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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva

versão impressa ISSN 1517-5545

Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.8 no.2 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

História e historiografia da ciência: considerações para pesquisa histórica em análise do comportamento1

 

History and historiography of science: consideration for historical research in behavior of analysis

 

 

Robson Nascimento da Cruz2, 3

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Unidade São Gabriel

 

 


RESUMO

É evidente o crescente interesse de analistas do comportamento pela história da disciplina e, conseqüentemente, pela pesquisa histórica. Nessa perspectiva, este trabalho se propõe a discutir algumas considerações sobre a história da ciência e a historiografia da ciência, com intuito de trazer contribuições dessas disciplinas para a pesquisa histórica em análise do comportamento. Para isso, são apresentadas algumas questões centrais nas discussões e produção sobre a história da ciência e historiografia da ciência, como a querela internalismo X externalismo, o uso de formulações presentistas que recorrem ao conhecimento atual de uma disciplina científica de forma tendenciosa e a definição de fontes históricas. Ao mesmo tempo, recorrer-se-á a exemplos de pesquisas históricas em análise do comportamento e behaviorismo para exemplificar e discutir alguns aspectos críticos que envolvem esse tipo de investigação.

Palavras-chave: Análise do comportamento, História do behaviorismo, Pesquisa histórica, Historiografia da ciência.


ABSTRACT

The increasing interest of behavior analysts for the history of this discipline and, consequently, for historical research. Thus, this work is aimed at discussing some considerations about history and historiography of science, with the intent of bringing contributions from these disciplines to the historical research in beharior analysis. For this, some key issues and the production on the history of science and historiography of science will be presented, such as, the complaint on internalism X externalism, the use of whiggist formulations which appeal to the current knowledge of a scientific discipline on a biased approach, and to the definition of historical sources. At the same time, examples of historical research in behavior analysis and behaviorism will be raised to argue on some critical aspects that involve this type of inquiry.

Keywords: Behavior analysis, History of the behaviorism, Historical research, Historiography of science.


 

 

A partir da década de 1950, a análise do comportamento nos Estados Unidos expandiu-se, e as pesquisas em análise do comportamento aplicada e pesquisas teórico-conceituais tornaram-se, respectivamente, ramificações da análise experimental do comportamento e de sua filosofia, o behaviorismo radical. Segundo Morris, Todd, Midgley, Schneider e Johnson (1990), esse desenvolvimento da análise do comportamento pode ser verificado pelo surgimento respectivo dos periódicos Journal of Experimental Analysis of Behavior (JEAB) em 1958, Journal of Applied Behavior Analysis (JABA) em 1962, Behaviorism (atual Behavior and Philosophy ) em 1972, além da fundação da Association for Behavior Analysis (ABA) e seu periódico The Behavior Analyst em meados da década de 1970 - o que representa uma coerência interna da análise do comportamento como disciplina e comunidade científica preocupada com as dimensões: experimental, aplicada e teórico-conceitual.

No Brasil, a análise do comportamento dá os seus primeiros passos na década de 1960 com as aulas do professor F.S. Keller na Universidade de São Paulo e a subseqüente criação dos programas de pós-graduação em psicologia experimental na USP e UNB (Matos, 1996). De acordo com César (2004), desde esse período há, no Brasil, um aumento constante da produção de conhecimento na área. Revistas como Psicologia (1975-1987), Ciência e Cultura (1961-2001), Modificação do Comportamento (1976-1980) revista da extinta Associação de Modificação do Comportamento que foi substituída pela revista Cadernos de Análise do Comportamento (1981-1985) foram os principais periódicos a publicarem trabalhos comportamentalistas a partir da década de 1960. As revistas Psicologia: Teoria e Pesquisa , Psicologia: Reflexão e Crítica , Temas em Psicologia , revista da Sociedade Brasileira de Psicologia, Psicologia USP, entre outras, também se tornaram importantes veículos de publicação para analistas do comportamento a partir da década de 1980. Atualmente, dois periódicos nacionais são dedicados exclusivamente a publicações de trabalhos na área, a Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, revista da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental – ABPMC, lançada em 1999, e a Revista Brasileira de Análise do Comportamento (REBAC) lançada em 2004. Observa-se, também, um aumento significativo de publicações de livros, criação de programas de pós-graduação strictu e lato sensu e a realização periódica de eventos científicos nacionais e regionais no Brasil, nas últimas décadas.

O trabalho de César (2004), que expõe uma revisão da produção de conhecimento em análise do comportamento nas últimas quatro décadas no Brasil, a partir de publicações, mostra como se deu o desenvolvimento das áreas de pesquisa básica, aplicada e teórico-conceitual, e destaca que, nesta última área, é observado um aumento significativo de publicações nas últimas décadas, principalmente, de trabalhos voltados para análises históricas e conceituais da disciplina. Micheletto et.al. (2004) ao realizarem uma análise de alguns aspectos da produção de teses e dissertações em três centros de formação (USP, PUC-SP e UFPA) em análise do comportamento no Brasil, também detecta o crescimento da produção de trabalhos direcionados para esse tipo de investigação a partir do final da década de 1980.

Para Morris et.al.(1990), a expansão da análise do comportamento é acompanhada de uma preocupação cada vez maior de pesquisadores da área em organizar e examinar materiais históricos. Como exemplo, citam a produção de bibliografias do trabalho de abordagens particulares, gráficos do desenvolvimento da análise do comportamento, citações dos aspectos mais relevantes da disciplina, a publicação de trabalhos biográficos e autobiográficos de autoridades do campo, entre outros.

Levando-se em conta esse crescente interesse de analistas do comportamento em estudar a história da disciplina, pretende-se, neste trabalho, apresentar alguns tópicos que podem ajudar diretamente na pesquisa histórica em análise do comportamento e behaviorismo. O que é história da ciência e historiografia da ciência? O que são fontes históricas? Quais são os elementos críticos na pesquisa histórica? Essas são algumas das questões que serão discutidas neste artigo, com o objetivo de contribuir para uma elucidação inicial desses pontos que podem ser úteis tanto para interessados no desenvolvimento de trabalhos historiográficos da análise do comportamento quanto para estudiosos em geral da disciplina.

