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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.8 n.2 Fortaleza jun. 2008
RESENHAS DE LIVROS
Autor da resenha
Francisco Silva Cavalcante Jr., Ph.D.
Professor Titular do Mestrado e Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Coordenador do Laboratório RELUS. End.: Av. Washington Soares, 1321, sala N-13. Fortaleza, CE. CEP: 60811-905. E-mail: cjunior@unifor.br
"Abordagem centrada na pessoa"
(John Keith Wood et al. [org.])
Editora da Univ. Federal do Espírito Santo, 2008, 326 pág.
Dizem que é mais difícil escrever daqueles a quem fomos próximos - particularmente, aqueles muito próximos. Nesse prisma, haveria de ser fácil, por contraste, refletir acerca dos que, muito embora fisicamente distantes, exerceram alguma influência afetiva ou intelectual em nosso percurso de vida ou profissional. Talvez, no caso de um texto em língua portuguesa e que apresente o trabalho de John Keith Wood (1934-2004), a tarefa, em princípio, poderia ser tomada como simplória, tendo em vista que, desde 1987, John Wood fixou residência permanente no estado de São Paulo, especificamente, no Santuário Ecológico - Estância Jatobá.
Seja do intelectual John Wood (com o seu pensamento originário, um leitor voraz, de aguçada reflexão, argumentação incisiva e conhecimento vastíssimo e multifacetado), o professor John Wood (que ministrou aulas na Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas), o facilitador de grupos John, o formador/supervisor de terapeutas John, até mesmo o "Coronel Dión" - na brincadeira alusiva que seus amigos tratavam-lhe, em referência à conversão leigo-campesina do "John" (sonorizado, algumas vezes, pelos agricultores como "Dhón") - até, propriamente, o corriqueiro "Seu Dión" (associado à sua figura esguia, branca, alta, forte e sempre presente nas associações ecológicas, culturais, de moradores etc.), não existem evidências razoáveis para o seu desconhecimento no Brasil, seja pelo feito dos seus trabalhos ou sua reverberância nos corações das pessoas. Ao lado de nomes como o da brasileira Maria Constança Villas-Bôas Bowen, Ph.D., John Wood, Ph.D., foi uma das emblemáticas e ativas figuras na construção internacional da Abordagem Centrada na Pessoa. No Brasil, os seus feitos estão lado a lado com os da Dra. Rachel Léa Rosemberg, professora da Universidade de São Paulo.
A verdade é que John não foi esquecido. Seu legado continuou ressoando na compreensão teórica e operacional da Abordagem Centrada na Pessoa. Seus parágrafos estão em livros e artigos, nas bibliotecas, livrarias, sebos. Até na Internet, seu pensamento... continua gerando marcas experienciais: curioso isso - como a tessitura organísmica do John pode sobreviver promovendo impactos na ambiência da virtualidade. Vez por outra, "John", meio mito, meio gente, apenas "John" (sem complementos, adjetivos)... é lembrado com respeito, com saudades, com lamento - do amigo, do professor, do inspirador, do companheiro.
Visitar a sua eternamente esposa Lucila Assumpção, na floresta da Estância (fronteira das cidades de Jaguariúna e Holambra, meia-hora depois de Campinas, SP), entre o lago, o bosque, as orquídeas, o labirinto medieval, a biblioteca, a arte em movimento, a magnólia... e o sepulcro simbólico-formativo de parte do que John construiu... passear por sua mandala de madeira acostada sob uma árvore de cinqüenta anos, portais, címbalos, cachorros... os olhos de Lucila: nossa! Quanto amor. John não morreu. Pelo menos no que diz respeito ao seu lugar de humano, ou melhor, da sua humanidade expressão-testemunha e vivente. Quanto a isso, não haveremos de nos preocupar: funciona como uma chave, perene e disponível àqueles que estiverem inclinados a decodificar o Universo. Uma chave que a conexão a e meditação diária de Lucila faz questão de resguardar.
Todavia, não é desse John que gostaríamos de comentar. Muitos, certamente, das cercanias mais vizinhas, podem falar desse John: das brincadeiras, da seriedade, da inteligência, da sensibilidade, do silêncio, das pontuações, dos encontros. Não conhecemos a personalidade desse John, somos1 parte de outra geração na Abordagem Centrada na Pessoa, uma terceira geração. Talvez, então, possamos falar de um John que, eventualmente, desconheceu que a primeira geração da ACP ainda não o reconheceu por completo, e, em alguma medida, ainda não foi compreendido pela segunda geração dos brasileiros Centrados, quer mesmo por outros psicólogos brasileiros. Falar de um "John" que ele mesmo, por sua modéstia e aversão aos populismos, não soube conceber. Um lugar maior, muito embora não ufanista, que o seu trabalho alcançou - e sem precedentes, sem concorrentes no horizonte. Talvez, o seu contexto intelectual não estivesse preparado para integrar a magnitude do seu pensamento, tanto quanto J. Dewey foi esquecido pela Filosofia Analítica Americana, e resgatado, apenas, na força do Pragmatismo de R. Rorty.
