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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.8 n.4 Fortaleza dez. 2008
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Sobre a importância do corpo para a continuidade do ser
On the importance of the body to the continuity of being
Carlos Augusto Peixoto Junior
Psicanalista. Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pesquisador do CNPq. End.: R. Belisario Távora 521/102, Laranjeiras. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22245-070. E-mail: cpeixotojr@terra.com.br
RESUMO
Da forma como Donald Winnicott o entendia, o corpo seria essencial para a psique, na medida em que ela era vista, antes de tudo, como uma organização específica, proveniente da elaboração imaginativa das funções corporais. Contudo, do ponto de vista do indivíduo em processo de amadurecimento emocional, o autor não considerava que o "self" e o corpo seriam inerentemente superpostos. Ainda assim, para que houvesse saúde, seria necessário que essa superposição se tornasse um fato. Gradualmente, a psique chegaria a um acordo com o corpo, de tal forma que, na saúde, deveria existir um estado no qual as fronteiras corporais seriam também as fronteiras da psique. Levando em conta estas considerações, o objetivo principal do presente artigo é delimitar o lugar do corpo na obra do psicanalista inglês, procurando articular esse conceito com a experiência de continuidade do ser. Para isso, percorremos os seus principais artigos sobre o tema, desde os anos trinta até o início da década de setenta, supondo que desta maneira é possível detectar, de forma mais rigorosa, as principais transformações pelas quais passaram as relações entre corpo e ser. No decorrer deste percurso, são discutidas ainda outras noções e conceitos fundamentais formulados pelo autor, tais como os de integração, personalização, "holding" e "handling", assim como a sua abordagem dos distúrbios psicossomáticos.
Palavras-chave: corpo, ser, continuidade, integração, personalização.
ABSTRACT
As Donald Winnicott understood it, the body would be essential for the psique while it was seen, first of all, as a specific organization, proceeding from the imaginative elaboration of the corporal functions. However, from the point of view of the individual in process of emotional maturation, the author did not consider that the "self" and the body would be inherently superposed. Nevertheless, in health, it would be necessary that this superposition becomes a fact. Gradually, the psique would arrive at an agreement with the body, in such a way that, in health, there should be a state in which the corporal borders would also be the borders of the psique. Taking in account these considerations, the main objective of the present article is to delimit the place of the body in the work of the English psychoanalyst, trying to articulate this concept with the experience of continuity of the being. For this, we traverse its main articles on the subject, since the Thirties until the beginning of the decade of seventy, assuming that in this way it is possible to detect in a more rigorous way the main transformations in the relations between body and being. During this course, we still discuss other fundamental concepts and notions formulated by the author, such as integration, personalization, "holding" and "handling", as well as his approach of psychosomatic disturbance.
Keywords: body, being, continuity, integration, personalization.
Introdução
O corpo faz parte do nosso cotidiano. Do nascimento à morte ele inegavelmente acompanha a nossa existência. É impossível duvidar de que chegamos ao mundo com um corpo. No máximo, como queria Descartes, podemos querer duvidar de sua existência. Mesmo assim, para que possamos adotar este tipo de postura, é necessário considerar que ele esteja ali, conosco, para que, só então, a razão possa tomá-lo como objeto do conhecimento, tal como pretendia o filósofo francês. Nestes termos, pode-se dizer que freqüentemente, ao seu modo, o corpo se impõe como uma realidade concreta em sua espessura massiva, como uma forma viva que se move e se manifesta de um modo mais ou menos sensível. Nossas práticas e nossas técnicas implicam gestos, posturas e movimentos nas interações que estabelecemos com outros corpos, objetos e pessoas. Daí, talvez, a necessidade de apreendê-lo de forma minuciosa, a partir dos mais diversos saberes próprios ao humano. Dentre estes, pode-se considerar que a psicanálise ocupou um lugar de destaque, no que ela procurou abordar clinicamente as relações entre os universos somático e psíquico.