 

Um pouco de história e historiografia da ciência para analistas do comportamento

A história pode ser considerada o conjunto de acontecimentos, situações e fatos que ocorreram no passado, e a historiografia pode ser definida como a produção dos historiadores, o discurso sobre a história. Discurso este essencialmente apresentado através do texto escrito, que tem como objetivo expor uma interpretação sobre os fatos históricos. (Martins, 2004).

Como principais propósitos da historiografia, Morris et.al. (1990) afirmam que ela pode ser útil para evitar repetir erros do passado; é extremamente importante na resolução de problemas metodológicos e conceituais que uma disciplina enfrenta no presente; possibilita, através da análise da origem de determinadas questões, observar como uma área do conhecimento trilhou certos caminhos; é eficaz na identificação das diversas influências sociais, políticas, econômicas e pessoais que um cientista ou ciência sofreu, entre outras funções.

Historiografia é, então, a escrita da história, mas ela não é apenas isso. A historiografia é uma disciplina preocupada com a pesquisa histórica em si; em como fazer a coleta de dados; quais os critérios de escolha dos dados; como analisar; qual orientação teórica utilizar. Todas essas e outras mais são questões que envolvem o trabalho historiográfico ou meta-historiográfico, uma reflexão sobre a atividade dos historiadores, como alguns historiadores preferem denominar (Martins, 2004). Assume-se, portanto, que a pesquisa historiográfica, como qualquer pesquisa em qualquer campo do conhecimento, irá definir critérios arbitrários para direcionar sua investigação. Critérios esses que estão baseados na concepção epistemológica e científica que se tem do objeto de estudo e da própria história.

Do mesmo modo que os analistas do comportamento adotam uma noção de comportamento ao estudarem esse fenômeno, o trabalho historiográfico requer, a priori, uma noção do que seja a história, o que significa que o historiador, no caso de uma ciência, ao realizar uma pesquisa, tem um conceito de história e de ciência, embora nem sempre o historiador tenha consciência dessa variável que controla seu comportamento como historiador. Como Martins sugere (1993): “Os pontos de vista abordados trazem consigo uma mensagem metodológica ou historiográfica, implícita ou explícita, associada ao enfoque adotado. A atitude transmitida depende da visão historiográfica. (...) e ela pode ser não consciente.”(p.78)

Uma descrição histórica de qualquer área do conhecimento é, portanto, uma interpretação da história dessa área. Com isso, tem-se, por exemplo, histórias do behaviorismo e não a história do behaviorismo. A importância de tal asserção, aparentemente óbvia, é que toda interpretação histórica está comprometida com certos pressupostos, está fundamentada em preceitos filosóficos, culturais, pessoais e científicos, no caso da história de uma ciência. Então, é fato que toda reconstrução histórica é parcial e enviesada.

Em termos comportamentais, poderíamos dizer que a história de uma ciência é a história do comportamento dos cientistas e do contexto social em que a ciência foi constituída, e a historiografia de uma área do conhecimento estaria relacionada ao comportamento dos historiadores de uma ciência. Então, como nenhuma pessoa apresenta uma história comportamental idêntica à outra, nenhum historiador irá escrever a história de maneira idêntica a outro historiador. Todavia, isso não quer dizer que não haja um padrão do comportamento textual nas descrições e interpretações da história de uma ciência. E nem muito menos que essa variabilidade no comportamento dos historiadores seja um problema.

Para entender um pouco dos padrões tradicionais da história da ciência, faz-se necessária uma sucinta digressão. Uma breve retrospectiva em estudos da história da ciência revela que a história de uma disciplina científica é, em geral, realizada inicialmente por eminentes cientistas de um determinado campo do conhecimento, e são histórias que têm como função legitimar um campo disciplinar, a história é nesse caso uma espécie de mero “produto colateral pedagógico” (Kuhn, 1989). Histórias contadas pelos cientistas para demonstrar o desenvolvimento vitorioso de sua área, as histórias apresentadas na introdução de manuais técnicos e científicos são um ótimo exemplo desse tipo de padrão historiográfico da ciência.

Os estudos históricos sobre a ciência surgiram e tiveram - desde o Renascimento até o início do século XX - como uma de suas principais características ser uma espécie de Biografia Heróica ; o historiador em muitos casos um cientista, fazia, em geral, narrativas de histórias sempre bem-sucedidas de um cientista e/ou área do conhecimento. A história estava em consonância com uma visão iluminista de ciência; a história da ciência era citada como fonte e exemplo do progresso do homem moderno. Essa é a história como nos foi ensinada (Morris et.al., 1990). Outra tradição historiográfica contemporânea e complementar a essa foi caracterizada pelo uso da história para o maior conhecimento da natureza. Francis Bacon e Auguste Comte são os mais famosos autores dessa abordagem que destacava, principalmente, os objetivos filosóficos dessa historiografia, que eram a exaltação da ciência e do conhecimento positivo como um processo cumulativo e progressivo.

Essa “antiga” história da ciência pretendia tornar claros os métodos ou conceitos científicos daquele período mediante a exposição de sua evolução linear (Kuhn, 1989/1977). Essa visão de história que surge como um subproduto da ciência moderna entre os séculos XVII e XVIII, tornando-se predominante no século XIX, caracteriza-se como uma espécie de positivismo histórico. De acordo com Reis (2004), nesse período a história, e não só a história da ciência, emancipa-se do idealismo e converte-se em uma história científica. Noutras palavras, a história, assim como as demais áreas do conhecimento do século XIX, aspirava ser uma ciência eminentemente positiva. “A história científica quer ser “objetiva”, isto é, quer formular enunciados adequados ao seu objeto e que sejam válidos para todo tempo e lugar, como ela estimava que faziam as ciências naturais”. (Reis, 2004, p.10)

Com essa concepção, o historiador analisava a história como uma marcha mecânica que seguia de forma inexorável em direção ao progresso. O trabalho do historiador da ciência era descrever uma área do conhecimento já bem estabelecida, geralmente a Astronomia, Física ou Química, demonstrando a transformação dos métodos, conceitos e processos de descoberta científica através de seus aspectos racionais. Nessa perspectiva, a ciência era analisada como tendo um fim em si mesma, e isenta de influências externas à própria ciência. Essa perspectiva histórica da ciência teve como seu principal foco de estudo as revoluções científicas que ocorreram entre a idade média e a idade moderna e cientistas como Galileu, Copérnico, Kepler e Newton, entre outros, foram os principais personagens dessa história.

