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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.19 no.2 São Paulo dez. 2017

 

DOSSIÊ

 

Inflexões fenomenológicas sobre a natureza humana

 

Phenomenological inflections about human nature

 

 

Suze Piza*

Universidade Federal do ABC (UFABC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de abordar os conceitos de natureza humana e mundo com base na filosofia de Hannah Arendt, evidenciando a articulação entre os conceitos de mal banal, pensamento e aparência. Isso exige uma reflexão sobre a maneira fenomenológica com que Arendt organiza a dinâmica de seu pensamento; levamos em conta ao usar o conceito de natureza humana, e não condição humana, a concepção antropológica de Winnicott, que de muitas maneiras pode ser trazida para pensar as questões que nos propusemos tratar neste texto.

Palavras-chave: mundo; natureza humana; condição humana; aparência; pensamento; mal banal.


ABSTRACT

Our purpose in this paper is to present the concepts of human nature and world based on the Hannah Arendt's philosophy, evidencing the articulation between the concepts of banality of evil, thought and appearance. This task demands some reflections about the phenomenological way than Arendt organizes her dynamic of her thinking. Our choice is to use the concept of human nature, instead the concept of human condition, because the Winnicott's anthropological conception, that can be setting in order to think about the issues presented in this paper.

Keywords: world; human nature; human condition; appearance; thought; banal evil.


 

 

O que se passou? Por que aconteceu? Como isso foi possível? Tais questões atravessam e orientam a obra de uma das principais filósofas do século XX. Hannah Arendt toma para si essas questões não para ir ao passado e lá repousar, mas para pensar o cerne do seu tempo, o perigo que ameaça a sua atualidade: a dominação total. A proposta da filósofa, à luz das reflexões de Heidegger, é fazer um diálogo violento com a tradição e recuperar experiências fenomênicas subjacentes aos conceitos mais tradicionais que orientavam a filosofia política naquele momento, construindo assim um ponto de vista privilegiado para pensar o totalitarismo. Escutar a tradição, sem se render a ela, e criar novas categorias de leitura do real, eis a tarefa.

Aqui, somos impelidos a pensar mais uma vez nessas questões se se quer discorrer sobre a natureza humana no século XXI. Afinal, vivemos novamente ou ainda em tempos sombrios. Segundo Arendt, a interrogação sobre o que aconteceu se vincula à tentativa de compreender o mal extremo, aquele que se infiltra no mundo quando o próprio mundo é abandonado, quando o espaço público-político deixa de existir – ou nem sequer é permitida sua construção, quando as pessoas se escondem nos refúgios privados, se isolam, são demitidas de si e desistem de pensar por si mesmas. Essas pessoas extremamente comuns são agentes humanos que cometem atos monstruosos: há uma implicação entre o mal extremo e a noção de natureza humana que será ponto de partida para nossa reflexão.

Ao contrário da tradição do pensamento ocidental em que aprendemos, afirma Arendt (2009, p. 18, grifos nossos), que

[…] mal é algo demoníaco […]. Diz-se que os homens maus agem por inveja […]. Ou podem ter sido movidos pela fraqueza (Macbeth). Ou ainda, ao contrário, pelo ódio poderoso que a maldade sente pela pura bondade […] ou pela cobiça, "a raiz de todo o mal" […]. Aquilo com que defrontei, entretanto, era inteiramente diferente e, no entanto, inegavelmente factual. O que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tornava impossível rastrear o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou em seus motivos, em níveis mais profundos. Os atos eram monstruosos, mas o agente – ao menos aquele que estava em julgamento – era bastante comum, banal, e não, demoníaco ou monstruoso.

Hannah Arendt insere uma inflexão na discussão sobre a condição humana que nos permite pensar os humanos de uma maneira distinta do que se fez até então, mesmo em relação às já consagradas naquele momento teses de Heidegger sobre o Dasein, a inautenticidade e a decadência dos humanos no século XX. Aqui ficará explícito um tipo de homem ainda não pensado, um agente cuja superficialidade da estrutura subjetiva é visível e que simplesmente recusa o pensar, e não pensando é responsável por atos inimagináveis. Esse humano não é estúpido nem perverso, para Hannah Arendt (2009, p. 28), a

[…] ausência de pensamento não é estupidez; ela pode ser comum em pessoas muito inteligentes, e a causa disso não é um coração perverso; pode ser justamente o oposto: é mais provável que a perversidade seja provocada pela ausência de pensamento.

Essa tese é resultado de uma descrição fenomenológica (nos moldes husserlianos) que Arendt faz no julgamento de Eichmann, metodologicamente a filósofa se senta, coloca o mundo entre parênteses, se volta às coisas mesmas, antes que os discursos estejam solidificados, e percebe no fenômeno intuições originárias. O resultado da visada fenomenológica evidencia para a filósofa que estamos diante de um verdadeiro inimigo da humanidade, pelas implicações de seus atos para o futuro,

O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado. (ARENDT, 2015, p. 299).

