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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.6 n.1 Fortaleza mar. 2006
ARTIGOS
As metamorfoses do espelho do rosto materno na constituição do self da criança*
Giselle César Vieira DinizI; Zeferino RochaII
IPsicóloga clínica, coordenadora da Faculdade Boa Viagem, Mestre em Psicologia clínica pela Universidade Católica de Pernambuco,
Membro participante do Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise da Universidade Católica de Pernambuco. End.: Av. Boa Viagem, n. 1140 apt. 401, Boa Viagem - 51011-000 Recife-PE. E-mail: giselle@fbv.br
IIProfessor titular aposentado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco, professor responsável pela Linha de Pesquisa em Psicopatologia e Psicanálise no Mestrado em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco, Coordenador do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da UNICAP, Membro Fundador e Honorário do Círculo Psicanalítico de Pernambuco. End.: R. Conselheiro Portela, 139/ 502. Espinheiro - 52020-030 Recife-PE. E-mail zephyrinus@globo.com
RESUMO
Depois de situar brevemente o tema do espelho do rosto materno no contexto do que Winnicott escreve sobre o desenvolvimento afetivo da criança e Lacan sobre o estádio do espelho na constituição do eu, o artigo tem como objetivo refletir sobre as principais metamorfoses do espelho do rosto materno na formação do self, analisando sucessivamente suas vicissitudes como espelho mágico, espelho-vidro e espelho verdadeiro e suas implicações teóricas no processo da formação do falso e do verdadeiro self da criança.
Palavras-chave: fase do espelho, rosto materno, falso e verdadeiro self.
ABSTRACT
After briefly situating the theme on the mirror of mother's face within the context what Winnicott describes about the child's affective development and Lacan on the mirror phase in the construction of the ego, the objective of the paper is to reflect on the principal metamorphoses of the reflection of the mirror of the mother's face in the formation of the self, analyzing their vicissitudes progressively as the Magic Mirror, Glass Mirror and the True Mirror and the theoretical implications in the formation process of the child's false and true self.
Key-words: mirror phase, mother's face, false and true self
Introdução
É NA SOMA DO SEU OLHAR QUE EU VOU
ME CONHECER POR INTEIRO
CHICO BUARQUE
É nosso propósito, neste ensaio, abordar a questão do espelho do rosto materno e suas principais vicissitudes na constituição do self da criança, à luz da doutrina winnicottiana sobre o desenvolvimento afetivo infantil. Embora Winnicott não tenha feito, ele próprio, uma rigorosa sistematização teórica de sua obra, poder-se-ia dizer que ela se divide em duas grandes partes: a primeira referente ao bebê, à sua continuidade no ser e tendência à maturação e a outra relativa aos cuidados maternos, sem os quais o bebê não existiria.
Certa vez, Winnicott surpreendeu seus ouvintes ao afirmar: "Não existe isso que chamam de bebê". Mas logo em seguida quebrou o suspense, acrescentando: "o que quero dizer, obviamente, é que sempre que vemos um bebê, vemos também um cuidado materno e sem o cuidado materno não haveria um bebê" (Winnicott, 2000, p. 40).
Por causa da completa fragilidade e total desamparo de sua situação inicial - situação que Freud cunhou com o expressivo nome de Hilflosigkeit - o bebê, inteiramente incapaz de poder ajudar-se a si próprio, tem absoluta necessidade dos cuidados maternos para poder contar com um ambiente que lhe seja favorável e que se encontre o mais próximo possível da condição intra-uterina.
Até que ele se constitua como um verdadeiro self1 e se relacione com a mãe na qualidade de uma "pessoa total" (um "objeto objetivamente objetivo", como diria Winnicott), um longo caminho deverá ser percorrido no processo de seu desenvolvimento afetivo e de suas identificações estruturantes.
Neste contexto, a metáfora do espelho do rosto materno reveste um papel de destaque e uma função decisiva no processo da constituição do self da criança. Refletir sobre a importância do espelho do rosto materno, bem como avaliar as vicissitudes de suas metamorfoses neste processo, é o objetivo do presente trabalho.
