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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.4 n.2 Fortaleza set. 2004
ARTIGOS
Sujeito, sofrimento psiquico e contemporaneidade: uma posição
Henrique Figueiredo Carneiro
Psicanalista. Doutor em fundamentos y desarrollos psicoanalíticos (UPCO-Madrid). Professor titular e Coordenador do Mestrado em Psicologia da UNIFOR. Coordenador do LABIO - Laboratório sobre as novas formas de inscrição do objeto e do CLIO - Clínica do Objeto. Membro do GT Psicopatologia e Psicanálise da ANPEPP. Pesquisador da Associação Universitária de Pesquisadores em Psicopatologia Fundamental AUPPF. End.: Rua das Mangueiras, 280, Casa 500. Bairro Edson Queiroz. Fortaleza-CE. CEP: 60812-495. e-mail: henrique@unifor.br
RESUMO
A clínica psicanalítica se depara hoje com os efeitos de novas realidades discursivas. Entre elas, o discurso da tecnociência merece grande destaque por afetar radicalmente a posição do sujeito diante do objeto de consumo e, conseqüentemente, a relação que estabelece com o corpo em função do mal-estar na cultura. Este artigo discute a partir da transferência, a posição do analista diante desta realidade discursiva e aponta os efeitos sintomáticos do discurso tecnocientífico em função do incremento das adições e do apagamento do sexo como formas constatáveis de dessubjetivação.
Palavras-chave: discurso tecnocientífico; posição do analista; clínica psicanalítica; transferência; clínica do objeto.
ABSTRACT
The psychoanalytic clinic is faced today with the effects of new discursive realities. Among them, the technoscience discourse deserves a major distinction for effecting, radically, the position of the subject before the object of cosumption, and, consequently, the relationship that is established with the body in terms of the culture discontent. From the transference perspective, this article discusses the analyst position before this discursive reality and points at the symptomatic effects of the technoscientific discourse related to the increase of addictions and the nulling of sex as contestable ways of unsubjectivation.
Keywords: technoscientific discourse; analyst position; psychoanalytic clinic; transference; clinic of the object.
Para apreendermos o sentido do Sofrimento Psíquico na contemporaneidade, a Clínica nos indica uma porta de entrada sobre um dos pontos que devemos - nós psicanalistas - levar em consideração sobre a referência freudiana de que a psicanálise deve ser reinventada a cada escuta. Se ela só existe quando sustentada no dispositivo da palavra, implica que a sua recriação ininterrupta inclua, necessariamente, a leitura dos impasses simbólicos que cada indivíduo transforma em sintoma quando é chamado a prestar contas de uma posição subjetiva, que se traduz na maneira como ele se relaciona com o objeto.
Sendo assim, não podemos ficar presos a conceitos que escravizam a escuta na clínica a uma posição rígida e preestabelecida, sob pena de não reinventarmos a psicanálise. Escutas pautadas exclusivamente sob os auspícios da estrutura psíquica merecem hoje uma grande reavaliação, na medida em que não respondem às metamorfoses típicas da noção de sintoma que estamos assistindo no cotidiano, no concernente as novas formas de manifestação do sofrimento psíquico. Assim, a posição do analista deverá acompanhar dinamicamente o pré-posicionamento que o paciente ocupa com referência ao objeto, sem que com isso possa implicar em um esvaziamento do seu lugar. É esta a dinâmica de posições situada entre o lugar do analista e a aparição do sintoma trazido pelo paciente, isto é, uma referência homônima e diametralmente oposta, a que o sujeito traz para o dispositivo analítico e que se apresenta como uma jóia rara para o analista se posicionar sobre o que ele entende por Sofrimento Psíquico.
Com isso queremos ressaltar que, os grandes sintomas apresentados na contemporaneidade tais como a toxicomania, a anorexia, a TPM, a depressão, extrapolam os limites da escuta clínica das estruturas e nos convocam a pensar sobre uma outra forma de clinicar. Pouco a pouco nossa época nos mostra que os sintomas que se formam, clamam por uma clínica de posições, na medida que o que se joga neste espaço, longe de ser uma discussão apriorística estrutural de onde o sujeito fala, indica que é de extrema importância uma escuta que possa acompanhar tanto a origem quanto a posição para onde ele se dirige com esta fala. Esse destino aparece na psicanálise como a causa e a busca de realização do sujeito, na medida que daí podemos depreender a relação do sujeito em função do seu fantasma.
