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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.6 n.2 Fortaleza set. 2006

 

ARTIGOS

 

Teoria das relações de objeto em Freud e Fairbairn

 

 

Luiz Augusto M. CelesI; Ana Caroline Galli dos SantosII; Karen Cristina Martins AlvesIII

IPsicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-Rio); Especialista em Psicologia Clínica (CRP); Professor Titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. End.: SQN 205, bloco "L", Ap. 303. CEP: 70843-120 Brasília, DF. E-mail: celes@unb.br
IIPsicóloga (Universidade de Brasília). Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC/UnB - CNPq (programa 2004/2005). End.: SQN 316, bloco C, ap. 406. CEP: 70 775-030 Brasília - DF. E-mail: carolinegalli@yahoo.com
IIIEstudante de Graduação em Psicologia na Universidade de Brasília. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET/PSI). End.: SQS 404, bloco "I", Ap. 304. E-mail: karinka_br@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A psicanálise freudiana se construiu sobre o tratamento da neurose, entendendo-a como determinada pela sexualidade. Destaca-se, assim, a importância da sexualidade para o movimento psicanalítico, correspondendo também a uma das direções em que se dão as dissidências. Nem todos os teóricos da área, portanto, privilegiam igualmente as questões sexuais. De acordo com as exigências e o momento social e cultural vivido, vários teóricos deixaram de lado esta ênfase à sexualidade para focalizar outros temas, como as relações de objeto. Assim, é válido tentar compreender as diferentes concepções de psicanálise, que conseqüências trazem para o tratamento de novas demandas e que limitações da teoria da libido buscam superar. Desta forma, a presente pesquisa visou abordar as divergências e possíveis convergências entre as teorias psicanalíticas de Freud e Fairbairn, utilizando, para tanto, estudos de textos e artigos escritos por ambos os autores, bem como por autores que se referem à teoria da libido e teoria das relações de objeto. Percebeu-se que, apesar de existirem divergências conceituais importantes entre os autores, há também aproximações que podem favorecer o tratamento de novas demandas. Em síntese, pode-se dizer que Fairbairn parte das idéias de Freud e propõe novos entendimentos sobre o funcionamento da libido, constituição da personalidade, estados psicopatológicos, objetos internos e relação com os objetos. Vê-se, ainda, que existe na teoria freudiana um reconhecimento da importância das relações de objeto, além do entendimento de uma possível divisão egóica - aspectos que foram, sobre outros fundamentos, mais explorados e desenvolvidos por Fairbairn. A partir destas reflexões e da percepção de pontos convergentes entras as teorias, apreendeu-se também que, apesar de não ter privilegiado as relações de objeto e os objetos internos, a psicanálise freudiana não é alheia à sua presença e importância. Pode-se mesmo afirmar que nela se encontra uma teoria de tais relações.

Palavras-chaves: psicanálise; teoria da libido; teoria das relações de objeto; Freud; Fairbairn.


ABSTRACT

Freudian psychoanalysis was built over the neurosis treatment, which has been conceived as determined by sexuality. However, not all the theorists in this area give equal privilege to sexual matters. According to social and cultural demands in different epochs, several theorists left aside the emphasis on sexuality to focus different subjects, like object relations. Thus, it's appropriated to comprehend the diverse conceptions in psychoanalysis and the consequences it brings to the treatment of contemporary clinical demands, as well as the limitations the diverse conceptions intends to surpass in libido theory. In this purpose, the object of this study was to investigate divergences and convergences between Freud and Fairbairn psychoanalytical views, adopting, for that, texts and articles written by both authors, and by other ones that refer to libido theory and object relations theory. It was found that, despite relevant conceptual divergences among the authors, there are similarities and approximations that are able to benefit the treatment of new clinical demands. In a short, it can be said that Fairbairn starts out from Freud's ideas and proposes new ways of understanding the dynamic of libido, personality constitution, psychopathological states, internal objects and object relations. It's also has been seen that Freudian psychoanalysis recognizes the value of object relations, and identify the possibility of a ego split - aspects that have been, on different foundations, more explored and discussed by Fairbairn. These reflections and the perception of converging aspects on both theories culminated in the idea that, even though Freud did not privilege object relations and internal objects, the psychoanalysis that derives from him isn't inattentive to its presence and relevance. It's even possible to assert that there is an objects relations theory present in Freud's writings.

