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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.6 n.1 Fortaleza mar. 2006
ARTIGOS
Adolescência: ato e atualidade*
Bianca Bergamo SaviettoI; Marta Rezende CardosoII
IPsicóloga, Aluna do Programa de Pós-Graduação de Mestrado em Teoria Psicanalítica no Instituto de Psicologia da UFRJ. Bolsista da CAPES. End.: R. Aristides Espínola, 64 / 802. CEP: 22440-050 Rio de Janeiro, RJ. E-mail: biancasavietto@yahoo.com
IIPsicanalista, Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise - Universidade de Paris VII, Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UFRJ (Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica); Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora do CNPQ. End.: R. Gustavo Sampaio, 710 / 1805 CEP: 22010-010 Rio de Janeiro, RJ. E-mail: rezendecardoso@ig.com.br
RESUMO
Este artigo pretende explorar um significativo aspecto da clínica psicanalítica atual: o incremento do fenômeno das passagens ao ato em sujeitos adolescentes. Para realizar essa investigação, partimos de um breve estudo sobre o papel do corpo na adolescência. Este serve de base para uma reflexão sobre a questão das "transações narcísicas" e da re-vivência da situação de desamparo própria dessa experiência subjetiva, que marca a passagem da vida infantil à vida adulta. Analisando vários ângulos envolvidos na questão, tenta-se mostrar como uma eventual convocação do corpo, sob a forma do ato, possui um caráter de resposta, resposta extrema, à qual o ego pode apelar diante de uma vivência interna de transbordamento pulsional, aliada a um estado de fragilidade narcísica. Estes aspectos, de natureza mais metapsicológica, são também articulados com certas peculiaridades do contexto em que vivem hoje os adolescentes ocidentais, na busca de uma maior compreensão da relação entre subjetividade e cultura e de seu papel numa investigação psicanalítica sobre a psicopatologia da adolescência.
Palavras-chave: adolescência, narcisismo, desamparo, ato, contexto cultural
ABSTRACT
This paper aims at examining a meaningful feature of psychoanalytic clinic nowadays: the increase of the phenomenon of acting in adolescent subjects. In order to accomplish this investigation, we start from a short study of the role of the body in adolescence. This study serves as a basis for a thought about the issue of "narcissistic transactions" and the revival of the situation of helplessness, peculiar to the subjective experience that marks the passage from infancy to adult life.Analyzing many angles in this issue, the Authors try to show that an occasional appeal to the body in the form of an acting has the character of a response, extreme response, to which the ego may appeal in face of an inner experience of drive overflow, associated to a state of narcissistic frailty. These features with their metapsychological nature are articulated to certain peculiarities of the context in which the western adolescent lives, in an attempt at understanding the relationship between subjectivity and culture, and its role in a psychoanalytic inquiry about the psychopathology of adolescence.
Keywords: Adolescence, narcissism, helplessness, act, cultural context
Adolescência: ato e atualidade
A adolescência configura um campo de investigação extremamente amplo quando analisado por uma perspectiva psicanalítica. Isto decorre do fato de a psicanálise não definir a adolescência apenas pelos aspectos vinculados à mudança corporal, e de não a compreender somente em termos de uma faixa etária (Pinheiro, 2001). Quando o acento recai sobre o viés biológico desse estágio do desenvolvimento humano, costuma-se utilizar o termo puberdade. Em psicanálise, no entanto, a tônica é colocada nas repercussões psíquicas geradas pela chegada do sujeito a essa etapa de sua vida.
O processo da adolescência é delineado, portanto, por um conjunto de reflexos psíquicos produzidos pelas novidades pubertárias e envolve, assim, uma série de questões metapsicológicas. Vale ressaltar que, embora sem fazer uso do termo adolescência, Freud pôde abordar esta problemática, particularmente nos Três Ensaios sobre a Sexualidade (1905/1976a), dedicando-se a explorar os pontos mais fundamentais envolvidos na puberdade, processo que, ainda que ancorado nas transformações corporais, é analisado por Freud enquanto experiência subjetiva de ruptura com a vida infantil e travessia rumo à vida adulta. No terceiro ensaio, dedicado especialmente à puberdade, são colocadas em relevo as complexas determinações e implicações inconscientes dessa experiência na dinâmica pulsional.
Iniciamos este artigo examinando a emergência de novos aspectos pulsionais como ressonância da aquisição de um novo corpo, e o remanejamento dos referenciais identificatórios.
A adolescência é o momento em que se deixa para trás o corpo infantil e em que se adquire um novo corpo, agora de adulto; corpo genitalizado que promove a ativação de uma pulsionalidade até então não experienciada. A obtenção desse novo corpo implica, simultaneamente, a obtenção da capacidade reprodutiva. Ser adolescente significa ser apto à concretização de uma relação sexual genital e à concepção de um filho. Diante disto, no âmbito psíquico, ocorre a repetição da vivência do Complexo de Édipo, que havia sido colocado em suspenso pela entrada do sujeito no período de latência. O que havia "garantido" a suspensão das questões edipianas era, exatamente, a imaturidade, a impotência do corpo de criança para efetivar o ato sexual incestuoso. No entanto, segundo Chabert (1999), a ascensão do adolescente a uma vida sexual genital propriamente dita, e a intensidade com que a sexualidade é então experimentada fazem ressurgir a problemática edipiana de maneira impetuosa. Existe, assim, a possibilidade de que os pais do adolescente, como objetos internos, ganhem um colorido sedutor ou perseguidor (Marty, 1977).
Este último autor defende a idéia de que a passagem pela adolescência é marcada por uma violência interna, pulsional. De acordo com seu desenvolvimento teórico, as transformações fisiológicas experimentadas pelo adolescente demandam um trabalho psíquico que é
(...) violento por essência já que o adolescente é 'vítima' de uma mudança que ele não pode, em hipótese alguma, controlar: a puberdade é acionada de modo programado geneticamente, ela é totalmente independente do querer, e confronta o adolescente com uma reorganização completa de si mesmo no plano de sua identidade corporal, psicológica e sexual (Marty, 1997, p. 13. Tradução nossa).