Mas é a partir do século XX que a história da ciência deixa de ser um trabalho secundário de cientistas e filósofos e passa a se constituir como uma disciplina profissionalizada, produzida por pessoas que se dedicam à história da ciência como uma disciplina acadêmica. Contudo, na atualidade não é incomum que historiadores da ciência tenham uma formação preliminar em áreas científicas antes de se dedicarem à história da ciência.

De acordo com Christie (1990), é após a segunda guerra mundial que a história da ciência expande-se como disciplina acadêmica, formando especialistas, departamentos, associações e a publicação de periódicos especializados. No entanto, Christie (1990) afirma que esse processo teve início ainda na primeira metade do século XX e destaca como marco do surgimento dessa disciplina a criação, em 1912, da famosa revista Isis, que permanece até hoje como um dos principais periódicos de história da ciência.

Nesse cenário, destaca-se o historiador russo Alexandre Koyré como personagem fundamental na constituição da história da ciência como disciplina acadêmica no século XX. Koyré tornou-se um importante modelo intelectual para os jovens historiadores da ciência. Seu trabalho foi caracterizado pela cuidadosa análise da estrutura conceitual do texto de cientistas como Newton e Galileu, formulando uma historiografia com forte inclinação idealista –; para ele, a ciência era um tipo de pensamento puro (Christie, 1990). Entre as décadas de 1940 e 1960, Koyré trabalhou na França e nos Estados Unidos, onde suas idéias exerceram enorme influência, e contribuíram, de forma decisiva, para expansão da história da ciência como disciplina independente, principalmente, nos Estados Unidos.

Koyré é, portanto, o fundador da moderna historiografia da ciência, tradição essa que é denominada de história interna da ciência. Interna porque busca na própria teoria explicar a estrutura histórica da ciência. Para Koyré (1930/1982), a ciência é “(...) essencialmente Theoria, busca da verdade, e que, por isso, ela tem e sempre teve uma vida própria, uma história imanente, e que é somente em função de seus próprios problemas, de sua própria história, que ela pode ser compreendida”. (p.377). Praticantes da história internalista da ciência como Kóyre diminuíram naturalmente a importância dos aspectos não racionais e não intelectuais da sociedade nas considerações sobre a história daquela ciência que investigavam (Kuhn, 1989). A estrutura social onde o cientista está inserido não é o foco nesse tipo de interpretação da história da ciência.

Não é a estrutura social da Inglaterra no século XVII que nos pode explicar Newton, nem é a da Rússia de Nicolau I que pode lançar alguma luz sobre a obra de Lobatchevski. Esta é uma empresa inteiramente quimérica, tão quimérica quanto querer predizer a futura evolução da ciência ou das ciências em função da estrutura social ou das estruturas sociais de nossa sociedade ou nossas sociedades. (Koyré, 1982, p.377)

Embora possa parecer, à primeira vista, um tanto extremista, essa postura internalista da história da ciência não deve ser considerada inválida nem totalmente ingênua; pode-se, sim, pensar que essa história apresenta um reducionismo ao não dar ênfase aos fatores externos à ciência. O que não significa que autores como Koyré desconsideravam fatores sociais e políticos; no entanto, esses não eram essenciais para uma investigação histórica da ciência.

Note-se que o sentido da expressão internalismo aqui é diverso daquele utilizado pelos behavioristas radicais e analistas do comportamento. Internalismo, no caso da história da ciência, significa uma análise da história da ciência a partir de seus aspectos racionais, ou seja, uma investigação preocupada com a construção lógica dos conceitos e métodos científicos. Mas é preciso observar que autores como Koyré não eram completamente inocentes em relação à sua concepção histórica da ciência. No mínimo dois aspectos positivos merecem destaque nas suas formulações internalistas: o primeiro é que a busca pela compreensão dos aspectos racionais de uma ciência é importante para entender as transformações que uma ciência sofreu, mesmo que esses não sejam suficientes para uma explicação complexa do fenômeno histórico e científico, e o segundo é a relevância dada por ele ao papel da interpretação nos estudos históricos da ciência, em vez de uma busca da história como ela “realmente” aconteceu. Para ele:

A história não é inalterável. Modifica-se, à medida que nos modificamos. Bacon era moderno quando a maneira de pensar era empirista. Mas não o é mais, numa época de ciência cada vez mais matemática, como a nossa. Hoje, é Descartes que é considerado o primeiro filósofo moderno. Assim, em cada período histórico e a cada momento de evolução, a própria história está por ser reescrita e a pesquisa sobre nossos ancestrais está por ser empreendida de maneira diferente. (Koyré,1930/1982, p.16)

Koyré demonstra que, embora estivesse interessado primordialmente nas questões internas da ciência, isso não quer dizer que ele estivesse procurando uma verdade pura. Para ele: “Nada está mais longe do homem que procura a verdade viva do que a atitude de um homem que pesquisa a verdade histórica.” (Koyré,1930/1982, p.21). Essa concepção denota um certo afastamento de Koyré de um positivismo histórico. Porém esse tipo de história da ciência voltada primordialmente para seus aspectos internos ainda mantém, em seu núcleo, uma concepção em que a ciência e os cientistas são percebidos como algo isento de influências sociais, o que, por conseguinte, resulta numa interpretação ainda positivista e idealista da ciência.

Em contrapartida a essa abordagem internalista da história da ciência, surge também, no século XX, uma segunda abordagem entendida como história externa da ciência ou história social da ciência. Essa abordagem foi influenciada principalmente pelo materialismo histórico e por abordagens sociológicas do conhecimento. A abordagem externalista da ciência está interessada no trabalho do cientista e na transformação da ciência enquanto parte de um grupo social que compartilha elementos que constituem uma cultura específica. Procura-se, nessa abordagem, evitar uma história heróica da ciência e dos cientistas. Nessa perspectiva, uma análise histórica das teorias científicas “derrotadas” é tão importante quanto uma análise dos modelos “vencedores”. Isto porque essa abordagem vai considerar que, em muitos casos, a escolha e adoção de uma teoria científica são pautadas em critérios não-racionais, critérios que não estão vinculados apenas à construção lógica da ciência. Os contextos social, político, econômico, entre outros fatores externos, são nessa visão, tão determinantes quanto os fatores racionais na constituição da ciência. Na verdade, algumas abordagens, como as abordagens sociológicas da ciência que dialogam e auxiliam diretamente a história externalista da ciência, como o Programa Forte da sociologia da ciência da escola de Edimburgo, chegaram à posição extrema de negar totalmente a validade de conteúdos científicos na historiografia da ciência. Para eles, uma análise da história de uma ciência prescindia do conhecimento teórico sobre a disciplina científica que se pretendia analisar. Nenhum conhecimento dos conceitos científicos de uma disciplina seria necessário nesse caso; apenas uma análise do contexto onde ocorreu, por exemplo, uma descoberta científica, seria o suficiente para tal empreitada.