No contexto psicanalítico, Donald Winnicott, por certo, foi um dos autores que mais se preocupou em sublinhar a importância da corporeidade para uma existência saudável. Da forma como ele o compreendia, o corpo seria essencial para a psique na medida em que ela era vista fundamentalmente como uma organização proveniente da elaboração imaginativa do funcionamento corporal. Do ponto de vista do indivíduo em desenvolvimento, no entanto, Winnicott não considerava que o self e o corpo seriam inerentemente superpostos, embora, para que houvesse saúde, fosse necessário que essa superposição se tornasse um fato. Gradualmente, a psique chegaria a um acordo com o corpo, de tal forma que na saúde existisse eventualmente um estado no qual as fronteiras corporais seriam também as fronteiras da psique. Partindo de sua vasta experiência clínica, ele não se cansava de nos alertar para o fato de que nem todos chegam tão longe, e de que muitos perdem aquilo que haviam alcançado.
Considerando, portanto, a relevância da visão winnicottiana a propósito do corpo no que se refere à sua importância para o estabelecimento de uma existência individual consistente em sua potência de afetar e ser afetada pelo ambiente, este artigo se propõe a percorrer a obra do psicanalista inglês, desde a década de trinta até o início dos anos setenta. Com isso, pretendemos realçar as relações entre a noção de corpo e alguns mecanismos fundamentais para a construção de uma saúde vital para o indivíduo, tais como a personalização, a integração, o holding e o handling. No âmbito dessas relações, destacam-se também a concepção de psique-soma, um dos aspectos básicos para o início do desenvolvimento emocional, assim como as diversas perturbações psicossomáticas.
No intuito de alcançar o nosso objetivo, adotamos como metodologia um percurso cronológico pelas obras do autor, por duas razões. Primeiramente, por acharmos que essa seria a forma mais adequada para delimitar, rigorosamente, como a sua concepção de corpo foi sendo construída passo a passo. Em segundo lugar, porque essa também nos pareceu ser a melhor maneira de mostrar como - apesar da aparente repetição dos termos empregados para elaborar o seu ponto de vista - Winnicott foi acrescentando detalhes aparentemente insignificantes à sua teoria sobre a corporeidade, os quais, no entanto, mostraram-se bastante relevantes no que concerne a uma articulação possível com a noção de continuidade do ser no contexto de uma vida digna de ser vivida. Iniciemos, portanto, a nossa trajetória, partindo de seus trabalhos sobre o tema publicados nos anos trinta e quarenta.
Os primeiros escritos winnicottianos sobre o corpo
Em artigo datado de 1931 e intitulado Psiquiatria infantil: o corpo enquanto afetado por fatores psicológicos, Winnicott procura classificar as mudanças e os sintomas corporais vinculados aos estados emocionais normais e anormais. Para simplificar sua exposição ele propõe a seguinte divisão do progresso da psicanálise: o entendimento da vida instintual pessoal e dos relacionamentos interpessoais; a compreensão dos estados de ânimo e da origem das idéias de perseguição, tanto internamente (hipocondria) quanto externamente; e o entendimento das tarefas emocionais primitivas, tais como o desenvolvimento de um relacionamento com a realidade externa, a integração da personalidade e o sentido do corpo. Segundo ele, podemos perceber imediatamente que o corpo da criança é afetado de diferentes maneiras, conforme o tipo de tarefa com a qual esteja envolvida. Uma criança que está deprimida, pensa que existem coisas ruins acontecendo dentro dela ou que ela está vazia; sua fantasia a respeito de seu corpo é indiretamente afetada por isso. Outra, que às vezes já consegue perceber que ela e seu corpo são um só, fica muito preocupada com tudo o que aumenta sua sensação do corpo, e pode inclusive valorizar um problema de pele por causa disso.
O autor afirma que sua primeira preocupação no estudo da criança quanto a esses aspectos é compreender e descrever a psicologia das emoções. Do seu ponto de vista, muitas pesquisas ainda precisariam ser feitas para que pudéssemos entender melhor o que acontece com o corpo quando uma criança (em várias idades) fica agitada em relação à alimentação, à evacuação ou à micção, fica agressivamente excitada, sente medo de alguma coisa específica, permanece moderadamente ansiosa por um longo período de tempo etc.