Key-words: psychoanalysis, object relation theory, Freud, Fairbairn


 

 

Antes mesmo de se constituir como conhecimento, a psicanálise se estabeleceu como um trabalho de tratamento da neurose, com intencionalidade puramente terapêutica, nas palavras de Freud, tendo sido assim iniciada e assim fundamentalmente caracterizada. Quando, junto com Breuer, dedicou-se a ouvir os sintomas histéricos, Freud inaugurou uma nova configuração de tratamento pela fala. Foi a partir do trabalho desse modo realizado com seus pacientes que novas formas de compreensão da neurose e, de modo geral, da organização psíquica foram sendo construídas, e a psicanálise adquire, assim, o seu também inalienável sentido teórico.

Uma vez que o sentido original da psicanálise é de trabalho de tratamento, a teoria faz-se a partir do tratamento e permanece a ele intrincada, tendo a função de esclarecer, organizar, tematizar e falar sobre o que se dá em tratamento, e mesmo a função de pensá-la, como o sugere Green (1988) - no sentido de que a teoria em psicanálise tem o trabalho de tratamento como seu objeto. Aqui se verifica, em outras palavras, que o campo sobre o qual se dá a construção teórica em psicanálise - a metapsicologia - é a própria prática psicanalítica. Isto significa que a metapsicologia é, em seu fundamento, a teoria da psicanálise: constituindo-se a experiência de psicanálise a abertura e a possibilidade da construção teórica (Celes, 2000, dentre outros). Neste sentido, se pode compreender um dos motivos - não o único, nem o menos importante - da diversidade das teorias psicanalíticas: porque refletem a diversidade das formas da experiência psicanalítica - que se dá, mesmo sob a estreita observância de seu singular método de tratamento pela fala.

No que diz respeito à psicanálise constituída por Freud, seu autor originário, suas primeiríssimas experiências de tratamento revelaram a determinação sexual das neuroses. Se, da concepção do trauma sexual às determinações das fantasias apoiadas na sexualidade infantil até chegar às formulações de Eros e pulsão de morte houve profundas e significativas mudanças na concepção da determinação das neuroses, a sexualidade não perdeu em Freud o privilégio de constituir-se a base das considerações quanto à experiência psicanalítica e da compreensão da neurose, ampliada à compreensão do humano. A nomeação da base sexual da psicanálise freudiana se revela na concepção da Teoria da Libido. A psicanálise freudiana se erigiu sobre o tratamento da neurose como distúrbio no desenvolvimento sexual (usando um modo de expressão bem antigo de Freud, como no Caso Dora, de1905); compreendendo-a como determinada pela sexualidade ou, mais especificamente, por experiências relacionadas à sexualidade - sexualidade esta que rapidamente ocupa o lugar da base de toda experiência, apresentada na idéia dos destinos subjetivos como vicissitudes da libido. Na proposição freudiana assim compreendida, já se pode perceber a importância da sexualidade para o movimento psicanalítico, apontando também uma das direções em que se deram e se dão as dissidências nesse movimento.

O privilégio conferido por Freud à sexualidade permite que ela seja entendida como fundamental ao processo de subjetivação e fator central para compreensão da constituição psíquica. Também central à psicanálise é a compreensão e manejo da transferência, tema amplamente abordado e discutido por Freud (1912/1976b; 1915/1976d; 1916-1917/1976g, entre outros). A princípio como conceito periférico e obstáculo ao tratamento, a transferência tornou-se de extrema importância no processo analítico, a sua condição, propriamente - a transferência, sem perder seu sentido de resistência e repetição (repetição de padrões relacionais, rememoração atuada de vínculos e relações primitivas significativas), configura-se como o modo do trabalho de tratamento que é a psicanálise, guia de seu processo e, ao mesmo tempo, o "objeto" privilegiado do tratamento - ela se constituindo, na compreensão de Green (1988), mais que um conceito dentre outros, mas a condição para se pensar os outros conceitos; a transferência encontrando, desta feita, a sua função teórica. Com esta breve apresentação, salienta-se a sexualidade e o uso da transferência como principais pilares da psicanálise e como aspectos cruciais para sua diferenciação em relação a outras formas de psicoterapia.