A posição do sujeito frente à droga, ao alimento, ao sexo, enfim, ao objeto, nos traz novas nuances clínicas que podemos tratar por meio do estudo articulado entre a Dietética e a Psicanálise, sobretudo quando inserimos uma construção que a clínica nos mostra cotidianamente com relação aos ideais e o lugar que cada sujeito ocupa na sua existência. Os ideais e o lugar podem ser traduzidos tanto pelo campo da estética, como pelo verdadeiro índice da ética em psicanálise, denotando uma clínica dos impasses.
Não se trata de fazer uma clínica dos ideais, pois toda posição há de ser desidealizada no processo analítico, como condição indispensável à construção da verdade do sujeito, diferentemente da verdade do sintoma. O que se pretende é a instituição de uma escuta que indique principalmente um sofrimento do sujeito frente aos objetos que são convocados por meio do seu desejo. Por outro lado, o dispositivo que a análise nos faculta para a invenção de uma posição - nesta gama variável de sintomas que nos oferece a contemporaneidade, é uma referência que Freud nos mostrou muito cedo na sistematização do processo analítico, com o dispositivo clínico da transferência.
A transferência coloca para o paciente, o analista em uma posição de objeto de amor. E é a partir dela que podemos reinventar a clínica. Portanto, reinventar a clínica não é um enigma que possa ser confundido com um dom herdado aos que possuem um faro analítico. É algo factível para aqueles que ocupam e suportam o lugar que o paciente o indica. Não é que o analista possua o dom de amar, pois há muitos em condição de abandonados pelo seu objeto de amor idealizado. Na clínica, ele há de suportar e até reinventar esta posição de amante que lhe é atribuída, exatamente para permitir uma passagem do Sofrimento à construção de uma posição do paciente como um sujeito ao sofrimento2. Em outras palavras, queremos assinalar que a verdade do sofrimento no cotidiano reside na esfera do amor e a diferença da permanência do paciente na verdade do sintoma ou na abertura à verdade do sujeito, depende do manejo que o analista dá a esta peça fundamental no processo psicanalítico. Isto é importante para uma análise do sofrimento psíquico gerado no cotidiano e na permanência do paciente que hoje nos procura na clínica psicanalítica3.
O sofrimento psíquico que hoje nos chega à clínica denota o fracasso de um ideal de realização que passa diretamente pelo viés da estética. Neste ponto vale a interrogação: existe clínica sem estética? Bem, se levamos em consideração que todo sujeito se encontra aferrado a uma estética do sofrimento em nome de uma idealização, poderíamos responder taxativamente: não! E justificamos esta taxativa resposta a partir da relação que cada sujeito mantém com o objeto prazer/sofrimento. Em um segundo momento, poderíamos perguntar se haveria uma clínica sem ética e a resposta também seria um não redundante, a partir do momento que a ética do sujeito não seria outra coisa senão a tentativa de dizer algo sobre o objeto, apoderando-se de uma posição sobre o mesmo. E aqui reside o fracasso de uma satisfação, na medida em que quanto mais se adianta o processo analítico mais a sensação de angústia aproxima o objeto para um lado externo à posição que o sujeito ocupa em referência a ele.
Assim, a clínica do objeto, se apresenta como uma clínica da expropriação do objeto. Quanto mais o sujeito vive a ilusão de uma apropriação literal do objeto, mais ele se aproxima de uma alucinação psicopatológica, em contraposição à alucinação desejável, que é aquela que aparece diariamente nos sonhos e nos chistes como Freud (1900/1981a, 1901/1981b), já aponta na Interpretação dos Sonhos e na Psicopatologia da vida cotidiana e que tem uma função restauradora, quando pensamos o lugar que o sujeito deve ocupar frente ao objeto.
Dito de uma outra forma, se o sujeito se apropria do objeto em sua dimensão real - uma dimensão esvaziada de um poder ficcional - passa a viver uma alucinação dos laços sociais e os efeitos serão notados na maneira como tenta representá-los. E a contemporaneidade nos demonstra várias outras formas de tentativas de apropriação do objeto que não encerram necessariamente uma psicotização estruturante do sujeito, no sentido psicopatológico do termo. É aqui onde podemos fundamentar uma clínica do objeto em função da posição e do pré-posicionamento, i.e., nos espaços em que o sujeito tenta a todo custo se apropriar do corpo como objeto, sem enlaçá-lo com a palavra, indicando sua desesperação por uma estética da existência. Esta clínica nos mostra varias sintomatologias em que o objeto é convocado a se fazer presente na estética da imagem. Por isso, assinalamos anteriormente que não poderíamos correr o risco de trabalharmos com uma clínica dos ideais.