Em cada caso, o que interessa é avaliar a experiência instintual real, o efeito da excitação continuada sem clímax, e também o efeito de uma inibição específica de um processo instintual sobre o corpo. Além disso, seria necessário estudar determinados tipos de excitação, tais como os que afetam o processo de excreção da criança quando ele é apenas parcialmente completado por medo de um progenitor que se aproxima, ou de uma idéia que a criança teve enquanto realizava o ato. Para esclarecer melhor o problema, Winnicott recorre ao seguinte exemplo:
três crianças correm para a escola. Uma delas corre porque está ansiosa para chegar lá. Ao chegar, ela quer começar logo, ou pelo menos ver a professora e cumprimentá-la, e ser cumprimentada por ela. A segunda corre porque está atrasada. Sua mãe atrasou-se para lhe dar o café da manhã, porque o bebê teve um acidente. Seu objetivo é chegar lá a tempo. A terceira corre porque se sente perseguida. Sua vida é dominada por perseguidores imaginários. Seu objetivo é chegar na escola e encontrar certa proteção em relação aos inimigos. Talvez ela queira dormir (...), ou, se não houver descanso para ela, precisará transformar as outras crianças ou as professoras em perseguidores reais, para obter alívio em relação ao desconhecido.
A fisiologia dessas crianças ao chegar na escola apresentaria três variedades. A primeira, provavelmente, não teria sintomas corporais; a segunda, provavelmente, estaria cansada e se recuperaria numa meia hora, ou poderia desmaiar, ficar enjoada e depois se recuperar. A terceira, o menino perseguido, que de toda maneira não seria vigoroso, e não comeria bem, provavelmente se queixaria de dores internas, desconfortos ou de qualquer outra coisa (Winnicott, 1931/2005a, p. 163).
Para o autor, este seria apenas um dos inúmeros exemplos possíveis para ilustrar como uma atividade pode ter vários resultados, conforme o estado emocional da criança naquele momento.
Já nos anos quarenta, em Introdução primária à realidade externa: os estágios iniciais, Winnicott menciona alguns casos de pessoas que se preocupam com idéias relacionadas ao ato de bater, por vezes misturadas com a masturbação, e remete a mais um exemplo.
Uma mulher que se preocupa com estas coisas específicas, finalmente, procura a psicanálise, é uma pessoa doente que quer fazer alguma coisa a respeito disso. Trabalhamos pacientemente com ela, durante muito tempo. No curso do tratamento descobrimos que essas fantasias estão no lugar em que a paciente vivenciou alguma coisa na sua infância inicial que não pôde ser integrada à sua personalidade: a parte agressiva de seu relacionamento com a mãe, com os seios e com o corpo da mãe bem no início. Essas fantasias de excitação muito agressivas surgem e destroem o tranqüilo relacionamento com o corpo da mãe (Winnicott, 1948/2005b, p. 45).
Esta paciente, ele acrescenta, ao reviver tais coisas no ambiente especializado da análise, descobriu que, quando bebê, não conseguira superar o ataque direto a uma coisa tão bela que ela sentia ser parte dela, isto é, o seu próprio corpo, com o qual ela mantinha um contato bastante frágil, pois, quando frustrada, não conseguia sentir todo o ódio e destrutividade em relação às coisas frustrantes. Winnicott afirma, então, que, neste caso, duas coisas foram separadas: uma delas, dizia respeito ao que era amoroso e consentido, a outra, relacionava-se ao tomar aquilo que era dado. Assim, seria necessário não apenas receber de forma mais passiva o que lhe era oferecido com amor, mas também agir de forma mais agressiva, isto é, por meio de atividade motora direta, no sentido de obter algo do ambiente. Finalmente, considerando que a separação entre esses dois elementos fosse mantida, ela se transformaria em uma excitação com o bater, como quando o bebê que está livre e encontra o corpo da mãe, sentindo uma tensão instintiva, e é repentinamente dominado por um desejo esmagador de avançar nele de forma impiedosa.
Esta situação complicada seria inerente ao desenvolvimento de todas as crianças, as quais teriam que chegar a um acordo com ela através do auxílio da mãe e de suas experiências amorosas para com o bebê. Isto porque a vida de uma pessoa poderia ser perturbada por muitos anos em função de dificuldades que se iniciam nesta época precoce. Partindo destas observações, Winnicott procura mostrar que aquilo que começa no período inicial da infância nunca está propriamente terminado. Em todas as crianças isso continua acontecendo todo o tempo, consolidando posições que sempre podem ser perdidas e recuperadas. Assim, para ele, se é possível afirmar alguma coisa sobre o desenvolvimento inicial, é porque estamos falando sobre algo que continua por um longo tempo. Na seqüência do argumento, o autor tece algumas considerações que podem parecer surpreendentes, mas que mostram de forma peremptória a importância que ele atribui ao corpo nos domínios teórico e clínico.
