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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.2 n.2 Fortaleza set. 2002
ARTIGOS
Das relações sujeito-instituição: uma leitura psicanalítica
Sonia Leite
Psicanalista; doutoranda em Psicologia Clínica na PUC/RJ; professora, supervisora e pesquisadora do curso de psicologia da UNESA (Universidade Estácio de Sá). Endereço: Rua Conde de Bonfim número 289 apartamento 702 Tijuca Rio de Janeiro CEP: 20520-051. e-mail: soniacleite@uol.com.br
RESUMO
O texto trata da relação sujeito-instituição tendo como referência a instituição pública de saúde, destacando, a partir de uma leitura psicanalítica, os vínculos identificatórios do sujeito-profissional com os ideais sociais e as dificuldades de luto daí decorrentes.
Palavras-chave: instituição, identificação, luto.
ABSTRACT
The essay deals with the subject-institution relation and it holds the health public institution as reference, emphasizing, from a psychoanalytic reading, the links that identify the subject-professional with the social ideals and the grief difficulties arised from it.
Keywords: institution, identification, grief.
"É assim mesmo, a instituição é assim, não adianta tentar mudar"
"Já tentamos de tudo e nada acontece, pois, dependemos das instâncias, hierarquicamente, superiores" (o Estado)
"Aqui, no ambulatório, não dá prá fazer psicanálise com os pacientes, apenas, uma espécie de orientação"
"Aqui no serviço, faço medicação. Psicanálise, só no consultório. Aqui não dá prá fazer este tipo de trabalho"
(Discursos colhidos num ambulatório psiquiátrico do RJ)
A insistência e repetição dos discursos citados, proferidos por profissionais da chamada área psi, em diferentes situações, num ambulatório público de psiquiatria, despertaram nosso interesse.
O que nos chamou, fundamentalmente, a atenção, foi a presença, nessas falas, de uma vivência de impotência do sujeito (profissional) diante da instituição, onde o que é instituído é vivido pelo sujeito, como o impossível de transformação, destacando-se um mal-estar na instituição, paralisado na negatividade, num não-poder.
A seguir, fomos conduzidos a formular a hipótese de que, talvez, ao invés de uma ocorrência específica, localizada naquele espaço singular, essas falas indicassem um fenômeno característico da relação do homem contemporâneo com as instituições, em geral, ou seja, revelassem um mal-estar típico da chamada crise da cultura moderna.
Não é objetivo deste ensaio, esgotar essa questão o que, evidentemente, exigiria uma discussão mais ampla desses pontos. Procuraremos, no entanto, circunscrever esse campo, indicando um contexto teórico passível de acolhê-los. Para tanto, delinearemos, inicialmente, alguns aspectos da crise da cultura moderna considerando-a como locus privilegiado para a compreensão dos discursos, aqui apontados em destaque e, a seguir, resgataremos alguns aportes do saber psicanalítico, especificamente, o freudiano, de modo a encontrar alguns indicativos para o mal-estar sujeito-instituição.
A questão da crise da cultura moderna
Muito se tem falado em torno de uma crise da cultura que se expressaria numa verdadeira crise dos valores éticos, em dimensões mundiais. Estas discussões têm desembocado em reflexões de cunho filosófico, sobre o próprio estatuto da Razão, na nossa cultura e que, segundo Heller (cf. Chauí,1992) transpareceria na existência simultânea, na filosofia contemporânea, de três linhas de pensamento sobre a ética: a niilista, que nega a existência de uma normatividade moral, com valor universal e racional; a universalista-racionalista (de origem Iluminista), que afirma a existência de uma normatividade de valores universais, porque dotada de razão; a pragmática, que sustenta a democracia liberal de ter sido capaz de manter, com sucesso, os princípios morais de liberdade e justiça no que tange às grandes decisões sobre a vida coletiva.
Segundo a autora, o fato de sermos confrontados, simultaneamente, pelos três pontos de vista, no nosso cotidiano, sem que eles se excluam reciprocamente, já é sintoma da crise dos valores e, alguns autores, a tem denominado de pós-modernidade.
Lyotard (1989), por exemplo, analisa o pós-moderno, não como mera superação positiva da modernidade iluminista e romântica, mas como uma categoria que nasce da dissolução interna dos valores da modernidade.
