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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.8 n.3 Fortaleza set. 2008
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Psicanálise e Ciência: o encontro dos discursos
Psychoanalysis and Science: the vergence of discourses
Sonia AlbertiI; Luciano EliaII
IProfessora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Membro do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. End.: R. João Afonso, 60 casa 22. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22261-040. E-mail: alberti@fcclrio.org.br
IIProfessor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Membro do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ. Psicanalista Membro da Laço Analítico Escola de Psicanálise. End.: Praia do Flamengo, 180/302. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22210-030. E-mail: lucianoelia@uol.com.br
RESUMO
A rejeição à psicanálise por parte de inúmeros autores que se pretendem defensores do discurso científico, pela via que não deixa de ter seu lastro no positivismo, exige do psicanalista uma verificação dos paradigmas que articulam Psicanálise e Ciência. A particularidade da proposta desse texto é o fato de que parte de uma análise histórica em associação com a posição de Freud para então identificar três momentos no ensino de Lacan em que este interroga as relações da Psicanálise com a Ciência. Inicialmente, responde à pergunta se a psicanálise pode ser uma ciência com a associação da psicanálise às ciências conjecturais, na contraposição das ciências experimentais. Já nesse momento distinguia claramente a psicanálise das ciências ditas humanas. No entanto, essa não deixa de ser uma proposta que, com Popper, corre o risco de enfatizar mais ainda a visão positivista da epistemologia. A grande virada será dada no momento em que Lacan situa o sujeito no centro dessa questão, ao observar que o sujeito está em uma relação com o objeto no campo mesmo em que se constitui como sujeito. Tal observação só toma consistência com a invenção do objeto a. Com essa nova formulação da questão, Lacan pode avançar e perguntar se a ciência comporta a experiência psicanalítica, abrindo finalmente novas vias de interrogações que apresentaremos identificando algumas maneiras de abordar o tema.
Palavras-chave: psicanálise, ciência, discurso, saber, real.
ABSTRACT
The fact that psychoanalysis is being rejected by a quite significant amount of authors who supposedly stand for the scientific discourse, a quite positivistic point of view, forces the psychoanalyst into a verification of the paradigms which articulate Psychoanalysis and Science. The specificity of this article is due to it's departure on an historical analysis discussed in association to Freud's ideas about the place of psychoanalysis in sciences, followed by an identification of three moments in Lacan's discussion on the subject. Initially, the discussion about the possibility of Psychoanalysis being a Science is answered by Lacan through an association of Psychoanalysis with conjectural sciences, opposed to experimental sciences. At this moment the author distinguished clearly between psychoanalysis and the so called human sciences. Nevertheless, this is still a proposition which can be told as still emphasizing more a positivistic version of epistemology with Popper. The big turning point will be given by Lacan at the moment in which he situates the subject in the centre of this question, observing that the subject is in relation with the object in the very field in which it is constituted. This observation only attains consistency with the invention of the object a. At this moment Lacan can step forwards and ask if science may sustain the psychoanalytic experience, and new paths are opened for further discussions that we present by identifying some possibilities to address the topic.
Keywords: psychoanalysis, science, discourse, knowledge, real.
A Questão
Partimos da questão ainda e eterna de Canguilhem: "O que é Psicologia?" e que retomamos, parafraseando-o:
É, pois, muito vulgarmente, que a filosofia coloca para a psicologia a questão: dizei-me em que direção tendes, para que eu saiba o que sois. Mas o filósofo pode também se dirigir ao psicólogo sob a forma - uma vez que não é costume - de um conselho de orientação, e dizer: quando se sai da Sorbonne pela rue Saint-Jacques, pode-se subir ou descer; se se sobe, aproxima-se do Panteão, que é o Conservatório de alguns grandes homens, mas se se desce dirige-se certamente para a delegacia de Polícia (Canguilhem, 1958/1972).
Ao identificar no texto de Canguilhem um humor swiftiano, Lacan relança sua pergunta quanto a um possível encontro da psicologia com seu fracasso. Não há ciência do homem, observa ele, em mais uma de suas frases que parecem escandalosas se suas razões não são lidas: "não há ciência do homem porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito" (Lacan, 1966/1998a, p. 873), com exceção da psicologia, continua, porque "a psicologia descobriu meios de se perpetuar nos préstimos que oferece à tecnocracia, e até, como concluiu, com humor realmente swiftiano, um artigo sensacional de Canguilhem, numa deslizada de tobogã do Panteão à delegacia de Polícia" (ibid:873-4).
Quando oferece seus préstimos à tecnocracia, a psicologia é, por excelência, a ciência do homem no real sentido da expressão, pois é a única que desconsidera o fato de que o homem da ciência não existe, a única a desconhecer que, para fazer ciência, há que se ser sujeito. De resto, lemos no Seminário 17 de Lacan que "o discurso da ciência não deixa nenhum lugar para o homem" (Lacan, 1992/1996, p.171).
Explicamos: a Psicologia é um saber absolutamente novo no final do século XIX século que foi o palco das grandes batalhas que a criaram (cf., a esse respeito, Alberti, 2003). Por um lado identificado com aquele que Canguilhem associa à subida da rue Saint-Jacques em Paris , a Psicologia pode colocar grandes questões, à imagem dos grandes homens imortalizados no Panteão, por outro, porém, a Psicologia já se mostrava, em 1958 - data da publicação do texto de Canguilhem -, gravemente associada ao discurso capitalista que introduzia parâmetros no afazer científico, que desde então só se cronificaram e que a perpetuaram "nos préstimos que oferece à tecnocracia", como diz Lacan, fazendo dela (a Psicologia) um instrumento de Polícia.