Se mostrarmos por que é importante que um bebê goste de seu banho, estamos mostrando também por que é importante que as crianças tomem banho de mar, e por que é importante que as deixemos tomar banho, e que as deixemos nadar e mergulhar e usar sabonetes etc., mais tarde. Isso não é algo novo, mas algo que se associa à importância do banho, no início.
E se temos a idéia de que ser visto nu é importante para o bebê, também percebemos que é importante para a criança maior ser vista nua. Muitas vezes as pessoas dependem do médico para serem vistas.
Eu certa vez fiquei horrorizado ao ouvir um psicólogo dizer que fizera psicologia porque 'Eu não consigo tolerar os corpos das crianças'. Uma das dificuldades da orientação infantil para mim, como pediatra, é que eu gosto de ver os corpos das crianças e perderia isso como psiquiatra: teria de encaminhar a criança para ser examinada por um amigo. Mas eu também não gostaria de apenas examinar seus corpos e não ter nada a fazer com seus sentimentos e idéias. Conseqüentemente, convém-me ter a criança lá, e poder examiná-la totalmente. Esta é uma vantagem. Para algumas crianças é realmente importante que uma pessoa veja o corpo e a psicologia como uma coisa só (Winnicott, 1948/2005b, p. 46-47).
Simplificando um pouco a complexa questão do desenvolvimento primitivo, o psicanalista inglês destaca três de seus aspectos fundamentais: a entrada em contato com a realidade externa, o sentimento de que se vive no próprio corpo e a integração da personalidade. Dada a possibilidade de que essas coisas se sobreponham, ele ressalta ainda que uma criança pode sentir que mora em seu corpo porque tem experiências em que todo o corpo está envolvido - tais como chutar, correr, comer, vir a conhecer-se como o lugar em que ela mora -, e também por causa do manejo que provém do exterior. Considerando todos estes aspectos, não deveríamos tomar como certo que as pessoas vivam em seu corpo muito facilmente posto que, por exemplo, caso estejam excessivamente cansadas, elas podem facilmente se descobrir num lugar um pouco diferente, e terem a sensação de que o corpo no qual vivem não lhes pertence. Para ilustrar melhor essa hipótese, vejamos como o autor exemplifica tal situação:
(...) como eu disse certa vez sobre Lawrence da Arábia, depois de cinco dias num camelo ele disse que estava umas cinco jardas acima da orelha do camelo. É assim que você se ausenta do seu corpo e não sabe onde começa e onde termina. Há a complicação de que temos muitas diferenças dentro de nós. Tomem o exemplo de um homem que perdeu uma perna. Tudo está bem quando ele não está cansado, mas quando ele está cansado, as memórias da outra perna voltam. Da mesma maneira, nós todos somos muito diferentes. Temos todo tipo de diferença dentro de nós, e se alguém está revivendo muito uma experiência infantil, o corpo se sente pesado e a pessoa não sabe o que fazer com ele (Winnicott, 1948/2005b, p. 47).
Essa passagem, a nosso ver, deixa clara a importância do estabelecimento de uma relação consistente entre o contato com a realidade e o sentimento de que vivemos num corpo que nos pertence para a integração da personalidade.
O corpo no contexto do psique-soma: personalização, integração e psicossomática
Em A mente e sua relação com o psique-soma, um de seus artigos seminais sobre a questão do corpo - "parcialmente inspirado em um comentário de Ernest Jones, o qual afirma não acreditar 'que a mente humana realmente exista como uma entidade'" (Abram, 1997, p. 237) -, Winnicott tenta pensar no indivíduo em desenvolvimento e, considerando a importância dos aspectos corporais, afirma que não se deve distinguir entre a psique e o soma, exceto quando olhamos em uma direção em detrimento da outra. Nestas condições, pode-se notar o corpo ou a psique em desenvolvimento. "Suponho que a palavra psique aqui signifique a elaboração psíquica de partes, sentimentos e funções somáticas, isto é, da vivência física" (Winnicott, 1949/1978b, p. 411, grifado no original).