Para compreendermos essa dissolução, faz-se necessário resgatar a definição clássica de Max Weber, segundo o qual, a modernidade é o produto da racionalização, ocorrida no Ocidente, desde o final do século XVIII e, que implicou, na modernização da sociedade e da cultura. Ou seja, por um lado, temos a modernização social definindo-se, no processo de diferenciação da economia capitalista e do Estado e, por outro, a modernização cultural relativa ao processo de diferenciação das esferas axiológicas da ciência, da moral e da arte, antes embutidas na religião. O prefixo pós apontaria uma forma de ruptura com um passado recente que, do ponto de vista dos ideais norteadores da vida, em coletividade, revelaria uma espécie de falência das utopias. Ou seja, as promessas da modernidade teriam resultado em nada, pois, apesar dos avanços da ciência moderna, encontramo-nos diante de um caos social, produto da ausência de uma ética norteadora compatível com os avanços da tecnologia.
Rouanet (1989) procura revelar o que chama de a verdade e a ilusão do pós-moderno, descrevendo as duas facetas da pós-modernidade, a social e a cultural.
A pós-modernidade social estaria expressa, em vários planos, do ponto de vista do cotidiano, o "mundo social se desmaterializa, passa a ser signo, simulacro, hiperrealidade" (Rouanet, 1989:233). Ou seja, um mundo em que a máquina foi substituída pela informação; a fábrica, pelo shopping center; o contato de pessoa a pessoa, pela relação com o vídeo.
Supõe-se, por essa via, o fim da separação moderna entre o público e o privado: "Sob a implacável luz de neon da sociedade informatizada, não há mais cena a realidade tornou-se, literalmente, obscena, pois tudo é transparência e visibilidade imediata, excluída a dimensão da interioridade." (Rouanet,1989: 233)
A sociedade pós-moderna é uma verdadeira nebulosa de "jogos de linguagem"(Lyotard,1989) jogos estes, totalmente heteromórficos entre si, o que significa a inexistência de regras gerais que possam disciplinar a todos. Temos, com isso, um campo social que prima pelo múltiplo e pelo particular, ou seja, uma sociedade rebelde a todas as totalizações.
Segundo Rouanet, a pós-modernidade social, também estabelecerá mudanças nas questões de ordem econômica e política. No primeiro caso, a ruptura estaria expressa na passagem da sociedade industrial para a pós-industrial, visto que, as primeiras baseiam-se na produção de bens físicos, na utilização da energia, na organização hierarquizada da empresa, na força de trabalho desqualificada ou não-qualificada; enquanto, as segundas baseiam-se na produção de serviços e, o que passa a ser prioritário, não é a energia, mas a informação.
Do ponto de vista político, as principais mudanças são atribuídas à questão da circulação do poder. Este descentraliza-se, tornando-se poder difuso, uma verdadeira rede capilar por toda a sociedade civil. Dessa forma, a política não é mais genérica, partidária, mas específica de quem está inscrito, em campos setoriais de dominação, tais como: homem/mulher, anti-semita/judeu, etnia dominante/etnia minoritária.
A seguir, o autor discutirá, também, o que se denomina de pós-modernidade cultural descrevendo as mudanças, no campo da ciência e da filosofia. Por um lado, a ciência pós-moderna caracterizar-se-á, pela incredulidade com relação às narrativas legitimadoras; por outro lado, não mais buscará o consenso, mas o dissenso; não mais, a eficácia; mas, a invenção. A episteme pós-moderna legitimar-se-ia pelo heterogêneo, pelo inesperado e pela diferença.
Apesar de não objetivarmos, aqui, uma análise mais profunda, a respeito dessas temáticas, gostaríamos de assinalar que consideramos com precaução, a idéia de ruptura. Como afirma Kehl, (1989), o prefixo pós parece apontar mais no sentido de um desejo de ruptura do que numa verdadeira ruptura, visto que, muitos fenômenos culturais e sociais, da chamada pós-modernidade, expressariam, de fato, um acirramento de aspectos já previstos, na própria modernidade.
Assim, apesar de considerarmos com precaução a idéia de ruptura, compartilhamos com a idéia de deflagração de uma crise. Crise, fundamentalmente dos ideais e, dentre eles, da razão como única forma válida de acesso a um verdadeiro conhecimento da realidade; crise que trouxe como conseqüência o (re)encontro do Homem com seu desamparo, diante de uma realidade que, constantemente, lhe escapa.
Consideramos, assim, que a crise da razão é, fundamentalmente, a crise da razão instrumental científica pela introdução da incerteza nos seus próprios domínios e, compartilhamos com a perspectiva de uma razão complexa (Barbosa, 1994), ao apontar a polissemia da palavra razão, revela a dificuldade em conduzi-la a um fundamento estável, unívoco, universal.