As transformações pubertárias são impostas ao sujeito devido, simplesmente, a seu pertencimento ao conjunto da espécie humana. Sua vontade não exerce qualquer influência sobre o desencadeamento deste processo e sobre a manifestação de uma nova pulsionalidade por ele motivada. Por isto, freqüentemente, as modificações da puberdade são vivenciadas como advindas do exterior, fazendo com que o adolescente sinta seu corpo como "estrangeiro", habitado por novos e violentos aspectos pulsionais. A força readquirida pelo Complexo de Édipo nesta ocasião e a possível vivência de sedução ou de perseguição por parte dos objetos (internos) parentais contribuem para que o sujeito sinta-se violentado na adolescência. Além disto, o crescimento do corpo cessa na adolescência e dá lugar ao envelhecimento, o que traz ao sujeito adolescente uma também sofrida conscientização relacionada à sua própria finitude (Pinheiro, 2001, Op. cit.). Julgamos que estas considerações nos possibilitam afirmar que um abalo intenso das bases narcísicas está em jogo na adolescência e, sendo assim, que esta alude fundamentalmente à questão do narcisismo.
Costa (1988), no artigo intitulado Narcisismo em tempos sombrios, desenvolve uma apreciação acerca do termo narcisismo. De acordo com o autor, sempre baseado na obra freudiana, o narcisismo é, precisamente, aquilo que, por meio do investimento da libido no Ego, vai tornar possível a organização do sistema egóico.
Nesse trabalho, Costa sustenta que o Ego1, estruturado a partir do narcisismo, é uma instância psíquica que procura esquivar-se de mudanças, dado que estas podem ocasionar desprazer. Posto isto, ele afirma que o Ego possui uma função de manutenção do status quo, e defende, assim, que mesmo depois das formulações de Freud sobre o narcisismo (que, sabemos, irão dar origem, posteriormente, a uma nova dualidade pulsional e à segunda tópica), é possível afirmar que o Ego permanece como protetor da autoconservação. Esclarece, no entanto, que não se trata de uma autoconservação biológica, e sim da autoconservação da imagem do Ego de unificação.
A tomada em consideração destes aspectos levantados por Costa (1988) serve-nos como importante subsídio para a compreensão da fragilização egóica / narcísica que tem lugar na adolescência. Afinal, as transformações da puberdade demandam que o Ego - instância do aparelho psíquico que, conforme visto, resiste a mudanças - dê conta de uma reorganização subjetiva em planos diversos. A alteração da composição egóica é, por conseguinte, necessária; uma grande alteração que representa um forte ataque ao narcisismo. Costa (ibid.) afirma ainda que quando a integridade egóica é ameaçada, o sujeito é sinalizado por meio de sensações de angústia.
Essa questão da fragilidade narcísica engendrada pelas desestabilizadoras novidades pubertárias costuma ser acentuada por grande parte dos autores que se dedicam ao estudo da adolescência. Marty (2002), apesar de reconhecer a importância da angústia adolescente vinculada a essa fragilização narcísica, procura ressaltar que o enfraquecimento narcísico é imprescindível na adolescência. Isto porque o desligamento gradual das figuras parentais, no sentido da superação de um modelo relacional assentado no narcisismo primário - fonte, no mundo interno, da instância do ego ideal - é a chave para a abertura à via de subjetivação. O adolescente poderá, então, vir a investir em novas referências, ou seja, consolidar, no plano intrapsíquico, o processo de constituição do ideal do ego.
Redimensionando as identificações
No momento da adolescência, a genitalidade representa um ponto de chamada, ponto de atração que, de acordo com a particularidade da história de cada um, oferece à sexualidade uma nova orientação. A fim de sustentar que a adolescência não é fundamentalmente contra o narcisismo, mas que orienta o movimento pulsional em direção à genitalidade, num além do narcisismo, Marty (2002) elabora a noção de "transação narcísica". Esta noção diz respeito ao encontro do adolescente com uma situação na qual ele se situa, vacilante, entre dois registros: o narcísico e o edipiano. A transação narcísica é a negociação que o adolescente deve realizar diante desta situação, transformando o investimento narcísico para alcançar o êxito no decorrer da passagem pela adolescência. É por meio do sucesso da transação narcísica que o adolescente escapa de um vivido despersonalizante rumo a uma reapropriação subjetiva.
No entanto, o direcionamento à polaridade edipiana, que significa a entrada na genitalidade, não se faz possível na ausência de significativo preâmbulo narcísico. De acordo com Marty (ibid.), o processo da adolescência não pode ser bem-sucedido sem que sólidas bases narcísicas tenham sido construídas. Se as relações objetais primárias não forem capazes de oferecer ao sujeito uma solidificação narcísica, a continuidade do ser não estará assegurada no momento em que o remanejamento identificatório for exigido, isto é, no momento da adolescência. As falhas narcísicas que se desenvolvem a partir do início da subjetivação também vão ressurgir por ocasião da adolescência, quando está em jogo a tensão entre dependência e autonomia. François Richard (2002) aponta, inclusive, o ressurgimento de antigas falhas narcísicas como desencadeador da ocorrência de patologias adolescentes.
No trabalho de 2002 que estamos utilizando como referência neste momento, Marty, com especial destaque, articula o fracasso da transação narcísica à falta do "apoio narcísico parental". O autor já havia lançado mão do termo "apoio narcísico parental" em 1997, no artigo sobre violências na adolescência. Neste artigo, ele salienta que a idéia de "apoio narcísico parental" foi desenvolvida por Gutton2 e afirma que
A elaboração da violência pubertária (...) apóia-se não somente nas capacidades internas do adolescente, mas também no que Gutton chama de 'apoio narcísico parental', na necessidade do adolescente de que seus pais sustentem ativamente o processo pubertário (...) (Marty, 1997, p. 15. Tradução nossa).
O suporte parental é, portanto, crucial para que a transação narcísica seja efetivada pelo adolescente. Isto significa que, para serem capazes de investir em novos objetos, os filhos adolescentes têm que abandonar seus pais como objetos de desejo, e cabe aos pais, como já mostrara Freud, nos Três Ensaios sobre a Sexualidade (1905/1976a, Op. cit.), um papel primordial na realização dessa tarefa. O atravessamento da já mencionada repetição da vivência do Complexo de Édipo na adolescência impõe a realização deste trabalho, extremamente árduo para o adolescente, apesar de já estar inscrito em seu psiquismo o interdito do incesto.
A renúncia aos objetos de desejo incestuosos comporta significativo remanejamento do referencial identificatório. Ainda assim, as primeiras relações objetais devem ser mantidas como apoio, dado que a permanência das identificações primárias assegura a continuidade do ser. Para que o adolescente possa remanejar para novos objetos o investimento dos objetos primários, isto é, para que possa estabelecer identificações secundárias que lhe permitam forjar uma identidade adulta, é indispensável a construção de outros modelos, diferentes dos parentais (Knobel, 1981; Cardoso, 2001; Pinheiro, 2001, Op. cit.).