Diante desse humano, que não representa, segundo a tese de Arendt, um caso particular, mas um traço que atravessa a humanidade nas sociedades contemporâneas, o que fazer para evitar que algo assim ocorra de novo? Em suma: garantindo mundo. Não desertar do espaço público, pensar e ousar desobedecer são exigências para que soluções totalitárias não se tornem novamente aceitáveis e legítimas, o pensamento nasce de acontecimentos da experiência vivida e deve ser alimentado por essas experiências vividas ao longo da existência de cada um, isso só é possível em-um-mundo: lugar que foi forjado pelas nossas mãos, com uma infinidade de objetos produzidos que precisamos nos relacionar ao longo de vida e que é abrigo, ambiente imunológico, como diria Peter Sloterdijk, para que o humano – essa criatura mortal e vulnerável – seja. Em A Condição humana, fica evidente que os homens, a despeito de sua natureza sempre cambiante, possam recobrar a constância, a estabilidade e garantir sua identidade desde que se garanta que o mundo permaneça.

É nesse contexto que Hannah Arendt vai delinear o que podemos denominar natureza humana, ela reavaliará ontologicamente o mundo como espaço da aparência e, com isso, revelará facetas do que considerará ser, por extensão, a condição humana ou, se quisermos, a natureza humana, como ela mesma enuncia vez ou outra1. É na descrição da aparência e do seu tratamento teórico que a filósofa dará ao mundo uma das mais belas teses sobre os humanos, afinal de contas é no mundo, no espaço da aparência, que falamos e agimos uns com os outros: o humano para Arendt é sempre relacional, intencional, e isso só se faz em um mundo e entre outros humanos e humanas.

As teses antropológicas de Hannah Arendt são elaboradas com uma base histórica indiscutível: a tentativa organizada pelos regimes totalitários no século XX de erradicar o humano; a experiência profunda dos horrores do holocausto será chave para a filósofa compreender o que é o humano e, para nós, uma chave de entendimento profundo de tudo o que ela escreve depois e de uso dessas teorias para nos pensar hoje. Quem se debruça sobre as questões diante de tantos outros horrores já empenhados pelos humanos nas últimas décadas percebe uma diversidade ainda mais assustadora de tantas outras facetas do mal político descrito pelos textos de Arendt, o que nos possibilita descrever novamente o que é o humano em meio a novas tentativas de extermínio da humanidade, seja no holocausto, nas guerras mundiais, nas guerras civis, nos massacres ou pela implantação em larga escala da lógica do capital. Remonta-se a história sabendo o que ela é.

A leitura da obra de Arendt, proposta por nós, parte do pressuposto que todos os seus textos são complementos de As origens do totalitarismo de 1951. O termo origem ultrapassa a noção implícita no título dessa obra, afinal, a origem é também de temaproblema de todos os textos produzidos pela filósofa na sequência e que comporão seja como prolongamento, como correção, ou aprofundamento os temas ali já indicados formando uma totalidade (Crick, 1979).

O que nos propomos neste texto é apresentar em linhas gerais a tese de Arendt do mundo como aparência, tal como é apresentada na obra A vida do espírito e o entrelaçamento do aparecer aos conceitos de pensamento e mal banal, o intuito é inferir com base nesse entrelaçamento a noção de natureza ou condição humana.

Tal tese – e, consequentemente, tal obra – não pode ser compreendida fora do contexto teórico e histórico que enunciamos no início deste texto, afinal, é no processo de Eichmann e da obra que resulta do julgamento (Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal) como prolongamento peculiar de As origens do totalitarismo que Arendt se pergunta sobre a origem do mal político, denominado de mal banal. O conceito de banalidade do mal, inferido fenomenologicamente do processo jurídico acompanhado por Arendt, leva à pergunta sobre sua condição de possibilidade, ao que Hannah Arendt responderá com uma espécie de a priori histórico: a ausência do pensamento; o que indicará que há um novo tipo de homem que comete um novo tipo de crime e um novo tipo de mal.

 

Ser humano como dois-em-um: uma fenomenologia do pensamento

E se considerarmos a ausência de pensamento como a morte de um tipo de homem e consequente inauguração de outro tipo de humano? Qual papel ocupa o pensamento nessa definição de condição humana? Para nós, com Arendt, quando o humano pensa é humano como subjetividade ética e, portanto, capacidade de ser-com-o-outro, de responder ao mundo e amá-lo, quando não, são ainda humanos, mas "sonâmbulos", como afirma a própria Hannah Arendt (2009, p. 214). Está guardada na natureza humana, desse modo, o poder ser de várias formas.