Diante da ausência de um fundamento estável, o homem contemporâneo é, então, reconduzido às rotas do inquietante, da incerteza e do indeterminado. Isto tem se refletido nas relações sociais, onde se figura uma impossibilidade de interiorização das leis e das regras sociais evanescentes, produzindo-se, com isso, uma intensificação do sentimento de impotência diante da tarefa de realizar escolhas morais.
A partir destas reflexões, procuraremos, agora, tomando como referência o discurso freudiano, encontrar alguns aportes teóricos que nos possibilitem abordar aspectos da relação sujeito-instituição do ponto de vista da crise dos ideais.
Crise dos ideais e instituição
Apesar do discurso freudiano, desde sempre, sustentar a existência de uma desarmonia entre o pulsional e o cultural e, conseqüentemente, a presença de um mal-estar estrutural, neste encontro, na sua primeira longa exposição, sobre o tema, no artigo Moral sexual "civilizada" e doença nervosa moderna (1908), é possível identificarmos a crença na criação de reformas sociais que, de alguma maneira, amenizariam esta discordância básica. Podemos, então, supor que no início de sua obra, Freud contestando os valores morais vigentes, em sua época, (as restrições sexuais o higienismo) defende, por sua vez, novos ideais capazes de amenizar o mal-estar do sujeito na cultura. Um Freud identificado com os valores oriundos do Iluminismo e da razão científica.
A partir de 1915, podemos observar nos importantes escritos de Freud, primeiramente, em: Reflexões sobre os tempos de guerra e morte e em Sobre a transitoriedade que significativas mudanças se anunciaram, no discurso freudiano.
O primeiro artigo (Freud, 1915), composto de duas partes é, particularmente, interessante, por revelar dois momentos do que podemos chamar elaboração do luto pelos ideais civilizatórios. A primeira parte que trata da desilusão provocada pela deflagração da guerra, relata de maneira contundente e enfática, a vivência de desamparo que Freud compartilha com os cidadãos comuns que, como ele, não se tornaram combatentes, mas que sofreram, no âmbito familiar e coletivo, as perdas ocasionadas pela "(...)brutalidade demonstrada por indivíduos que, enquanto participantes da mais alta civilização humana, não julgaríamos capazes de tal comportamento." (Freud,1915:317)
Todo texto freudiano é permeado por um processo de luto pela perda na crença de que o progresso e o desenvolvimento das civilizações seriam uma garantia de manutenção da vida civilizada. Freud depara-se com o fato de que a possibilidade de atualização das tendências mais primárias, no homem ,é sempre um risco presente e que, nunca, estaríamos definitivamente livres do (re)encontro com a chamada barbárie. A partir disso, a própria idéia de progresso é, indiretamente, relativizada, vindo à tona, a questão da precariedade dos ideais e valores de uma cultura, pois, nada pode eliminar, completamente, a desarmonia estrutural entre a ordem pulsional e cultural. Ou seja, sendo o objeto pulsional desde sempre faltoso, só nos resta refazer, eternamente, as possibilidades de inscrição simbólica do mesmo no campo social, numa reconstrução, constante, da existência humana.
Um momento fundamental do texto diz respeito à questão da mudança de atitude, diante da morte que a guerra, conseqüentemente, produzirá. Freud faz uma articulação entre um certo modo psíquico de construção dos ideais e a negação da morte e das perdas, daí subjacentes. Ou seja, as ilusões são fruto da construção de ideais e, de um certo modo de silenciar a morte. A guerra, produzindo a desilusão, traz o reencontro direto com a morte, sua inefável presença. Afirma que "(...)a tendência a excluir a morte de nossos projetos de vida, traz em seu rastro, muitas outras renúncias e exclusões."(Freud, 1915:329). Isto significa que construir ideais, desconsiderando o fundo básico de desamparo humano que a idéia da morte revela é, de outro modo, não viver a vida na sua inteireza, apontando, com isso, a necessidade de reconhecermos a finitude das coisas, ao invés de suprimi-la.