Gradualmente, psique e soma se envolvem em um processo de inter-relação, o qual constitui uma fase inicial do desenvolvimento do indivíduo. Em um estádio posterior, o corpo vivo, com seus limites, responsáveis pela formação de um interior e de um exterior, é sentido pelo indivíduo como elemento constitutivo do que o autor chama de núcleo do self imaginativo. Aliás, em seu artigo sobre o Desenvolvimento emocional primitivo, de 1945, Winnicott já afirmava que, tão importante quanto a integração é o desenvolvimento do sentimento de que se está dentro do próprio corpo, ou seja, a localização do self no próprio corpo. Gradualmente, os mecanismos instintivos, em conjunto com as repetidas e tranqüilas experiências de cuidado corporal, constroem o que se pode chamar de personalização satisfatória (Winnicott, 1945/1978a).
A saúde, no início do desenvolvimento individual, leva a uma continuidade de ser - expressão que, na obra winnicottiana, como ficará evidente no decorrer do nosso trabalho, designa uma experiência fundamental no âmbito da existência. O psique-soma inicial só pode prosseguir ao longo de uma determinada linha de desenvolvimento na medida em que sua continuidade não seja quebrada por qualquer tipo de fator; daí a necessidade quase que absoluta de um meio ambiente perfeito, desde os primeiros momentos do desenvolvimento. Considerando que esse ambiente perfeito é aquele que se adapta de maneira ativa às necessidades do psique-soma recém-formado (isto é, o bebê), Winnicott define como mau o ambiente que, não conseguindo se adaptar, torna-se uma invasão e exige que o psique-soma reaja. É basicamente essa reação que perturba a continuidade do ser. A mente teria dentre as suas raízes um funcionamento variável do psique-soma, que trata da ameaça à continuidade de existência posterior a qualquer fracasso da adaptação ambiental ativa.
Certos tipos de fracasso materno, especialmente um comportamento irregular, produzem uma hiperatividade do funcionamento mental. Aqui, no crescimento excessivo da função mental como reação a uma maternagem inconstante, vemos que é possível o desenvolvimento de uma oposição entre a mente e o psique-soma, pois em reação a este estado anormal do meio ambiente, o pensamento do indivíduo começa a controlar e organizar os cuidados a serem dispensados ao psique-soma, ao passo que na saúde esta é uma função do meio ambiente. Quando há saúde, a mente não usurpa a função do ambiente, tornando possível, porém, a compreensão e, eventualmente, a utilização de seu fracasso relativo (Winnicott, 1949/1978b, p. 413-14).
O funcionamento mental, transformado numa coisa em si, seria o resultado mais comum das falhas no cuidado materno em estádios iniciais da infância. Ele praticamente substituiria a mãe boa e a tornaria desnecessária. Clinicamente, Winnicott considera que isso pode ser acompanhado de uma dependência da mãe real, assim como de um crescimento pessoal falso baseado na submissão. Nestes termos, pode-se notar que o ser reativo conjuga-se com o ser submisso. Do seu ponto de vista, esse estado de coisas é extremamente desconfortável, fundamentalmente porque, neste caso, a psique do indivíduo se deixa "atrair" por essa mente, afastando-se do relacionamento íntimo que originalmente mantinha com o soma. O resultado então é uma mente-psique patológica. "Uma elaboração psíquica do funcionamento fisiológico é bastante diferente do trabalho intelectual que facilmente se torna artificialmente uma coisa em si e falsamente um lugar onde a psique pode se alojar" (Winnicott, 1949/1978b, p. 420).
Apesar de a elaboração imaginativa de partes e funções corporais não ser localizada, podem, no entanto, haver localizações bastante lógicas, vinculadas ao modo pelo qual o corpo funciona. É o que ocorre, por exemplo, quando o corpo incorpora e desprende substâncias, tais como os alimentos ingeridos e os produtos excrementícios. Neste caso, um mundo interno de experiência imaginativa pessoal entra no esquema das coisas, e a realidade compartilhada tende a ser considerada como externa à personalidade. No esquema corporal, de acordo com o entendimento winnicottiano, não parece haver lugar para alguma coisa como a mente. Aqui, não se trata apenas de formular uma crítica ao esquema corporal como diagrama; o que interessa verdadeiramente é mostrar a falsidade do conceito de mente como um fenômeno localizado.