Partindo do pressuposto que o pensar qualifica o humano que temos diante de nós, Arendt se propõe a dizer o pensamento, mas como fazê-lo com esse algo que nos escapa a todo momento, que é invisível? Apenas descrevendo-o, como nos aparece: aparência fenomênica. Para expor essa natureza (fenomênica) da faculdade do pensamento, Arendt faz uma distinção entre corpo, alma e espírito com o intuito de apontar em que medida a vida do espírito se manifesta diante dessa natureza; a filósofa descreverá como a vida do espírito está atrelada ao mundo vivido. O que resulta dessa descrição é a defesa de que a vida do corpo possui uma relação entre interior-exterior, por meio do que aparece e suas funções vitais internas, a vida da alma não possui essa relação interior-exterior, é uma vida psíquica que não leva em conta uma localização interna, mas entre um internoexterno e é pautada em metáforas que são retiradas de experiências e informações corporais.

Desse modo, corpo e alma não estão separados, e sim alojados um no outro, pois o que o corpo recebe vem pelos sentidos e são sentidos (experimentados) fisicamente e sentimentalmente concomitantemente. As vidas do corpo e da alma casam-se no mundo dado à experiência sensorial, como ao bater o pé em uma pedra sentimos dor-raiva; o que chamamos físico e sentimental acontecem no mesmo tempo sem separação. Mesmo nos casos em que aparentemente se tem "somente" uma experiência sentimental, percebemos que, para experimentarmos algo, essa experiência é sempre corporal, não há distinção, portanto, entre um e outro. Esse aspecto é importante, pois é necessário indicar que Arendt não percebe nunca o pensamento humano dissociado da esfera do aparecer, o pensamento é psicossomático.

Toda emoção é uma experiência somática; meu coração dói quando estou magoado, aquece quando sinto simpatia, abre-se nos raros momentos em que o amor e alegria me dominam, e sensações físicas similares apoderam-se de mim junto com a raiva, o ódio, a inveja e outros afetos. A linguagem da alma em seu estágio meramente expressivo, anterior à sua transformação e transfiguração pelo pensamento, não é metafórica; ela não se afasta dos sentidos, nem usa analogias quando fala em termos de sensações físicas. (Arendt, 2009, p. 49, grifos nossos)

O que interessa a Arendt na descrição do pensamento e, consequentemente de um dos modos de ser humano, é em especial os apareceres que são

[…] inerentes à condição paradoxal de um ser vivo que, ainda que parta do mundo das aparências, tem uma faculdade – a habilidade de pensar, que permite ao espírito retirar-se do mundo, sem jamais poder deixá-lo ou transcendê-lo. (Arendt, 2009, p. 62, grifos nossos)

E que isso se dá somente e apenas, como já indicado anteriormente, com o outro e não isolados, por conseguinte,

[…] nossa certeza de que o que percebemos tem uma existência independente do ato de perceber, depende inteiramente do fato de que o objeto aparece também para os outros e que por eles é reconhecido. Sem esse reconhecimento tácito dos outros não seríamos capazes nem mesmo de ter fé no modo como aparecemos para nós mesmos. (Arendt, 2009, p. 63)

Assim, pode-se afirmar que em um mundo de aparências, mesmo que repleto de erros e semblâncias (como temiam os inventores da separação entre mundo sensível e mundo inteligível), a realidade é garantida por uma comunhão de fatores: os cinco sentidos, inteiramente distintos uns dos outros; a realidade compartilhada dos que têm em comum os mesmos objetos, ou seja, os membros da mesma espécie que têm em comum o contexto que dota cada objeto singular de seu significado específico, bem como todos os outros seres sensorialmente dotados – que, embora percebam esse objeto a partir de perspectivas inteiramente distintas, estão de acordo acerca de sua identidade – somados à habilidade de pensar, de retirar-se do mundo sem transcendê-lo. O mundo das aparências descrito dessa maneira nos ajuda a compreender as noções de mundo e natureza humana nessa Filosofia (Arendt, 2009, p. 67).

Não somos isolados, essa é uma das facetas humanas mais fundamentais, e, quando estamos isolados, por circunstâncias históricas determinadas, algo se quebra. Estamos sós quando pensamos, no diálogo do dois-em-um, mas

O fato de que o estar-só, enquanto dura a atividade de pensar, transforma a mera consciência de si – que provavelmente compartilhamos com os animais superiores – em uma dualidade é talvez a indicação mais convincente de que os homens existem essencialmente no plural. E é essa dualidade do eu comigo mesmo que faz do pensamento uma verdadeira atividade na qual sou ao mesmo tempo quem pergunta e quem responde. (Arendt, 2009, p. 207)

O estar-só não é correlato de estar isolado, e sim é o espaço íntimo de um diálogo silencioso (mas não sem som), parte da experiência da chamada consciência, no sentido de conhecer comigo mesmo, que só é possível quando sou-para-mim. No mundo das aparências, apareço como um para os outros, logo, sou-para-o-outro, e na experiência da consciência apareço para mim mesma, sou também para mim. "[…] eu não sou apenas para os outros, mas também para mim mesmo; e nesse último caso, claramente eu não sou apenas um. Uma diferença se instala na minha Unicidade." (Arendt, 2009, p. 205). De acordo com Hannah Arendt, só é possível ser em si e para si em uma relação de doisem-um, expressada por Sócrates como a essência do pensamento. O dois-em-um possibilita a retirada do mundo em que se entra em contato com a consciência, assim que as atividades do mundo interrompem o processo de pensamento (diálogo), o dois-em-um torna-se um novamente. O dois-em-um é um estado existencial de estar-só, em que faço companhia para mim mesma, é a revelação da dualidade inerente à condição humana, que indica a pluralidade como essência, visto que a pluralidade é a lei da Terra.