No ensaio Sobre a transitoriedade (Freud,1915[1916]), escrito para um volume comemorativo, denominado Das Land Goethes (O País de Goethe) um ciclo parece completar-se. Este trabalho prima pela beleza literária. Descrevendo um passeio com dois amigos, sendo um deles um poeta, Freud surpreende-se quando, este último, revela um sentimento de profunda tristeza pela constatação da finitude de toda aquela beleza que os circundavam. E mais ainda: "Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado a transitoriedade(...)" (Freud,1915[1916]:345). Ao contrário, Freud considerou que " A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor desta fruição.", pois, o importante é a significação destas coisas para a vida emocional, independendo, portanto, de duração absoluta. (Freud,1915[1916]:345)
No primeiro texto citado, Freud realiza suas reflexões sobre a guerra descrevendo o encontro com a perda dos ideais, a desilusão daí resultante e a vivência de finitude das coisas materiais e seus valores constitutivos, enquanto, no segundo texto, estas questões são retomadas, num outro nível de elaboração, onde a idéia de temporalidade, enquanto devir é, então, a elas articuladas. Ou seja, tudo o que se relaciona à existência humana a realidade material e psíquica está submetido à transitoriedade, não é eterno, definitivo, isto porém, não reduz sua importância para a vida humana.
A vivência e a superação do luto pela perda das coisas criadas, construídas e, portanto, amadas é tão mais difícil quanto mais nos identificamos, imaginariamente, com elas; isto, porque, aqui, supõe-se um objeto capaz de suprir, definitivamente, o desamparo humano. Nega-se, portanto, a precariedade do objeto, nega-se , em última instância, a morte.
Mais adiante, Freud finaliza o texto citado, afirmando a necessidade de reconstrução contínua, como modo de incluir, definitivamente, a presença da morte na vida. "(...) reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu ,e talvez, em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes." (Freud,1915[1916]:348).
Apesar dos diferentes momentos socioculturais e históricos que nos separam do relatado e vivido, por Freud, consideramos tratar-se, em última instância, do impacto dos acontecimentos sociais desencadeadores de uma desilusão ou crise, no campo dos ideais construídos numa dada sociedade. E é isto que nos coloca tão próximos do discurso freudiano, tornando-o contemporâneo, num certo modo de abordagem do tema da relação sujeito-cultura.
No trabalho intitulado O futuro de uma ilusão (1927), a questão sujeito-cultura é marcada, num discurso que aponta a civilização como algo que não se esgota, numa dada materialidade possibilitadora de igualdade social. A relação do sujeito com a civilização diz respeito, também, à relação do sujeito com aquilo que se coloca como Lei (castração), o que envolverá, sempre, algum nível de renúncia e insatisfação da parte do sujeito e, conseqüentemente, a possibilidade de rebeldia. A construção de ideais, neste sentido, diz respeito à questão narcísica, isto é, um modo de compensação, pelas renúncias individuais, que se deve à presença do desamparo do homem, diante da existência.
Desta forma, Freud (1927) conclui que a construção e busca de satisfação dos ideais é fundamentalmente, necessária, ou seja, uma cultura em crise é uma cultura que não elaborou os lutos, as perdas presentes em sua história e, que, portanto, não possibilita condições fundamentais à vida em coletividade.
O texto freudiano vai se dedicar, aqui, especificamente, às idéias religiosas e à sua função no campo social. Trata-se de uma discussão sobre a função das crenças cujo conhecimento não é construído por um sujeito específico, mas transmitido de uma geração para outra e a qual o sujeito se submete. Em outras palavras, o que Freud discute é a institucionalização da religião, ou seja, a sua ideologização no campo social. As instituições, enquanto representantes da cultura, definem um conjunto de normas e preceitos para as ações dos sujeitos. O que Freud delineia é uma dada atitude diante das instituições no caso, a religião que busca a resolução dos conflitos infantis (angústia) pela aceitação de uma solução universal e absoluta. Ou seja, a medida em que o ideal se prevalece, sobre o desejo do sujeito, faz com que este último cumpra, apenas, a função de ilustrar este ideal prévio.
O fenômeno ilusório que se constitui na relação sujeito-instituição não deve ser pensado enquanto erro, mas fundamentado, num processo psíquico de tentativa de realização de desejo, ou seja, numa busca de encobrimento da falta e do próprio desamparo do homem na sua relação com a vida.
Os momentos de crise de uma cultura, quando fracassam os ideais, apontam, exatamente, para a existência de ilusões construídas que se pautaram num pano de fundo de desconhecimento da precariedade da relação do homem com a realidade social. O contraponto é o fato de que a vida, como contínuo devir, indica o limite dos ideais e, como conseqüência, a necessidade de sua reconstrução.