Na medida em que o objeto é transformado literalmente na posição de consumo aparecem com ele várias formas de concretização desse consumo. Ele pode vir sob a forma do belo, amparado pela idealização do social e que pode ser retomado sob várias justificativas perfeitamente plausíveis à dimensão do objeto fabricado como promessa de felicidade. Neste sentido, o Mal-estar na Cultura, onde Freud (1930) aponta entre tantas facetas, a possibilidade de uma leitura dedutiva da tecnologia como uma encarregada na fabricação de artefatos redutores do sofrimento psíquico, recebe uma atualização contundente na indústria sutilizada da moda. Ali onde os pharmakós são apresentados como eliminadores de mal-estar, atualizando a memória das funções do corpo, sem convocar o sujeito à construção da sua verdade, será também a oportunidade que o sujeito encontrará para se desfazer do dispositivo da palavra que sabemos ser a oportunidade que ele tem para recriar a ficção da vida. São estes os pontos, entre tantos outros, dispostos pelo discurso capitalista que assume a cara do mal-estar na civilização e de onde podemos imaginar na contemporaneidade um sujeito que se permite viver sem a marca da divisão que a palavra impõe como limite às experiências totalitárias.
É este o campo de posições que detectamos na clínica contemporânea e que situamos no espaço da estética e da ética, dois caminhos que podem ser coadjuvados pela posição que a dietética do consumo nos faculta, quando estudada pelo viés do desejo em psicanálise.
Determinado este campo de impasses, passaremos a averiguar melhor sobre duas impossibilidades: o lugar do objeto, indicador de um fracasso de realização, por um lado e, finalmente, uma consideração sobre o fracasso da dieta que se tenta expressar na contemporaneidade, quando se ensaia consumir o objeto na sua condição mais radical, isto é, na sua condição real sem o revestimento ficcional. Vamos retomar o que dissemos sobre a posição do sujeito frente à droga, ao alimento, ao sexo, enfim, ao objeto que se mostra através do estudo articulado entre a Dietética e a Psicanálise.
O que se encontra na base da estética e da ética para a psicanálise, pode ser delineada a partir da transformação dietética do objeto, de uma posição das necessidades em direção à construção das demandas. Isto implica dizer que para a psicanálise a Dietética é tomada pela via do desejo. Pode ser constatado em Freud na própria experiência de alucinação que determina a construção do aparelho psíquico. O aparelho é fruto de uma alucinação do objeto que resta como um índice de seu desaparecimento. Esta operação apresenta um jogo estético de muita importância por conjugar imagem e significantes e que se apóia no Seminário VII, quando Lacan (1959-1960/1988a) nos diz no Capítulo destinado a Crítica de Bernfeld, que a estética freudiana deve ser tratada como uma economia dos significantes, na medida em que sempre nos demonstra uma inacessibilidade à Coisa. Ao mesmo tempo destaca que esta estética encerra uma das funções da ética.
É enquanto uma das funções da ética que podemos começar a desenvolver uma leitura da estética do sofrimento psíquico na contemporaneidade e construir um discurso sobre as conseqüências do fracasso da realização, como acentuamos anteriormente. O sujeito após a sua experiência alucinatória tenta a todo custo restabelecer um contato factível com o objeto desaparecido. Uma das vias passíveis desta operação, como sabemos, se instala no campo das idealizações e se compacta imaginariamente com o fracasso da realização de um projeto estético que torne presente o objeto desaparecido.
O importante agora é demarcar que enquanto uma economia de significantes, a estética na psicanálise pode ser levada a extremos e fazer o sujeito prescindir da condição de articulador de um discurso. Entra em ação neste contexto uma certa perda de memória que representa um colapso para a funcionalidade do corpo. Esta operação aponta a um fracasso das funções que podem chegar ao extremo de uma falência dos órgãos.
Em uma pesquisa que realizamos na Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental - AUPPF - intitulada A pergunta pela saúde: o limite simbólico do sujeito frente à enfermidade -, discutimos que não há nada de óbvio no papel do médico, quando o situamos em uma função que corresponde a uma resposta ao desamparo daquele que pacientemente se vê desprovido de recursos simbólicos, no caso de uma desorganização do funcionamento do corpo. A resposta prescrita por meio de fármacos vai atuar na recomposição da memória do corpo. O fármaco comparece como uma espécie de cimento, um amálgama que cumpriria com a função real, simbólica e imaginária no processo de sutura de uma fratura exposta pelo colapso funcional dos órgãos.