Assim como não havia, para Winnicott, algo que pudesse ser chamado de bebê, mas apenas um par nutridor, da mesma forma, na melhor das hipóteses, não há algo que possa ser chamado de mente, apenas um par psique-soma. E parte da função da mente cindida patológica que Winnicott descreve é responsabilizar-se por um ambiente que fracassou (Phillips, 2006, p.141-142).
Vale lembrar ainda, que a atividade mental pode se tornar uma ameaça ao psique-soma, impedindo a formação da psique, compreendida como uma elaboração imaginativa da experiência somática.
Ao final deste artigo, Winnicott enumera os principais pontos desenvolvidos no texto, reafirmando que o verdadeiro self e a continuidade de existência, em casos saudáveis, se baseiam no crescimento do psique-soma, e que a atividade mental não é senão um caso especial do seu funcionamento. Na sua concepção, o crescimento do psique-soma é universal e suas complexidades são inerentes. Já o desenvolvimento mental depende em parte de circunstâncias variáveis, dentre as quais se destacam a qualidade dos fatores ambientais iniciais, o imprevisível fenômeno do nascimento e os cuidados dispensados ao bebê imediatamente após o nascimento.
Por último, o autor afirma que seria lógico opor a psique e o soma e, portanto, opor o desenvolvimento emocional e o desenvolvimento corporal de um indivíduo. Contudo, não é lógico opor o mental e o físico, dado que ambos não são feitos do mesmo material. Os fenômenos mentais seriam complicações de importância variável na continuidade da existência do psique-soma, naquilo que se adiciona ao self do indivíduo. De acordo com Safra, "não se deve pensar no self como organização mental, ou como uma representação de si mesmo, mas como o indivíduo organiza-se no tempo, no espaço, no gesto, a partir de sua corporeidade. O self se dá no corpo, é corpo" (Safra, 2005, p. 144).
Em meados dos anos cinqüenta, ao analisar a Preocupação materna primária, Winnicott volta a destacar a importância dos cuidados ambientais nos primórdios da existência, argumentando que somente quando a mãe possui uma sensibilidade deste tipo (preocupação materna primária) é que ela pode sentir como se estivesse no lugar do bebê, e deste modo responder às necessidades dele. Estas, de início, são necessidades corporais que aos poucos vão se tornando necessidades do ego a partir da elaboração imaginativa da experiência física. Com isso, o autor estaria propondo "não um conflito entre diferentes tipos de pulsão, mas uma metamorfose de um tipo de 'necessidade' para outro" (Phillips, 2006, p. 176). O ego, deste ponto de vista, implicaria uma soma de experiências.
O self individual começa como uma soma de experiência de repouso, motilidade espontânea e sensação, retorno da atividade ao repouso, e o gradual estabelecimento de uma capacidade de aguardar a recuperação dos aniquilamentos; aniquilamentos que resultam das reações às invasões ambientais (Winnicott, 1956/1978c, p. 498).
Por esse motivo, é necessário que as primeiras experiências individuais desse período ocorram nesse meio ambiente especializado, constituído sobretudo pela preocupação materna primária. Resumidamente, pode-se dizer que essa expressão é empregada por Winnicott para descrever
a condição psicológica especial da mãe nas semanas anteriores ou posteriores ao nascimento do bebê. Este quadro surge através do comprometimento corporal, e também por meio da elaboração imaginativa (amplamente inconsciente) do comprometimento corporal empregando toda a experiência acumulada no passado que se construiu no eu (Davis & Wallbridge, 1982, p. 108-109).
Dois anos mais tarde, discutindo o conceito de personalização num artigo intitulado O primeiro ano de vida, o psicanalista inglês afirma que a criança de um ano já pode viver firmemente estabelecida no seu corpo, contanto que a psique e o soma já tenham aprendido a conviver. Este estado de coisas, no qual psique e soma estão intimamente relacionados, desenvolve-se a partir da série de estados iniciais nos quais a psique imatura, ainda que baseada no funcionamento corporal, não se encontra estreitamente ligada à vida corporal. Mais uma vez, a existência de um grau razoável de adaptação às necessidades do bebê é aquilo que melhor possibilita o rápido estabelecimento de uma relação forte entre psique e soma. Caso ocorram falhas nessa adaptação, surge uma tendência da psique a desenvolver uma existência fracamente relacionada à experiência corporal, o que faz com que as frustrações físicas não sejam sentidas em toda a sua intensidade. Assim, pode-se considerar que, mesmo gozando de boa saúde, a criança de um ano nem sempre esteja firmemente enraizada em seu corpo.