A história externalista da ciência tem, então, como premissa básica, à idéia de que uma análise do contexto social é essencial para qualquer investigação acerca da história de uma disciplina científica. Como os internalistas, os externalistas caem na cilada de propor uma análise reducionista, com a diferença de que para os externalistas, os fatores externos à ciência eram suficientes para explicar a história. Busca-se, dessa maneira, uma reconstrução eminentemente social da história da ciência.

Inicialmente, as abordagens internalistas e externalistas da história da ciência apresentaram, durante grande parte do século XX, posições opostas quanto ao critério de análise do fenômeno histórico em história da ciência, o que caracterizou uma brusca separação ontológica entre natureza e sociedade. E, embora parte dessa querela tenha persistido durante o século XX, perdendo força a partir da década de 1970, não há dúvidas de que ambas as posições não são excludentes, mas sim complementares. Atualmente, essa discussão foi “superada”; há, de certa forma, um consenso no qual tanto os elementos internos quanto os externos são partes essenciais na pesquisa em história da ciência. História internalista provê as discussões que envolvem o núcleo da disciplina, e a história externalista examina o contexto. Contudo, é preciso observar que, ainda que os historiadores da ciência concordem que tanto os aspectos internos quanto os externos são fundamentais para a pesquisa histórica, as investigações tendem ainda a dar mais ênfase a um dos fatores.

Outra transformação importante nos estudos sobre história da ciência aconteceu com a noção de revolução científica . Essa noção central nos estudos sobre história da ciência durante muito tempo foi interpretada, principalmente pelos internalistas, como um salto qualitativo e/ou ruptura que uma nova teoria tinha em relação a teorias anteriores. Na Física, por exemplo, o pensamento newtoniano foi visto, por muito tempo, como uma ruptura brusca com o pensamento medieval, assim como a teoria da relatividade foi concebida como um rompimento com a Mecânica Clássica. Além disso, a revolução científica era designada como fruto de uma única mente brilhante; o cientista era visto como um gênio, com um poder interior, e que por meio de um insight inexplicável e abrupto alcançava uma descoberta científica. Bernal (1976), ao criticar essa noção a partir de uma perspectiva materialista histórica, diz que:

De facto, muitas histórias da ciência são pouco mais que crônicas de grandes descobridores que, numa espécie de sucessão apostólica, receberam revelações que fizeram uma época sobre os segredos da Natureza. Ora é indubitável que certos grandes homens tiveram intervenções decisivas para o progresso da ciência; mas as suas realizações não podem ser estudadas isoladas do meio social em que viveram. É por ignorar este facto capital que tantas vezes se torna necessário recorrer a palavras vazias de conteúdo, como “inspiração” ou “gênio”, para explicar as descobertas. ( p.35)

A despeito dessa consideração, isto não quer dizer que a noção de revolução científica atualmente deixou de ser considerada nas pesquisas em história da ciência; é inquestionável que o conhecimento científico sofre transformações notáveis em períodos específicos, e que certos cientistas desempenharam função determinante para que essas mudanças ocorressem. Mas essas revoluções não são mais examinadas como um tipo de ruptura dramática do conhecimento, e tampouco vistas como produto de uma mente reveladora (Roque, 2002). Essas revoluções tendem, ainda atualmente, a serem analisadas como produtoras de modificações no desenvolvimento da ciência. No entanto, busca-se relacionar e mostrar cada vez mais que essas revoluções, em muitos casos, mantêm vínculos significativos com períodos anteriores e relações próximas com o contexto social.

Dessa forma, é possível pensar que nem sempre uma revolução rompe totalmente com formas de pensamento que ela supostamente superou e nem muitos menos é independente da cultura onde foi formulada.

Em vista dessas discussões sobre história e historiografia da ciência, é preciso observar que o trabalho do historiador para lidar com todas essas questões se dá por meio de análise de vestígios do passado, vestígios esses que possibilitam reconstruir a história. Com isso, o trabalho do historiador assemelha-se à montagem de um quebra-cabeça que nunca é totalmente montado, mas que provê uma imagem passível de interpretação no presente. Conforme Brozek e Massimi (2001):

O historiador identifica os vestígios para poder depois coletá-los, organizá-los, analisá-los e interpretá-los. A recuperação dos documentos é uma valiosa contribuição aos nossos conhecimentos. Todavia, concordo com a observação de que os documentos constituem-se na “matéria-prima”, dado crucial da historiografia, mas não se constituem propriamente na “história”. Tornam-se “história” por meio da análise e interpretação. (p.75)

Morris et.al. (1990), ao realizarem uma analogia entre a história de uma ciência e a história comportamental, alegam que do mesmo modo que o comportamento de um organismo é função de sua história de reforçamento, também o é a atividade de uma disciplina científica. Sabemos que o conhecimento da história comportamental de um organismo é um princípio básico para o trabalho do analista do comportamento. De acordo com Andery, Micheletto e Sério (1999):

O conhecimento da história à qual se submeteu o indivíduo com o qual o analista está trabalhando é importante porque, entre outras coisas, tal história altera o valor das variáveis presentes ou, dito de outra maneira, altera a sensibilidade do sujeito às variáveis às quais está exposto no momento e, eventualmente, será exposto no futuro. (p. 138)

Se estendermos esse princípio à história de uma disciplina científica, poderíamos considerar que conhecer a história de uma ciência, ou seja, o comportamento de cientistas e do contexto em que suas formulações foram realizadas, pode alterar o valor das variáveis presentes, e conseqüentemente alterar o valor das variáveis às quais uma comunidade científica será exposta no futuro. Nesse caso, uma interpretação da história, ou dito de outra maneira, uma análise funcional da história torna-se algo plausível a partir de uma perspectiva analítico-comportamental.