Enquanto obturador de uma fratura real, ele teria a função de cumprir com o objetivo de rearticular órgãos, colocá-los em funcionamento, isto é, dar uma certa normalização ao corpo. Em outras palavras, o fármaco é chamado por quem prescreve, uma espécie de legislador do real, a ocupar o lugar imaginário, a preencher uma brecha que possibilite outra vez a construção de um sentido que seja simbolicamente sustentável por um discurso, uma condição que torne o sujeito outra vez capaz de dizer quem ele é no plano do factível desamparo que a condição de enfermo o submete.
A clínica do objeto vem apresentar uma espécie de proposta a esse impasse, pois o grande desafio da psicanálise hoje passa indiscutivelmente por um posicionamento que venha a assumir dentro do marco discursivo da ciência contemporânea, que privilegia o artifício tecnológico e a engenharia genética no mapeamento das origens. Em outras palavras a psicanálise é chamada a dizer algo sobre o que Freud nos indicava já em 1920, diante da referência do que existe no Além do princípio do prazer, desta feita com uma marca exacerbada de um gozo sem barreiras, promulgado pela sensação de potência que o discurso tecnocientífico oferece pela via do consumo, nos moldes que Melman (2003) comenta.
Com isso, queremos demarcar a economia parcimoniosa de significantes que, quando levada ao extremo, enfraquece o discurso e o sujeito atua com o corpo na sua dimensão real. É nesse ponto que o sujeito passa a adietar-se não mais dos significantes, pois emprega uma outra espécie de economia, por exemplo, a demanda exacerbada de amor situada muito próximo do dispositivo das necessidades. Nesse movimento podem ocorrer atos extremos, verdadeiros atentados contra o corpo do sujeito. Tudo em busca da eliminação do mal-estar que se apresenta, imaginariamente, como uma elisão das marcas da divisão que a palavra representa, demonstrando que seria pertinente pensar uma relação entre a dietética e a estética onde o sujeito adietado pela falta de amor apresentasse uma opção de ser todo, completo, inclusive apagando as marcas com que identifica a realidade, que podemos ilustrar com o exemplo da anorexia quando o sujeito reage com estranheza ao fato de que seu corpo definha.
Assim, a posição do sujeito frente ao objeto indica a partir da Dietética, uma espécie de arte de viver que se conforma de acordo com uma estética. E esta estética denota uma falência, quando o sujeito não mais tomado pelo alimento e sim em nome de quem o conduz, faz uma transubstanciação dele em corpo. Corpo a ser amado, gozado, enfim falado em todas as suas implicações. Frente à pergunta crucial da nossa época, na qual o sujeito se indaga sobre sua posição frente ao objeto, a Dietética responde como algo inerente a uma articulação com a estética, permitindo que se arme uma equação do tipo Dietética + estética = Die($)tética, em que o sujeito postulante de uma espécie de satisfação com o objeto alimento, bem como com qualquer outro objeto que ganha a dimensão de um objeto dietético, encontrar-se-á tão somente com uma falta que os transtornos alimentares não dão conta, seja na anorexia, na bulimia, na obesidade ou outra qualquer forma de traduzir ao corpo o gozo a ser vivido pela falta de objeto. Da mesma forma, poderíamos apontar os atos compulsivos que o sujeito denota frente aos objetos de consumo, incluindo aí o sexo como algo claramente situado nesta categoria.
Com isso, conceitos como o de trauma e objeto, são de grande valia para se pensar as saídas subjetivas para o sofrimento psíquico na contemporaneidade. Podemos iniciar esta articulação com uma pergunta. O que fazer com o resto que se depreende de toda e qualquer operação econômica dos significantes? Esta preocupação aponta diretamente ao lugar do encontro com o real. Um encontro que Lacan no Seminário XI (1964/1988b, p. 57) situa com relação a tyche, destacando que:
a função da tyche, do real como encontro - o encontro enquanto que pode faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso - se apresenta primeiro, na história da psicanálise, de uma forma que, só por si, já é suficiente para despertar nossa atenção - a do traumatismo.
