceita sem apresentar problemas insolúveis, tais como o da salvação e o da absolvição. Uma moral materialista melhor do que a cristã não poderia ser aceita. A pergunta central era, então, se os chineses possuíam uma concepção da alma humana e de Deus. Assim, surge o Discours de Leibniz em um contexto religioso sobre o método de conversão dos missionários católicos na China. O cerne da discussão, no entanto, refere-se à polêmica metafísica sobre o ateísmo e o materialismo dos chineses. Malebranche, Sainte Marie e Longobardi (Leibniz, 2002)8 afirmavam não comportar o pensamento chinês o conceito de alma e de crença em Deus, o que exigiria dos chineses a renúncia incondicional a todos os seus rituais e costumes religiosos, para que pudessem converter-se verdadeiramente ao cristianismo. Leibniz, ao contrário, propõe-se a demonstrar, com o Discours, que o pensamento chinês não era ateu, mas que possuía uma teologia natural e, por conseguinte, uma moral superior à cristã e era compatível com os princípios fundamentais do cristianismo.

O possível fato de o pensamento chinês não conhecer a separação entre corpo e alma não indica, para Leibniz, todavia, nenhuma contradição ou ateísmo. A afirmação de que os chineses não diferenciavam essas duas substâncias não significa que eles não as conheciam, mas sim que eles tinham uma concepção de corpo e de alma completamente distinta da perspectiva dualista cartesiana. Para Leibniz, o problema central dessa polêmica era outro, bem distinto: situava-se no interior da própria metafísica europeia, que se referia ao limitado conceito escolástico de matéria, inconciliável com a visão confuciana de mundo. A refutação do ateísmo presente no pensamento chinês corresponde a uma intensa discussão com a metafísica medieval e cartesiana, que, para Leibniz, não era capaz de compreender uma filosofia tão particular quanta a dos chineses. Para Leibniz, não havia contradição ou ateísmo na afirmação dos chineses de que substâncias espirituais tais como Deus e alma não poderiam ser pensadas como distintas de substâncias materiais tais como mundo e corpo (Leibniz, 2002, pp. 22-23).

Em sua interpretação do pensamento chinês está presente uma concepção metafísica muito particular de matéria e respectivamente do universo, que é a base de toda filosofia de Leibniz. Esta abordagem está intimamente vinculada a seu conceito metafísico de mônada, força, harmonia universal e harmonia preestabelecida. A interpretação que Leibniz faz do pensamento chinês, e sua recusa em aceitá-lo como materialismo ou ateísmo, está diretamente vinculado à unidade de seu sistema. O Discours, redigido pouco antes da Monadologia, pressupõe o entendimento da totalidade do sistema de Leibniz e, consequentemente, sua concepção de matéria.

A concepção de Leibniz do universo enquanto uma unidade orgânica, em movimento, tem seu conceito de força como princípio interior. Para Leibniz, "o universo todo é formado por uma única parte, como o oceano. O menor movimento estende seu efeito até o ponto mais distante" (Leibniz, 1968, p. 221). Tudo no universo e, naturalmente, no mundo está ligado entre si numa harmonia universal ordenada por uma harmonia preestabelecida. A harmonia universal é o fundamento da existência de todas as coisas que se relacionam em um movimento harmônico constituindo o universo: da coexistência de todas as mônadas até o movimento ordenado dos planetas e suas órbitas. A harmonia preestabelecida é a resposta de Leibniz ao problema da relação entre corpo e alma, ou seja, ao problema da comunicação das substâncias. Deus, ao criar todas as relações e o movimento, os teria acertado, como relógios diferentes que, marcando precisamente o mesmo horário, parece que estão conectados entre si (Leibniz, 1968, p. 232).