Essa reorganização relativa às identificações, que impõe a elaboração do luto das figuras parentais da infância, é indispensável para a consolidação do processo subjetivante do adolescente. No entanto, ela também contribui para o enfraquecimento narcísico do sujeito. Os objetos originários ocupam, até então, um lugar de certeza, idolatria e onipotência; é preciso, porém, desinvesti-los, para investir na dúvida que os novos objetos representam. Estamos mais uma vez diante da evidência de que a fragilização narcísica na adolescência é um "mal necessário".
O investimento em novos objetos, em modelos divergentes dos parentais, implica o reconhecimento destes como alteridade digna de se desejar. Para que este investimento seja possível, o Ego precisa desamarrar-se do passado e do presente, admitir transformações, admitir dúvidas, e, principalmente, admitir a existência de falhas no sujeito. Como indica Costa (1988, Op. cit.), mais uma vez apoiando-se nas formulações freudianas, a instância que abriga os modelos que serão investidos libidinalmente, instância que remete ao futuro, ao devir do sujeito e, portanto, à sua falta, é denominada Ideal do Ego. Esta expressão surge em Freud no texto dedicado ao conceito de narcisismo (Freud, 1914/1976b) "para designar uma formação intrapsíquica relativamente autônoma que serve de referência ao ego para apreciar as suas realizações efetivas" (Laplanche & Pontalis, 1982/1998, p. 222).
Em Narcisismo em tempos sombrios (1988, Op. cit.) Costa diz que os objetos, assim como os Ideais, são símbolos da alteridade. O Ego oferece resistência às mudanças; por conta disto lidar com a diferença é sempre conflituoso para esta instância psíquica. O único outro aceitável para o Ego, com o qual este consente em lidar sem conflito, é seu outro especular encarnado pelo Ego Ideal. Os traços que constituem a forma egóica são representados de forma totalizada e idealizada no Ego Ideal. Deste modo, este "outro" tolerado pelo Ego é, na verdade, um outro idêntico.
A edificação de novos modelos na adolescência requer que o sujeito possa desprender-se do passado, de seu corpo infantil, dos pais da infância, apostando no futuro, no próprio vir a ser. É possível perceber, outra vez, que a alteração da composição egóica se impõe, acometendo o narcisismo. Trata-se de um momento de extrema fragilidade, de incerteza, de impotência, de repetição da vivência do desamparo diante do qual a autodefesa narcísica é acionada. O Ego, angustiado, porque ameaçado em sua integridade, recorre ao seu outro especular, o Ego Ideal, buscando restaurar a onipotência infantil.
Segundo Pinheiro (2001, Op. cit.), a cultura é responsável pela oferta de meios que concedam ao adolescente a possibilidade de dissipar a onipotência. De acordo com Richard (2002), a passagem da predominância do Ego Ideal (da onipotência narcísica) à prevalência do Ideal do Ego corresponde ao próprio processo de subjetivação. Conforme dissemos, quando apreciamos a noção de transação narcísica, esta, quando bem-sucedida, permite que o adolescente se aproprie de uma nova identidade.
A re-vivência do desamparo na adolescência3
No livro Pânico e desamparo: um estudo psicanalítico, Costa Pereira (1999) afirma que, a partir do pensamento freudiano, a compreensão da noção de desamparo pode ir muito além de seu aspecto biológico, isto é, além do estado de insuficiência psicomotora do bebê. Entender o desamparo sob uma ótica exclusivamente biológica significaria considerar o aparelho psíquico a partir de uma perspectiva evolucionista, segundo a qual o psiquismo partiria, inicialmente, de um estado de dependência absoluta rumo a uma condição "madura", na qual a situação de desamparo viria a ser superada. De acordo com esta visão reducionista, o desamparo não seria uma condição essencial e inevitável do funcionamento psíquico. Porém, do ponto de vista psicanalítico, fundamentado na idéia da divisão psíquica, a noção de desamparo diz respeito, em última instância, às possibilidades e aos limites da representação, da simbolização da força pulsional. A experiência do desamparo vincula-se, então, de maneira intrínseca na teoria psicanalítica, à idéia de insuficiência: a princípio, insuficiência psicomotora do bebê, mas, sobretudo, insuficiência do aparelho psíquico em dar conta do excesso de excitação (pulsional).
Julgamos que a questão do desamparo tem particular relevância no momento da adolescência devido à repetição dessa vivência; julgamos também, como iremos explorar mais adiante, que a relevância da questão da re-vivência do desamparo na adolescência ganha ênfase ainda maior no contexto sociocultural da atualidade. Diante disto, vale ressaltar que não se trata de limitarmos a noção de desamparo a "um dado essencialmente objetivo: a impotência do recém-nascido humano que é incapaz de empreender uma ação coordenada e eficaz (...)" (Laplanche & Pontalis, 1982/1998, Op. cit., p. 112), dependendo, assim, de um outro que realize a ação específica (ação coordenada e eficaz) necessária para eliminar sua tensão interna. Trata-se de entendermos o estado de desamparo como protótipo de toda situação traumática, conforme sustentado por Freud (1926/1976d) em Inibições, sintomas e ansiedade. Neste texto, Freud refere-se ao desamparo como aquele estado no qual o sujeito encontra-se inundado por um excesso de excitações; excesso que ultrapassa sua capacidade de dominar.
Segundo Birman (2004), é o poder - a ordem simbólica - que permite que o sujeito possa lidar com o pulsional, possa representá-lo, realizando o trabalho de ligação, de simbolização, uma vez que engendra possibilidades de mediação, de contenção da força pulsional. No entanto - já podemos avançar - o contexto sociocultural da atualidade não se encontra especialmente amparado pela força do poder e da ordem simbólica; ao contrário, este contexto é sustentado, preferencialmente, por características, como: precariedade, instabilidade, vulnerabilidade, incerteza e insegurança (Bauman, 2001), e, portanto, por uma carência de possibilidades de mediação.
Cremos, ainda, que a repetição da vivência do desamparo à qual é remetido o sujeito em função do abalo narcísico, que tem lugar na adolescência, pode ser agravada pelo ressurgimento de falhas narcísicas desenvolvidas no início da vida. Neste ponto, pensamos que estamos em harmonia com algumas idéias defendidas por Costa (2000) no artigo O mito psicanalítico do desamparo. Nesse trabalho, o autor escreve que na obra de Winnicott não há destaque para a questão do desamparo. Explica que Winnicott admitia que o ser humano é imaturo ao nascer, porém não considerava este fato como "a pedra de toque do desenvolvimento emocional do indivíduo" (Costa, 2000, Op. cit., p. 41). De acordo com Costa, as alusões ao desamparo estão articuladas, na teoria winnicottiana, aos sinais de "desadaptação" do ambiente, e não à impotência intrínseca ao sujeito humano. Winnicott acreditava que a falta não está colocada desde o início e que sua origem se dá apenas quando ocorre um déficit do ambiente em relação à oferta à criança daquilo de que ela precisa para se iludir.