Para poder alcançá-lo, vamos primeiramente, à guisa de uma contextualização teórica introdutória, resumir o essencial daquilo que Lacan escreveu sobre o estádio do espelho, pois foi nele que se inspirou Winnicott para introduzir, em sua doutrina, a metáfora do espelho do rosto materno.
Em seguida, vamos analisar, separadamente, as principais metamorfoses pelas quais passa o espelho do rosto materno na constituição do self da criança, vale dizer, o espelho mágico e suas ilusões narcísicas, principalmente aquelas ligadas ao narcisismo dos pais projetado nos filhos; depois analisaremos a relação do falso espelho (ou do espelho-vidro) com a mãe invasiva e intrusiva, tendo como conseqüência a constituição de um falso self, e, finalmente, o verdadeiro espelho e sua relação com a mãe suficientemente boa e com a constituição do verdadeiro self da criança.
O estádio do espelho
O narcisismo tem um lugar de realce na teoria freudiana. Freud, inicialmente, via, nele, uma perversão, "na qual o indivíduo trata o próprio corpo, de modo semelhante ao de um objeto sexual. Contempla-o, portanto, com prazer sexual, afaga-o e o acaricia até que, graças a essas ações, consegue a completa satisfação" (Freud, 1914/1990). Mas, logo em seguida, ele passa a considerá-lo sob uma perspectiva muito mais ampla e a classificá-lo como um momento importante no desenvolvimento normal do ser humano.
Todavia, não existe, logo no começo, "um ego estruturado como uma unidade", mas um corpo constituído de partes justapostas umas às outras. É o que acontece na fase do auto-erotismo. Uma "nova ação psíquica" se faz, então, necessária para que o narcisismo se constitua, ou seja, para que se dê a passagem do auto-erotismo para o narcisismo. A este respeito Freud escreve:
È uma hipótese necessária que não existe, desde o início, no indivíduo, uma unidade comparável ao ego; pois este deve ser desenvolvido. Todavia, as pulsões auto-eróticas são primordiais. Por isso, algo de novo, uma nova ação psíquica tem que ser acrescentada ao auto-erotismo para dar forma ao narcisismo (Freud, 1914/1990, p. 44).
Freud, no entanto, não deu uma explicação detalhada do que acontece nesta passagem do auto-erotismo para o narcisismo, nem tampouco aprofundou as características daquela nova "ação psíquica", que deve ser acrescentada ao auto-erotismo, para que se constitua o narcisismo. Quem muito contribuiu para isto foi Jacques Lacan, quando introduziu o "estádio do espelho" (1949), que hoje faz parte integrante da visão psicanalítica do processo de constituição do sujeito.
Segundo Lacan, no "estádio do espelho", o "eu" (moi) revela-se como uma representação, articulada à imagem do corpo, que a criança vê refletida no espelho. Esta imagem confere uma primeira unidade às partes do corpo da criança, até então meramente justapostas umas às outras. Esta primeira unidade corporal é formada pela identificação da criança com a imagem que ela vê projetada no espelho como a imagem de um outro.
Nesta primeira descoberta que a criança faz da imagem do seu próprio corpo refletida no espelho, há muito mais do que um simples progresso na linha do conhecimento de seu corpo, ou uma manifestação da maturação psicológica de suas funções, como defendiam os psicólogos que, antes de Lacan, se referiram à questão2.
Lacan enfatiza o que significa para a criança fazer esta primeira identificação imaginária de si mesma pela mediação de um outro. Ainda sem ter o controle da marcha ou da postura ereta, mas apoiada por um suporte humano, a criança, num momento de júbilo, descobre sua imagem no espelho, ou para dizê-lo com as palavras do próprio Lacan, esta descoberta manifesta
numa situação exemplar a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (Lacan, 1998, p. 97).