Com efeito, aquele palco das grandes batalhas que criaram a Psicologia, ou seja, o século XIX, preparou o terreno para aquilo que associamos à articulação que Thomas Khun (1962/1979) faz da ciência com a ideologia: houve uma profunda divisão quanto à consideração do que é ciência em função da interseção que a ciência passou a ter com as ideologias e, sem dúvida, com a economia. As questões que isso introduz são tantas, que evidentemente não poderemos tratar delas aqui de forma exaustiva. Mas isso não impede que as delineemos, um pouco pelo menos. Adiantamos, no entanto, que tais questões não deixam de ser enormemente produtivas: nunca se escreveu tanto em nome da ciência, nunca se trabalhou tanto na articulação com a ciência, além do fato de que a postura diante do saber na interlocução com o que Lacan, no Seminário 17, de 1969-70 (1992/1996), chamaria de discurso universitário, introduziu parâmetros que são hoje seguidos independente da ideologia a que nos afiliamos, na medida em que todos estamos submetidos à ordem da produção: de orientação, de artigos, de conferências, de teses, independente de sua qualidade... o que importa é que a produção é contada em números, ela é contabilizada, demonstrando que, independente da ideologia a que nos afiliamos, estamos todos muito bem submetidos aos desígnios do discurso do capitalista, querendo ou não!
O discurso da ciência, com Freud e Lacan
É muito freqüente toparmos hoje com textos que consideram a Psicanálise uma folk psychology alheia a qualquer preocupação científica. Tal consideração emana de textos que militam (termo que utilizamos aqui por identificar estes textos com uma ideologia, justamente porque seus autores consideram que eles sim, fazem ciência, e não os psicanalistas) por uma Psicologia anatomo-fisiológica. Na realidade, é com Foucault (1963/1980) que podemos identificar a anatomia como parâmetro fundamental na ruptura com uma forma de fazer ciência no século XIX, enquanto será Lacan (1966/1998a) quem acrescentará a este parâmetro de Foucault, a importância da fisiologia para a corrida pelo cientificismo da clínica. Os que militam identificando a psicanálise a uma folk psychology, são contrários a qualquer orientação que identifica a Psicologia com o estudo do sujeito, articulado à linguagem, e que se apresenta hic et nunc na transferência através da fala, lugar em que este sujeito é um significante que o representa para outro significante, deixando sempre um resto impossível de dizer. Historicamente, portanto, nunca terminaremos por retomar esse tema - como aliás outros autores já o observaram (cf., Kahl, 2002) - pois a cada vez que se coloca uma questão dessa ordem à psicanálise, melhor ela deve responder. Não há dúvida de que sua articulação com a linguagem lhe dá o suporte para formalizar sua resposta (Beividas, 2000). Traçamos com isto uma definição muito genérica do sujeito na contramão da Psicologia anátomo-fisiológica, definição lacaniana que, no entanto, é passível de ser aplicada, de uma forma geral, a todas as correntes psicológicas que aqueles poderiam associar com uma psicologia popular, por não se sustentarem nas premissas por eles cultivadas da anátomo-fisiologia. Ou seja, não só a Psicanálise, mas todas as correntes psicológicas que viriam se contrapor, no início do século XX, a uma ideologia cientista baseada no boom cifrador das taxionomias do comportamento e da contabilização de seus parâmetros, tanto via testes psicológicos - que hoje são cada vez de maior ponta, com a contribuição da Psicologia cognitivo-comportamental -, quanto via graus de comprometimento desadaptado. A estes militantes é preciso perguntar de que maneira concebem e identificam a ciência.
É preciso estabelecer, com clareza, o que o termo Ciência, como categoria epistemológica, designa. Em uma perspectiva rigorosa, entende-se por Ciência o modo de produção de conhecimento que, seguindo os parâmetros metodológicos estabelecidos por Galileu e interpretados pela arquitetura discursiva de Descartes, se caracteriza por: a) despojamento das qualidades sensíveis ou anímicas do objeto que se trata de conhecer; b) uso da linguagem despojada de significações compreensíveis e compartilhadas pelo saber comum na formulação do discurso teórico; c) obediência estrita ao princípio da contingência e da universalidade, segundo o qual todo e qualquer elemento a ser estudado poderia ser infinitamente diverso do que é, nada o obrigando, previamente, a ser como é, e cabendo justamente à ciência esclarecer os modos pelos quais ele chegou a ser como é. Ora, esses elementos caracterizam o método hipotético-dedutivo criado por Galileu, do qual a verificação é a última etapa, e é a esta linhagem que Freud se filia, diretamente, sem ambigüidades e sem outras mediações discursivas. A Psicanálise, neste sentido, é estritamente derivada do método inaugural da ciência moderna, e se não permanece no campo da ciência, é por operar neste método uma subversão radical, pela qual introduz, na cena (por isso dita Outra cena, a do inconsciente), precisamente, aquilo que o discurso da ciência, por ser a-semântico, universal e contingente, introduziu mas, no mesmo golpe, expeliu de seu campo operacional: o sujeito (e não o homem). A psicanálise opera com o sujeito, o mesmo da ciência, que no entanto sobre ele nada opera.