Na visão winnicottiana, é a "depressão dos pais", entendida como um déficit do ambiente, que impossibilita a criança de "começar a ser, de começar a sentir que a vida é real e vale a pena ser vivida" (Winnicott, 1975, p. 137 apud Costa, 2000, Op. cit., p. 43). Supomos que essa depressão parental representada como deficiência do ambiente, ao impossibilitar que a criança seja e sinta, pode acarretar o surgimento de falhas narcísicas precoces. Ainda conforme o desenvolvimento teórico de Winnicott, a carência originada pelos déficits do ambiente estanca as ações criativas do self, instaurando uma "descontinuidade na experiência da vida".
O que Costa defende, baseado nas idéias winnicottianas, é que o desamparo só é gerado mediante re-vivência "da emoção precoce de paralisia ou silêncio da imaginação criativa" (Costa, 2000, Op. cit., p. 44). Costa defende, portanto, que o sujeito só é remetido a uma situação de desamparo, quando experimenta novamente situações nas quais se estancam as ações criativas do self e a possibilidade de sentir a própria vida como real; em última análise, a possibilidade de existência, do sentimento de continuidade do ser.
Conforme explicitamos acima, entendemos que a ocorrência de déficits do ambiente possibilita o ressurgimento de falhas narcísicas precoces, já que a vivência de descontinuidade do ser representa uma lacuna no fluxo da existência. Vimos que, na adolescência, as bases narcísicas do sujeito encontram-se estremecidas; trata-se de um momento em que o sentimento de continuidade da existência revela-se ameaçado e, conseqüentemente, de um momento em que as falhas narcísicas desenvolvidas no início da subjetivação tendem a ressurgir.
Não nos furtamos, porém, à aceitação da elaboração freudiana do desamparo em que esta noção possui um caráter mais amplo. O desamparo pode ser compreendido como estado no qual o sujeito acha-se invadido pelo excesso de excitação pulsional; excesso que transborda o psiquismo, uma vez que extrapola sua capacidade de dominar. Cremos que, diante da ativação de novos aspectos pulsionais provocada pela genitalização do corpo do adolescente, este se sente transbordado, inundado pela excitação dessa nova pulsionalidade que ainda não é capaz de dominar.
Marty (1997, Op. cit.) fala em "arrombamento pubertário", quando se refere ao corpo da criança cujo tecido é rasgado para que um novo corpo genital tenha lugar. Esse autor também escreve sobre a quebra violenta, produzida pelos fenômenos pubertários, do edifício egóico (e de suas instâncias ideais) construído no período de latência. São imagens fortes, sem dúvida, que ilustram perfeitamente a presença da violência interna na adolescência, presença de uma força pulsional sentida como desmedida pelo sujeito adolescente.
Esta situação de violência interna, situada no plano intrapsíquico, não pode ser dissociada de uma dimensão intersubjetiva, o que nos remete à questão da articulação entre subjetividade e cultura. Assim, passamos, a seguir, à analise de alguns elementos característicos das sociedades ocidentais contemporâneas, elementos que possuem especial articulação com as questões metapsicológicas já analisadas.
O contexto em que vivem hoje os adolescentes ocidentais
No mundo ocidental contemporâneo, o estado de desamparo tende a se impor na vida psíquica de forma exacerbada, levando ao acirramento das defesas de caráter narcísico em conseqüência da fragilidade da ordem simbólica que torna falha a possibilidade de mediação. Acreditamos que isto certamente dificulta a superação da re-vivência do desamparo na adolescência contemporânea.
O debate sobre os novos valores caros às sociedades ocidentais contemporâneas e divergentes daqueles cultivados pela moral tradicional vem sendo amplamente difundido. Em seu livro O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo, Jurandir Freire Costa (2004) traz diversas contribuições para este debate, e a questão do culto ao corpo assume particular relevância nessa coleção de ensaios.
Buscando contemplar esta questão, em um dos capítulos de sua obra, o autor examina a atual participação do corpo na formação das identidades. Ele demonstra o contraste entre o privilégio desta participação na atualidade e a sua exclusão nos processos anteriores de formação da identidade. Explica que, num primeiro momento da história do mundo ocidental, o conhecimento acerca daquilo que a pessoa era baseava-se na maneira com que ela agia. Posteriormente, a interioridade emocional e moral passou a vigorar como referência, e o homem forjado neste segundo período - homem que tinha sua identidade reconhecida com base nas suas emoções e nos seus valores morais - é designado por Costa como homem sentimental.
O autor prossegue mostrando como estas antigas regulações foram modificadas. Destaca, então, o desenvolvimento do papel da mídia na constituição das mentalidades. Por meio dos anúncios de "cosméticos, fármacos e instrumentos de aperfeiçoamento da forma corporal" (Costa, 2004, p. 166) e, principalmente, por associar alguns atributos corporais ao êxito social, a mídia acabou fortalecendo a participação do corpo físico na composição identitária.
Sabemos que a mídia é responsável pela massificação de valores próprios do mundo daqueles que possuem dinheiro, poder e fama. O que Costa ressalta, no entanto, é que apesar de a grande maioria dos indivíduos, sob a influência da mídia, almejar incluir-se entre os privilegiados, encontra-se, na verdade, excluída deste círculo. Tal exclusão apresenta apenas uma brecha: a da imagem corporal; ou seja, ter um corpo igual ao dos que são célebres é a única forma viável, para a maioria, de aproximar-se do modelo veiculado como merecedor de sucesso.
Assim, na busca da aquisição do corpo-espetáculo, o sujeito desloca sua preocupação, antes voltada para a vida sentimental, em direção à vida física. Desta forma, é criada:
(...) uma nova educação dos sentidos, uma nova percepção da morfologia e das funções corporais que tornou o bem-estar sensorial um sério competidor do bem-estar sentimental. Cuidar de si deixou de significar, prioritariamente, preservar os costumes e ideais morais burgueses para significar 'cuidar do corpo físico'. O cultivo das sensações passou a concorrer, ombro a ombro, com o cultivo dos sentimentos. Estar feliz não se resume mais a se sentir sentimentalmente repleto. Agora é preciso também se sentir corporalmente semelhante aos 'vencedores', aos 'visíveis', aos astros e estrelas midiáticos (Costa, 2004, Op. cit., p. 166).