Importante ressaltar que esse pensar, antídoto – segundo Arendt – para o mal do século XX (e, acrescentamos, XXI), cujo "portador" expressará as atitudes necessárias e eficazes contra a dominação total estruturada para destruir a natureza humana, não é o mesmo que conhecer, isto é, pensar não se confunde com o conhecimento sobre o mundo. Para Arendt,

[…] "conhecer" e "pensar" não podem ser aqui tomadas como equivalentes entre si, não mais do que em qualquer outro lugar. Estritamente falando, apenas o conhecer pode ter um objetivo […]. O pensar não tem um objetivo real e, a menos que encontre seu sentido em si mesmo, não tem absolutamente nenhum sentido. (Isso, evidentemente, aplica-se apenas à atividade de pensar em si, não ao escrever pensamentos, ato este que tem muito mais a ver com processos artísticos e criativos do que com o pensar em si. O escrever os pensamentos tem de fato um objetivo e um propósito; como todas as atividades produtoras, tem um começo e um fim.) Pensar não tem começo nem fim; pensamos enquanto vivemos, pois não podemos fazer de outra forma. (Arendt, 2008, p. 95)

E ainda,

O pensamento acompanha a vida e é ele mesmo a quintessência desmaterializada do estar vivo. E uma vez que a vida é um processo, sua quintessência só pode residir no processo real do pensamento, e não em quaisquer resultados sólidos ou pensamentos específicos. Uma vida sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos. (Arendt, 2009, p. 214)

É o pensamento que evitará que humanos sejam supérfluos, que seja erradicada sua espontaneidade e, principalmente, sua capacidade de serem iniciadores do novo, de novas cadeias causais. O conhecimento não provoca essa natalidade, nem garante que o mal seja evitado; apenas conhecer, mesmo o conhecimento filosófico consagrado, pode levar inclusive a uma falta de pensamento sobre o mundo, uma hostilidade à política e, destarte, à dissociação da experiência da comunhão entre as palavras e os atos. O conhecimento sem pensamento fez com que os filósofos desconfiassem do novo e os impossibilitaram, muitas vezes, de dar sentido aos acontecimentos.

Arendt alia suas considerações sobre o humano à decepção com a intelectualidade de seu tempo que participaram do mal absoluto de uma ou outra maneira, agindo diretamente ou com a conivência com o que ocorria, sendo, portanto, cúmplices sem que muitas vezes fossem sequer capazes de perceber o que estava debaixo de seu nariz: intelectuais cegos dos assuntos humanos2. É como expressa a fórmula de Kershaw: se a estrada de Auschwitz foi "traçada pelo ódio", ela foi pavimentada pela "indiferença", quando humanos que se demitem moralmente de si, externalizam imperativos morais, obedecem cegamente e causam em parceria com alguns agentes o mal absoluto pela mais contundente falência da capacidade de julgar e, portanto, da consciência moral.

Arendt identifica esse tipo de pessoa quando se manifesta nesses humanos, e no mundo vivido por eles, a eficácia das ações do mal extremo sem causa ideológica, ou o fanatismo que reproduz fórmulas discursivas gastas sem questionar pressupostos, os estereótipos reforçados sem reflexão e, principalmente, quando os humanos se veem desamparados diante daquilo que os desconcerta e se recusam a elaboração de qualquer juízo pessoal sobre o sentido do que está vivendo. Quanto mais superficial é a subjetividade, mais ela é suscetível a cometer o mal banal. O mal desafia o pensamento, paralisando-o, a fala desse tipo de humano é repleta de clichês que confortavelmente acomodam a racionalidade. Há, portanto, uma inabilidade de falar e, por conseguinte, inabilidade para o pensar.

É na descrição desse tipo de humano que às avessas termos outra concepção de humano, o que denominamos aqui subjetividade ética. A partir de uma descrição do agente imerso na banalidade do mal, que só foi possível, pois Arendt tinha um ponto de vista privilegiado de diferença que não pode ser assimilada, de apátrida, de refugiada, daquela que não tem direitos humanos. Um ponto de vista histórico-filosófico que não pode ignorar a massa de cadáveres que afronta a todos que pensam e os colocam em uma condição existencial (e epistemológica) determinada pela violência.