Entretanto, nem todos os movimentos psicanalíticos têm o mesmo entendimento a respeito da sexualidade, o que tende a indicar, também, formas distintas de apreender e tratar a transferência - inclusive quanto a seu valor teórico. Considerando a vinculação da metapsicologia - a teoria psicanalítica - às práticas do tratamento e acrescentando o entendimento da psicanálise como sensível a mudanças sócio-histórico-culturais (Celes, 2003), pode-se ter uma maior compreensão sobre as divergências dentro do campo psicanalítico, suas conseqüências, bem como a compreensão de uma certa conformação da psicanálise às demandas de época, ainda que estas não a determinem completamente. Com isso justifica-se o argumento, sempre atualizado, da necessária adaptação da psicanálise às condições de cada período de sua contemporaneidade.

É importante, no entanto, aperceber-se de que tal argumento teve, ao lado de seu estatuto de justificativa de produção de conhecimento e progresso da psicanálise, outras funções no movimento psicanalítico, como as de políticas de hegemonia de grupos e tendências. Não obstante, a diversidade efetivamente se institui em psicanálise, sendo que, por muitas vezes, novas ou renovadas concepções foram acompanhadas da vontade e da intenção de alcançar o estado definitivo, com a conseqüente superação das teorias precedentes. Figueiredo (2003) também avalia esta articulação existente entre o discurso metapsicológico e os contextos culturais, os momentos históricos, as novas psicopatologias e as práticas analíticas, e a tendência dos autores e grupos no sentido de acreditar proporem, a cada vez, soluções supereminentes e alheias às vicissitudes histórico-culturais.

No entanto, a história do movimento psicanalítico revela a sensibilidade da psicanálise às exigências decorrentes de acontecimentos e mudanças culturais, levando às transformações em sua teoria e forma de tratamento, permanecendo, essas também, sujeitas às vicissitudes histórico-culturais. Dessa maneira, momentos diferentes levaram a transformações da psicanálise com o propósito, nem sempre consciente, de acompanhar e atender às demandas de novas formas de organização psíquica - tal como teria acontecido, por exemplo, após a Primeira Guerra Mundial, com as chamadas neuroses de guerra, que levaram à exploração e ao enfoque de novos temas, como a repetição e a pulsão de morte. Como também, após a Segunda Grande Guerra, a exploração da agressividade e destrutividade, consideradas como manifestações da pulsão de morte. O desamparo, então, deu ensejo à preocupação com a constituição do self em relação ao ambiente e a seus objetos de satisfação; o desenvolvimento da psicologia do ego e das teorias das relações de objeto etc. Recentemente, os temas dos casos-limites e certas impermeabilidades à psicanálise levaram à reativação da preocupação com o narcisismo e a pulsão de morte, inicialmente constituídos de modo divorciado um do outro; também se verifica a re-integração, por parte de alguns setores da psicanálise, da sexualidade na compreensão dos processos de subjetivação e dos processos de psicanálise. É o que, segundo se pode entender, atualiza e torna contemporânea a retomada da disputa que foi clássica entre a Teoria da libido e a Teoria das relações de objeto.