Já em uma outra perspectiva, aquela a que aderem os atuais militantes da ciência do comportamento, e que consideram, por isso, a Psicanálise como uma folk psychology, a Ciência seria o procedimento que parte da observação da realidade, recortada em dados da ordem do particular, estabelece correlações cada vez mais precisas até chegar a estabelecer determinações causais de caráter geral. Tal procedimento caracteriza o que se denominou, na história epistemológica, o método empírico-indutivo, muito mais derivado da filosofia empirista inglesa, sobretudo de John Locke, e retomado pelo positivismo com que, com Augusto Comte, as ciências humanas e sociais ingressaram nesse filão, do que derivado das balizas metodológicas que presidiram o momento inaugural da ciência moderna, com Galileu. No espectro traçado por Gaston Bachelard em "O Racionalismo aplicado" (Bachelard, 1948/1977), essas duas tendências metodológicas encontram-se em franca oposição. O método empírico-indutivo não parte de postulados lógicos, e sim de premissas que, por não se desprenderem da realidade que pretende "observar tal como ela é", acabam por tornar-se ou fenomenológicos, ou ontológicos, e não se aspira a formulações universais, do tipo que Karl Popper (1934/1977) estabeleceu como exigíveis à aplicação da prova de refutabilidade empírica. Tampouco método empírico-indutivo opera segundo o princípio da contingência: a tese de que os processos subjacentes a todo e qualquer quadro psicopatológico, para darmos um exemplo concreto disso, são de natureza neural, organicamente identificáveis, não considera a contingência da incidência dos efeitos da linguagem, do significante, do elemento material e assemântico na constituição do sujeito, por exemplo. Recalcando o contingente, ingressa no necessário da determinação neurológica: há de haver disfunção em algum neurotransmissor, é questão de tempo encontrá-la. Isso constitui uma petição de princípio, expressão com que Freud, empregando-a em inglês no seu texto (it begs the question) acusa Jung, justamente para demonstrar que sua démarche não é científica (Freud, 1914/1975a, p. 47).
Assim, em toda discussão que se pretenda metodológica e epistemológica séria sobre as relações da Psicanálise e da Psicologia com a Ciência, é preciso saber que concepção de ciência norteia os diferentes argumentos.
Retomemos, assim, a grande preocupação de Freud em se dizer articulado com o discurso da ciência. Com efeito, já naquela época, demonstrar que se está inserido em tal discurso era condição sine qua non para buscar um lugar no panteão - retomamos somente a referência a Canguilhem - dos autores a que se daria algum crédito. Com Freud, a grande preocupação era que se pudesse verificar o vínculo da Psicanálise com a Ciência, e tal preocupação era a verdadeira razão de sua evidente insistência na importância da Ciência para a Psicanálise. É que, no fundo, Freud acreditava na Ciência como via exclusiva do que podemos associar ao conceito kantiano de Erkenntnis (conhecimento e/ou reconhecimento), e essa era, para ele, razão suficiente e completamente mais importante do que qualquer idéia que pode se associar a isso depois quanto ao fato de que Freud não veria outra maneira de introduzir um novo saber no campo dos discursos críveis se a verificação por uma cientificidade não se desse! "No entanto, para nós, o trabalho científico é o único caminho que pode levar ao conhecimento [Kenntnis] da realidade exterior a nós" (Freud, 1927/1974, p.165-6). Freud tinha total consciência da falibilidade da percepção, pois sabia perfeitamente que a realidade tem a forma e o conteúdo que lhe atribuímos. Para Freud, toda realidade é psíquica. Assim, a ciência é para ele o único modo de tratar da realidade psíquica - esta que, por exemplo, se atualiza, como realidade sexual própria do inconsciente, na transferência, sem confundir com ela a operação do analista, aquele que opera sobre esta realidade psíquica, ou seja: se a realidade é sempre psíquica, interna-e-extena a um só tempo, a operação analítica, para incidir eficazmente sobre ela, não poderá apoiar-se na realidade psíquica do operante, isto é, o analista, e sim naquilo que, extraído desta realidade, a causa que a sustenta, é ex-sistente a ela.
É com Lacan que o alcance da preocupação de Freud sobre a relação da Psicanálise com a Ciência pode ser definitivamente explicitada. Foram fundamentais seus três registros - real, simbólico e imaginário para introduzir os parâmetros que dariam condições ao psicanalista - e ao teórico da psicanálise - de se situar no debate no qual é chamado a responder aos militantes que identificam a psicanálise com uma folk psychology.
O Simbólico e a Res Cogitans
O século XVII conheceu toda uma nova Weltanschauung e se deu o início da investigação científica, numa proposta de desassociar as influências teológica e escolástica da investigação da realidade. O golpe que a Ciência Moderna perpetrava nas certezas compartilhadas pelos homens, seja quanto ao lugar da Terra em relação aos astros e ao céu, seja na destituição do próprio céu, o Cosmos, entendido como o mundo fechado que estava em cima de todos nós, e a criação, em seu lugar, do universo infinito que não tem mais nem em cima nem embaixo, em que todos os astros giram, inclusive a Terra, em torno de astros mais importantes embora não povoados de humanos, tudo isso produziu o que poderíamos, a justo título, nomear, com a Psicanálise, de momento de angústia na Humanidade. Nenhum momento seria mais propício para o surgimento do sujeito, ainda segundo a mesma Psicanálise. Neste momento tão singular e crucial da história da humanidade, e diante da incerteza quanto à realidade do mundo objetivo (da realidade exterior a nós, para retomar as palavras de Freud) - em função do corte com o dogmatismo religioso -, Descartes, em um gesto que desloca o homem da angústia aguda, afirma a certeza do cogito - Penso, logo sou. O homem, que em um primeiro momento do Cogito ganha o estatuto do ser porque pensa, disso não podendo duvidar, como duvidou de todas as demais coisas, ou seja, este homem que acedeu à condição ontológica por uma operação do pensamento, que se constitui, no plano subjetivo, como a certeza que sucede a dúvida, passa, a partir deste ato, a poder também existir, porque é passível de uma inscrição no mundo do simbólico. Descartes distinguiu um mundo em que as coisas existem através de sua representação conceitual, deixando de fora outro mundo, onde as coisas não são conceituadas. Era, então, a criação de um novo discurso: o da ciência.