Podemos, mediante esta construção, trabalhar com a tecnociência enquanto uma conjunção que, unindo ciência e tecnologia, tenta dar conta de um produto que almeja responder de uma forma bem lograda, o encontro do sujeito com o real, mediante a lógica do consumo. Radicalmente, a tecnociência tenta promover o desaparecimento do resto. Há uma aposta no processo primário4 como uma saída exclusiva frente à posição do sujeito situado diante da cultura. Por outro lado, se a diminuição de mal-estar se opera hoje com o poder de provocar no sujeito respostas quase químicas é porque o objeto de consumo tem a pretensão de rivalizar com o semblante do objeto que causa o desejo, criando-se uma espécie de verdade fast food que se instala mediante os produtos da tecnociência. Estamos diante da criação de efeitos químicos light, promovidos pela via do consumo indiscriminado.
O sujeito, acreditando-se sem trauma, distancia-se de sua capacidade de subjetivação. Simplesmente vai apagando as pegadas que o leva à construção do inconsciente, quando a tecnociência utilizando-se de uma estética das relações incute a inexistência do resto por meio da factibilidade do objeto de consumo. Em outras palavras, o sujeito se decompõe precisamente quando construir a verdade, por meio da linguagem, aparece discursivamente como uma tarefa desnecessária em tempos de consumo do gozo. Essa é uma forma de apagamento na aposta do inconsciente construído em função da verdade dobre o sexo, promovido pela tecnociência.
Desta forma, considerações sobre o trauma e a repetição em psicanálise aparecem como dois conceitos fundamentais para a clínica psicanalítica, sempre que repensamos a psicanálise com as novas formas de inscrição do objeto, inerente a cada época. É uma outra forma de falarmos de posição no dispositivo analítico, por ser uma questão diretamente atrelada com o conceito de transferência.
Nossa época, indiscutivelmente, caracteriza-se pela reverência a tecnociência que avança sobre todos os terrenos do conhecimento e, principalmente, atinge de cheio a posição do sujeito em sua articulação fantasmática, quando pensamos sua relação com o objeto. Um objeto que há de aparecer na sua radicalidade mais precisa exatamente quando se pensa haver destruído o caminho das formações do inconsciente. Este é o ponto de inflexão entre o que é o sujeito e o Outro e que atualiza a pauta da subjetividade entre aquilo que o sujeito deve ter e aquilo que deve ser.
Assim, entramos na época da tecnociência mediante o objeto prêt-à-porter, isto é, a impressão de que o objeto está pronto, acabado, para ser consumido pelo sujeito. Nesse ponto reside toda a falácia dessa construção objetal.
Podemos traçar algumas inflexões sobre o trauma, a repetição e a tecnociência ali onde esta se anuncia como uma possível redentora do sofrimento psíquico.
O primeiro ponto importante reside no momento em que se registra a insistência do consumo como uma forma incessante de escrita por meio da falta que funda o desejo. Esse ponto é interessante porque guarda em si o fracasso da tecnociência enquanto um discurso causa do desejo. O discurso causa do desejo tomado por aquele que ocupa o lugar de semblante do objeto requer um esvaziamento a ponto de colocar seu ocupante na eminência de ser descartado, e de fato chega a sê-lo. O discurso da tecnociência tenta criar uma veracidade do consumo, descartando a idealização causa. Não há mais o objeto causa, o que há é a sede de consumo. Cria uma arma que só pode entrar na subjetividade negando a causa e elegendo um lugar para o sujeito no campo das adições.
O segundo ponto importante nesta direção é que os objetos da tecnociência entram na vida do sujeito mediante a insinuação de ser o semblante do objeto causa do desejo, porém o desautoriza quando faz do corpo a sua casa, apagando a mediação do amor. A conseqüência é a gravidade do sintoma e o sujeito alocado em uma posição de ser gozado por uma cadeia incessante de objetos de consumo.
Este ponto é importante porque vai se acoplar em uma hipótese clínica de trabalho que estamos desenvolvendo. O conceito de posição aparece dentro da clínica exatamente quando o sujeito que chega já tocado por uma angústia insuportável, não mais demanda ser negado em sua demanda, pois esta não se configura somente como uma demanda de amor. A demanda que comparece à consulta é exatamente esta a que seja rompida uma cadeia de atos repetitivos situada ali onde o discurso enfraquece. Se o discurso enfraquece o sujeito adoece.
O terceiro ponto é que o sujeito adoece por estar ferido de morte. Ferido na fantasia, o seu fantasma comparece sem mediação entre seus elementos. O sujeito aparece costurado por uma linha que esconde sua fenda que antes deflagrava a divisão subjetiva. Daí surge o emaranhado mais vital para a leitura clínica da posição do sujeito hoje.