 

Ser humano como ser exposto: uma fenomenologia do aparecer humano

O que há de comum entre elas [coisas do mundo] é que aparecem e, por tanto, são próprias para ser vistas, ouvidas, tocadas, provadas e cheiradas, para ser percebidas por criaturas sensíveis, dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Nada poderia aparecer – a palavra "aparência" não faria sentido – se não existissem receptores de aparência: criaturas vivas capazes de conhecer, de reconhecer e de reagir […] não apenas ao que está aí, mas também ao que para elas aparece e que é destinado à sua percepção. (Arendt, 2009, p. 35, grifos nossos)

Essa afirmação de Hannah Arendt soa, atualmente, ainda mais lúcida. Nossa sensibilidade contemporânea está muito mais à vontade hoje defendendo a necessidade humana de se fazer visível de todas as formas por meio de um aparato tecnológico gerador de visibilidade e que reproduz as condições materiais de vida em conformidade com esse princípio quase hegemônico. Ler A vida do espírito hoje é abrir novos campos de sensificação para o que Hannah Arendt chamou a atenção no final de sua vida, pois a própria noção de estar vivo significa para ela "ser possuído por um impulso de auto exposição que responde à própria qualidade de aparecer de cada um" (Arendt, 2009, p. 37).

Independentemente da atualidade incontornável do aparecer humano em nossa era, e das novas conotações ainda impensadas, gostaríamos de chamar a atenção para a conotação que Arendt dará ao usar a semblância para delinear o que é, redundantemente, a condição humana no mundo – humanos que aparecem e desaparecem, mundo que aparece e permanece aparecendo. A filósofa afirma que

[…] todas as criaturas sensorialmente dotadas têm em comum a aparência como tal. Em primeiro lugar, um mundo que lhes aparece; em segundo lugar, e talvez ainda mais importante, o fato de que elas próprias são criaturas que aparecem e desaparecem, o fato de que sempre houve um mundo antes de sua chegada e sempre haverá um mundo depois de sua partida. (Arendt, 2009, p. 36)

A tese de Arendt sobre o humano entrelaça aparecer e desaparecer em um mundo que dá sustentação e permanência ao processo. O fato de que somente posso escapar da aparência para outra aparência demonstra que não há uma essência escondida por trás da realidade. Hannah Arendt pretende superar a teoria dos dois mundos (ideal e sensível) que fundou a tradição da Filosofia ocidental que relegou à Filosofia o lugar de estar bem longe de tudo que diz respeito à vida prática. Rompe-se aqui com a constatação da tradição de que o que quer que exista, enquanto desvela uma faceta, oculta outra, e ainda eleva a estatuto privilegiado o que não aparece. A leitura fenomenológica de Arendt permite que ela defenda que mesmo que algo se oculte, ainda assim, só é ocultação de aparência, ponto de vista daquilo que não é visto momentaneamente, mas poderia se déssemos um passo ao lado, ou compartilhássemos outras realidades,

[…] a predominância da aparência externa implica, além da pura receptividade de nossos sentidos, uma atividade espontânea; tudo o que pode ver quer ser visto, tudo o que pode ouvir pede para ser ouvido, tudo o que pode tocar se apresenta para ser tocado. De fato, é como se tudo o que está vivo – para além do fato de que sua superfície é feita para aparecer, é própria para ser vista e destinada a aparecer para os outros – possuísse um impulso para aparecer, para adequar-se a um mundo de aparências, apresentando e exibindo não seu "eu interno", mas a si próprio como indivíduo. (Arendt, 2009, p. 46, grifos nossos)

Portanto, é preciso insistir que há uma predominância do aparecer nessa concepção de humano, pois aquele que vê, quer ser visto… O que aparece não é um eu interno, mas a singularidade dos humanos no espaço da realidade compartilhada. Isso nos permite dizer até aqui que a noção de natureza humana (subjetividade ética) para Arendt é:

a) estar-com-o-outro nos espaços compartilhados pela pluralidade humana;

b) aparência que quer ser vista, escuta que quer ser escutada, afeto que quer ser tocado;

c) ser-para-si-mesmo ao pensar o mundo vivido e assumir responsabilidade com ele.

Em As origens do totalitarismo (2012, p. 582), Arendt define categoricamente o totalitarismo como projeto de extermínio da natureza humana, trata-se de eliminar sumariamente a espontaneidade e a liberdade, de fazer os humanos tornarem-se coisas descartáveis, de eliminar a pluralidade como se todos fossem um e apenas um grande homem sem diferenciação e sem singularidade e, portanto, desaparecendo.

Intercambiamos neste texto natureza humana e condição humana, cabe, portanto, um esclarecimento que justifique esse uso. Para pensar essa similitude no âmbito da Filosofia de Arendt e, mais ainda, nosso uso hoje, é importante remontar a uma de suas principais obras, A condição humana, na qual se explicita as chamadas condições de ser humano.