Uma análise funcional da história de uma ciência teria, assim a função de esboçar, através de vestígios da história, uma interpretação de comportamentos verbais que produzem discursos epistemológicos, culturais, filosóficos, científicos; todos esses geradores de estímulos verbais que provocaram conseqüências capazes de modificar, por exemplo, a formulação de um método ou de um conceito.

 

Fontes históricas como dados básicos na pesquisa histórica

Neste contexto, os dados básicos ou variáveis a serem analisados na interpretação de uma história, são as fontes históricas, fontes essas que se constituem em primárias, secundárias e terciárias.

As fontes primárias são consideradas os dados daquela história que se pretende pesquisar (Morris et.al., 1990). Essas fontes são: trabalhos publicados, trabalhos não publicados, textos científicos, textos não-científicos, correspondências pessoais, anotações, comunicações pessoais, autobiografias, entrevistas, fotografias, memorandos, atas de reuniões, gravações em vídeo ou áudio; enfim, todo material que tenha sido registrado e feito parte da história da disciplina e que possa auxiliar numa investigação específica.

As fontes primárias são essenciais para a realização do trabalho do historiador. Elas constituem os dados básicos ou a matéria-prima para uma investigação histórica. Todos os artigos científicos de Skinner, por exemplo, são fontes históricas primárias desde o momento em que sirvam para pesquisar uma parte da história do behaviorismo. Sua autobiografia e comunicações pessoais são outro exemplo de fontes primárias que podem ser utilizadas para a identificação de possíveis influências intelectuais em determinados períodos e/ou a revelação de informações importantes às vezes não explicitadas nos textos científicos. Moore (2005) em uma série de três artigos apresenta um bom exemplo de pesquisa feita a partir desse tipo de fonte, ao realizar uma detalhada análise das influências intelectuais sofridas por Skinner e o impacto dessas influências sobre suas formulações iniciais.

Um outro exemplo de trabalho baseado em fontes primárias foi realizado por Carvalho (2001), que apresenta uma extensa e detalhada análise dos trabalhos de Skinner entre os anos de 1931 e 1959. O objetivo foi realizar um recorte da história do behaviorismo skinneriano, e tentar investigar o que Skinner entendia por mentalismo e quais foram suas críticas a esse conceito naquele período. Entre os resultados dessa análise histórico-conceitual, Carvalho (2001) demonstra que as críticas skinnerianas ao mentalismo tiveram diferentes alvos entre 1931 e 1959, e que as críticas tecidas por Skinner contra o mentalismo não sofreram transformações significativas no que tange às suas argumentações. Esse tipo de pesquisa é útil em diversos aspectos; pode-se dizer, entre outras coisas, que esse tipo trabalho histórico-conceitual é importante para analisar-se a coerência interna do behaviorismo radical no que diz respeito às críticas ao mentalismo e ao seu desenvolvimento teórico-conceitual.

Já as fontes secundárias são focadas para objetivos específicos, livros, artigos, capítulos, monografias, dissertações e teses que são direcionadas para um tema delimitado, por exemplo, épocas, lugares, indivíduos, controvérsias, publicações, conceitos e termos. A fonte secundária é o material sobre aquela história, sendo em muitos casos, o produto do trabalho do historiador da ciência – a tese de doutorado de Carvalho (2001) citada acima é um exemplo de fonte secundária, é uma história sobre uma parte da história do behaviorismo. A história do termo radical na história do behaviorismo formulada por Schneider e Morris (1987) é outro exemplo de fonte secundária. Nesse trabalho, os autores fazem uma revisão histórica do termo radical na história do behaviorismo e na história da psicologia americana, evidenciando, entre utras coisas, que esse termo já havia sido utilizado para designar a posição de Watson ainda na década de 20, e que a expressão radical foi muito utilizada na psicologia americana nas primeiras décadas do século XX para designar extremismo e iconoclastia. Argumentam que o próprio Skinner, em 1934, havia escrito, num trabalho não publicado a expressão behaviorismo radical em referência ao behaviorismo de Watson. Também afirmam que Skinner, por meio de uma comunicação pessoal, relatou não acreditar ser ele o autor da expressão que denomina sua posição filosófica. E, por fim, por intermédio de uma análise da expressão behaviorismo radical na literatura psicológica americana, consideram que tal expressão só passou a ser totalmente referenciada ao behaviorismo skinneriano a partir do final da década de 1950 e início da década de 1960. Dessa forma, na interpretação de Schneider e Morris (1987), é sugerido que o surgimento de uma disciplina científica acontece após a constituição de um grupo que adotou essa posição, (interpretação externalista da história da ciência), e não a partir do momento em que a expressão foi cunhada (interpretação internalista da história da ciência). Em vista disso, questiona-se a história tradicional do behaviorismo que afirma que o surgimento do behaviorismo radical aconteceu em 1945 com a publicação do artigo The operational analysis of psychological terms . É interessante notar que, apesar de os autores terem recorrido a um critério externalista, neste caso, a formação de uma comunidade científica para realizarem sua interpretação, isso não significa que eles não tenham pesquisado e utilizado fatores internos à história do behaviorismo. Da mesma forma, isso não quer dizer que, de acordo com o objetivo da pesquisa, o artigo de 1945 não seja fundamental para discutir o surgimento do behaviorismo radical, e até mesmo apontado como o momento em que tal filosofia surgiu. Já que foi nesse texto que Skinner classificou a expressão behaviorismo radical pela primeira vez, como sendo representativa de sua posição.

É claro, neste ponto, que as fontes secundárias são construídas com base em fontes primárias e outras fontes secundárias, tornando-se um material sobre aquela história. Para o campo desse trabalho destacam-se algumas das utilidades desse tipo de fonte: indica uma metodologia utilizada em pesquisa histórica; provê informações sobre fontes primárias até então desconhecidas na área pesquisada; é fonte de conhecimento crítico para os praticantes da disciplina e, principalmente, desperta o interesse para temas que podem ser transformados em futuras pesquisas. A investigação de Schneider e Morris (1987) citada anteriormente é um bom exemplo de trabalho que possibilita a formulação de problemas de pesquisa na área. Uma possível pergunta que pode ser feita por meio da leitura do trabalho de Schneider e Morris (1987) é: se o behaviorismo radical e análise do comportamento constituem-se de forma coesa enquanto comunidade científica a partir das décadas de 1950 e 1960, não há aqui a possibilidade de contar uma história diferente daquela que afirma que o behaviorismo perdeu força justamente neste período, devido à suposta Revolução Cognitiva? Uma fonte secundária pode, portanto, também ser fonte de inspiração para investigação de temas e problemas de pesquisa.