Com Descartes foi possível a construção de uma linguagem conceitual dentro da qual os objetos, que até então não haviam acedido à condição de existentes no plano conceitual, na medida em que a Ciência, não tendo ainda feito sua aparição discursiva no mundo, não havia portanto constituído sujeito e objeto como duas categorias conceituais a travarem, entre si, a relação fundamental de produção do conhecimento, passaram a ocupar um lugar proeminente entre as operações científicas. O cogito cartesiano inaugura uma cisão do objeto na ciência e, por conseguinte, no discurso: de um lado, o objeto real - por exemplo, a estrela no céu -, de outro, o objeto construído enquanto conceito, ou seja, a simbolização do objeto, a estrela formulada no papel do astrônomo fazendo-a existir no cálculo científico, substituindo metaforicamente aquela que continua no céu. O Cogito ergo sum é, fundamentalmente, a possibilidade de dar existência ao objeto do pensamento, distinto da imagem que temos dele e distinto do real.
Depois de Descartes - nascido exatamente duzentos e sessenta anos antes de Freud - o discurso da ciência já propunha, claramente, que o campo da ciência é aquele em que só existem o que Freud chamou de Vorstellungen (representações), ou seja, há um mundo, que é o das representações, com o qual o cientista trabalha. Tais representações estão submetidas a leis específicas de cada ciência e não podem ser transpostas para outros campos. Entretanto, no que concerne à Psicanálise, a operação não se reduz a uma diferença que a particularizaria como uma ciência entre outras, todas passíveis de inscrição em um mesmo registro metodológico. A Psicanálise não cabe inteiramente no universo da representação.
Na medida em que o significantizamos, o sujeito é reduzido a um traço mnêmico, à sua representação enquanto traço, marca significante que presentifica o próprio sujeito na fala quando diz: "eu". Trata-se então do "eu" como inscrição, do "eu" enquanto figura gramatical que tanto pode ser sujeito, quanto objeto, e que, por isso, não passa de um significante, de um shifter, tal como Jakobson (1957/1971) o definiu por empréstimo a Jespersen, independente de tudo o que é possível imaginar sobre esse mesmo sujeito. O sujeito, contudo, não se reduz ao significante, ao traço com o qual o inscrevemos no plano simbólico. Seu ser de sujeito é irrecuperável no simbólico, o que, longe de reduzir a importância do trabalho simbólico, confere-lhe uma dimensão a mais: a de bordejar, contornar o furo real de modo a permitir que o sujeito se situe em relação ao que não pode domesticar pelo saber e pelo dizer.
Com o cientista ocorre a mesma incidência do impossível à maîtriser, a dominar, a prever e controlar. A diferença é que o cientista encontra esse limite na sua relação com os objetos do mundo que tem a conhecer e dominar, enquanto que para o psicanalista esse limite é dado, por assim dizer, internamente: é sua própria condição de objeto que lhe escapa, em sua própria experiência como sujeito. É isso que Lacan quer dizer quando afirma que "o sujeito está, se assim podemos dizer, em exclusão interna ao seu objeto" (Lacan, 1966/1998a, p. 875); disjunto dele, o sujeito no entanto está em uma relação com o objeto que o situa no campo mesmo em que se constitui como sujeito.
A psicanálise é filha da ciência na medida em que se atém às determinações criadas por Descartes, segundo as quais há um pensável e um impensável, um dizível e um indizível, um conceituável e um impossível a conceituar. Freud não poderia ter dado a virada sozinho, é claro, houve quem o buscasse na mesma época, a coisa estava no ar, era um novo Zeitgeist. E sobretudo estava no ar porque o discurso da ciência também se fortalecia, em rede, nos diferentes campos.
Lacan, a partir de sua formação, que incluiu a influência do Estruturalismo, com apogeu em meados do século XX, na Europa, pôde articular tal mundo particular - o da ciência - com o simbólico. Simbólico, real e imaginário são os três registros nos quais o ser falante - o ser humano - transita. Se o discurso da ciência afirma um mundo no simbólico, e pelo fato de que este simbólico é estritamente submetido a leis que o particularizam, então em cada ciência há aquilo que lhe é externo. Como dissemos acima, há limites e a ciência se define como um saber ciente de seus limites, poderíamos dizer, um saber que, em princípio, leva em conta a castração - ela não pode tudo. A ciência se restringe, encontra seu limite no fato de que só pode afirmar algo na medida do dito, do que é passível de ser dito. O resto não é do campo do simbólico e, portanto, inatingível pela ciência. Esse é seu limite. Todo cientista sabe, hoje, que as operações que executa não se dão num paralelismo biunívoco com o mundo natural, mesmo quando pode, em alguns momentos, estabelecer uma relação entre ambos os campos - o conceitual (ou simbólico) e o natural. Descartes funda o que Foucault (1966/1992) chamou de episteme da representação, solo discursivo da Ciência Moderna, no qual algumas antinomias se sustentam - teoria/realidade, mundo conceitual/mundo real, entre outras, e cujo ápice é Kant, o filósofo que interpretou filosoficamente a Física Moderna. Posteriormente, a partir de Hegel, emergiu a episteme da História, marcada pelo materialismo dialético e concreto, que já rompe, de certo modo, com a representação, por não admitir a dualidade teoria/realidade que a funda, introduzindo, em seu lugar, o movimento discursivo concreto da práxis teorizada. É só depois deste último, não sem relação com ele, que emerge a Psicanálise como discurso, o que torna, portanto, impossível situá-la no plano da episteme da representação. É que a psicanálise se dirige ao sujeito, e este não é um mero shifter, um elemento da linguagem, um traço, nem mesmo um significante, e sua condição mais real é a de objeto.