Portanto, no estádio do espelho, o que Lacan põe em destaque é uma identificação primordial, mediante a qual o sujeito liberta-se da angústia das fantasias do corpo despedaçado. Esta identificação é a "matriz simbólica" da forma primordial de uma primeira estruturação do eu, na imagem do corpo. Embora a imagem não seja o "eu real", esta identificação com a imagem de seu corpo torna possível que a criança, nela, se reconheça.
Todavia, ao mesmo tempo que esta identificação dá uma primeira configuração à instância do eu, ela também o aliena. Dito com outras palavras: a identificação com a imagem do corpo estrutura o eu (moi), mas, ao mesmo tempo, o aliena como um eu (moi) imaginário. Portanto, o essencial do estágio do espelho, para Lacan, acontece no registro do imaginário. A imagem especular não é um reflexo fiel da realidade.
Como comenta Bertrand Olgivie:
esta forma apreendida no espelho (...) situa a instância do eu numa linha de ficção irredutível para sempre para o indivíduo único (...) A maneira pela qual o eu se apreende, ao aparecer diante de si pela primeira vez, é inicialmente fictícia. O sujeito, em primeiro lugar, se procura e se encontra, constituindo-se em alguma coisa radicalmente "outra": a forma antecipada daquilo que ele não é, mas que não tem outra possibilidade senão a de crer que é. "O outro se vê, se concebe como outro que não ele mesmo" (Olgivie, 1988, p. 117).
Contudo, isso não quer dizer que o simbólico esteja ausente da vida da criança, pois esta, desde o nascimento e antes dele, já era marcada simbolicamente pelo desejo e pela fantasia dos seus pais.
No entanto, não é nosso propósito determo-nos, aqui, em uma análise mais aprofundada da doutrina de Lacan sobre o estádio do espelho. A ela nos referimos apenas para dizer que foi na teoria lacaniana do estádio do espelho que Winnicott se inspirou para introduzir o espelho do rosto materno na sua doutrina do desenvolvimento afetivo da criança.
Partindo de um ponto de vista diferente, Winnicott afirma que o "precursor do espelho é o rosto da mãe" (1973, p. 153). Deveras, "o estádio do espelho" foi situado por Lacan entre os seis e os dezoito meses da vida do bebê. Mas disto não se pode deduzir que a dialética da constituição do eu pela mediação do outro já não exista em uma relação mais precoce, particularmente com esse outro todo especial que é o rosto materno.
Aliás, em uma Comunicação intitulada Quelques réflexions sur l'Ego [Algumas reflexões sobre o Ego] feita à Sociedade Inglesa de Psicanálise, em 3 de maio de 1951 e publicada no International Journal of Psycho-Analysis (vol. 34, p.11-17), Lacan assim se exprimiu: "Esta falta de coordenação sensorial e motora não impede ao lactente de ficar fascinado pelo rosto humano, quase tão depressa quanto quando abre seus olhos à luz do dia" (apud Olgivie, 1988, p. 116).
Portanto, se existe uma diferença na abordagem do espelho entre Lacan e Winnicott, esta não se deve ao fato de que, em Winnicott, o espelho do rosto materno é mais precoce do que no estádio do espelho introduzido por Lacan. Segundo nosso modo de ver, esclarecer-se-ia melhor a diferença, dizendo que o eu que está em questão no estádio do espelho é o eu (moi) alienado no registro do imaginário, enquanto, para Winnicott, o que está em jogo é o self no processo de sua constituição.
Além disso, para que o bebê se veja e descubra a imagem unitária de seu corpo, ele precisa ter primeiro descoberto o espelho do olhar materno. É através das expressões faciais, dos gestos, das atitudes, e especialmente do olhar que a mãe ordena o caos das sensações e das emoções que o bebê sente no início da vida, e, assim, pode oferecer-lhe, de modo gradativo e apropriado, o que ele necessita. O bebê, então, identifica-se com esta imagem materna asseguradora e empática, através da qual vai construir uma imagem de si mesmo, diferenciada e condizente com seu self. Por meio desta função especular primária e integradora, o bebê se identifica (e aprende a reconhecer-se) com sua imagem projetada na mãe e refletida por ela (cf. Doin, 1989, p.151).