Logo, a felicidade, na moral do espetáculo, está intimamente articulada à obtenção do corpo midiático e do prazer relacionado ao corpo físico, prazer sensorial. O desempenho sensorial do corpo torna-se a chave para o ideal de felicidade a ser alcançado.
Ao analisar tal conjuntura, tendo em vista algumas questões metapsicológicas que estão em jogo na adolescência, levantamos o seguinte questionamento: como será, para o adolescente, construir idéias de felicidade apoiadas no desempenho sensorial de seu corpo? O corpo do adolescente traz consigo novos e violentos aspectos pulsionais que ele não é capaz de dominar. As possibilidades e os limites do desempenho do próprio corpo, corpo que, como indicamos anteriormente, acaba de ser genitalizado, são, ainda, desconhecidos pelo sujeito adolescente. Ao exaltar o prazer das sensações, não estaria a sociedade contemporânea convocando o adolescente a fazer um uso perigoso de seu corpo, uma vez que esse corpo recém-genitalizado é freqüentemente sentido por ele como "estrangeiro"?
Sentir o próprio corpo como "estrangeiro" significa vivenciar uma situação extremamente angustiante na qual tem lugar uma ruptura em relação ao passado do corpo (infantil) e uma irresolução quanto ao futuro deste. Na atual sociedade do espetáculo, observa-se uma prontidão a aderir ao corpo da moda, o que significa que os sujeitos acham-se dispostos a abrir mão de sua experiência corporal pregressa para se adequar ao que está em voga momentaneamente. Observa-se, então, a vigência de uma imprevisibilidade no que se refere à identidade corporal. "O futuro do corpo é cindido do passado e posto em suspenso, à espera da nova palavra de ordem da moda ou dos mitos cientificistas" (Id., ibid., p. 84). Este contexto não agravaria a angústia na adolescência, por alimentar a manutenção de um problema (o da cisão / suspensão) que o adolescente anseia por solucionar?
Essa exacerbada valorização do corpo e das sensações, em detrimento do apreço aos sentimentos na moral do espetáculo, transformou o corpo numa vitrine, submetendo-o a uma exposição e a uma avaliação constantes. Este fato acirra as inseguranças do sujeito, uma vez que este percebe que a aparência de seu corpo está sendo incessantemente notada e supervalorizada; mais ainda, o sujeito passa a representar sua aparência corporal como principal razão do interesse ou do desinteresse do outro. Diante disto, cremos que possíveis mudanças corporais trazidas pela puberdade, tais como o ganho ou a perda de peso, o aparecimento de espinhas e o crescimento de pêlos, por exemplo, podem ser representadas pelo adolescente como causa de ridículo e de perda do interesse do outro, aguçando, desta forma, o seu sofrimento vinculado às transformações do corpo.
Frente ao que foi levantado, com apoio no trabalho de Costa (2004), sobre a representação social do corpo na cultura ocidental contemporânea e sobre o papel fundamental do corpo na construção dos ideais de felicidade, pensamos ser possível atestar, juntamente com este autor, que a subjetividade do indivíduo atual está assentada no corpo físico. O corpo não significa mais apenas "um meio de agir sobre o mundo ou de enobrecer sentimentos" (Id., ibid., p. 192); sua autoconservação, sua saúde e sua longevidade tornaram-se uma finalidade em si. A prática do bem na vida pública ou privada não é mais garantidora de consideração moral, mas a forma corporal é representada como asseguradora de tal consideração.
O corpo do adolescente orienta o movimento pulsional em direção a um novo caminho, o da genitalidade, conforme exploramos anteriormente. Essa genitalização, que é engendrada pelas modificações corporais características da puberdade, remete o sujeito adolescente a uma sofrida repetição da vivência do Complexo de Édipo. O que desejamos deixar apontado aqui é o sofrimento psíquico do qual o corpo é fonte na adolescência. Isto porque frente à afirmação de que na atual sociedade do espetáculo o sujeito é incitado a ancorar sua subjetividade no corpo, mas uma indagação é por nós considerada premente: esta incitação não poderá constituir-se como um impasse adicional na já complexa trajetória do adolescente rumo à subjetivação, já que o corpo que ele é instigado a utilizar como âncora nesse processo representa para ele uma fonte de sofrimento?
Ademais, o processo de subjetivação adolescente também vem sendo dificultado pela carência cultural no que diz respeito ao oferecimento de referências para a composição do Ideal do Ego. Pinheiro (2001) assevera que os referentes difundidos pela cultura contemporânea do espetáculo e do consumo, por serem apenas signos imagéticos em que não há valores embutidos, tornam custosa a dispersão da onipotência típica da adolescência. A autora considera, portanto, que a cultura contemporânea do espetáculo e do consumo acaba por não cumprir a função de esvaecer a onipotência. Isto porque nesta cultura os referentes que compõem o Ideal do Ego transformaram-se em ícones, imagens desprovidas de valores. Trata-se de uma cultura que obstaculiza o atravessamento da adolescência, cultura denominada por Costa (1988) de "cultura narcísica da violência" na qual a experiência de desamparo, sempre revivida dolorosamente pelo sujeito adolescente, ainda vem a se intensificar.
Se antes eram as figuras de autoridade que se estabeleciam como referências para a constituição do Ideal do Ego, assistimos hoje à ascensão da figura da celebridade. Ainda de acordo com as idéias apresentadas por Costa (2004), as figuras de autoridade abundavam a cena na moral dos sentimentos, transmitindo o significado do que era "o Bem", e prezando valores relacionados à família, ao trabalho e ao civismo. Quanto à substituição do lugar da autoridade pela celebridade, o autor explica que as figuras de autoridade
(...) tiveram as suas vozes abafadas pelo estardalhaço da moda e dos mitos científicos. Ciência e moda são práticas sociais que se alimentam da mesma fonte, a irrelevância do que passou. (...) Encolhida entre as duas, a autoridade parece minguar. Autoridade é sabedoria fundada na história. Não se pode 'ter ou ser autoridade' no que ainda não aconteceu ou no que aconteceu, mas não resistiu à prova do tempo. Autoridade em coisas futuras ou passageiras é um contra-senso. Em conseqüência, o lugar da autoridade foi tomado pela celebridade (Costa, 2004, Op. cit., p. 169. Grifo do autor).