A psique de uma criança pode normalmente perder contato com o corpo, e pode haver fases em que não é fácil para a criança retornar de súbito para o corpo: no caso, por exemplo, de acordar de um sono profundo. As mães sabem disso e, antes de pegar no colo uma criança adormecida, acordam-na gradualmente, de modo a não provocar o tremendo berreiro de pânico que pode advir de uma mudança de posição corporal num momento em que a psique encontra-se ausente. Do ponto de vista clínico, esta ausência da psique pode vir de par com fases de palidez, suor, diminuição da temperatura e vômitos (Winnicott, 1958/2001a, p. 8).
Elaborando a sua Teoria do relacionamento paterno-infantil1, em 1960, o autor nos mostra como durante a fase de holding o ego passa de um estado não-integrado a uma integração estruturada, de modo que o bebê se torna capaz de experimentar uma ansiedade associada à desintegração. Nestas condições, a palavra desintegração começa a ganhar um sentido que não possuía antes da integração do ego se tornar um fato. Neste estágio, caso o amadurecimento ocorra sem maiores problemas, o lactente retém a capacidade de re-experimentar estados não-integrados. Contudo, isso só é possível mediante uma continuidade consistente do cuidado materno ou da reunião no lactente de recordações deste cuidado, as quais começam a ser gradualmente percebidas como tais. "O resultado do progresso normal do desenvolvimento do lactente durante esta fase é que ele chega ao que se poderia chamar 'estado unitário'. O lactente se torna uma pessoa, com individualidade própria" (Winnicott, 1960/1983a, p.45).
Associada a isso está a chegada do bebê a uma existência psicossomática, a qual começa a adquirir um padrão pessoal, tal como Winnicott havia estabelecido no seu artigo sobre a inserção da psique no soma, comentado anteriormente. Aqui, ele reafirma que a base para essa inserção é a ligação das experiências funcionais motoras e sensoriais com o novo estado do lactente, que agora é uma pessoa. Como uma espécie de desenvolvimento adicional surge o que poderia ser chamado de membrana limitante, até certo ponto equacionada com a superfície da pele, e que se posiciona entre o "eu" e o "não-eu". Assim, além de passar a viver entre um espaço interior e outro exterior, o lactente constrói um esquema corporal. Com isso, as funções de entrada e saída também passam a fazer sentido, e torna-se gradualmente significativo pressupor uma realidade psíquica interna ou pessoal. Essas certamente são as razões pelas quais o psicanalista inglês insiste em sublinhar que, talvez, o principal no âmbito do cuidado seja o holding físico. Na verdade, ele é a base de todas as complexidades adicionais do holding e da provisão ambiental em geral. Vale lembrar ainda que
uma parte do holding é chamada por Winnicott de manuseio ou manipulação [handling] - a maneira pela qual a mãe, manuseia, manipula o seu bebê nos detalhes cotidianos do cuidado materno. Aqui estão incluídas a alegria e o prazer que ela tem com o seu bebê, os quais são uma expressão do seu amor.
O manuseio suficientemente bom resulta no fato de que a psique do bebê passa a habitar o soma; é a isso que Winnicott se refere como personalização. Isto significa que o bebê passa a sentir, como conseqüência de um manuseio amoroso, que o seu corpo é ele próprio ou/e que o seu sentimento de self está centrado dentro do seu corpo (Abram, 1997, p.187).
Mais adiante retomaremos essa discussão a propósito das relações entre handling, holding e personalização.
Por hora, dando continuidade ao nosso percurso, observamos que, ainda no início dos anos sessenta, o artigo Distorção do ego em termos de verdadeiro e falso self mostra que, quando um falso self se organiza em um indivíduo que tem grande potencial intelectual, existe uma forte tendência para que a mente se torne um lugar privilegiado para esse tipo de self. Em tais casos, ocorreria uma dissociação entre a atividade intelectual e a existência psicossomática, diferentemente do indivíduo sadio, no qual se presume que a mente não seja usada para escapar daquela modalidade de existência.