Arendt defende que a vida humana se estrutura a partir de três condições de possibilidades fundamentais, a saber: o labor, o trabalho e a ação. O labor é o próprio processo vital do ser humano pelo qual a espécie sobrevive, ou seja, as formas como o organismo humano opera para se manter vivo. O trabalho é a condição humana da mundanidade, haja vista que é por meio do trabalho que o homem cria o mundo e seus objetos com os quais se relaciona e faz mais mundo. Os produtos gerados pelo trabalho não estão condicionados ao processo vital, pois existem antes de virmos ao mundo e permanecem quando saímos dele. Fazem parte, portanto, não da natureza – em sentido estrito, mas da cultura e da artificialidade.

A última condição enunciada por Arendt e mais importante será a ação que se diferencia ontologicamente das atividades citadas anteriormente. Isso porque as características que a compõem são diversas do labor e do trabalho. A ação é a única atividade exercida entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, sendo sua condição humana a pluralidade dos homens. É com essa condição que os humanos conseguem conceber e criar o novo, isto é, desencadear novas cadeias causais. Por isso, é considerada a única que é inerentemente política, pois se empenha em fundar e preservar os corpos políticos para a memória, ou seja, para a História, e preserva a pluralidade humana. Nos coloca, como humanos e humanas, entre o passado e o futuro.

A descrição acima se vincula ao estar-com-o-outro já indicado anteriormente, mas acrescenta a dimensão fundamental da ação na vida humana. Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos; mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens. A atividade do labor não requer a presença de outros, mas um ser que "laborasse" em completa solidão não seria humano, e sim um animal laborans no sentido mais literal da expressão. Um homem que trabalhasse e fabricasse e construísse num mundo habitado somente por ele mesmo não deixaria de ser um fabricador, mas não seria um homo faber, pois teria perdido a sua qualidade especificamente humana. Só a ação é prerrogativa exclusiva do humano, nem um animal nem um deus é capaz de ação, e só a ação depende inteiramente da constante presença de outros (Arendt, 2007, p. 31).

Dessa maneira, Arendt conclui que a ação é a atividade capaz de permitir a liberdade. Na perspectiva arendtiana, a liberdade é dúbia, pois é concebida tanto como critério para ação quanto como atividade e escopo da mesma. A liberdade enquanto critério exige que o homem esteja livre de qualquer necessidade humana, tais como o compromisso da manutenção da vida ou das coisas mundanas. Além disso, por ser a única atividade que é prerrogativa do homem, é apenas por meio da ação que o homem pode discursar e pensar publicamente. Dessa maneira, a ação, por nos permitir criar o novo, tem como escopo a liberdade. Em outras palavras, agimos para usufruirmos da liberdade de sermos quem somos e nos expressarmos na busca por estabelecer novas cadeias causais. Desse modo, quando agimos, estamos exercendo a liberdade e a própria política.

De um ponto de vista fenomenológico, o conceito de natureza não fere em nada a compreensão de condição humana, pois mesmo sendo natureza é sempre natureza-paraalguém e natureza-em-um-contexto e para-o-outro, o que faz com que os termos sejam facilmente intercambiáveis. Se pensarmos que com Winnicott que a natureza humana é tudo que possuímos, nunca compreenderemos o conceito de natureza humana em termos meramente objetivos ou ainda a-históricos, sem mundo, portanto.

O pensamento que julgamos mais interessante para pensar o humano não só nega que exista uma natureza humana fixa e universal, mas tende, sobretudo, a definir o humano mais com referência ao inumano do que ao não humano. Ou seja, o termo natureza humana ou condição humana em Arendt se defronta com o inumano incapaz de ética, com a entificação do humano e não na diferença com o não humano. Não se trata tão-somente de um jogo retórico, pois o não humano diz respeito – pelo menos tradicionalmente – ao animal. O inumano, de outro lado, acena para uma negação do humano que é interna ao mundo humano. A barbárie de Auschwitz serve de exemplo, dentre infelizmente, muitos outros, de inumanização – ou, se preferirmos, criação de outros tipos de humanos. Os projetos de extermínio e de dominação total colocam a natureza humana em um novo contexto semântico, pois é como se a natureza humana fosse uma questão que não tem a ver com o lugar da espécie humana na classificação do mundo dos seres vivos, mas sim com o modo como os humanos se colocam diante do mundo, de si mesmos o paradoxo da sua própria humanidade e a questionam.

Há uma indecidibilidade semântica que será paradoxal, pensar o impensável, pois justamente uma das coisas esperadas da expressão natureza humana é que ela estabelecesse algo irredutível que pudéssemos chamar humanos. Ao substituir várias vezes o conceito clássico de natureza humana pelo de condição humana, Arendt nos faz pensar na condição humana em termos de uma pluralidade de seres singulares, expostos um-ao-outro e, por isso mesmo, vulneráveis. O humano é o exposto. O exposto ao outro, isso tem uma série de consequências, inclusive, uma das que mais nos ocupa na contemporaneidade: a violência. Somos passíveis pela exposição-vulnerabilidade à violência.