São, então, as celebridades que assumem, hoje, o papel de formadores de hábitos e opiniões. No entanto, sua ética não é nada semelhante à da autoridade, e seu lugar de destaque não se deve à posse de valores morais. Costa afirma que a maior parte das pessoas tem consciência de que o mérito da celebridade é questionável, dado o seu desapego à moralidade. Mesmo assim, os indivíduos cobiçam ser como as celebridades por perceberem que elas são as únicas merecedoras de reverência, estando o restante da sociedade condenado ao anonimato. Este paradoxo gera, nas palavras do próprio autor, "um efeito cultural desagregador" (Id., ibid., p. 172).
As figuras de autoridade foram de tal forma esmagadas que, atualmente, qualquer sinal de autoridade é confundido com autoritarismo. A situação é demasiadamente preocupante; o próprio Freud já havia dado relevo à importância das figuras de autoridade na organização social. Em O mal-estar na civilização, Freud (1930/1976e) chama a atenção dos leitores para algo que denomina "pobreza psicológica dos grupos". Segundo ele, este fenômeno aconteceria com mais facilidade exatamente nas sociedades em que as figuras de autoridade não assumissem sua devida importância. A "pobreza psicológica dos grupos" é considerada por Freud como um perigo.
Em Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud (1921/1976c) articula a "pobreza psicológica dos grupos" a diversas características. Dentre elas: excesso emocional, impulsividade, violência, inconstância, presença de contradição e de extremismo nas ações, caráter rude das emoções, descuido nas deliberações, pressa nos julgamentos, formas de raciocínio simples e imperfeitas, ausência de auto-respeito e de senso de responsabilidade, facilidade de influenciar e sugestionar tais grupos.
É interessante notar que as características atribuídas por Freud aos grupos nos quais o fenômeno da "pobreza psicológica" estaria presente, são características comumente imputadas aos adolescentes. Jacqueline Palmade (2001), ao escrever sobre a fragilidade identitária na pós-modernidade, qualifica a sociedade pós-moderna como uma sociedade "adolescêntrica". De acordo com esta autora, os pais da atualidade, frente à entrada de seus filhos na adolescência, comportam-se, eles próprios, como adolescentes. Isto dificulta a consolidação da identidade do adolescente, uma vez que a afirmação da diferença intergeracional é fundamental para este processo de consolidação.
Recuperando o que vínhamos elaborando sobre a questão da autoridade, é válido salientar que, quando nos remetemos a esta idéia, queremos, sobretudo, designar um lugar simbólico, uma função estruturante tanto do psiquismo individual, quanto da formação de uma coletividade. José Newton Garcia de Araújo (2001) vem também contribuir para a reflexão acerca do funcionamento das formações coletivas. Os pressupostos que sustentam sua abordagem são resumidos da seguinte forma:
a) todo grupo se constitui tanto a partir de uma identificação entre seus membros quanto a partir de uma referência exterior a ele mesmo (...); b) tal referência externa teria uma função ordenadora, regulando os afetos e as condutas coletivas (...); c) esse princípio de autoridade garantiria o funcionamento das instituições ou de quaisquer formações coletivas, constituídas juridicamente ou não (Garcia de Araújo, 2001, p. 17).
Segundo o autor, os grupos são, portanto, constituídos a partir de um vínculo entre iguais, que pode ser chamado de vínculo horizontal, e de um vínculo que articula esses iguais a um desigual, o qual encarna a autoridade (esse autor realça, precisamente, que autoridade não deve ser confundida com autoritarismo); este último vínculo pode ser chamado de vertical. À medida que as figuras de autoridade se encontram, conforme desenvolvimento anterior, oprimidas, podemos afirmar que temos nos organizado, principalmente, com base em vínculos horizontais. Tal situação, lembrando a elaboração freudiana (1930), representa uma ameaça (devido à "pobreza psicológica dos grupos"). Sem a veiculação de normas e leis por meio das figuras de autoridade, não é possível que se sustente o laço social (Garcia de Araújo, 2001, Op. cit.). Segundo Freud (1930/1976e), sem lei ficamos "à mercê da força bruta".
Ora, e não é assim que estamos? Cremos que sim, e, corroborando com nosso julgamento, Costa (2004) afirma que "onde não há totem, não há tabu". Ou seja, numa sociedade na qual as figuras de autoridade não são reconhecidas, não há nada que esteja livre da humilhação e da destruição. O autor já havia desenvolvido uma linha de raciocínio similar a esta em Narcisismo em tempos sombrios (1988, Op. cit.). É neste artigo que, ao analisar especificamente a sociedade brasileira, caracterizada pela decadência social e pela depreciação da justiça e da lei, ele fala em uma "cultura narcísica da violência".
A concepção de "cultura narcísica da violência" é um desdobramento da noção de "cultura do narcisismo", desenvolvida por Lasch4. Nesta cultura, a experiência de desamparo é intensa e, diante disso, o Ego põe em ação os automatismos narcísicos. Na "cultura narcísica da violência", as representações do Ideal do Ego estão ausentes, já que o futuro possui uma denotação de ameaça de destruição, não podendo, assim, ser libidinalmente investido. O que surge, nesse caso, no lugar do Ideal, são "miragens Ego-Ideais", as quais clamam por um prazer imediato característico da satisfação narcísica, isto é, por um usufruto do presente sem qualquer preocupação com a existência futura.
A figura da celebridade, conforme expusemos anteriormente, vem tomando o lugar da figura da autoridade como referência para a composição do Ideal do Ego. Essa figura da celebridade não estaria em consonância com a noção de "miragem Ego-Ideal"? Vimos que a figura da celebridade se constitui como um ícone, uma imagem privada de valor; conhecemos o caráter instantâneo e descartável intrínseco à figura da celebridade, sua falta de compromisso com o futuro, seu funcionamento sob a égide da lógica do "aqui e agora", dos "quinze minutos".
Sustentamos anteriormente que o ideal de felicidade na moral do espetáculo está ligado à busca de um prazer articulado ao corpo físico, o prazer da sensação. Este prazer sensorial não é um prazer qualquer, mas um prazer que está especialmente de acordo com a satisfação narcísica. Isto porque, conforme defende Costa (2004, Op. cit.), as experiências sensíveis não permitem uma fruição baseada na lembrança ou na imaginação. Para que se desfrute o prazer da sensação, é preciso que o objeto se faça presente. Ao comparar a felicidade sensorial à felicidade sentimental, Costa afirma que:
Fora do instante de gozo, a sensação é emocionalmente obsoleta. Sua evocação raramente proporciona o nível de prazer que a evocação dos sentimentos pode proporcionar. Por esta razão, a felicidade sensorial necessita avidamente de objetos que estejam à mão e que possam ser rapidamente instrumentalizados (Costa, 2004, Op. cit., p. 167-168).