É interessante articular essa afirmação com a condição do sujeito do significante, e do modo como Lacan escreve a definição mesma desse, utilizando, nos termos desta definição, a sua relação com o sujeito: um significante é aquilo que representa um sujeito junto a outro significante. Aparentemente, Lacan está plenamente situado no campo da representação. Ocorre, contudo, que é exatamente para saturar esse campo que ele define desta forma: se o significante representa, é sempre para outro, e só pode representar um sujeito, nada mais fazendo além disso, e estando claro que um sujeito só poderia ser representado por um significante, e nunca por qualquer outro elemento. O significante não é idêntico a si mesmo, e essa não-identidade é transmitida ao sujeito por ele representado: Por exemplo, quando alguém diz: "Eu me represento...", o eu representado difere do sujeito que fala. Assim, "eu" é diferente de "eu", como "a" pode ser diferente de "a" na lógica matemática, ou um "cachimbo" pode não ser um "cachimbo" - e de fato não o é, como na obra de um Magritte.
Com efeito, é com o estudo da linguagem que a ordem simbólica pode encontrar toda sua particularidade. Buffon, já no século XVIII, definia a ciência como "a língua bem feita", ou seja, como língua capaz de dar conta do fenômeno, capaz de bem dizer o fenômeno. Por outro lado, a psicanálise se distingue da ciência na medida em que não se restringe a estudar o pensável, o dizível e o conceituável, ela também se ocupa do impensável, do indizível e do impossível a conceituar. Conforme os três registros propostos por Lacan para estudar o campo da realidade psíquica, se a existência está do lado do simbólico, do que se afirma no simbólico, e que reduz as coisas ao significante que as representa para outro significante, então há, necessariamente, algo que escapa à existência, o que não é redutível a tal representação, que não pode ser representado por um significante para outro significante! Define, em conseqüência, o real como o que está fora do simbólico. O simbólico é o que existe, o real ex-siste ao simbólico e o imaginário dá a consistência das Gestalten que formamos. Estas se sustentam nos significantes, mas, levando em conta a descontinuidade que há entre um significante e outro, o imaginário é a construção que cada um projeta da realidade para velar o abismo do real que, de outra forma, teríamos que encarar regularmente quando passamos de um significante a outro. Tal imaginarização sempre traz consigo um ou outro engodo, na medida em que a realidade que gestaltizamos é tributária da realidade psíquica de cada um, sustentada na fantasia conceituada por Freud e Lacan como resposta do sujeito humano ao impossível de compreender. Imaginamos, ou seja, construímos a nossa realidade porque ainda cremos necessitar compreender a articulação das coisas. Eis também porque é vedado ao psicanalista tentar compreender, como explicita Lacan já no seu terceiro seminário, pois quem articula é o sujeito e este é o paciente. O psicanalista, ao contrário, submetido como está ao discurso da ciência - o que, no entanto, não faz dele um cientista - deve deixar sua atenção flutuante para articular a estrutura da fala do sujeito.
Se o mundo da ciência é o mundo das representações, não há meta-representações para a ciência. As representações que representam as representações são outras tantas representações que se estruturam com as primeiras, justamente, em rede. Daí a famosa frase de Lacan: "não existe a metalinguagem". E daí também a expressão de Freud, que tantas vezes confundiu os tradutores, através da qual se referia à inscrição psíquica de uma experiência - tanto de satisfação quanto de desprazer - como Vorstellungsrepräsentanz, ou seja, o representante da representação. Toda experiência de satisfação, como Freud a conceitua em seu Projeto, é memorizada como traço mnêmico. Tais representantes freudianos são os significantes da conceituação de Lacan, eles constituem o saber inconsciente. Como sempre, quando você afirma algo no simbólico deixa de fora uma porção de coisas impossíveis de assim afirmar, ao representante da representação corresponde um real - o que fica fora do simbólico, como conceituado. Conclui-se, daí, uma porção de coisas, entre elas que o saber (que em psicanálise é sempre inconsciente) é um subconjunto deste mesmo inconsciente, onde há bem mais não saber do que saber e que está do lado do sujeito enquanto vazio de significantes, poderíamos dizer, do lado do real do sujeito. É o que a ciência exclui de seus cálculos: o real do sujeito. Para a ciência, o sujeito é somente uma variável passível de mensuração quando interfere num experimento científico, por exemplo. Não é esse o sujeito da psicanálise, o sujeito da psicanálise é o sujeito da fala, sempre cindido, sempre da paixão (do pathos, ele sofre) e portanto, distinto também de qualquer forma de individualidade empírica (Milner, 1995, p. 33).
Assim, para referir a psicanálise à metodologia cartesiana há que se pensá-la como método de investigação - o que ela é, desde os primórdios, desde os primeiros textos de Freud , mas um método de investigação que se inscreve no discurso da ciência por inserir-se nos mesmos fundamentos de qualquer ciência moderna (Descartes) , com o único intuito de resgatar aquilo que a ciência propriamente dita excluiu de seu âmbito: o sujeito. De forma que podemos dizer que a psicanálise encontrou um lugar na cultura científica por se ocupar do que a ciência exclui, resgatando um campo de conhecimento e eliminando deste campo a superstição.
Foi na condição de sujeito que Descartes, instigado pelo desejo de separar o verdadeiro do falso, realizou o corte científico, e é nessa trilha que a psicanálise de Freud, com Lacan, estuda a relação entre ciência e verdade. A situação hoje se coloca de nova forma porque inclui o discurso do capitalista... e inúmeros trabalhos a examinam. Se o discurso do psicanalista, ao situar o saber no lugar da verdade, subverte, em um giro discursivo, a posição do sujeito, independentemente de suas crenças, o discurso da ciência, por sua vez, quando submetido aos imperativos do discurso capitalista, nega a existência do sujeito do inconsciente e, portanto, da castração que o constitui.