A fim de melhor entender a natureza e os destinos da metáfora do espelho do rosto materno, vamos distinguir, no processo de constituição da subjetividade infantil, três modalidades de espelho, relativas a três momentos do processo de constituição do self, vale dizer, "o espelho-mágico", "o espelho-vidro" e o "verdadeiro espelho". Cada uma delas tem sua natureza própria e sua função característica e corresponde a um determinado momento da teoria winnicottiana sobre o desenvolvimento afetivo do bebê. Vejamos o essencial de cada uma.
O espelho mágico e suas ilusões narcísicas
É no contexto da teoria freudiana do narcisismo que vamos encontrar a referência teórica principal para entender o sentido daquilo que estamos chamando de espelho mágico. O que se poderia entender, quando dizemos que o rosto materno pode transformar-se em um espelho mágico?
Para tentar responder a esta pergunta, vamos lembrar que, em seu artigo de 1914 - Para introduzir o Narcisismo: Freud diz que o narcisismo dos pais (particularmente o da mãe) projeta-se sobre o narcisismo dos filhos. Eis suas palavras: "Quando se considera a atitude dos pais afetuosos para com seus filhos, esta deve ser reconhecida como a revivescência e a reprodução de seu próprio narcisismo há muito abandonado" (Freud, 1914/1990, p. 57).
De fato, os pais gostariam que seus filhos tivessem "todas as perfeições" possíveis. Além disso, "o filho deve ter uma vida melhor do que a de seus pais nem deve ser submetido às necessidades reconhecidas como dominadoras da vida". Mais ainda: "As leis da natureza, como as da sociedade, devem cessar diante dele e ele novamente será o centro e o cerne da criação. His Majesty the Baby" (id. Ibidem).
Portanto, o olhar da mãe voltado para o filho recria o narcisismo primário, na medida em que idealiza, para o filho, um eu perfeito e desloca o seu "Ego ideal" sobre a imagem desse filho todo-poderoso, que, assim, poderá realizar todos os seus sonhos. Lembremo-nos de que, para Freud, o Ego ideal
como o infantil, encontra-se de posse de todas as valiosas perfeições. O homem mostra-se aqui (como sempre no campo da libido) incapaz de renunciar à satisfação uma vez usufruída. Ele não quer privar-se da perfeição narcísica de sua infância (...) O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituo do narcisismo perdido de sua infância, no qual ele era seu próprio ideal (Freud, 1914/1990, p. 60-61)
No momento em que a mãe projeta seu "Ego ideal" (Idealich) sobre a pessoa do filho e dele faz um substituto de seu Ego ideal, não é de estranhar que o seu rosto se torne, para o filho, um espelho mágico, diante do qual ele não se cansará de perguntar como a rainha madrasta do Conto de Branca de Neve: "Espelho meu, espelho meu, existe no mundo alguém mais belo do que eu?".
Desse modo, instaura-se um paradoxo: ao mesmo tempo em que a mãe oferece ao bebê, no seu desamparo original, a ajuda indispensável para que ele possa subsistir, ela também pode marcar e, às vezes, aprisionar a criança nas ambições de seu desejo narcísico. Como lembra Piera Aulagnier,
todas as manifestações da vida do bebê (gritos, movimentos de alegria, sinal de sofrimento) são interpretadas pela mãe como um apelo, ou como uma mensagem da qual ela é a destinatária, mas esta interpretação, por sua vez, pode ser forjada nos moldes de seu próprio desejo (Aulagnier, 1990, p.197).
Winnicott, por sua vez, adverte que as crianças aprisionadas ao "desejo" da mãe desenvolvem uma organização falsa do self, na qual e mediante a qual, elas, em todo o processo de realização de suas vidas, vão procurar consertar algo de errado em suas mães. Daí porque a realização não significa necessariamente, para elas, um verdadeiro progresso (Winnicott, 1994, p.193).