Talvez, então, seja importante contextualizar que nossa posição, aqui, é estritamente acadêmica, e, portanto, nossa visada parte e alcança as contribuições que a Abordagem Centrada na Pessoa, erguida por Carl Rogers e avançada por seus colaboradores (destacando-se John Wood), pode disponibilizar para as questões, conflitos e desafios contemporâneos. Certamente, do ponto de vista acadêmico da ciência psicológica e do campo profissional regulamentado no Brasil, mais do que simplesmente alegrar-se na partilha e pelo encontro, cumpre-nos articular uma prática que, do seu rigor teórico-metodológico, das suas raízes filosófico-epistemológicas, seja capaz de chamar para si a responsabilidade de produzir conhecimento atual, fundamentado, referendado e aplicável.
É nesse enquadre que John Wood é o mais importante dos teóricos da Abordagem Centrada na Pessoa, cuja leitura, mais do que necessária e obrigatória, é um dever moral aos brasileiros que, por tantos anos, usufruíram do seu convívio. Quando o fundador da Abordagem Centrada na Pessoa, Carl Rogers, estabeleceu que o pilar-central dessa Abordagem, e, portanto, o núcleo-chave de todos os seus desdobramentos, estava localizado no conceito de "Tendência Formativa", desde então, passaram-se mais de 30 anos até o presente e, pouco, ou quase nada, foi teorizado acerca da pilastra de sustentação dessa Abordagem.
Três conclusões prévias: 1) Por alguma razão não legitimamos a competência ou acuidade do fundador da Abordagem, Carl Rogers, para definir o conceito-chave da Abordagem por ele criada, e, portanto, fingimos não existir, desconsideramos essa noção ou substituímos por qualquer adesão do nosso arbítrio; 2) Entendemos que esse seja o conceito-central e, portanto, abdicamos de realizar uma prática fundamentada na Abordagem de Rogers e seu conceito-magistral; 3) Não temos capacidade técnico-metodológica de avançar na discussão e continuamos repetindo as poucas linhas que Rogers escreveu, num exercício de fichamento, moralismo ou adesão do tipo "mantra"; 4) Fazemos conchavo, política e lobby afetivo, ainda que teoricamente inconsistente e casuístico à teoria em si, tentando desarticular não apenas o conceito, mas aqueles que pensam a Abordagem a partir do seu conceito de origem.
Da nossa prática fundamentada na Abordagem Centrada na Pessoa, não temos como refutar o conceito de Tendência Formativa, ou mesmo refratar a exigência auto-imposta por um tipo de pesquisa acadêmica comprometida aos postulados dessa Teoria Humanista Experiencial ("experiência" como enfoque de estudo dos pragmatistas americanos desde James, Dewey, Kilpratrick e Rogers) quais sejam, de articular Tendência à Auto-Regulação, Tendência Atualizante e Tendência Formativa. Porquanto esta exigência de rigor não se adequar às práticas acéfalas, ingênuas, levianas ou tiranas, é que o lugar da Tendência Formativa na teoria foi obturado. Por trinta anos, contam-se nas duas mãos e sobram dedos no que concerne aos autores que, muito embora autoproclamando/filiando-se à Abordagem Centrada na Pessoa de Rogers, puderam dedicar capítulos, ensaios ou artigos a respeito do conceito de Tendência Formativa.
Quase nada, em termos de teoria, um vazio em termos de prática: basta uma consulta simples e individual - em que sua prática da Abordagem Centrada na Pessoa, ao nível do atendimento individual (criança, adolescente, adulto, ludoterapia, práticas expressivas, plantão psicológico) ou de grupo (casais, pequenos grupos de psicoterapia, grupos de encontro, grandes grupos, comunidades e residências terapêuticas, grupos de florescimento humano, grupos de crescimento, grupos transcentrados), incorpora e operacionaliza a Tendência Formativa? Temos, daí, um impasse grave: se o fundador dessa Abordagem articulou que a lógica teórica baseia-se nesse princípio e, decorrem-se operadores dessa teoria que não podem articulá-la, seja ao nível cognitivo, seja ao nível da intervenção, então, ou a teoria não se sustenta, ou a prática dessas pessoas não se sustenta na Abordagem - portanto, não se sustentando em nada mais regulamentado.