E, aqui, é possível já acrescentar mais dois traços da natureza humana (ética) apresentada por Arendt:

a) somos ação, agimos entre nós humanos e criamos o novo, ao fazer isso somos espontâneos e livres;

b) somos vulneráveis e frágeis e por isso suscitamos obrigação ética ou o seu contrário, a violência extrema;

Tal é nossa natureza.

 

Pensar com Winnicott

Não é nossa intenção neste texto aproximar Hannah Arendt e Winnicott. Se o fosse, não faltariam elementos para tanto, mundo-ambiente, vulnerabilidadedependência, ação-gesto espontâneo, esfera pública-espaço potencial, e o mais importante: o mesmo modelo teórico-epistemológico. O que gostaríamos de fazer é trazer Winnicott para pensar o mesmo problema e nos ajudar nessa reflexão.

Para Winnicott, o humano é o ente que acontece no tempo (ou um acontecente – "uma amostra no tempo da natureza humana"), impelido por uma tendência inata ou herdada para integração pessoal e para o amadurecimento (filogênese) que só se realiza na relação com um ambiente humano facilitador (ontogênese). O animal humano3 é o acontecente que constitui a si mesmo, que desfruta de si mesmo, e isso não se dá apenas em um âmbito biológico ou genético, Winnicott afirma que a integração pessoal é distinta do crescimento corpóreo, e que a primeira é uma ação de formação de si, de criação de experiência pessoal que resultará, se tudo correr a termo, em um si mesmo espontâneo.

A integração pessoal é uma experiência interna do animal que está se humanizando condicionado de maneira intencional ao que é "externo". A determinação genética é um fator externo ao indivíduo, pois ela já está lá, antes mesmo de ele existir como eu, mas não dissonante da integração pessoal, visto que uma não integração pode prejudicar também o crescimento corporal. No entanto, uma boa carga genética ou condições biológicas satisfatórias não garantem em nada que a integração ocorra e o animal humano se torne um eu. O animal humano "é físico, se visto de um certo ângulo, psicológico, se visto do outro". O corpo físico, como tal, é externo à natureza humana. Esta não é psicofísica, e sim psicossomática. Quanto à mente, ela é "uma ordem à parte, e deve ser considerada como um caso especial do funcionamento do psique-soma". Em suma, o animal humano é uma unidade só em um psique-soma, "com a mente florescendo na beira do funcionamento psicossomático". O psique-soma forma "o único lugar" a partir do qual um indivíduo "pode viver". O corpo é a casa onde o animal humano torna-se o si-mesmo, capaz de fantasiar, ter emoções e ter vida cultural, incluindo a arte, a religião e a filosofia. Quando o animal humano se estabelece como eu, em oposição ao não-eu, e se desenvolve como Eu sou, eu existo, reúne as experiências e se enriquece, tornando-se capaz de interagir com aquilo que não é eu, ou o mundo efetivamente real. Esse si mesmo individual é um poder ser que só se constitui aos poucos, ao longo do amadurecimento, a fim de poder, uma vez alojado no corpo e apoiado no ego corpóreo, assumir a responsabilidade pela coleção de lembranças, sentimentos e instintos que o habitam.

O animal humano é solitário, mas ao mesmo tempo consubjetivo. Inicia sua jornada na solidão e deve ser capaz de ficar só e usufruir da solidão e com uma dependência absoluta do ambiente (que no início da vida não se distingue dele) e se tudo correr a termo, termina sua jornada também solitário, mas com uma independência relativa. Essa solidão não é solipsista, é consubjetiva, não é isolamento, portanto. É um estar só que implica a presença de alguém, a relação com outrem. Esse acontecente é uma ponte entre a vida e a morte que, na medida do seu acontecer, tem a tarefa de unir a si mesmo (tornar-se um) e ao mundo que habita, tornando-se diferente dele, mas nunca totalmente dissociado dele, ele-é-no-mundo. Essa consubjetividade é esse ato de ser humano para o outro, a consubjetividade essencialmente uma presença corpórea, pois, além de respirar, tocar e manusear, existem inúmeros outros modos de estar junto com os outros, como crescer e envelhecer com os outros, comunicar-se com os outros, todos eles essencialmente "psicossomáticos". Assim é o animal humano, sem isso, não é.

Winnicott se refere ao humano com o conceito animal humano apenas em três obras, O ambiente e os processos de maturação, Tudo começa em casa e Natureza Humana. Mas o conceito guarda a força da sua significação e atravessa toda obra de Winnicott. Como afirma Winnicott,

Pode-se dizer com segurança que a fantasia mais próxima do funcionamento corporal depende da função daquela parte do cérebro que em termos evolutivos, é a menos moderna, enquanto a consciênciade-si depende de o funcionamento daquilo que é mais moderno na evolução do animal humano. A psique, portanto, está fundamentalmente unida ao corpo através de sua relação tanto com os tecidos e órgãos quanto com o cérebro, bem como através do entrelaçamento que se estabelece entre ela e o corpo graças a novos relacionamentos produzidos pela fantasia e pela mente do indivíduo, consciente ou inconscientemente. (Winnicott, 1988, p. 53; trad. bras., 1990, p. 70)