A cultura ocidental contemporânea, "cultura narcísica da violência", possui, portanto, como características singulares5, uma forte vivência de desamparo e uma predominância dos ideais narcísicos de tipo absoluto e onipotente. A falta de investimento no futuro e a conseqüente vigência da lógica da instantaneidade tornam incômoda demais a espera pelo que falta ao sujeito. Este, então, procura achar objetos prontos para serem usados. Nas palavras de Costa, "no gozo com as sensações, o tempo de separação ideal é o que se congela e aglutina na atualidade; o objeto ideal é o objeto dócil, a coisa fácil de ser achada e manipulada" (Id., ibid., p. 106). A droga é um exemplo de objeto dócil, e o seu uso é emblemático no que diz respeito à satisfação narcísica, visto que promove um alívio instantâneo da tensão, uma descarga no agora, e o afastamento de inquietações relacionadas ao depois.
Todo este contexto acaba por atravancar o deslocamento, que deve ser efetivado na adolescência, do lugar da onipotência, do narcisismo primário (Ego Ideal) para o lugar da diferença, da alteridade (Ideal do Ego), para o registro, portanto, do narcisismo secundário. A denominação da geração dos adolescentes dos dias de hoje como "geração zapping" é bastante ilustrativa no que diz respeito à atual complicação da relativização do Ego Ideal rumo a um funcionamento sob a prevalência do Ideal do Ego. No livro Noites nômades: espaço e subjetividade nas culturas jovens contemporâneas, Almeida e Tracy (2003) afirmam que a simultaneidade própria dessa "geração zapping" esquiva o adolescente do encontro com as perdas, das quais não se pode fugir quando uma escolha é feita. Estas autoras servem-se de uma interessante noção elaborada pelo antropólogo francês Marc Augé6: a noção de "não-lugar":
Os não-lugares estruturam-se em torno da passagem, do provisório e do efêmero e estabelecem uma relação meramente contratual entre seus passantes anônimos, cuja circulação é regulada por máquinas automáticas e cartões de crédito. Neles, não é possível estabelecer relações, nem criar identidade singulares, mas sim individualidades solitárias (Almeida & Tracy, 2003, p. 33).
Elas fazem uso desta noção para descrever um novo regime de espacialização, no qual as experiências sociais e subjetivas não se estruturam mais em torno da fixação, e sim em torno do deslocamento. Para elas, os jovens de hoje estão produzindo seus espaços interativos nas zonas de passagem, isto é, nos "não-lugares". A noção de "não-lugar" evidencia, novamente, a questão do imediatismo, do "provisório" e do "efêmero" que está em jogo no apoio da organização do Ideal do Ego em referentes de caráter onipotente e que está implicada, também, no tipo de prazer ao qual se aspira na moral das sensações, prazer característico da satisfação narcísica, de tipo primário cujo caráter é absoluto.
Em conformidade com as idéias que estamos desenvolvendo, Palmade (2001) defende que o desinvestimento cultural das sociedades pós-modernas em valores coletivos "mais elevados" como a arte, por exemplo, induz um funcionamento psíquico atrelado a aspectos narcísicos, refratários à dimensão de alteridade. Frente a esse desvio dos valores e à conseqüente predominância da atividade psíquica fundamentada no narcisismo primário, a autora aponta que a realização de si não se daria mais por meio da sublimação, ocorrendo uma regressão / fixação a um modo de funcionamento psíquico arcaico. Aponta, ainda, que esta regressão / fixação liberaria as pulsões agressivas, e que a dominação e a perversão se constituiriam como efeitos desta liberação.
Neste ponto, acreditamos já ter conseguido mostrar que os aspectos culturais próprios das sociedades ocidentais da atualidade então analisados representam elementos geradores de empecilhos ao processo da adolescência. Mayer (2001) observa que:
É difícil imaginar até onde pode chegar o descontrole e o descomedimento dos adolescentes quando não se respeita uma autoridade no grupo familiar nem se tem limites adequados, firmes e claros que os façam sentir-se contidos (...) (Mayer, 2001, Op. cit., p. 88).
Contemplamos, anteriormente, a questão do atual desrespeito à figura da autoridade num âmbito mais global. Todavia, nesta última citação, esta questão é levada por Mayer para o seio das famílias. Ele afirma que a vivência de desproteção (que propomos ler como vivência de desamparo) ligada à violência e à insegurança social vem se reproduzindo no espaço familiar. Sobre a família, mais especificamente sobre os pais, escrevemos que sua colaboração é imprescindível para que o adolescente elabore a violência interna engendrada pelas mudanças pubertárias. Isto significa que o "apoio narcísico parental" é essencial para que o adolescente escape da repetição da vivência do desamparo.
Será que os pais da geração contemporânea de adolescentes estão sendo capazes de oferecer o suporte narcísico solicitado por seus filhos? Segundo Palmade (2001), atualmente assistimos aos pais se comportarem como adolescentes diante da entrada de seus filhos na adolescência. Cremos que isto ocorre porque os pais revivem a própria adolescência quando os filhos atingem esse tempo específico de suas vidas. E em se tratando da geração dos pais dos adolescentes dos dias de hoje, geração que vivenciou sua própria adolescência no final da década de sessenta / início da década de setenta, julgamos que essa repetição da vivência da adolescência adquire um caráter especialmente problemático.
Pensamos, então, que estes pais não estão conseguindo proporcionar aos filhos o seu necessário apoio narcísico no momento da adolescência, o que vem a enfraquecer a possibilidade de esses adolescentes elaborarem a violência interna sentida e superarem o desamparo revivido, e intensifica o recurso deles às passagens ao ato. Passamos, então, à análise de alguns aspectos relativos à utilização deste recurso.
Passagem ao ato - uma possível resposta?
Transbordado por um excesso de excitação que não é capaz de elaborar, o adolescente se vê apassivado pela invasão interna da força pulsional. Michelle Cadoret (2003) diz que, por não possuir recursos para a elaboração de seu drama interior, o adolescente pode acabar recorrendo a uma atuação dramática. Num estudo sobre a bulimia, um dos quadros em que estão presentes as desregulações narcisistas e objetais, Philippe Jeammet (1999) pontua que "o comportamento atuado vem, justamente, substituir o trabalho de elaboração psíquica que sofre um curto-circuito" (Jeammet, 1999, p.113). Hugo Mayer (2001) também ressalta a idéia de que um curto-circuito entre o impulso e a ação está em jogo nas atuações, nas quais é pulada a etapa do processamento psíquico.