A Revolução Discursiva
A partir de meados do século XX, com a crescente influência do discurso do capitalista no discurso da ciência - influência que se inaugurou no século XIX - sem dúvida houve um retrocesso quanto à descoberta de Freud. Na tentativa de vender os produtos cientificistas, voltou-se a crer que há um mundo da representação para além dela mesma, chega-se até mesmo a buscar as representações psíquicas nas imagens tomográficas ou nas ressonâncias magnéticas que servem à neurologia. No entanto, trata-se de dois saberes diferentes - a neurologia é um, a psicanálise é outro - e cada um tem seu corpo teórico-conceitual e seu recorte da realidade, deixando de fora, como dito, uma porção de coisas... É fundamental então termos claro que não há possibilidade de uma relação biunívoca entre ambas, ou seja, que não é possível dizer que o que se pensa tem representação no cérebro, nem que as lesões cerebrais e a anátomo-fisiologia tenham qualquer correlato intrínseco com o psiquismo do ser falante (cf. Alberti, 2006)!
Com o positivismo, as ciências do homem foram colocadas no topo do edifício das ciências experimentais e se, por um lado, com isso, foram reconhecidas, por outro, em realidade, subordinadas. "Essa noção provém de uma visão errônea da história das ciências, baseada no prestígio de um desenvolvimento especializado dos experimentos" (Lacan, 1953/1998b, p. 285). As razões que determinam tal engano certamente têm suas origens no próprio substrato ideológico e mesmo econômico da revolução burguesa, dos quais surgiram então dois grandes movimentos:
Em primeiro lugar, o do cientificismo das disciplinas que, até então, se ocupavam da alma, com a finalidade de incluí-las no rol das ciências -, e a redução metodológica de suas práticas, que cada vez mais exilam os discursos a insistirem na subjetividade. Assim, por exemplo, o que se verifica hoje nesse movimento é que a própria psicanálise - certamente um saber com consistência teórica - é reduzido a uma folk psychology, não científica. Qualquer construção teórica que não siga as bases experimentais é descartada como não científica.
E em segundo lugar, o da insistência na importância da subjetividade. Com Lacan, esse segundo movimento se verifica nos avanços particulares de algumas disciplinas, no século XIX, especialmente: a lingüística, a etnografia estrutural e a teoria geral dos símbolos. Lacan observa que tal movimento se baseia na especificidade da referência simbólica para a pesquisa da subjetividade. Em função disso, o que associa esse movimento com a ciência não é a experimentação, mas as conseqüências dos avanços da matemática e da história, ambos determinando uma nova forma de ver o mundo.
Com efeito, somente a partir do Iluminismo -mas sobretudo no século XIX -, foram encontradas as respostas para inúmeros problemas matemáticos até então impossíveis de resolver e que permitiram, para dar somente um pequeno exemplo, estudar as relações entre conjuntos - coisa até então impensável... Isso implicará as leis da intersubjetividade no campo da lógica e da matemática modernas. Quanto à história, é também somente no século XIX que o homem pode fazer greve geral! - isso não é pouca coisa num mundo até então submetido à ordem do Um (só para retornar à referência matemática).
Ao mesmo tempo em que os discursos tentavam se inscrever a partir de uma relação com a ciência, como visto, impunha-se cada vez mais o organicismo, conforme o primeiro modelo, o do cientificismo das disciplinas. É no segundo movimento, ao lado da lingüística, da etnologia, da antropologia, da história e da lógica-matemática que a psicanálise se inscreve; dentre as psicologias, não somente a psicanálise, mas sem dúvida ela, do modo como queria Freud a acolher em seu campo a psicopatologia. Nela, o homem é efeito lógico do entrecruzamento dos campos da linguagem e do gozo, e a clínica permite estabelecer este homem como capaz de elaborar, na transferência, o que desse entrecruzamento o adoece.
Mas, por absurdo que isso possa parecer, ao longo do século XX, a própria psicanálise conheceu destinos que, como temia Freud (1927/1975b, p.343), quiseram esvaziar seu fundamento e a tentativa de inscrevê-la no discurso médico sem dúvida foi um dos responsáveis. Diante do embaraço que a clínica psicanalítica apresenta no quotidiano de sua prática, não poucas vezes acaba-se lançando mão de explicações que já não apostam na capacidade de o próprio sujeito elaborar seu sofrimento. Haja vista a importante gama de psicanalistas que hoje buscam as neurociências para darem conta de fenômenos. Ainda nos encontramos numa grande Babel. Acredita-se já se estar no futuro apontado por Freud na frase "O futuro poderá nos ensinar a influenciar diretamente, com substâncias químicas, as quantidades de energia e suas distribuições no aparelho psíquico" (Freud, 1938/1999, pp.108), e se crê que hoje já saibamos exatamente quais as afecções psíquicas que efetivamente se beneficiariam das influências 'eletroquímicas'.