As transformações da psicanálise foram se constituindo como maneiras diferentes de abranger e compreender as novas demandas de tratamento, embora convivessem com as antigas compreensões psicanalíticas, não as superando completamente, nem as integrando em totalidades crescentes. Uma questão permanente em toda história do movimento psicanalítico, a qual o psicanalista (e a psicanálise como movimento) não pode deixar de se autoformular, diz respeito ao estatuto das compreensões psicanalíticas assim constituídas: na simultânea superação e permanência das perspectivas psicanalíticas, haveria conceitos fundamentais? A sexualidade e a transferência, embora enraizadas na própria criação da psicanálise, não mantêm o mesmo sentido em construções posteriores e, até mesmo, como é o caso da sexualidade - em que um dos principais exemplos retomaremos com Fairbairn - perde seu sentido de fundamento da compreensão dos modos e processos de subjetivação e de sua presença e implicação na prática psicanalítica que tinha em Freud, e é recuperada, mais recentemente, ainda que de maneiras distintas entre eles próprios, por diversos autores (p. ex., Lacan, Laplanche, Green, dentre outros, a maior parte, seus seguidores).

Percebe-se, então, que a história da psicanálise vem beneficiando temas diferentes de acordo com as exigências singulares dos tratamentos e com o momento social e cultural vivido, de forma que vários movimentos psicanalíticos deixaram de lado a ênfase freudiana à sexualidade para focalizar outros temas como, por exemplo, as relações de objeto. Aliás, o principal exemploa é a questão mesma deste texto. Deste modo é que se torna importante estabelecer estudos entre as diversas concepções de psicanálise, buscando compreender a que elas respondem, que conseqüências trazem para o tratamento. Para o caso específico do que aqui se tematiza, embora não se trate a sexualidade de tema particular, abrangendo o fundamento que organiza, pela aceitação ou recusa, toda psicanálise cabe também perguntar pelo sentido da presença e ausência da teoria da libido nas formulações psicanalíticas.

Foi neste contexto de revisões e rearticulações do enfoque freudiano que foram se desenvolvendo as teorias das relações de objeto, especialmente após 1930. Teóricos como Melanie Klein e W. Ronald D. Fairbairn trouxeram entendimentos distintos daqueles apresentados por Freud no que se refere à estrutura e ao funcionamento psíquicos, buscando estender o tratamento e a compreensão analítica aos chamados casos difíceis, como pacientes psicóticos, narcisistas e limítrofes.

Neste sentido, pretende-se abordar neste artigo algumas divergências e possíveis convergências entre as teorias psicanalíticas de Freud e Fairbairn, utilizando-se, para tanto, estudos de textos e artigos escritos por ambos os autores, bem como por autores que se referem a eles e às questões correspondentes à teoria da libido e à teoria das relações de objeto.

 

Sobre Fairbairn

W. Ronald D. Fairbairn (1889-1964) foi um dos expoentes mais radicais da teoria das relações de objeto. Sua obra - concentrada principalmente no livro intitulado Estudos Psicanalíticos da Personalidade (1952/1980) - foi desenvolvida entre 1920 e 1950. Apesar de não ter uma obra amplamente divulgada e conhecida, sua importância é destacada por autores como Mitchell (2000), que assinala que traços de sua influência podem ser percebidos em quase todas as áreas da teoria e prática psicanalítica contemporânea. Fairbairn pretendia construir uma nova e mais abrangente teoria psicanalítica, que fosse capaz, tal como sublinhado por Figueiredo (2003), de abordar e explicar os processos básicos do psiquismo1.

Bastante próximo da atitude metodológica fundamental iniciada por Freud, foi a partir de seu envolvimento no tratamento psicanalítico que Fairbairn propôs uma nova compreensão das formas de constituição subjetiva. No entanto, seu achado caminhou em direção a uma concepção de constituição psíquica que coaduna em desenvolvimentos psicopatológicos. Por privilegiar a dimensão psicopatológica, investigando as origens e a natureza patológica da vida mental, pode-se dizer que Fairbairn se aproxima de uma teoria da gênese da personalidade e dos mecanismos mais primitivos de constituição psíquica. Privilegiando as considerações sobre a qualidade das relações de objeto e da dependência dos objetos, reviu a teoria freudiana da libido e mostrou a esquizoidia como a forma fundamental da constituição psíquica.