É preciso, lembra Leclaire (1977), que a criança, dia após dia, liberte-se da representação tirânica do desejo materno, que dela faz o objeto privilegiado dos seus sonhos e realizações, pois somente na exata medida em que começarmos a "matar" essa "criança idealizada", começaremos a desejar. Novamente um paradoxo se impõe: de um lado, renunciar à idealização do desejo materno seria para a criança um decreto de morte, pois, sem a mãe, o bebê não subsistiria; mas aceitar semelhante idealização e nela fixar-se seria condenar-se a não viver. Como diz Leclaire: "não há vida possível, vida de desejo, de criação, se cessarmos de matar a 'criança maravilhosa' que renasce sempre" (1977, p. 10).
Esta metamorfose do espelho que estamos chamando de "espelho mágico" corresponde, pois, a esse momento mítico de perfeição, ilusão e de onipotência. Todavia, a criança precisa passar por esta fase, sem a qual não haverá confiança para suportar as frustrações que virão pelo processo de desadaptação realizado pela mãe, pois "traumatizar gradualmente faz parte da função de uma mãe sadia" (Abram, 2000, p. 160).
Segundo Winnicott, embora, inicialmente, o bebê e sua mãe sejam um, já nesta fase, o bebê "é", pois "alguém ali se encontra para juntar experiências, confrontá-las, sentir e estabelecer distinções entre os sentimentos, ficar apreensivo no momento adequado e começar a organizar defesas contra o sofrimento mental; então, é possível afirmar, como faço, que o bebê É (...)" (Winnicot, 1999, p. 33).
Se o eu se constitui pela mediação do outro, é preciso que esse outro que é a mãe, ao garantir a existência do eu do bebê, garanta-lhe também a diferença. Como já foi visto, a ilusão narcísica de um eu ideal, criada pela função materna na sua relação primária com o bebê, é tão necessária e fundante, quanto necessária terá que ser posteriormente a fase da desilusão.
Pelo fato de a mãe voltar-se para seu próprio self, ela dá inicio ao processo de desilusão do bebê, dele se desadaptando. Para o bebê, a desilusão consiste em compreender que sua mãe também tem falhas e não é perfeita como antes lhe parecia. Quando a mãe passa a corrigir suas falhas no tempo exato, ela ensina ao bebê a confiar no ambiente e ele começa a percebê-la como um "objeto objetivamente objetivo".
O espelho-vidro
Designamos com a expressão "espelho-vidro" uma nova metamorfose do espelho, na qual e pela qual este deixa de ser um espelho verdadeiro e se apresenta apenas como um pedaço de vidro, porque lhe falta o estanho, através do qual o vidro se torna um verdadeiro espelho. Sem o estanho, o vidro não pode refletir as imagens que nele se projetam e, desta forma, não é um verdadeiro espelho.
Winnicott resume em uma só frase o que se poderia dizer deste espelho-vidro aplicado ao rosto materno: "O bebê se acostuma à idéia de que, quando olha, é o rosto da mãe [e não o seu] que é visto. O rosto da mãe, portanto, não é um espelho" (Winnicott, 1975, p. 155. Colchetes acrescentadas por nós).
Vejamos até que ponto este espelho-vidro pode ser uma metáfora do espelho do rosto materno no processo de formação e de constituição do self da criança. Como disse Winnicott, no espelho vidro, o que a criança vê é o rosto da própria mãe com todas as suas idiossincrasias, seus problemas e angústias. Não se vendo a si mesma, a criança corre o risco de fixar seu olhar no semblante materno, estampado no rosto que se mostra atrás do vidro.
Talvez para uma melhor compreensão da metáfora do espelho-vidro, poder-se-ia dizer que a amálgama que lhe falta relaciona-se também à ausência ou às falhas da função paterna. De fato, sem esta não se desfaz a relação fusional mãe-filho e, por conseguinte, não se faz a passagem da relação dual imaginária para uma relação verdadeiramente intersubjetiva. Sem esta passagem, a criança permanece para sempre alienada no imaginário da mãe. E é isto o que acontece quando ela se fixa no rosto materno que lhe impõe seu desejo através do espelho-vidro.