É preciso, também, perceber que um trabalho que já foi secundário em um momento histórico pode ser tornar uma fonte primária em outro período. Um exemplo clássico é o texto de Skinner de 1931, The concept of the reflex in the description of behavior , artigo este em que Skinner faz uma revisão histórica do conceito de reflexo e, ao mesmo tempo, apresenta esse conceito como fundamento para seu programa inicial de pesquisa (Sério, 1990; Andery; Micheletto e Sério, 2002 e Cruz, 2005), considerando-se que Skinner se afastou grandemente de uma interpretação reflexa do comportamento e que esse texto marca sua perspectiva inicial de ciência. Com certeza esse artigo é essencial para o historiador do behaviorismo interessado no desenvolvimento do sistema explicativo skinneriano.

Por último, destacam-se as fontes terciárias, as quais são preponderantemente livros, artigos e capítulos que trazem informações gerais sobre uma área do conhecimento. Textos introdutórios à história da psicologia, manuais de teorias da personalidade e de introdução a áreas científicas, divulgação em revistas não especializadas e jornais, são exemplos desse tipo de fonte. Fontes terciárias são, em geral, pouco utilizadas pelo historiador, em função de diversos problemas. Uma análise de livros introdutórios à psicologia realizada por Todd e Morris (1983) demonstra que esses textos são responsáveis por grande parte das divulgações equivocadas referentes ao behaviorismo radical. Segundo os autores, os erros de divulgação do behaviorismo radical e análise do comportamento mais comuns nesse tipo de publicação são que: a análise do comportamento tem como foco de estudo o comportamento de não-humanos; é totalmente ambientalista; tem uma visão do organismo como algo “vazio” ou “caixa preta”; expõe uma teoria da linguagem simplista. Os autores ainda destacam que esses trabalhos são as principais fontes de informação introdutória sobre o behaviorismo radical, tanto para alunos de psicologia quanto alunos de áreas afins. O que indica um grave problema na divulgação do behaviorismo radical, o primeiro e único contato que muitos estudantes e profissionais de diversas áreas têm com essa abordagem se dá com a literatura menos confiável.

De acordo com Todd e Morris (1983), esse tipo de literatura nem sempre é uma fonte confiável para os estudantes entenderem o estado atual de uma disciplina científica, além é claro, no caso do behaviorismo, de perpetuar historicamente informações equivocadas acerca da área. Convém salientar que esse tipo de pesquisa que demonstra falhas na divulgação de uma área do conhecimento pode ser útil para busca de possíveis soluções para o problema. Todd e Morris (1983) sugerem que uma possível medida seria enviar o resultado desse tipo de pesquisa para os editores e autores, explicando por que certas passagens estão erradas e oferecendo sugestões para modificações. Mas observam que essa estratégia pode ser eficaz em casos em que os autores foram vítimas de fontes secundárias imprecisas e/ou cometeram falhas em virtude do pouco conhecimento sobre a disciplina. E ressaltam que esse tipo de medida pode não ser efetivo em casos em que os autores são hostis com o behaviorismo, o que não é muito raro. De todo modo, uma análise desse tipo de fonte não deixa de ser um importante instrumento para tentar alterar tal situação e ao mesmo tempo analisar como a divulgação da história do behaviorismo tem sido influenciada por esse tipo de trabalho.

Algumas das características que definem fontes terciárias são: o uso de informações incompletas, objetivos pouco definidos e textos escritos nem sempre por praticantes e/ou estudiosos da disciplina. Porém, como já foi mencionado, esse tipo de publicação vem sendo cada vez mais investigado, ou seja, torna-se fonte primária de análise. O trabalho de Todd e Morris (1983), citado anteriormente, é um ótimo exemplo do uso desse tipo de literatura como fonte primária para investigar como se dá a divulgação do behaviorismo radical. Contudo, Todd et.al. (1990) alegam que é preciso estar atento para exceções de fontes terciárias que possam fornecer informações históricas confiáveis para a divulgação de uma disciplina científica. Vale também dizer que a própria definição de fonte terciária apresenta problemas devido à dificuldade de sua classificação, portanto, destacamos aqui apenas algumas possíveis características desse tipo de fonte.

Com essa breve descrição sobre fontes históricas, observa-se que há alguns critérios que definem o que são fontes primárias, secundárias e terciárias. Mas esses critérios não são rígidos; um trabalho que já foi secundário ou terciário em uma época pode ser utilizado como fonte primária em outro momento; o importante é observar os objetivos da pesquisa e o papel que a fonte escolhida pelo pesquisador irá desempenhar em sua investigação.

 

Algumas questões críticas na produção de conhecimento em história do behaviorismo e análise do comportamento

Há determinados padrões nas formas de descrever, explicar e interpretar a história do behaviorismo; no presente trabalho destacamos dois desses padrões. O primeiro seria o padrão das histórias escritas pelos críticos do behaviorismo, padrão este difuso em que a distorção e incompreensão predominam, mas isso não é novidade, pelo menos para a comunidade behaviorista. De modo que parece ser de grande interesse, neste trabalho, entender melhor o segundo padrão das histórias do behaviorismo, padrão esse caracterizado através das formulações históricas sobre o behaviorismo realizadas pelos próprios behavioristas. Apesar de instigante e importante, não se pretende dar uma definição final desse padrão historiográfico devido à sua complexidade e extensão. Contudo, procurar compreender esse padrão é essencial a partir do momento em que se examina, de maneira crítica, a produção de conhecimento nesta área. Para esse olhar crítico serão apresentados alguns elementos que podem auxiliar tanto no que diz respeito a uma análise crítica da produção do conhecimento em história do behaviorismo quanto ser útil para aqueles que pretendem desenvolver qualquer espécie de pesquisa na área.