 

Teoria da Libido freudiana e Teoria das Relações de Objeto de Fairbairn

No sistema proposto por Freud (1911/1976a), a característica mais marcante do funcionamento do aparelho psíquico é que ele se volta à redução da tensão, sob a regência do princípio do prazer, tal como o entendem muito resumidamente os teóricos das relações de objeto, como Mitchell (2000). Isto significa que o grande propósito de todos os impulsos é a satisfação acompanhada da redução da tensão corporal, o que é experienciado como prazer. Nestes termos, a libido se dirige aos objetos, apenas quando eles se mostram úteis para reduzir a tensão promotora do desprazer. De acordo com Loparic (1996), isso mostra que, para Freud, é o funcionamento do aparelho corpóreo que determina todos os modos de relacionamento com o objeto, a natureza e a escolha dos objetos, as metas, e a evolução ou a história do relacionamento.

Fairbairn, por sua vez, entende de maneira distinta o direcionamento da libido. Como para ele os fatores esquizóides estão universalmente presentes nas personalidades, toda a sua perspectiva procura justificar este entendimento. Para isso, ele torna secundários os investimentos libidinais e privilegia as questões de relações de objeto. Assim, ele mostra que tais relações são, elas mesmas, independentes do investimento libidinal e são determinadas, em outro sentido, qual seja, pela dependência absoluta inicial do bebê com respeito aos objetos que atendem às suas necessidades. Como se sabe ainda de Freud (1911/1976a), somente como medida de autoproteção contra o desprazer, o psiquismo parcialmente renuncia à busca imediata pelo prazer, e, assim, matiza suas relações com os objetos. Relações estas que também estariam governadas pelas pulsões de autoconservação, porém pela via de oposição às pulsões libidinais. Somente a conjugação da evitação do desprazer com a autoconservação submete o organismo ao princípio de realidade.

Diferentemente, para Fairbairn, a intensa dependência do objeto - e a qualidade deste para responder às necessidades mais fundamentais e básicas - é o que determina a constituição psíquica e o desenvolvimento da personalidade. É a partir das relações objetais, de incorporações e identificações que a personalidade vai se estabelecendo e se configurando. Entretanto, as relações com os objetos primitivos são sempre insatisfatórias em alguma medida, já que eles não conseguem ser completamente responsivos e atender a todas as necessidades do indivíduo. É justamente esta impossibilidade de satisfação completa das necessidades na relação objetal que, para o autor, acaba levando à forma esquizóide de estruturação. Isto porque, inicialmente, a criança depende radicalmente de seu objeto para assegurar sua sobrevivência, bem-estar físico e psicológico. Em um estado de tamanha dependência dos objetos, dificuldades com eles são percebidas e registradas como uma ameaça de perda do próprio ego. Embora não se utilize propriamente destes termos, é sugestivo pensar-se que Fairbairn debruça-se sobre as patologias da autoconservação - e não da busca do prazer -, elas se dando nas relações com os objetos - e não no conflito da autoconservação com as pulsões libidinais.

Nesse sentido, Fairbairn opõe-se e propõe a revisão de vários aspectos da teoria freudiana, em particular a dinâmica e o direcionamento da libido - o que seria a base para a substituição do fundamento pulsional do psiquismo por uma concepção de estruturação da personalidade (entendida como organização egóica diante dos objetos).

 

A teoria de Fairbairn e suas críticas à teoria da libido

De acordo com o entendimento proposto por Fairbairn, podem-se perceber provas da dissociação do ego nas condições psicopatológicas em geral, tanto nos estados manifestamente esquizóides, quanto nas psiconeuroses. Essa observação levou-o a questionar a teoria da libido freudiana em vários aspectos, especialmente no que se refere àquilo que motiva a busca da libido, crítica que se inicia pelo desmantelamento e entendimento da importância das zonas erógenas, confrontada com o desenvolvimento do ego. Nesse sentido, é pertinente abordar esses dois pontos e entender os desdobramentos que daí advêm, os quais foram permitindo a Fairbairn que construísse sua teoria.

