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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.14 no.2 São Paulo  2012

 

Resenha

 

 

Hume, David. História natural da religião. Tradução de Jaimir Conte. São Paulo: Editora da UNESP, 2005. ISBN: 8571396043

 

Itamar Luís Gelain

Professor do Centro Universitário – Católica de Santa Catarina/CATÓLICA-SC. Doutorando em Filosofia pela UFSC.
e-mail: itamarluis@gmail.com

 

 

"A ignorância é a mãe da devoção".
(David Hume, História natural da religião)

A História Natural da Religião (HNR) é um ensaio polêmico sobre um assunto polêmico. Publicado pela primeira vez em 1757, no volume intitulado Four Dissertations, suscitou uma série de reações e críticas principalmente por parte dos eclesiásticos. Esse ensaio originalmente fazia parte da obra intitulada Five Dissertations. Em 1756, a obra citada foi impressa e preparada para a distribuição. Os ensaios que estavam incluídos naquela obra eram os seguintes: i) História Natural da Religião; ii) Das paixões; iii) Da Tragédia; iv) Do Suicídio; v) Da Imortalidade da Alma. Os dois últimos ensaios promoviam ataques diretos contra as doutrinas religiosas. Do Suicídio propunha o direito moral da pessoa cometer suicídio. Da Imortalidade da Alma criticava a ideia de vida após a morte. As cópias da obra Five Dissertations foram alteradas de tal maneira que o ensaio Do Padrão do Gosto substituiu os dois últimos ensaios citados e assim publicou-se em 1757 Four Dissertations em substituição à obra anterior. Além disso, Hume também eliminou passagens da HNR supostamente ofensivas aos religiosos. Todavia, estas passagens suprimidas foram reimpressas mais tarde no Volume I da História da Inglaterra.

Mas o que aborda Hume na HNR? E o que torna essa dissertação tão polêmica? Esse ensaio apresenta uma história natural da religião, distinguindo-se desse modo de uma história da religião regida por pressupostos religiosos, ou ainda de uma história natural do paganismo. O foco de Hume é fazer uma espécie de genealogia da crença religiosa, isto é, buscar a origem e os motivos causais da mesma. Conclusivamente, Hume argumentará que a religião é um produto da natureza humana e que a primeira religião é de ordem politeísta e não monoteísta como pensavam os eclesiásticos. Como ele chegou a essa conclusão?

Hume menciona dois tipos de explicações no que se refere à origem da religião. A primeira explicação defende a tese de que as pessoas são levadas à religião pela contemplação racional do universo, explicação que lembra de passagem a ideia do Movente Imóvel de Aristóteles. A segunda defende a tese de que a religião tem seu fundamento não em bases racionais mas em fatores estritamente psicológicos. Hume defenderá a segunda tese, ou seja, que as religiões não são fruto de uma tentativa de compreensão racional do universo, mas de paixões humanas primitivas e basilares, principalmente das paixões do medo e da esperança. A crença religiosa (e, por conseguinte, o politeísmo) origina-se do medo e do desconhecido e prospera em circunstâncias adversas de medo e ignorância em relação ao futuro. A crença religiosa acaba sendo uma escora psicológica importante para atenuar fracassos e fomentar esperanças.

A HNR é estruturada em 15 seções. Ao longo dessas seções identificamos três objetivos perseguidos por Hume. Na seção I e IV ele busca estabelecer que o politeísmo foi a primeira religião da humanidade, contrariando assim a tese judaico-cristã que postulava o monoteísmo como religião originária e o politeísmo como derivada dessa primeira. Nesse sentido, a idolatria será entendida como crença originária e não como crença secundária como pensavam os monoteístas. Para Hume o monoteísmo é um desenvolvimento posterior oriundo do desenvolvimento das sociedades e da própria razão humana. O argumento para justificar essa posição consiste em afirmar que, de acordo com o progresso natural do pensamento humano, os povos ignorantes devem, primeiramente, alimentar uma noção vulgar e familiar dos poderes superiores dos deuses antes de ampliar sua concepção para um ser perfeito, o qual teria conferido ordem à natureza. E, para exemplificar isso, Hume argumenta que os homens antes de construírem palácios possivelmente construíram cabanas e choças; antes de estudarem geometria provavelmente estudaram agricultura; nessa mesma linha de raciocínio, portanto, antes de conceberem uma divindade sob a forma de puro espírito, onisciente, onipotente e onipresente, os homens conceberam os deuses como poderosos mas limitados, dotados de paixões e apetites humanos (Cf. 2005, p.24-25). Para finalizar o argumento, Hume assevera que o espírito se eleva paulatinamente de um grau inferior para um grau superior. Nesse sentido, o homem, por meio da "abstração, forma, a partir do imperfeito, uma ideia de perfeição, e lentamente, distinguindo as partes mais nobres de sua própria constituição das mais grosseiras, aprende a atribuir à sua divindade somente as primeiras, as mais elevadas e puras" (2005, p.25). De acordo com a argumentação acima é aparentemente 221
"impossível que o monoteísmo possa ter sido, a partir do raciocínio, a primeira religião da raça humana, e tenha dado nascimento em seguida, por conta da sua corrupção, ao politeísmo e a todas as diversas superstições do mundo pagão" (Hume, 2005, p.28). Hume é o primeiro pensador a defender enfaticamente o politeísmo como religião originária e primitiva.