Esta posição, que apontamos como o quarto ponto destacável, indica um sujeito preposicionado, isto é invariável enquanto uma referência à preposição e uma aberração gramatical, tomado por uma junção onde o objeto de consumo perdeu a conotação de um simples objeto passageiro em sua representatividade, mas, permanente em sua continuidade. Por isso, apontávamos no segundo ponto um sujeito preposicionado ao gozo que, em outras palavras, significa dizer gozado por uma cadeia incessante de consumo. Não se trata aqui de uma mera retórica ou semântica e sim de uma constatação clínica, pois a gramática não comporta esse sujeito a que nos referimos.
Assim, chegamos ao último ponto em que o sujeito preposicionado não se implica na tarefa de romper com a cadeia de repetição do gozo. Isso implica dizer que, o sujeito é repetição do gozo do objeto ou, simplesmente, é gozado pelo objeto. A implicação desta afirmação é que ser gozado pelo objeto dá a esse mesmo objeto a função de um Objeto gozador. Há várias implicações a partir desta referência. A primeira é que esse objeto gozador ou simplesmente este Superobjeto aprisiona o sujeito, tornando-o um sujeito preposicionado. Um sujeito em franca dessubjetivação, porque esse Superobjeto gozador tem a pretensão de se aparelhar à posição de Outro para o sujeito.
A segunda é que enquanto Superobjeto gozador, podemos destacar que ao mesmo tempo em que aponta na direção de um esvaziamento do sujeito, temos que admitir que há um deslocamento brutal entre o referencial organizador da Lei que se antes emanava de um ponto articulador entre uma figura mitológica e a construção do sujeito, hoje se esvazia simbolicamente quando este mesmo Superobjeto representa a tecnociência. A conseqüência mais funesta é o dado incontestável de que ela não trabalha pela via do mito.
A tecnociência trabalha em função do real que se encrava nos confins do corpo, encontrando também neste ponto o fracasso da sua verdade. Assim, seu trabalho se situa engajado em uma cadeia produtiva que se apóia na lógica capitalista do discurso. E esta lógica apaga a moral sexual civilizada nos modelos descritos por Freud em 1908, e nos convoca a construir respostas sobre uma interrogação: a que moral sexual estamos respondendo hoje? Podemos situar esta resposta na ordem discursiva da nossa época por meioêda lei do consumo.
E qual é a ordem sexual imposta por esse Superobjeto gozador representado pela tecnociência? A negação do limite de consumo. Isto é o mesmo que falar de um gozo excessivo de um objeto encravado no corpo, mas que ao mesmo tempo possa esconder aquilo que de mais sexual pode servir à psicanálise. E o que entendemos como o de mais sexual que a psicanálise nos aponta é todo o construto da posição do inconsciente em que as operações de alienação e separação colocam o sujeito em movimento e em direção a sua condição de errante.
Dessa forma o mito moderno da horda primitiva cede lugar a uma catástrofe que aproxima mais o sujeito de um encontro falhado, porém com um revestimento que pretende ser da ordem de um semblante. Se antes a ordem sexual se deu mediante a impostura tirânica de um Pai gozador, hoje a tecnociência produz um Superobjeto gozador, desafiando quem pode mata-la para ter acesso ao domínio de produção.
E esta lógica muda completamente a posição do sujeito que ficando preposicionado ao objeto se planta em uma posição de fixidez, pois se de um lado a ciência, originariamente se ocupava do saber, hoje hibridamente produz objetos com a pretensão de ser apresentado ao sujeito pela via da verdade. Saber e verdade mudam completamente a esfera da resposta subjetiva e a conseqüência é o que nos referíamos no principio deste trabalho. O sujeito está ferido de morte naquilo que de mais sagrado há, isto é na sua articulação fantasmática. O esfacelamento da função do conceito de punção provoca uma aderência do objeto ao sujeito
Assim, o que compacta o sujeito é um sombreamento sobre sua fenda e ali onde antes se indicava uma divisão agora se aplaca um empobrecimento de sentido. Em outras palavras, a função semblante do Superobjeto promovido pela tecnociência tenta recobrir aquilo que ela tenta esconder em nome do fracasso da eficiência e da eficácia: o resto desta operação.