A primeira grande modificação que Fairbairn propõe na teoria freudiana se refere à intenção da libido. A libido passa então a ser entendida como busca dos objetos, e não mais como busca de satisfação, voltada ao prazer. Este ponto implica num alheamento de uma perspectiva pulsional e na modificação da importância e funcionalidade das zonas erógenas, tais como eram entendidas por Freud. As zonas erógenas passam a ser apenas canais para a realização de fins libidinais (e, diga-se, não-pulsionais) que estão dirigidos ao estabelecimento de relações com os objetos, e não como fontes do prazer (Fairbairn, 1952/1980). Em oposição à concepção das zonas erógenas de Freud, Fairbairn propõe, segundo ele mesmo aponta, uma teoria baseada na dependência dos objetos. Deste modo, o desenvolvimento é entendido por ele a partir de três etapas relacionadas ao objeto: a dependência infantil, a etapa de transição e a etapa de dependência madura.

Como desdobramento deste desenvolvimento em três etapas, Fairbairn entendeu que a dependência infantil seria dividida em duas fases marcadas pela oralidade na relação com os objetos, sendo uma fase oral primária e a outra secundária (ainda resquícios da teoria libidinal interpretada por Abraham2). Depois desses momentos iniciais, se daria a fase de transição, repleta de dificuldades para o sujeito. Nela, a dicotomia e ambigüidade do objeto que não é capaz de atender a todas as necessidades do sujeito passam então a ser percebidas, de forma a exigir - como medida defensiva - uma primeira divisão ou cisão do objeto em seus aspectos bons e maus, isto é, que satisfazem e não-satisfazem suas necessidades.

O sujeito internaliza, então, o objeto mau e com ele se identifica, em uma tentativa de controlar a maldade presente nas relações objetais. Ao fazê-lo, consegue tornar a maldade condicional à sua pessoa, livrando o mundo externo de tais aspectos do objeto. Fairbairn enfatiza que esta internalização do objeto mau só se dá devido à dependência fundamental em relação a ele e aos objetos de forma geral.

Entretanto, ao trazer esse objeto mau para dentro de si, o sujeito passa a sofrer uma espécie de perseguição interna e, para lidar com isso, realiza nova divisão do objeto mau em seus aspectos excitantes e rejeitantes. Estes são também reprimidos e, como partes do ego estão relacionadas e identificadas com eles, o ego acaba igualmente sofrendo a cisão e repressão - o que, para Fairbairn, culmina na esquizoidia fundamental.

Para ele, a constituição esquizóide é estrutural porque sempre nos deparamos com limitações e dificuldades nas relações objetais primitivas, o que leva ao processo que se inicia com a divisão do objeto externo e se completa com a repressão e cisão egóica. A estrutura psíquica, assim estabelecida, se constitui do ego central, do sabotador interno e do ego libidinal, segundo as suas partes cindidas vinculadas aos respectivos aspectos do objeto mau.

Em decorrência de sua definição da estrutura esquizóide como básica no funcionamento dos sujeitos, Fairbairn aponta que os demais estados psicopatológicos são apenas técnicas de defesa utilizadas pelo ego para lutar contra a esquizoidia. Daí advém mais uma de suas críticas à teoria freudiana da libido, já que ela confere status de atitudes libidinais a essas várias manifestações psicopatológicas que somente seriam, para Fairbairn, técnicas do ego para regular relações de objeto.

Em síntese, pode-se dizer que Fairbairn parte das idéias de Freud, progressivamente distanciando-se dele, trazendo novas concepções e entendimentos sobre o funcionamento da libido (dinâmica libidinal), a constituição da personalidade, os estados psicopatológicos, os objetos internos e as relações com os objetos. Suas contribuições à psicanálise e à própria clínica ganham, atualmente, renovada importância, pois se identificam estados psíquicos contemporâneos próximos à esquizoidia e que cada vez mais aparecem nos consultórios. Figueiredo (2003) destaca a recorrência das queixas de sentimentos de futilidade, de falta de sentido, de desapego e de vazio e como esses são traços característicos dos esquizóides de que Fairbairn se ocupava. Para Figueiredo, a contemporaneidade tem apresentado às pessoas dificuldades importantes nas relações objetais, levando a uma retirada de seu investimento no mundo externo para relacionar-se com seus objetos internos, fechando-se e isolando-se, de alguma forma.