Tal questão, muito além de meramente teórica é, na realidade, impactante para cada psicanalista que trabalhe, tanto no consultório, quanto em algum serviço de saúde mental no Brasil hoje. Não raro, verificamos a dicotomia entre psíquico e somático, e há verdadeiras divisões nos próprios serviços e encaminhamentos em função dessa dicotomia. Assim, é possível encontrar setores, nos serviços de saúde, que trabalham exclusivamente com a idéia de que todo fenômeno mental tem origem somática, e outros que não levam em conta, de forma alguma, a determinação somática dos processos psíquicos. Se com Descartes houve uma divisão entre corpo e pensamento no âmbito da teoria, o que se pode encontrar hoje é tal divisão na prática clínica: ou res cogitans ou res extensa. A posição sustentada pelo discurso psicanalítico dirige-nos para a superação da dicotomia cartesiana, que não deve ser confundida com a mera adjunção interativa do somático com o psíquico, em uma lógica "psicossomática". O que a Psicanálise faz é desconsiderar a dicotomia cartesiana entre substância pensante e substância extensa e rearticular tudo isso a partir de outro referencial: o da linguagem (significante) e o do gozo que dela decorre, mas a ela não se reduz inteiramente. No seminário sobre o ato psicanalítico, Lacan afirma:
'Eu penso', diz ele [Descartes], 'logo eu sou'. Ele se rejeita invencivelmente no ser desse falso ato que se chama o Cogito. O ato do Cogito é o erro sobre o ser, como podemos ver na alienação definitiva do corpo, que dele resulta, que é rejeitado na extensão. A rejeição do corpo fora do pensamento é a grande Verwerfung de Descartes. Ela é assinalada por seu efeito que reaparece no Real, ou seja, no impossível. É impossível que uma máquina seja corpo. Por isso o saber o prova sempre mais, colocando-a em peças destacadas (lição de 10 de janeiro de 1968, de O Seminário, livro 15, O Ato psicanalítico, documento de trabalho).
O que na verdade a psicanálise propõe é o resgate do corpo do exílio na extensão, articulando-o, como lugar de gozo, às letras que possam cifrá-lo, em uma operação que nada tem a ver com a consideração do orgânico como co-produtor do psíquico (cf. Elia, 2004 e Pollo, 2004).
Psicanálise: de Ciência Conjectural a Saber sobre o Real do Sujeito
No Livro II de seu Seminário, Lacan propõe que a Psicanálise inscreva-se como ciência conjectural do sujeito. Estranha proposição, à primeira vista, quando sabemos que tal taxionomia surge na pena de um epistemólogo que, certamente, fundamenta teoricamente aqueles que renegam a relação com a verdadeira ciência de todos os saberes que não se constroem a partir da relação necessária entre hipótese e teoria, para a composição do axioma e este verificado, do princípio. Com efeito, Karl Popper propõe que seriam conjecturais todas as teses que se orientam a partir de uma afirmação presumida como verdadeira ou como genuína, mas cujos fundamentos são geralmente inconclusivos, de modo que não podem ser elevadas à categoria de princípio, nem de teorema. Em matemática, são conjecturais as teses cuja verdade ainda não foi provada conforme as regras da lógica-matemática, mas isso não impede que possam vir a sê-lo. Enquanto não o são, os matemáticos podem usar a conjectura provisoriamente, e todo trabalho que a usa é, por sua vez, conjectural também.
Às vezes, a conjectura é uma hipótese freqüentemente e repetidamente usada na verificação de outros resultados. Cita-se o exemplo da hipótese de Riemann, na teoria dos números, que trata dos números primos, e que, apesar de ainda conjectural, é usada para fazer predições sobre a distribuição dos números primos. Antecipando-se ao teorema - que poucos matemáticos duvidam vir a se constituir a partir dessa hipótese -, alguns já se utilizam da hipótese de Riemann para desenvolver outras provas, contingentes em relação à verdade dessa conjectura.
Finalmente, nem toda conjectura termina por ser provada verdadeira ou falsa, pois se pode concluir também pelo indecidível, o que, nem por isso, é razão para considerar tal conjectura como inconsistente.
Para Lacan então, aproximar a psicanálise das ciências que admitem a conjectura, como a lógica e a matemática, entre outras já citadas, tem por conseqüência aprofundar, desde a primeira hora de seu ensino e com o máximo rigor, a discussão a respeito das relações da Psicanálise com a Ciência, questão de que Lacan sempre se ocupou. Por todas essas razões, já em seu Seminário 2, Lacan propõe que a expressão "ciência conjectural" substitua a de "ciências humanas", a fim de constituir-lhes maior rigor lógico, além de emancipá-las do jugo metodológico que tradicionalmente essas ciências mantinham em relação às ciências naturais e exatas: "Ciências conjecturais, eis aí, creio, o verdadeiro nome que se deveria dar, de ora em diante, a um certo grupo de ciências que se designa, habitualmente, pelo termo de ciências humanas" (Lacan, 1978/1988, pp. 369-70). É interessante que Lacan acrescente, logo em seguida, em sua fala: "Não que este termo seja impróprio, já que, nesta conjuntura, é da ação humana que se trata. Mas creio que seja por demais vago, por demais infiltrado e controlado por todos os tipos de ressonâncias confusas de ciências pseudo-iniciáticas, que só podem rebaixar-lhe a tensão e o nível. Ganhar-se-ia com a definição mais rigorosa de ciências da conjectura" (idem).
É curioso observar que, neste momento de seu ensino, e em que pese a evidente denegação ("não que este termo seja impróprio"), Lacan ainda considerava apropriada a expressão "ciências humanas", como se pode ler na frase "já que é da ação humana que se trata". Dez anos depois, contudo, este mesmo autor dirá: "Não há ciência do homem, porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito. É conhecida a minha repugnância de sempre por esta denominação ciências humanas, que me parece ser o apelo mesmo à servidão" (Lacan, 1966/1998a, p. 859). A repugnância pode ter sido "de sempre", mas o modo de dizer de Lacan mudou muito: no primeiro momento aqui considerado, a expressão é apropriada, e no momento posterior ela designa algo que não existe e que evoca o apelo mesmo à servidão. O que se passou neste intervalo de dez anos?