Esta compactação sugere o hibridismo objetal sobre uma falta que se tenta apagar e que é fruto da eliminação do mito que gera uma ordem sexual descrita nos moldes freudianos. A ordem sexual não acaba, é obvio, para nós psicanalistas, porém, uma ordem sexual outra se impõe por uma presença forte de uma posição de domínio emanada da lógica feminina que a ciência ocupa quando se junta ao seu incontestável complemento fálico - a tecnologia - para sustentar o consumo do objeto verdade prêt-à-porter.
A sugestão que aparece e que é transformada em sintoma pelo sujeito vai aparecer na invenção de um objeto alucinado, resultado de uma operação compactada entre a superposição do objeto de desejo e o objeto da pulsão. O que fica de fora é o objeto de amor, desmitificado que é pela tecnociência.
A saída subjetiva para quem se vê atravessado por esta lógica reprodutora da ciência, assistimos, preponderantemente, mediante o gozo incessante do sujeito frente a uma desculpabilização pelo ato de consumir. E isso é importante porque não podemos tomar a repetição mediante uma reprodução do modelo tecnocientífico da sugestiva invenção de um 4º objeto, que nem é mais do desejo, da pulsão e muito menos no amor, pois a tecnociência desbancou a possibilidade do sujeito se fazer sujeito mediante a morte do tirânico pai da horda primitiva. Ela matou os efeitos do Pai da horda e retira do sujeito a culpa pelo consumo. E o sujeito levado ao nível máximo da desculpabilização age em função do laço-modelo que é sugerido pela verdade prêt-à-porter da tecnociência. Este é o percurso que podemos fazer para ler a produção perversa que se faz em nome dos laços sociais vigentes.
Agir a partir do laço-modelo implica em responder com o que resta ao sujeito. A possibilidade de encontrar um sentido com o corpo, oráculo primitivo da passagem natureza-cultura, isto é, no atravessamento que a gora a desmesura limite e gozo impõe como a verdade adquirível, aponta para o desvelamento do real na fenda tamponada apenas com o sombreamento de um quarto objeto alucinado. É neste ponto em que o sujeito afunda e, paradoxalmente, onde resta um traço reconstituível da subjetividade. Quero dizer que é neste ponto onde se pode reconstituir a nervura fantasmática do sujeito. Ali onde o analista possa do lugar de uma suposição, posicionar-se como o semblante de objeto. Isso aponta a uma dinâmica restauradora da articulação subjetiva do sujeito adito a corporalidade exacerbada de nossa época e toda a gama de objetos redutores de mal-estar que a tecnociência promulga.
É deste lugar, da restauração da dúvida e do limite ao incomensurável que podemos resgatar a metáfora da existência. Assim, a repetição se diferencia da reprodução como Lacan nos sugere ao dizer que:
(...) não há como confundir a repetição nem com o retorno dos signos, nem com a reprodução, ou a modulação pela conduta de uma espécie de rememoração agida. A repetição é algo que, em sua verdadeira natureza, está sempre velado em análise, por causa da identificação da repetição com a transferência na conceitualização dos analistas. (Lacan, 1964/1988b, p. 56).
Desta forma, para pontuar as saídas subjetivas para o mal-estar da época, devemos ficar atentos para os sintomas que hoje saltam do sujeito em função da estética do social, para não esquecermos que a estética desafia o analista a causar a posição ética própria do sujeito. E o desafio impõe uma ampliação da escuta em nome das demandas que se multiplicam para não confundi-la simplesmente com a referência de que toda ela é de amor e que por isso nada podemos fazer diante da força de um discurso que se engendra no espaço do consumo, mas que suas origens apontam ao capitalismo. Ela pode está comparecendo ao consultório em nome do amor que foi retirado pela tecnociência quando engendra um objeto em função da ordem do gozo sem fronteiras.
É este o terreno propício às adições, que pega o sujeito de forma desavisada, corroendo sua marca subjetiva em função do objeto pronto a ser utilizado a qualquer momento. A ruptura do lugar da falta de objeto de amor convoca o analista a pensar sua posição frente a sua intervenção.
Podemos dizer, sem temores, que estas são as novas perspectivas e desafios da transmissão da psicanálise hoje, isto é, por meio das formas de manifestações do sofrimento psíquico que envolve hibridismos, quebra de barreiras, limites e impõe uma porosidade sem precedentes nas relações que sustentam os laços sociais. Trata-se, pois, de uma releitura sobre o conceito de posições e das relações sujeito e objeto, pois é nessa dinâmica que podemos re-significar o amor de transferência e suas exigências à escuta clínica. Esta é a proposta que se pode depreender sobre o lugar do objeto que hoje funciona como indicador de um fracasso de realização das dietas sustentadas pelo discurso do consumo em que a tecnociência ocupa silenciosamente o lugar de vanguarda, por ser a retentora da lei do consumo.