Há quem diga que Winnicott deu pouca atenção ao papel do pai em sua teoria do desenvolvimento afetivo da criança. Sem querer discutir esta observação, o que não se pode esquecer é que, para ele, o pai é um promotor do estágio da preocupação materna primária, na medida em que dá suporte e apoio à mãe e ao bebê. O pai participa, ele também da maternagem, pois cabe-lhe criar um ambiente protetor e provedor. Quando Winnicott se refere à ausência do pai, ele ressalta as conseqüências negativas, que são mais visíveis do lado materno, mas não deixa de se referir ao pai como aquele que deve ficar atento para que a mãe não "devore" seu bebê.
A metáfora do espelho-vidro do rosto materno no processo de constituição do self da criança tem um destaque todo especial, quando abordamos o problema da identificação. Mesmo não sendo nosso propósito fazer aqui um estudo detalhado do problema da identificação em Winnicott, vamos lembrar que, para ele, a mãe empresta as funções do seu próprio ego de modo a organizar e processar as funções do ego de seu filho, enquanto ele ainda não as tem desenvolvidas. Contudo, a este momento deve seguir o momento da separação, quando a criança dispuser do que precisa para constituir sua própria personalidade.
Esta desadaptação, porém, é bastante complexa, e não se dá sem sinais de resistência (raiva, revolta e agressividade por parte da criança). Superar esta resistência faz parte da função da "mãe suficientemente boa", pois fortalece o sentimento de confiança no ambiente.
Se o pai deve ficar atento "à voracidade da mãe por seu bebê", é porque, também para ela, mãe, não é fácil separar-se do filho. Nas palavras de Winnicott: "É uma tarefa difícil para a mãe se separar do lactente com a mesma rapidez com que o lactente precisa ficar separado dela" (Winnicott, 1983, p. 52) e isto é verdade não só por ocasião do nascimento e do desmame, mas durante toda a vida. Ela talvez seja quem mais tem a perder em suas fantasias com semelhante separação, pois o bebê tem um mundo pela frente de projetos e conquistas. Para ela, a ilusão se quebra quando descobre que o filho não é posse sua e que não veio para satisfazer seus sonhos dourados. O bebê vai ser encaminhado precisamente para, um dia, descobrir seus próprios caminhos e descortinar seus horizontes, nos quais projetará seus sonhos e ideais.
Sabemos que a mãe é constituída na sua subjetividade pelo jogo dialético de conquistas e renúncias e que, em conseqüência disso, tanto pode prevalecer nela o desejo de ter um filho para ajudá-lo a crescer e emancipar-se na vida, como também querer ter o filho como uma posse sua, de conformidade com o projeto inconsciente de uma "gestação eterna" para compensar ou suprir suas frustrações. Zimerman exemplifica este fato dizendo:
pode acontecer, portanto, que a mãe tenha uma necessidade vital do seu filho e o induza a funcionar como sendo o seu complemento sexual ou narcisico, ou ambos. Nos casos em que a mãe seja basicamente uma pessoa deprimida, ou que tenha uma fobia de ficar sozinha, costuma acontecer que esta mãe invista em algum dos filhos (às vezes, em alguns ou em todos) um vínculo simbiótico, cimentado de culpas, de modo a garantir o seu 'seguro solidão', como costumo definir esta situação nada rara (Zimerman, 1999, p. 108).
Em virtude desta falta, da qual o bebê nada sabe, a mãe se torna para ele uma esfinge que repete a célebre frase: "decifra-me ou eu te devoro!". As crianças que decifrarem o enigma do desejo materno e dele se desvencilharem, passarão bem pelo processo de constituição de suas subjetividades, mas "serão mortas aquelas que não conseguirem encontrar a solução do enigma" (Cf. Bulfinch, 2001, p. 152).