Uma consideração do próprio Fairbairn, retomada por Mitchell (2000), representa bem esta visão trazida por Figueiredo quanto à primazia das relações de objetos internos na compreensão das formas psicopatológicas. Seria própria da compreensão psicopatológica essa consideração, pois, "para Fairbairn, enquanto a psicologia define-se pelo estudo das relações do indivíduo com seus objetos, a psicopatologia compreende [de forma mais específica] o estudo das relações do ego com seus objetos internalizados" (p. 78).

 

Considerações finais: convergências entre os teóricos

Além de privilegiarem, como observado, questões distintas (sexualidade ou relações de objeto), a própria compreensão do conceito de objeto e a importância a ele atribuída diferem entre Freud e Fairbairn. Nesse sentido, Freud (1915/1976e) utiliza o termo para designar o alvo ou objetivo das pulsões, isto é, o outro, real ou da fantasia, a quem se direciona a pulsão. Mitchell (2000) acrescenta que o objeto é um dos conceitos menos intrínsecos nas considerações freudianas acerca da natureza dos impulsos, já que os processos psíquicos mais significativos ocorrem a partir do excesso ou deficiência de gratificações, sendo o objeto um mero veículo para que elas sejam obtidas ou negadas. Essa natureza secundária dos objetos pode ser apreendida nas formulações iniciais de Freud sobre o narcisismo, em que o estágio mais inicial de desenvolvimento implica no direcionamento da libido para o ego, bem antes de ser investida nos objetos3.

Apesar de manter sua concepção de busca por satisfação libidinal e pouco privilegiar os objetos, Freud não deixa de lado as relações de objeto e sua importância na escolha amorosa e na organização psíquica. Vê-se, por exemplo, em Narcisismo: Uma Introdução (1914/1976c), que ele traça uma distinção entre libido do ego e libido objetal, apontando o narcisismo primário como base para o desenvolvimento do amor e da escolha de objeto. Em A Teoria da Libido e o Narcisismo (Freud, 1916-1917/1976f), por sua vez, ele assinala a retirada do investimento libidinal dos objetos e seu retorno ao ego como fonte da megalomania característica da psicose. Até mesmo a noção de objeto interno, como parte essencial do ego, constituída pela identificação, está de certo modo assumida por Freud (1917/1976h) em seu entendimento do luto e da melancolia. Daí é possível apreender o reconhecimento do valor e da participação do investimento da libido nos objetos sobre os estados chamados psicopatológicos. Entretanto, ele deixa clara a supremacia da sexualidade e da busca de gratificação libidinal ao ressaltar que a libido liga-se aos objetos como um esforço do ego no sentido de buscar satisfação por meio deles.

Mesmo já sendo possível vislumbrar certo espaço na psicanálise freudiana para os objetos, é o desenvolvimento do conceito de superego que traz mais nitidamente o reconhecimento à questão objetal, na medida em que introduz o mundo externo na constituição psíquica do sujeito. Ao abordar a dissecção da personalidade psíquica, Freud (1933/1976l) fala de como o ego pode tomar a si mesmo como objeto e então se observar, criticar, julgar, como se uma parte sua se colocasse contra a restante. Vai construindo o entendimento do superego a partir daí, apontando-o como instância egóica de que deriva sua capacidade de controle da autoridade limitadora das figuras parentais. Desta maneira, acaba por incluir a importância do social, das relações e da moral em sua psicanálise - como, aliás, o testemunham obras freudianas como Psicologia de grupo e análise do ego (1921/1976i), O futuro de uma ilusão (1927/1976j), O mal-estar na civilização (1930/1976k), Moisés e o monoteísmo (1939/1976m), dentre outras.