Uma das formas que por meio das quais os behavioristas têm contado a sua história vem ao encontro de uma história linear da ciência; nessa perspectiva, o behaviorismo tem evoluído de forma progressiva e acumulativa. A história do behaviorismo é situada como algo que começou cronologicamente em Watson, a partir do manifesto behaviorista de 1913, e avançou até Skinner. O behaviorismo radical de Skinner é considerado uma evolução do behaviorismo metodológico de Watson e de outros behaviorismos. Até aqui parece não haver problemas: não há dúvida de que Skinner formulou uma interpretação mais complexa do comportamento que Watson.

Porém, não se estaria justamente neste ponto cometendo um erro? Analisar Watson de acordo com as formulações científicas avançadas de Skinner parece ser algo óbvio. É prática comum olhar para o passado com os olhos do presente. Mas convém lembrar que, em uma pesquisa histórica, deve-se fazer isso com, no mínimo, uma diferença: é preciso uma apreciação do contexto histórico em que ocorreu a história. O uso irrefletido do conhecimento científico atual, analisar o respondente sob a luz do operante, por exemplo, na pesquisa histórica pode trazer prejuízos para uma análise crítica daquela história da ciência que se pretende investigar. Alguns historiadores chamam essa postura de whiggismo ou presentismo, ou seja, interpreta-se a história de uma ciência de forma tendenciosa somente a partir da utilização de conhecimentos científicos atuais (Martins, 2004).

Uma postura presentista na história de uma ciência pode ter como conseqüência obstruir ou tornar confusos aspectos da obra de um cientista e/ou de uma teoria. Se o conhecimento científico atual é melhor do que o anterior, por que estudar mais detalhadamente a história desse último? Considerando o behaviorismo como foco de nossa análise, poder-se-ia perguntar: se o operante é um conceito muito mais complexo e abrangente que o respondente, por que estudar a história do respondente? Por que estudar Watson se Skinner foi muito além? Com isso, olha-se muitas vezes o passado como algo inferior e superado. Disso decorre que a história de uma área supostamente ultrapassada sempre é citada de forma superficial; conta-se sempre a mesma história para justificar como a atual situação é mais avançada, o que acaba por resultar, entre outras coisas, em uma aceitação acrítica do trabalho de certos períodos; na caricaturização de cientistas e suas teorias; além de correr-se o risco de deixar passar desapercebidas possíveis contribuições e influências, entre outros prejuízos.

Externamente ao behaviorismo, não é justamente isso que acontece com Skinner? Para grande parte de seus críticos, o tipo de conhecimento produzido por Skinner é algo ultrapassado; muitas das críticas são feitas a partir de fontes terciárias, ou de fontes primárias utilizadas de forma descontextualiza, e em muitos casos nem fontes são usadas, apenas o estereótipo é citado. O capítulo A influência do pensamento cartesiano-newtoniano apresentado por Capra (1982/1998), em seu livro O Ponto de Mutação , é um bom exemplo desse tipo de postura. Capra (1982/1998) dedica um subitem desse capítulo denominado A Psicologia Newtoniana para criticar e responsabilizar duramente um tipo de ciência psicológica conivente com uma visão de mundo mecanicista e dualista que é, segundo ele, responsável por diversos problemas atuais enfrentados pelo mundo ocidental –; e situa Skinner como um dos principais representantes desse modelo de ciência psicológica.

Não é objetivo deste trabalho aprofundar as discussões sobre o afastamento de Skinner de uma ciência mecanicista e dualista, mas de forma breve, pode-se dizer que embora Skinner tenha iniciado seus estudos de psicologia num contexto mecanicista e de haver fortes indícios desse modelo em seus trabalhos iniciais, ele cedo demonstra um afastamento dessa posição. Isso acontece inicialmente através da adoção do conceito de relações funcionais, formulado pelo físico e filósofo da ciência Ernest Mach, e posteriormente devido à forte influência do modelo Darwinista no seu sistema explicativo. Contudo, para o campo de nosso interesse, o importante é notar que muitas das apreciações positivas sobre uma nova forma de ciência que se afasta do mecanicismo, citadas por Capra (1982/1998), como, por exemplo, a adoção de um determinismo probabilístico e a utilização de um modelo causal que interprete os fenômenos naturais como multideterminados, têm semelhanças e pontos de convergência com as formulações científicas e éticas apontadas por Skinner (1953/2002), no mínimo três décadas antes, em seu livro Ciência e Comportamento Humano. O que torna evidente que autores como Capra simplesmente perpetuam uma representação burlescamente equivocada das proposições de Skinner pelo fato de conceberem o seu pensamento como algo ultrapassado e vencido historicamente. Não há nenhuma preocupação em analisar-se o trabalho de Skinner de forma criteriosa. Para Chiesa (1994) um dos efeitos dessa situação é que:

Participantes desse debate têm citado o ramo errado da psicologia contemporânea como um exemplo da visão do velho mundo da ciência mecanicista, dualista, newtoniana/cartesiana. E ainda, eles não têm conseguido reconhecer as semelhanças entre suas próprias preocupações e as de B.F Skinner e, ao desconsiderar o behaviorismo radical, por tê-lo como um exemplo da visão de mundo fora de moda, não conseguem reconhecer a importância da filosofia de Skinner para o seu próprio argumento. Concluindo, essas observações sugerem uma contribuição para o debate sobre a visão do novo mundo que pode surpreender alguns de seus participantes. (p. 204).

É claro que o uso de argumentos científicos atuais deve fazer parte dos debates sobre a historia de uma ciência, mas é preciso evitar análises simplistas que se remetem ao passado como algo vencido. De acordo com Nickles (1995), para evitar esse presentismo na pesquisa histórica, o ideal seria utilizar-se um método “prudentemente regressivo” . “Prudente, isto é, que não transporte ingenuamente o presente para o passado e que não procure por outras vias um trajeto linear que seria tão ilusório quanto o sentido contrário”. (Nickles, 1995, p. 151). Isto quer dizer que o uso de argumentos científicos atuais pode e deve ocorrer na pesquisa em história da ciência, com a ressalva de que eles não podem ser simplesmente transportados diretamente do presente para o passado, com o intuito de desqualificar uma teoria anterior e legitimar uma atual, como se houvesse necessariamente uma evolução linear e lógica do pensamento científico. A utilização do conhecimento científico atual teria assim a função de demonstrar possíveis evoluções não necessariamente lineares de uma área do conhecimento, semelhanças, influências, modificações em alguns casos, e até o retrocesso em outros.