Na verdade, muita coisa se passou: Lacan criou o que, em seu próprio dizer, foi sua única invenção: o objeto a 1. Deu ao registro do Real a sua radical irredutibilidade em relação aos demais - Imaginário e Simbólico, iniciando o caminho que viria a destituir deste último a primazia que ele, à maneira científica e cartesiana, como demonstramos anteriormente neste texto, lhe atribuíra. Por isso, aliás, Lacan sofreu a excomunhão maior por parte da International Psychoanalytical Association, e que ele equivaleu à sofrida por Spinoza, em sua época.
No mesmo ano em que afirmara que as ciências humanas não existem, e que são o apelo à servidão, Lacan transformara sua pergunta inicial, que se formularia nesses termos: "É a Psicanálise uma Ciência?", em uma outra: "Qual a ciência que comportaria a Psicanálise?" (Lacan, 1965/1973). Com essa transformação, Lacan está agora em outra posição discursiva quanto às relações entre Psicanálise e Ciência, posição na qual a operação psicanalítica é que está em posição de interrogar a Ciência, de cujas coxas saiu, mas foi além dela, e não o contrário. Que ciência poderia comportar a inclusão do real do sujeito? Que ciência poderia suportar a inclusão da transferência no interior do campo discursivo que rege a sua experiência?
Em 1970, Lacan dá uma entrevista a uma radiodifusora belga, que mais tarde se publica sob o título: Radiofonia. É um dos textos mais importantes para se pensar a ciência no século XX. Chamamos a atenção para os principais pontos desse texto, através de duas referências fundamentais: a) a referência à frase de Galileu: "o livro da natureza é escrito em matemática" (Lacan, 1970/2001, p.430); b) a referência à revolução científica impetrada por Kepler, e que não deixa de ser devedora dessa observação de Galileu.
O que Kepler introduz na astronomia? Que as órbitas planetárias não são esféricas e sim elípticas, o que definitivamente impõe que se desimagine qualquer relação possível do homem com elas! A partir daí, a única maneira de trabalhar com tais órbitas é pela via simbólica, calculando tais elipses que descentralizam para sempre toda e qualquer coisa no espaço celeste. Porque fazer elipses é partir de dois centros, e traçá-las implica introduzir um centro matemático para além do sol. Numa articulação rápida, isso se associa à frase de Galileu, de que não há natureza para além da matemática, mesmo Galileu ainda estudando o céu à imagem do que havia de Gestalt no mundo em que vivia, com um único centro, o sol. O centro esférico de Galileu não deixa de se associar à fantasia de Aristófanes sobre o amor, no Banquete, de Platão, em que esferas se dividiram na origem dos tempos, de forma que até hoje procuramos nossa cara metade para voltar a fazer Um. Bem diferente é o amor proposto por Sócrates então, quando justamente responde a Alcibíades que, tendo o ouro, não lhe dará o cobre que é para este, na projeção do que Alcibíades vê nele. O amor, no discurso de Sócrates, não se sustenta na projeção imaginária que um pode fazer para o outro, mas na falta, porque para Sócrates se ama aquilo que nos falta, o que para Freud vem a ser o próprio desejo.
Lacan observa, em Radiofonia, que foram três as grandes revoluções a considerar:
1. De Copérnico a Kepler: do imaginário ao simbólico;
2. A revolução de Marx: em que a mais valia precipita a consciência de classe, apontando o que vai mal no discurso do mestre;
3. A revolução discursiva, introduzida por Freud, quando propõe o discurso do analista. Este, já não é mais o mestre, que já não pergunta ao paciente (na posição de escravo) o que vai mal para se apoderar desse saber, e com ele trabalhar para o mestre - posição que surge também na medicina quando o médico, no lugar do mestre, diz ao paciente que é ele quem sabe sobre seu sofrimento e pode curá-lo, fazendo de seu paciente o objeto de aplicabilidade de sua ciência -, tampouco o analista é outro sujeito que, numa relação intersubjetiva, procura compreender de forma jaspersia, por identificação imaginária, o que se passa com seu paciente, mas o analista é, com o novo discurso criado por Freud, o objeto que pode causar o sujeito, seu paciente, a querer saber o que vai mal.
Para estudar e aprofundar tal noção de objeto, que o analista deve ocupar na transferência - contexto identificado por Freud como o único possível para uma análise - a psicanálise e suas escolas não medem esforços. São esses esforços, realizados desde então, que têm como visada fundamental por à prova o próprio conceito de psicanalista. Efeito de uma formação psicanalítica que implica o reposicionamento diante do saber, o psicanalista, como conceito, redesenha a lógica da relação entre sujeito e objeto, é sustentado no ato analítico e no desejo do analista que, na condição de objeto a causar o sujeito em análise a querer saber, descentra a direção do tratamento e os princípios de seu poder.
Referências
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Recebido em 9 de agosto de 2007
Aceito em 28 de agosto de 2008
Revisado em 1º de setembro de 2008
Notas
1. A interpretação que damos disso diverge, num certo sentido, de outras, segundo as quais haveria uma irredutibilidade da psicanálise à objetivação (cf. p. ex., Calazans, 2006), pois é justamente no momento em que Lacan pode se dar conta da equivalência entre sujeito e objeto (a, no caso), que ele pode preparar o terreno para repensar as relações entre psicanálise e ciência, abrindo margem para a "compatibilidade lógica entre o pensamento psicanalítico e o pensamento científico" (idem, p.273), mas em novas bases. É porque o sujeito é redutível ao objeto a, em particular no final de uma análise, que há objetivação do sujeito mesmo se tal efeito não corresponde ao conceito positivista da objetivação.