Sabe-se que o fato de a mãe atender às necessidades biológicas e emocionais da criança reveste-a de um poder onipotente, por isso a criança pode ser facilmente levada à submissão. Assim, tanto a criança deve "matar" a representação inconsciente primordial de uma mãe onipotente, quanto, por outro lado, a mãe deve estar sempre fazendo o luto da perda da criança como objeto-posse do seu desejo.
O falso self
Disto que foi dito, pode configurar-se o aparecimento de um falso self. Este é o caminho pelo qual a criança é levada a uma falsa existência. Para Winnicott, os inícios deste falso self remontam à inabilidade da mãe em sentir as necessidades do bebê e em satisfazer aos seus gestos. Quando em vez disso, ela substitui o gesto do bebê pelo seu próprio gesto, valida-se com isso a submissão do bebê (1983, p.133).
Daí resultam irritabilidade generalizada e distúrbios na alimentação do bebê. Depois, no decorrer dos anos, o falso self manifesta-se em sensação de vazio, de irrealidade e de futilidade. Sua personalidade é superficial e ele vive sem uma "continuidade de ser". Sua vida é dominada pela submissão e pela imitação. Quase sempre as pessoas que têm um falso self são impulsionadas pelo fascínio das ambições. Graças ao seu modo eloqüente e sedutor de se apresentarem, essas pessoas têm a habilidade de dissimular, fingir e mentir e, desse modo, conseguem o que nunca pôde ser atingido pelo verdadeiro self. Nos pacientes com um falso self, este hábito de negar e desconhecer a realidade interna coloca-os sempre em grandes dificuldades no processo analítico.
O falso self pode ser constituído como defesa contra as ameaças de aniquilamento dirigidas ao verdadeiro self. Diante de tais ameaças, a angústia é muito intensa e está sempre ligada a uma "angústia mais fundamental" vivenciada pelo paciente em idade muito precoce. É verdade que todos nós temos algo de um falso self dentro de nós. O importante é que seu grau não se torne tal que paralise o verdadeiro self. Nas pessoas com falso self, observa-se uma estrema inquietação, uma incapacidade de concentração e uma necessidade de colecionar ilusões. A vida inteira pode tornar-se uma reação a essas ilusões. Desconhecendo sua identidade, elas passam a vida copiando e imitando o que lhes parece ideal.
O espelho verdadeiro e o verdadeiro self
Uma vez que o processo de integração tenha se estabelecido na normalidade, a criança torna-se gradualmente capaz de se defrontar com o mundo e todas as suas complexidades, formando um intercâmbio continuo entre a realidade interna e a externa, cada uma sendo enriquecida pela outra.
Tudo isso só pode ocorrer quando a mãe funciona como um "verdadeiro-espelho" no qual a criança pode se descobrir pouco a pouco como uma "pessoa total" e como sujeito desejante, capaz de se relacionar com as outras pessoas.
A mãe, cujo rosto é um "verdadeiro espelho", é a mãe suficientemente boa, pois ela alimenta e acolhe o gesto espontâneo da criança repetidamente, e, a partir da força dada ao ego do bebê, um self verdadeiro começa a ter vida. A mãe que é um "verdadeiro espelho" primeiramente complementa a onipotência do bebê devido à sua capacidade de identificar-se com ele e de sentir suas necessidades, decodificá-las, nomeá-las e traduzi-las simplificadas para o bebê. Aos poucos, graças ao gradativo trabalho de desadaptação materna, a criança torna-se capaz de se defrontar com o mundo e todas as suas complexidades, e de se desenvolver no sentido de uma verdadeira independência.
Para Winnicott, o desafio de verdadeiro espelho do rosto materno é proporcionar as condições necessárias para a criança estabelecer uma "conciliação entre imitar os pais e desafiadoramente estabelecer uma identidade pessoal" (Wunnicott, 1983, p. 87).
No espelho verdadeiro do rosto materno, a criança sente-se real e "sentir-se real, diz Winnicott (1975), é mais do que existir, é descobrir um modo de existir como si-mesmo e somente o self verdadeiro pode ser criativo e sentir-se real.