Freud pautava-se, nesse momento do seu discurso, na idéia de atividade científica cujo processo definiria a relativização do saber e do conhecimento da realidade. Mal se dava conta de que o saber científico tenderia, progressivamente, a ser transformado, também, em ideologia na medida em que a verdade tornou-se efeito da chamada razão instrumental e aquilo que ela poderia promover no âmbito da cultura moderna.
No texto Mal estar na civilização (1930), Freud nos confrontará com a radicalização do mal-estar do sujeito na cultura, nos indicando as principais fontes de infelicidade para o homem no poder superior da natureza, na fragilidade de nossos corpos e na inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade.
Enfatiza, deste modo, que as possibilidades de infelicidade são bem maiores do que as de felicidade, as quais ele retrata, como episódicas, no curso da existência: "A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas(...)" (Freud,1930:73)
Num outro trecho, vai caracterizar o que denomina de "desapontamento dos homens no mundo moderno". Assim escreve: "(...)parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes." (Freud,1930:106)
Ao longo desse seu importante trabalho, irá concluir que existem dificuldades ligadas à própria natureza da civilização que, provavelmente, não se submeterá a qualquer tentativa de reforma. Discutirá o papel da hostilidade primária nas relações entre os homens e as dificuldades, daí decorrentes, visto que a sociedade civilizada se vê, permanentemente, ameaçada de desintegração: "pois as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis"(Freud,1930:134). É por esta razão que a civilização precisa utilizar esforços supremos para estabelecer limites aos homens. "(...)Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo(...)" (Freud,1930:134).
Assim, concluimos que a existência do mal-estar exige do sujeito um trabalho psíquico contínuo, sendo fundamental o incentivo às identificações e à construção permanente de ideais.
Retomando os discursos colhidos, anteriormente citados, podemos considerar, agora, que a impotência que eles revelam é indicativa da presença de uma renúncia pulsional, efeito da identificação imaginária com a instituição. Ou seja, a instituição pública atravessada por um desencantamento quanto aos ideais modernos produz, em contrapartida, no sujeito, algo como uma tendência a abdicar do pólo desejante, em decorrência da identificação com estes ideais perdidos. A conseqüência é uma dificuldade na reconstrução de novos investimentos libidinais, nestes contextos, ou seja, de novos ideais sociais capazes de aglutinar os sujeitos, em torno de um projeto comum. Isto é, se há algumas décadas atrás, o trabalho na área de saúde pública congregava uma série de expectativas favoráveis, no que diz respeito à realização do bem comum, sabemos o quanto o momento contemporâneo é revelador de um certo fracasso, nesta direção.
Birman (1994), numa leitura do discurso freudiano, vai considerar nos textos de cultura, a presença de um paradoxo que se coloca à medida que declara a impossibilidade de existência do sujeito fora do campo simbólico-cultural afirmando, concomitantemente, a presença de uma desarmonia estrutural entre corpo e cultura.
Esta desarmonia fundamental pode ser compreendida, também, no sentido de que aquilo que é da ordem da pulsão não é, jamais, completamente absorvido pelo campo simbólico, permitindo por esta via, a produção da própria singularidade subjetiva da alteridade. Em outras palavras, é em função deste resto que o aparecimento do sujeito da diferença pode se viabilizar.
A idéia de singularidade supõe, assim, a irrupção de uma espécie de descontinuidade num campo contínuo, homogêneo, cuja marca seria o mesmo, a semelhança. Dessa maneira, o fenômeno do mal-estar na cultura se constitui num apelo permanente ao trabalho de simbolização do sujeito e, simultaneamente, na possibilidade de surgimento do singular.
O trabalho de simbolização seria esta costura nunca definitiva, porém, absolutamente, necessária, entre o universo da força e o da representação. Em outras palavras, não há, de fato, qualquer via de superação completa do conflito estrutural que marca o sujeito, porém o que verificamos é que quanto mais fascinado (apegado) por seus objetos (neste caso, seus ideais), maior a dificuldade de viver o luto e de reconstruir a realidade. O tempo se paralisa. A temporalidade algemada no cotidiano, é alienação no sujeito. O que se aliena é a produção desejante, motor da criação, produzindo-se um certo vínculo institucional impossibilitador da dúvida e da inventividade. Isto é, a identificação com o instituído faz prevalecer a resistência no sujeito que impede o encontro com o estranhamento e, conseqüentemente, com aquilo que inquieta a vida tornado-a viva.