O humano para Winnicott é espontâneo, ele não é, nem empurrado por forças, ele acontece porque tem-que-acontecer, porque, por essência, é acontecencial, sendo essa acontecência estruturada, na origem, por um trabalho da psique sobre o corpo. Psique e soma estão, portanto, relacionados, há um alojamento de um no outro. A animalidade desse animal não advém do seu lado físico, mas do seu elemento somático, da "anatomia viva". A sua humanidade é devida à psique. "Os tecidos são vivos, eles são parte do animal inteiro [of a whole animal] e são afetados pela variação dos estados da psique desse animal" (Winnicott, 1988, p. 26; trad. bras., 1990, p. 44). O soma winnicottiano não é o corpo físico, é o corpo vivo personalizado, de modo que tudo o que Winnicott tem a dizer sobre ele está contido nas seguintes palavras: "resultados da elaboração imaginativa", o mero funcionamento corpóreo e mesmo cerebral não define o surgimento de uma pessoa humana. Mas os começos desta tampouco são caracterizados pelo funcionamento meramente mental. O animal humano dá sentido a si, aos movimentos do seu corpo e ao mundo.

O animal humano não definido por Winnicott nos termos da psicanálise tradicional como um "aparelho psíquico" nem da psicologia tradicional como um "aparelho fisiológico", mas como uma pessoa que é, existe, e pode deixar de ser (uma natureza que pode deixar de ser), pois está sempre na relação com o mundo que lhe é constituidor e que pode lhe oferecer mais ou menos do que é necessário para ele seja. O animal humano está entre o passado, o presente e o futuro, entre as partes do corpo, entre o indivíduo e o ambiente, entre a vida e a morte, entre o ser e o não-ser. O homem é homem-hífen, homem-ponte, homem-relação, interpelado por essas diferenças e, por isso, responsável por elas, tendo a sua unidade na articulação dos diferentes "sins" e "nãos" de que é feito.

Na obra Tudo começa em casa o conceito aparece atrelado à ideia de luta:

[…] quando se trata, pois de elaborar uma declaração sobre os fins da guerra, só podemos estar seguros de uma coisa: se queremos sobreviver, temos que estar dispostos a lutar. Porém, não só estamos dispostos a lutar: também intentamos praticar a liberdade que tanta dignidade confere ao animal humano. Se pensamos que somos mais amadurecidos que nossos inimigos, podemos aspirar que o mundo nos olhe com simpatia, porém ainda assim temos que estar dispostos a lutar e a morrer se necessário. (Winnicott, 1986b, p. 219, tradução nossa)

O animal humano é não apenas ente, mas um tipo específico de ente, um acontecente que pratica a liberdade no seu caminho de constituição.

 

Considerações finais

A complexidade de ousar pensar o humano no século XXI exige novos referenciais teóricos-metodológicos e, principalmente, novas maneiras de manipular os referenciais que temos e ainda nos são úteis. O pensar com Hannah Arendt e Winnicott é um exemplo de como se pode se relacionar com a tradição sem se render a ela, principalmente quando se trata de duas teorias produzidas de maneira independente e que tiveram como base categorias totalmente revolucionárias tanto do ponto de vista de conteúdo, quando de forma.

As concepções de humano de H. Arendt e Winnicott foram concebidas tendo como ponto de partida e razão de ser a resolução de problemas concretos e contemporâneos, nossos problemas ainda. Em Winnicott, o que se coloca é o problema da natureza e da etiologia dos distúrbios psicóticos, o que faz com que ele infira uma teoria da saúde a partir de uma teoria da psicose. Em Arendt, o que se coloca é o problema da natureza e origem do mal político ou mal extremo, o que faz com que ela infira uma teoria política pautada na liberdade a partir de uma teoria política totalitária e moderna.

Estamos dispostos a admitir que as soluções tanto de Winnicott quanto de Hannah Arendt para esses problemas deixaram muitas perguntas sem respostas e muito trabalho por fazer, principalmente se considerarmos mais uma vez os recursos epistêmicos da fenomenologia e concebermos que todo fenômeno é inesgotável. Entendemos, porém, que não pode haver dúvida razoável quanto ao compromisso de Winnicott e Hannah Arendt com a produção de pensamento que tenha valia para o mundo que vivemos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Suze Piza
E-mail: suze.piza@ufabc.edu.br

 

 

* Professora no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do ABC (UFABC).
1 Os conceitos de natureza humana e condição humana podem ser intercambiáveis se pensarmos a partir do referencial teórico fenomenológico ou se considerarmos com Winnicott que a natureza humana é tudo que possuímos.
2 Essa é uma das razões de Hannah Arendt muitas vezes se declarar como uma teórica da política, mas não como filósofa política.
3 Ver o artigo de Loparic, 2000.

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