Referências
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Recebido em 02 de junho de 2004
Aceito em 20 de junho de 2004
Revisado em 10 de agosto de 2004
Notas
1 Na discussão entre a verdade do sintoma e a verdade do sujeito, se insere hoje o discurso da tecnociência. Esta inserção indica uma presença intrusiva que nos serve como uma referência de que muitas das funções a que estávamos acostumados a trabalhar pelo recorte de discursos estabelecidos oriundos da ciência, da religião, da arte, da técnica, entre tantos outros, sofrem uma torção precisamente por estarem atravessados pela presença do hibridismo inerente ao discurso da tecnociência. Para uma primeira aproximação indicamos a leitura de Hermetes de Araújo (org.) (1998). Tecnociência e Cultura: ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade. Esta obra apresenta a discussão de que estamos diante de um questionamento do estatuto do saber que se desloca da ciência para uma outra composição situada no campo da tecnociência.
2 A propósito da dinâmica estabelecida entre o amante e o amado, nos situamos na referência do Seminário VIII - A Transferência, de Jacques Lacan, quando no capitulo sobre "A mola do amor, ao fazer o comentário a respeito da Metáfora do amor: Fedro nos diz: o problema do amor nos interessa na medida que vai nos permitir compreender o que se passa na transferência - e, ate certo ponto, por causa da transferência" (Lacan, 1992/1960-1961, p. 43). A grande importância dessa passagem se atribui à metamorfose que se registra entre as figuras do amante e do amado.
3 É importante lembrar aqui uma passagem de A Dinâmica da Transferência (1981d/1912, p. 1651), quando Freud diz que a "transferência que surge no processo analítico se apresenta como a arma mais poderosa da resistência, de onde se conclui que a intensidade e a duração da transferência são efeito e manifestação da resistência". (Tradução livre do trecho extraído das obras completas de Freud, publicadas pela Biblioteca Nueva). A importância a ser destacada aqui é exatamente essa confluência entre transferência e resistência, quando pensadas na manutenção do sintoma ou na construção da verdade do sujeito, apontando o que Lacan chama de resistência do analista. "Especula-se muito sobre a resistência do paciente, enquanto que a resistência, como eu disse, tem sua origem no analista mesmo. A boa vontade do paciente não pode encontrar nada pior do que a resistência do analista" (Lacan, 1976-1977, Sem 24. Lo no sabido que sabe de la una-equivocación se ampara en la morra. Aula no. 4 - Efectos del significante, 11/01/77). "(...) Resistência, existe uma só: a resistência do analista. Ele resiste quando não compreende o que tem diante de si. Não compreende o que tem diante de si quando acredita que interpretar é mostrar ao sujeito que o que deseja é tal objeto sexual. Equivoca-se. O que ele imagina que aqui é objetivo é uma pura e simples abstração. É ele quem está em estado de inércia e resistência" (Lacan, 1955/1985, Sem 2. O eu na teoria de Freud. Aula no. 18 - O desejo, a vida e a morte).
4 Vale destacar a nuance que estamos dando a esta construção, por tomar como base os discursos da tecnociência, do capitalista, e do consumo, e seus efeitos sobre o sujeito em função do deslocamento que sofre na posição de adito que se estabelece junto aos objetos ofertados por estes discursos, com a finalidade de diminuir a sensação de mal-estar. A escuta psicanalítica hoje deve estar atenta a estes dispositivos discursivos e os psicanalistas mais ainda as bases metapsicológicas da psicanálise, pois o que está em jogo é uma releitura do princípio do funcionamento do aparelho psíquico, a partir de passagens como "em outras palavras, toda estimulação tende a produzir uma alucinação. O principio do funcionamento do aparelho j é a alucinação. Eis o que processo primário quer dizer" (Lacan, O Seminário. Livro II, 1954-1955/1985, p.141). Assim, a construção que estamos fazendo indica que devemos retomar leituras de base, para sustentar efeitos provocados por estímulos que sobrecarregam diretamente o aparelho psíquico, devido aos danos promovidos pelo objeto de consumo que faz o sujeito alucinar acordado.