Virílio (1983), vai considerar que as formas de controle social, na atualidade, mudaram. Se, na época moderna é, fundamentalmente, pela restrição espacial que o controle se exerce (hospícios, prisões, etc) na atualidade, é pelo controle do tempo que o poder e o controle social se presentificam. Virilio vai denominar de tempo-velocidade a esta forma de aceleração da vida cotidiana, dominada pelas leis econômicas do mercado, onde o sujeito deve, literalmente, correr atrás do tempo, sob pena de se transformar num excluído da cultura. O fato em questão, será a subordinação do sujeito a um certo regime de temporalidade hegemônico impossibilitador da produção da singularidade e da expressão desejante.
O autor considera, assim, que diante de uma temporalidade que se coloca como absoluta, é necessária a produção de interrupções, pois o tempo vivido, o tempo das intensidades é um tempo dependente dos acidentes onde novos encontros se viabilizam. (Virilio,1983)
Para que este processo se efetive é necessário reincorporar o passado, aprender com a experiência, pois só a experiência vivida e elaborada produz mudanças significativas. Quando a experiência, "(...)fica congelada à maneira clássica do trauma freudiano, banida da consciência, sentimos medo da história uma história que carrega frustrações e ferimentos com os quais não queremos nos deparar." (Kehl,1989:46). Desse modo o luto não se processa, desejo e angústia são dissociados de sua significação, produzindo repetição e sintoma.
Assim, para que se construa um tempo diferenciado, na relação sujeito-instituição, é preciso redimensionar a energia psíquica que pode ser mobilizada, a partir do processo de luto, para outras construções e novos ideais. Diríamos com Kehl que "(...) o tempo por si só não é suficiente para nos curar das crises da modernidade, ainda que o desejo nos faça decretar que o tempo daquelas crises já passou" (Kehl,1989:46).
Para criar o novo, é preciso reincorporar o passado, liberando as energias ocupadas na tarefa do recalque ou, como nas palavras simples do poeta, "é preciso reinventar a vida".
Referências
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Virilo, P. (1983). Guerra pura: a militarização do cotidiano. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Recebido em 19 de julho de 2002
Aceito em 22 de agosto de 2002
Revisado em 25 de agosto de 2002
Notas
1 Este ensaio foi elaborado a partir de palestra proferida no Seminário " O mal-estar do corpo no encontro com o trabalho" que ocorreu na ENSP(Escola Nacional de Saúde Pública), em set/1994.
2 Digo impotência e não desamparo, para marcar uma atitude resultante de uma expectativa prévia e idealizada na relação do sujeito com a instituição. Uma posição impotente é o outro lado da moeda de uma posição de onipotência. Já, a idéia de desamparo, do ponto de vista da psicanálise, sendo estrutural à constituição do sujeito, é um fundamento necessário à potência sublimatória ou criativa.
3 O conceito é aquele utilizado em Análise Institucional que não se limita a algo localizável espacialmente, mas trata-se de uma forma geral com que se apresentam as relações sociais num dado momento histórico e que se instrumentalizam nos grupos e instituições.
4 Esta hipótese justifica-se, também, em função de uma pesquisa que realizamos com psicólogos, nas Unidades Médicas do Estado do RJ, em 1995, onde encontramos a mesma repetição.
5 Neste sentido, são exemplares os atuais programas de televisão BigBrother, Casa dos artistas, etc, que se apoiam, exatamente, nesta perspectiva pós-moderna de total visibilidade do campo privado.
6 Trata-se de Rainer Marie Rilke.
7 A partir de Lacan, é possível estabelecermos uma diferença entre identificação imaginária e simbólica. Na primeira, a relação do eu com o objeto é de fascinação, não existindo, portanto, a necessária mediação entre eles. Assim sendo, a experiência de perda do objeto, implicará numa perda de aspectos do próprio eu. Já, na segunda, acoplam-se identificação e perda do objeto, ou seja, o objeto perdido pode ser parcialmente assimilado ao eu enriquecendo-o, o que possibilita o reinvestimento em novos objetos.
8 Tratar-se-ia, neste caso, de identificações simbólicas.
9 Vinculado ao conceito de transversalidade em Análise Institucional que considera, em última instância, a impossibilidade de universalização do conhecimento da realidade, supondo uma multiplicidade de causalidades no campo social (de ordem afetiva, política, profissional, etc)
10 Neste sentido, a identificação imaginária do sujeito com a instituição, acaba por produzir resistências às mudanças institucionais.
11 Para Virilio, acidentes são todos aqueles acontecimentos capazes de desarrumar uma lógica hegemônica de funcionamento social-institucional. (Virilio:1983)