Não se trata, como alguns quiseram encobrir, de uma fissura ou inconsistência no trabalho da Teoria da Abordagem. Ao contrário, e como demonstra John Wood nesse livro que estamos a resenhar, cuja edição esgotada é de 1994, o que falta é estudo, disciplina, leitura, reflexão e, mais do que isso, implicação experiencial e apropriação organísmica dos praticantes dessa Abordagem aos conceitos base. A nova edição de 2008 é bonificada com uma introdução inédita, percorrendo vida e teoria do autor, bem como com um capítulo especial trazendo a relação das principais publicações técnico-científicas e literárias de John Wood.
Faltam-nos novos "Johns". Essa é uma questão fundamental quando não se trata de operadores da "vida tola" ou da "vida mansa", mas, antes, profissionais que articulam a "vida boa" descrita por Rogers: longe de uma prática esotérica, ensaística, otimista ou leviana, a Abordagem Centrada na Pessoa não se propõe a facilitar uma panacéia animista, um lugar literário ou filosófico da argumentação cínica, ao contrário, é um conjunto articulado de ética, premissas e intervenções ante a possibilidade de facilitar atualização organísmica numa perspectiva formativa. Esse é o cenário que o teórico John Wood ajudou a construir.
Antes de qualquer outro ACPista, ele foi o primeiro que, partindo do conceito de Tendência Formativa de Rogers, incorporou-o à forma de conceber o funcionamento dos grandes grupos, e, ademais, operacionalizou-o neste livro, cujo título, "Abordagem Centrada na Pessoa", chancela sua adesão explícita a uma visão não antropocêntrica da personalidade humana, um lugar onde o processo de crescimento é atravessado pela Vida e não pela intencionalidade limitada (e limitante) de processos narcisistas, fetichistas da expressão vital humana.
Nós, herdeiros da tradição Formativo-Experiencial-Pragmatista da Abordagem Centrada na Pessoa cultivada na Universidade de Fortaleza, temos uma dívida de gratidão irretorquível ao trabalho persistente de John Keith Wood. E, mais do que da expressão restrita, como de quem elege um autor por semelhanças e afinidades, John Wood, seja a pessoa, seja o intelectual, não foi dos afeitos aos mimos, permissividades teóricas, furtivas diplomáticos, silêncios-obsequiosos.
Seu trabalho não é uma "opção" eventual para quem estuda Abordagem Centrada na Pessoa, muitas vezes. É ele o primeiro tradutor de Rogers na prática e operacionalidade clínica da Formatividade. John foi um dos primeiros a corrigir o equívoco de que a Abordagem Centrada na Pessoa e a Tendência Formativa são conseqüências ou secundárias à Terapia Centrada no Cliente e à Tendência Atualizante: para ele, as duas últimas, quer mesmo a Escuta Não-Diretiva, estavam banhadas e só poderiam existir em função de uma Tendência Formativa.
Sem dúvidas, se há quinze anos esse livro já era necessário, hoje em dia, no contexto de uma terceira geração que está seriamente comprometida em articular a teoria da Abordagem Centrada na Pessoa, não como área marginal da Universidade, ou categoria secundária/menosprezada, seja no rol das correntes teóricas que informam à profissão de psicólogo, seja como metodologia válida de investigação científica e inovação em psicotecnologias, não existe como entender a Abordagem Centrada na Pessoa sem compreender seu conceito ímpar da Tendência Formativa, para o qual John Wood, na sua estufa formativa (a Estância Jatobá), dedicou uma vida - literalmente, até o último fôlego. Não existe como pensar o lugar do óikos (casa) e da PsicoEcologia Humanista sem ler John Keith Wood.
Nossos agradecimentos ao Comitê Editorial da obra, em especial, à Lucila, por manter aceso o espírito de uma Psicologia Humanista Experiencial que é construída no calor de prática refletida e meditada. Essa era a grande esperança de John: manter a força e mobilidade da ACP, e seu potencial revolucionário, não apenas disponível, mas pronto para ser utilizado quando, novamente, fosse requisitado. Chegou a hora: ressuscitar a teoria e os teóricos da ACP para transformação não meramente desse mundo (autoregulação) e desse planeta (atualização), mas do Universo (formatividade) que somos expressão. Ou, como falou Cândido Mendes, que "... pede um Humanismo como caminho para a transcendência" (Jornal Folha de São Paulo, 22 de abril de 2008).
Recebido em 10 de junho de 2008
Aceito em 18 de junho de 2008
Revisado em 20 de junho de 2008
Notas
1. Escrevo no plural para representar o coletivo de pessoas desta geração. Agradeço à parceria inestimável de André Feitosa de Sousa ao longo desses anos.