Nas seções II, III e V-VIII, Hume busca determinar quais os princípios psicológicos responsáveis pela crença religiosa. A religião é fruto dos instintos e paixões humanas. De acordo com Hume, as paixões que agem sobre os homens incultos são as paixões triviais da vida humana tais como, "a ansiosa busca da felicidade, o temor de calamidades futuras, o medo da morte, a sede de vingança, a fome e outras necessidades" (2005, p.32). Destarte, agitados por esperanças e medos, os homens examinam o curso das causas futuras e analisam a contraditoriedade e finitude da vida humana. E, nesse contexto desordenado e finito, eles observam os sinais obscuros da divindade. (Cf. 2005, p.32-33). Para ratificar essa tese Hume ainda postulará a ideia de que os homens, quando não afligidos pelo sentimento de medo, tendem a não temer tanto aos deuses. "Não existe prática mais comum do que exibir as vantagens da aflição, levando os homens a um verdadeiro sentimento religioso [...] que, nos tempos de prosperidade, fazem com que esqueçam a providência divina" (Hume, 2005, p.40). Os homens em tempos de prosperidade tendem a negligenciar e esquecer os deuses, ao passo que em circunstâncias de aflição, sofrimento, dor e indecisões futuras, eles tendem a adorar, venerar e louvar os deuses; num contexto contemporâneo e popular, o famoso "deus-quebra-galho".

Nas seções IX-XV o objetivo de Hume consiste em cotejar o politeísmo com o monoteísmo e demonstrar que um não é superior ao outro. Cada um tem suas próprias vantagens e desvantagens. De acordo com Hume, por um lado, o politeísmo tem por desvantagem ou inconveniência "poder autorizar qualquer prática ou opinião, por mais bárbara e corrompida que seja, e deixar uma ampla margem para que a velhacaria se imponha à credulidade, até fazer a moral e o sentimento desaparecerem dos sistemas religiosos dos homens" (Hume, 2005, p.75). Mas, por outro lado, o politeísmo possui a vantagem e a conveniência "de limitar os poderes e funções de suas divindades, admitir naturalmente os deuses de outras seitas e nações como partícipes da divindade e permitir a associação das diversas divindades entre si, bem como dos ritos, das cerimônias e das tradições" (Hume, 2005, p.75). Todavia, o monoteísmo é oposto ao politeísmo nas suas vantagens e desvantagens. Como o monoteísmo pressupõe apenas um ser divino, "que é a perfeição da razão e da bondade, ele deve, se corretamente seguido, banir dos cultos religiosos tudo o que há de frívolo, irrazoável e desumano, e dar aos homens os mais belos exemplos, bem como propor os motivos mais imperiosos de justiça e de benevolência" (Hume, 2005, p.76). Entretanto, essas vantagens podem ser anuladas ou diminuídas pelos inconvenientes vícios e preconceitos humanos. Uma vez que se admite um único objeto de devoção, adorar outras divindades é sinal de impiedade. A unidade de objeto de devoção exige simultaneamente a unidade da fé, e isso pode proporcionar "aos homens astuciosos um falso pretexto, que lhes permite retratar seus adversários como ímpios e como objetos da vingança divina, assim como da humana" (Hume, 2005, p.76). Disso segue que se nós tivermos que escolher entre politeísmo e monoteísmo, o primeiro deve ser preferido, pois o mesmo não produz tantas contradições, intolerâncias, injustiças e crueldades que o segundo produz.

Ler a HNR de Hume nos faz pensar seriamente sobre a religião de tal modo que, para aqueles que creem, a fé professada talvez possa tornar-se menos ingênua e mais esclarecida, e para aqueles que não creem ou se declaram agnósticos resta a sentença de Hume: " É tudo uma incógnita, um enigma, um mistério inexplicável. O único resultado de nossas investigações mais meticulosas sobre esse assunto (religião) parece ser a dúvida, a incerteza e a suspensão do juízo" (2005, p.126).

O livro que resenhamos, traduzido por Jaimir Conte, além da excelente tradução disponibilizada, traz notas elucidativas sobre o texto traduzido, notas biográficas da edição original, bem como um índice onomástico e uma breve seleção bibliográfica das obras de Hume e de seus principais comentadores em inglês e português.

 

Recebida em 15/08/12
Aprovada em 22/08/12