Ser um verdadeiro self envolve duas coisas: a capacidade de estar só e a criatividade, que são os sinais mais importantes do amadurecimento afetivo. Mas para que o adulto consiga isto, deve ter passado, como criança, pela experiência de estar só na presença de alguém, em quem confia. Somente assim, a criança pode descobrir seu potencial criativo. E o viver criativo é sinônimo de saúde e de um verdadeiro self. A capacidade de viver criativamente e de sentir que a vida vale a pena de ser vivida está diretamente ligada à qualidade das provisões ambientais no início da vida
À guisa de uma conclusão
Para finalizar, gostaríamos de lembrar um texto em que Freud analisa uma recordação de infância do grande poeta alemão Goethe, indiscutivelmente seu poeta preferido, porquanto o mais citado em seus livros.
No artigo, escrito em 1917 e intitulado Uma recordação de infância no Dichtung und Wahrheit, Freud antecipa aquilo que depois Winnicott (1975) desenvolverá sobre a importância das provisões ambientais no relacionamento precoce com a mãe e seus efeitos no desenvolvimento da capacidade da criança viver sua vida de um modo criativo, conquistando, para si, um grande êxito.
Logo no primeiro parágrafo, Freud (1917/1969, p. 159) lembra que Goethe "veio ao mundo tido como morto e só, com múltiplos esforços, conseguiu-se que ele viesse à luz" e, no final do texto, ele ressalta que o segredo do sucesso tanto da vida pessoal quanto da vida profissional de Goethe, ele próprio atribuiu ao relacionamento que teve com sua mãe. Diz Goethe: "tornei-me uma criança feliz; e conclui dizendo: "minha força enraíza-se na relação com minha mãe".
Posto isto, Freud, por sua vez, também pôde concluir: "Quando se foi um predileto indiscutido de sua mãe, conserva-se pelo resto da vida aquele sentimento de conquistador, aquela confiança no êxito, que, na verdade, freqüentemente arrasta o sucesso consigo" (Freud, 1917/1969, p. 167).
Referências
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Zimmerman, D. E. (1999). Fundamentos psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. [ Links ]
Recebido em 12 de setembro de 2005
Aceito em 28 de setembro de 2005
Revisado em 14 de novembro de 2005
* O presente ensaio resume uma parte da Dissertação de Mestrado intitulada "O Espelho do rosto materno e o Self: Abordagem Winnicottiana", defendida por Giselle César Diniz sob a orientação do Prof. Zeferino Rocha no Mestrado em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco, em abril de 2005.
Notas
1 Seria oportuno lembrar, desde logo, que o próprio Winnicott nem sempre empregou com muita clareza a palavra self. Ele a distingue do ego, mas não faz o mesmo em relação à palavra eu. Para ele, o self é uma pessoa que é um eu, ou seja, uma totalidade construída através do processo de maturação. Já o ego "descreveria parte da personalidade que tende sob condições favoráveis a se integrar em uma unidade". No decorrer da obra, o self cada vez mais aparece como "o núcleo da personalidade" (Winnicott, 1983, p. 55-56), ou também reveste o sentido de uma personalidade integrada. Mas, isto não impede que desde o nascimento, em um ambiente propício que possibilite o desenvolvimento das potencialidades do bebê, um self rudimentar já exista, embora de forma extremamente frágil. Winnicott diz igualmente que o self se encontra localizado no corpo e quando os cuidados maternos falham na função de integrar as sensações corporais do bebê, os estímulos ambientais e o despertar de suas capacidades motoras, a criança sente sua continuidade existencial, vale dizer, a continuidade de seu ser ameaçada e procura substituir a proteção que lhe falta e da qual surgiria um verdadeiro self, por outra fabricada por ela própria, vale dizer, seu falso self.
2 É o caso, por exemplo, de H. Wallon que, em 1931, escrevia no Journal de Psychologie um artigo intitulado: Como se desenvolve na criança a noção de corpo próprio