A atuação dramática a que estamos nos referindo - na qual o adolescente, tomado por uma força pulsional que não consegue dominar, passa do impulso diretamente à ação, sem efetuar o trabalho psíquico de processamento - é mais especificamente a atuação levada a cabo nas passagens ao ato. É importante que isto seja ressaltado porque o registro do ato inclui outras formas de atuação como, por exemplo, o acting out.
Compreendemos o acting out como um ato determinado por elementos inconscientes no qual é possível que se entreveja uma significação oculta. Mayer (2001) aponta os lapsos, os atos falhos e o fenômeno da transferência como exemplos de acting out. Nele, um conteúdo mental é encenado e endereçado a um outro, de forma que comporta uma dimensão de convocação. Sendo assim, o acting out, diferentemente das passagens ao ato, não se restringe, nas palavras de Mayer, "a ser simples descarga de evacuação" (Mayer, 2001, p. 92). Ademais, este autor explica que
(...) a passagem ao ato propriamente dita costuma manifestar-se quando os actings reiteradamente fracassam em sua dimensão de convocação. Naquela o sujeito se precipita numa ação extrema que pressupõe uma ruptura e uma alienação radicais, com desmoronamento de toda mediação simbólica (Id., ibid., p. 92-93).
As passagens ao ato representam uma busca de inversão da posição passiva, de reversão da passividade em seu oposto, em atividade (sabemos que a transformação no contrário é um dos possíveis destinos da pulsão; aliás, um de seus destinos básicos). Denotam uma tentativa extrema de domínio do excesso quando, exatamente por seu caráter excedente, é impossível dominar a força pulsional por meio do trabalho de simbolização, de representação. Por se constituir como resposta rudimentar, a transformação da passividade em atividade efetivada pelos adolescentes nas passagens ao ato não deve ser tomada como uma transformação "da voz passiva ('a puberdade apoderou-se de mim') para a voz ativa ('eu mudei, não sou mais uma criança')" (Marty, 2002, Op. cit., p. 7. Tradução nossa).
Nas passagens ao ato levadas a cabo pelos adolescentes, está presente uma força pulsional desligada, uma vez que elas constituem resposta do psiquismo a uma quantidade de excitação que excede a possibilidade de ligação. No artigo Violência, domínio e transgressão, Marta Rezende Cardoso (2002) descreve o mecanismo da passagem ao ato exatamente como uma resposta (por primária ou elementar que seja) à invasão de um pulsional desligado no ego. Segundo a autora, uma transgressão pulsional encontra-se subjacente às passagens ao ato. Rezende Cardoso (2002, Op. cit.), entretanto, não utiliza o termo transgressão em associação à dimensão própria da lei e da castração, e sim com inspiração no sentido que ele possui na expressão "transgressão marinha". A "transgressão marinha" consiste numa invasão de um trecho do continente pelas águas do mar. Neste sentido, a transgressão pulsional significa uma invasão pulsional no território egóico, à qual o sujeito responde de forma primária, elementar, passando ao ato.
Mayer (2001,Op. cit.) se inclui, como nós, entre aqueles que consideram que o recurso à passagem ao ato vem se tornando cada vez mais freqüente na atualidade. Este autor procura articular a apresentação maciça dessas atuações à influência do contexto sociocultural contemporâneo. Ao analisarmos este contexto - o que foi feito no tópico anterior - levantamos diversas características geradoras de um funcionamento psíquico ancorado no narcisismo primário, no qual o Ego Ideal predomina sobre o Ideal do Ego, sendo insuportável a tolerância a situações conflituosas, urgente a supressão do desprazer, impossível a espera de elaboração, de processamento psíquico. Podemos agora acrescentar que o Ego regido por um funcionamento deste tipo tende a mobilizar defesas arcaicas, como as passagens ao ato, para se livrar da angústia, por não suportar o desprazer e recusar o adiamento do prazer imediato; o Ego, neste caso, responde à angústia com simples descargas de evacuação (Mayer, 2001, Op. cit,).
As passagens ao ato representam uma resposta elementar diante de um estado de desamparo no qual uma pulsionalidade demasiadamente forte ultrapassa os limites psíquicos de representação e ameaça à integridade egóica. Dizemos que na adolescência esse estado de desamparo é especialmente revivido em razão da ativação de novos e violentos aspectos pulsionais, desencadeada pela genitalização própria da puberdade. Observamos anteriormente que, do ponto de vista constitucional, o desamparo é inerente à subjetividade humana, em razão dos próprios limites do aparelho psíquico. Verificamos também que na adolescência, em virtude da fragilização, da incerteza e da impotência então experienciadas, o estado de desamparo é particularmente revivido.
É importante salientar que não estamos considerando uma adolescência atemporal, e sim a adolescência que habita o contexto sociocultural da atualidade. Isto porque é entre os adolescentes inseridos neste contexto que o fenômeno das passagens ao ato vem ganhando largo espaço. A fraqueza do poder e da ordem simbólica com a conseqüente privação de possibilidades de mediação, assim como a precariedade, a instabilidade, a vulnerabilidade, a incerteza e a insegurança inerentes ao atual mundo ocidental, parecem contribuir para a intensificação e a manutenção da re-vivência do desamparo na adolescência, assim contribuindo para o incremento do recurso às passagens ao ato.
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Recebido em 09 de maio de 2005
Aceito em 23 de maio de 2005
Revisado em 14 de novembro de 2005
* Apoio CNPQ e CAPES. Agradecemos a colaboração de Pedro Henrique Rondon, pela cuidadosa revisão de texto.
Notas
1 Costa, nesse artigo, também se refere à instância egóica como Ego narcísico, dada a "afirmação de que o narcisismo e o Ego são contemporâneos e correlatos da totalização do sujeito numa unidade imaginária" (p. 156).
2 No trabalho Le pubertaire (Paris: PUF, 1991).
3 A temática do desamparo também foi objeto de nossa reflexão no artigo "A drogadicção na adolescência contemporânea", enviado para a revista Interações, da Universidade São Marcos, em maio de 2005, e ainda em processo de análise.
4 Em Narcisismo em tempos sombrios, Costa (1988) remete o leitor a um trabalho anterior de sua autoria no qual o sentido e as implicações do termo "cultura do narcisismo" (ou "cultura narcísica") são discutidos: Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
5 Certamente, existem outros aspectos da cultura contemporânea dignos de nota. Entretanto, procuramos enfocar os elementos condizentes com o recorte e com os objetivos propostos.
6 A referência das autoras é o trabalho de Augé Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 2001.