Internamente ao behaviorismo, um bom exemplo de trabalho histórico que não cai na armadilha do presentismo e ao mesmo tempo nos mostra a importância de estudar um autor supostamente vencido e superado é apresentado por Todd e Morris (1986). Esses autores fazem uma revisão das pesquisas realizadas por Watson na década que precede o manifesto behaviorista. Inicialmente esses autores chamam a atenção para o fato de que a sofisticação do trabalho de Watson é maior do que a literatura a seu respeito tem indicado. De acordo com eles, Watson é citado na maioria das vezes a partir do texto de 1913, como se ele tivesse surgido do nada e que o trabalho com reações emocionais foi seu único e melhor trabalho experimental.

Esses autores tecem diversos argumentos pautados em fontes primárias e evidenciam que Watson, antes de 1913, fez importantes pesquisas. Igualmente, destacam que ele tinha grandes habilidades como pesquisador experimental, construtor de equipamentos complexos para pesquisa, era extremamente preocupado com questões metodológicas que envolviam desde as condições do laboratório e o cuidado com os sujeitos utilizados nas pesquisas até a coleta de dados. Salientam que, durante a década que antecedeu o manifesto behaviorista, Watson deu enormes contribuições para áreas como neurofisiologia, psicofisiologia, psicologia comparada e etologia. Nesta última área, citam um refinado trabalho naturalista que Watson realizou com pássaros da Flórida, e demonstram que para importantes etólogos contemporâneos esse trabalho foi importantíssimo na constituição daquela ciência.

Todd e Morris (1986) revelam que Watson teve interesses e intensa produção científica que não podem ser reduzidas a sua proposta behaviorista. Para eles: “A grande gama de interesses de Watson e o seu conhecimento científico multidisciplinar são um contraste afiado das modernas descrições em que ele é apresentado como nada mais que um promotor extremista de uma estreita filosofia da ciência”. (Todd e Morris, 1986, p. 86). E, por fim, concluem que a história da psicologia poderia fornecer uma visão mais útil, e exata do desenvolvimento do behaviorismo clássico e moderno discutindo as ricas e variadas contribuições de Watson enfatizando a possibilidade de diversas questões de pesquisa disponíveis para os behavioristas contemporâneos.

O conhecimento acerca dessas questões não exime Watson de ser apontado como responsável por vários aspectos polêmicos em relação à proposta behaviorista metodológica e o posterior desenvolvimento controverso e polêmico do behaviorismo, nem procura fazer qualquer defesa de sua posição. O que se pretende com este exemplo é destacar que esse tipo de investigação historiográfica demonstra que o papel do historiador é ir além daquilo que já está estabelecido muitas vezes até mesmo pelos próprios praticantes da disciplina. Em outras palavras, o papel do historiador é o de tentar reconstruir a história evitando, ao máximo, preconceitos presentes que possam dificultar uma análise mais coerente e justa de um cientista e de sua produção. Portanto, é importante que o historiador esteja atento aos seus pressupostos para que não corra o risco de fazer um exame superficial de um determinado período, e que ao mesmo tempo evite fazer uma interpretação da história que tem como função apenas justificar suas preferências teóricas em vez de analisá-las de maneira crítica.

 

Considerações finais

O aumento substancial de pesquisas voltadas para análises histórico-conceituais indica a consolidação da análise do comportamento como disciplina e comunidade científica desenvolvida o suficiente para buscar, em sua história, aspectos relevantes que possibilitam a identificação de fatores que afetaram e afetam a constituição da análise do comportamento e do behaviorismo. No Brasil, a produção constante de pesquisa básica, aplicada e conceitual desde a década de 1960, a criação de programas de pós-graduação com ênfase ou exclusivamente em análise do comportamento, a realização periódica de eventos científicos nacionais e regionais e a publicação crescente de periódicos e livros especializados são alguns dos aspectos que balizam a importância de estudos históricos dessa área no Brasil.

Mas, para isso, é preciso evitar uma análise histórica preocupada somente em justificar a importância da disciplina, e uma das formas de se evitar isso e estar atento ao uso de formulações presentistas . Destacar apenas seus aspectos internos ou externos é outro erro que precisamos evitar. É necessário considerar que a relação entre o comportamento do cientista, comunidade científica e o contexto cultural são aspectos essenciais e indissociáveis quando se pretende realizar uma reconstrução histórica. E é justamente devido à complexidade e amplitude de tal empreitada que é preciso assumir o caráter eminentemente interpretativo e, em muitos casos limitado desse tipo de pesquisa. Em outras palavras, uma pesquisa histórica é sempre um esboço da história.

Todavia, um esboço interpretativo ou em outros termos uma “análise funcional” da história não significa algo menos importante ou sem valor, por não ter “validade experimental”. Como afirma Skinner (1974/2002): “Cada campo científico tem uma fronteira além da qual a discussão, embora necessária, não pode ser tão precisa quanto se desejaria.” (p.21). Considera-se assim que a função da interpretação é “(...) estender a compreensão dos fenômenos além do que permite a experimentação, mas usando os próprios dados experimentais como guias do movimento interpretativo” (Dittrich, 2004, p. 133). Com isso, temos a possibilidade de uma análise histórica que busque identificar como certas variáveis provocaram determinadas conseqüências e modificaram o comportamento de um cientista e de uma comunidade científica em um contexto cultural e período histórico específico.

Por fim, destaca-se que os poucos e sucintos exemplos de pesquisa histórica em análise do comportamento e behaviorismo citados neste trabalho demonstram que uma incursão na história dessas disciplinas pode ser algo instigante, revelador e, principalmente, de grande auxílio no delineamento da produção de conhecimento na área.

 

 

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Recebido em: 25/01/2007
Primeira decisão editorial em: 30/04/2007
Versão final em: 20/05/2007
Aceito em: 21/05/2007

 

 

1 Psicólogo, Especialista em História da Ciência pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço para correspondências: Rua Agenor Alves, 68, Nazaré, Belo Horizonte. Cep: 31990-040. E-mail: robsonncruz@ig.com.br
2 O autor agradece as críticas e sugestões feitas pelos pareceristas anônimos e pelos professores Kester Carrara e Emmanuel Tourinho. Contudo, erros e omissões são de responsabilidade do autor.