A teoria da harmonia preestabelecida de Leibniz não é somente o cerne de sua teoria da causalidade, mas também o ponto de partida de sua interpretação do pensamento chinês. Leibniz refuta a acusação de materialismo no pensamento chinês, ao observar que os conceitos de substância originária para os chineses e o de matéria, na perspectiva escolástica, eram duas coisas completamente distintas. O ponto central da polêmica em torno do ateísmo do pensamento chinês era a interpretação de que o Li9 chinês, que pode ser compreendido como o elemento último, era o correspondente à matéria. Leibniz porém, afirma não haver contradição alguma ao admitir o Li como matéria originária e que os chineses não eram ateus, pois eles só não teriam conhecido a harmonia preestabelecida (Leibniz, 2002, p. 84). Isto somente significa que eles ainda não teriam conhecido a separação entre as substancias, visto que a harmonia preestabelecida somente pode ser percebida com base na teologia racional, que está além da própria teologia da revelação.

Para Leibniz não havia indício algum de ateísmo por parte dos chineses em admitir que o Li, que era o fundamento de tudo, possuísse qualidades materiais, visto que para ele até mesmo os anjos e as almas racionais possuíam corpos (Leibniz, 2002, pp. 20-21). Esta concepção de matéria seria, porém, outra completamente distinta de um conceito passivo de matéria, e esse seria o principal empecilho para a compreensão do conceito de matéria no pensamento chinês. O Li chinês deve ser visto, em primeiro plano, como uma força criadora (Leibniz, 2002, p. 34).

A chave, portanto, para a compreensão da afinidade entre Leibniz e o pensamento chinês, em sua interpretação do conceito Li, encontra-se em sua teoria da harmonia preestabelecida, seu conceito de matéria e de mônada. A oposição de Leibniz ao pensamento escolástico e cartesiano mostra-se em sua forma mais clara na abordagem do problema da comunicação das substâncias, ao refutar o dualismo com sua teoria da harmonia preestabelecida e sua concepção do universo como uma unidade orgânica é, certamente, a ponte principal que liga Leibniz ao pensamento chinês.

Leibniz não possuía tantas informações e conhecimentos sobre a China quanto Bouvet, Grimaldi, Sainte-Marie e Longobardi, todavia, ele conseguiu fazer uma conexão original entre seu parco conhecimento e sua concepção unitária do mundo, o que lhe possibilitou criar uma nova e original interpretação do pensamento chinês. As missões jesuítas na China nos fornecem frutíferos elementos para o início do debate entre pensamento chinês e europeu, porém a contribuição de Leibniz pode ser considerada o ponto de partida para o início do diálogo entre esses dois universos de pensamentos, aparentemente tão distintos.

 

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Recebido em 31/08/2011
Aprovado em 12/11/2011

 

 


1Na verdade os chineses já haviam tido contato por um curto período com o cristianismo no século VII. Em 1625 foi encontrado na china um monumento, do século VII, escrito em chinês e em persa que continha as principais ideias do cristianismo (Li, 2000a, p. 27).
2 O livro Ciência e técnica na China antiga, organizado pela Academia Chinesa de Ciências, fornece uma panorâmica sobre o desenvolvimento do conhecimento científico na China, principalmente os primeiros seis capítulos que tratam especificamente de astronomia e matemática (Academia, 1989, pp. 11-90).
3
A parte mais importante da correspondência de Leibniz com os padres jesuítas, que trata diretamente da China, foi organizada e publicada por Rita Widmeier (1990).
4
Uma definição precisa deste termo é fornecida em Li, 2000c, p. 321.
5 Rémond foi o Conde de Orléans com quem Leibniz manteve correspondência (Leibniz, 2002, p. 5).

6
Leibniz faleceu antes de enviar essa carta a Rémond, e o texto só foi publicado em 1735.
7 Schall foi o mais importante cientista europeu na China. Ele chega a Pequim em 1644 e torna-se diretor do observatório astronômico, um dos postos mais importantes na China antiga, e em 1658 torna-se mandarim de primeiro grau.

8 Esta publicação traz ainda os três escritos dos autores mencionados. 9 Toda discussão sobre o ateísmo chinês circula em torno da correspondência entre Li e matéria. Este não é um conceito fundamental para o confucionismo e para o taoísmo.
9 Toda discussão sobre o ateísmo chinês circula em torno da correspondência entre Li e matéria. Este não é um conceito fundamental para o confucionismo e para o taoísmo.