A base da origem do superego, no texto de 1933, é a identificação com a instância parental, o que demonstra a importância desta vinculação e coloca o superego como herdeiro do Complexo de Édipo. Desta maneira, porque corresponde a uma espécie de internalização das funções desempenhadas pelas figuras de autoridade, controle e influência, o superego seria o que mais se aproxima, em Freud, de um objeto interno, tal como este é concebido por Fairbairn - ou seja, algo que é trazido do meio externo e com o qual o indivíduo passa a se relacionar desde dentro. Também não se pode esquecer do caso da melancolia, que diretamente tematiza a concepção do objeto internalizado e parte do ego, que, no entanto, não vem a ser nomeado por Fairbairn como reconhecimento das relações de objeto em Freud. Recentemente, é Ogden (2004) quem retoma explicitamente a concepção freudiana da melancolia como relacionada à Teoria das Relações de Objeto.

A reflexão sobre estas questões permite perceber em Freud o germe de uma teoria das relações de objeto na constituição psíquica e na determinação da personalidade. O próprio Fairbairn (1952/1980) ressalta esta questão, indicando que a referida teoria superegóica supõe que a natureza da personalidade seja determinada pela internalização de um objeto externo.

Este entendimento - trazido pelo conceito de superego - de que parte do ego se diferencia e passa a se relacionar com as demais como se fossem objetos, pode ser observado um tanto invertido, talvez, na compreensão de Freud acerca da melancolia. As auto-recriminações e desqualificações apresentadas neste quadro clínico decorrem da retirada da libido do objeto amado perdido e seu retorno específico para a parte do ego identificada com ele. Essa parte egóica passa, então, a ser tratada como objeto (Freud, 1917/1976h), recebendo as críticas e agressividade referentes a ele, porém deslocadas para o ego.

A indicação de que existem instâncias do ego - presentes tanto no conceito de superego quanto na melancolia - nos remete à idéia de Fairbairn sobre a cisão que marca o desenvolvimento do ego a partir das relações objetais. A esquizoidia fundamental de que ele fala se configura a partir do momento em que uma porção do ego reprime outras partes identificadas com aspectos do objeto mau internalizado, o que acaba levando à cisão. Desta forma, existem pontos da teoria freudiana que sugerem uma possível divisão egóica, aspecto que foi, como explicado anteriormente, mais explorado e desenvolvido por Fairbairn - ainda que sobre outros fundamentos.

Ainda quanto a essa questão, em um dos últimos textos de sua obra, Freud (1940/1976n) reconhece a possibilidade de divisão do ego não só nas psicoses, mas também nas neuroses. Entende a cisão como um processo de defesa diante das implicações da realidade, ou seja, como resultado do conflito entre as exigências pulsionais e as limitações impostas pela realidade para sua satisfação. Este entendimento - inovador em Freud - abre a possibilidade de se pensar uma teoria das relações de objeto em suas concepções anteriores a respeito do funcionamento do psiquismo, já que o impedimento da gratificação pulsional seria decorrente da relação do sujeito com os demais e com o meio.

A partir destas reflexões, é possível perceber pontos convergentes entre a teoria das relações de objeto e a teoria das pulsões (teoria da libido), não obstante elas tragam conceituações muito distintas. Neste sentido, apreendeu-se também que, apesar de não ter privilegiado as relações de objeto e os objetos internos, a psicanálise freudiana não é alheia à sua presença e importância na estruturação psíquica. Pode-se mesmo afirmar que em Freud se encontra embrionariamente, melhor dizendo, parcialmente, uma teoria de tais relações.

 

Referências

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Recebido em 14 de fevereiro de 2006
Aceito em 13 de março de 2006
Revisado em 20 de junho de 2006

 

 

Notas

1. Sobre a atualidade de Fairbairn e de sua temática, vejam-se também Grotstein e Rinsley (2000) (Ed.).
2. É nominalmente à revisão da teoria da libido realizada por Karl Abraham (1877-1925) a quem Fairbairn se refere em suas considerações críticas (ver, Fairbairn, 1952/1980, p. 24, além de outras referências).
3. Aliás, observe-se que não é por outra razão que autores como Fairbairn e, explicitamente, Balint rejeitam a noção de narcisismo primário, isto é, a de um estádio do desenvolvimento no qual primariamente o ego se constitui objeto da libido. Para Fairbairn, complete-se, a libido deve ser entendida como a própria dinâmica do ego em direção aos objetos.

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