Ao investigar a etiologia do falso self, Winnicott novamente examina o estágio das primeiras relações objetais e nota que aí, na maior parte do tempo, o lactente nunca está completamente integrado, podendo, portanto, estar não-integrado. A coesão dos vários elementos sensório-motores
resulta do fato de que a mãe o envolve, às vezes fisicamente, e de modo contínuo simbolicamente. Periodicamente um gesto do lactente expressa um impulso espontâneo; a fonte do gesto é o self verdadeiro, e esse gesto indica a existência de um self verdadeiro em potencial. Precisamos examinar o modo como a mãe responde a esta onipotência infantil revelada em um gesto (ou associação sensório-motora). Ligo aqui a idéia de um self verdadeiro com a do gesto espontâneo. A fusão de elementos motores e eróticos está no processo de se tornar um fato neste período de desenvolvimento do indivíduo (Winnicott, 1960/1983b, p. 132-33).
Um self verdadeiro só se torna uma realidade viva na medida em que ele é o resultado do êxito repetido da mãe em responder ao gesto espontâneo ou alucinação sensorial do bebê.
O verdadeiro self provém da vitalidade dos tecidos corporais e da atuação das funções do corpo, incluindo a ação do coração e a respiração. Ele está intimamente ligado à idéia de processo primário, é essencialmente não-reativo e aparece assim que há qualquer organização mental propriamente individual, ou seja, algo como o somatório do viver sensório-motor. Conforme mostrou Safra,
há, inicialmente, uma organização de self, decorrente dos registros estético-sensoriais, que se estabelece no encontro do corpo do bebê com o corpo materno (...) Estes inúmeros registros são presença de vida e de ser. São fenômenos em que a presença da mãe é o self da criança (Safra, 2005, p. 78).
Em outro trabalho, publicado dois anos mais tarde, discutindo A integração do ego no desenvolvimento da criança, Winnicott considera que não se deve pensar no bebê apenas como uma pessoa que sente fome e cujos impulsos instintivos podem ser satisfeitos ou frustrados. Ele precisa ser encarado como um ser imaturo que está constantemente à beira de uma ansiedade inimaginável. Esta ansiedade pode ser evitada graças à função vitalmente importante da mãe neste estágio, isto é, graças a sua capacidade de se pôr no lugar do bebê e saber do que ele precisa em termos do cuidado geral de seu corpo e de sua pessoa. O amor, nesse estágio, só pode ser demonstrado em termos de cuidados corporais, tal como no período de gestação, antes do nascimento a termo. Dentre as poucas variedades desta ansiedade, o autor destaca as experiências de cair para sempre e a de não ter conexão alguma com o corpo.
Voltando mais uma vez à discussão sobre o desenvolvimento egóico, Winnicott afirma que a principal tendência no processo maturativo está contida nos vários significados da palavra "integração". Ele mostra ainda como a integração no tempo se acrescenta ao que poderia ser denominado de integração no espaço, e retoma as relações entre holding, handling e personalização.
O ego se baseia em um ego corporal, mas só quando tudo vai bem é que a pessoa do bebê começa a ser relacionada com o corpo e suas funções, com a pele como membrana limitante. Usei a palavra personalização para descrever esse processo, já que o termo despersonalização parece no fundo significar a perda de uma união firme entre o ego e o corpo, inclusive impulsos e satisfações do id (Winnicott, 1962/1983c, p. 58, grifado no original).
Partindo destas considerações, torna-se possível relacionar os fenômenos do crescimento do ego com determinados aspectos do cuidado da criança. Assim, a integração estaria relacionada com o cuidado e a personalização com o manuseio. Considerando-se que a criança tenha começado a existir e a adquirir experiências que podem ser consideradas pessoais, deve-se também pressupor a presença de certos rudimentos de uma elaboração imaginativa do funcionamento corporal. O manuseio, portanto, descreve a provisão pelo meio que corresponde mais ou menos ao estabelecimento de uma associação psicossomática. Sem um manejo ativo e adaptativo suficientemente bom, a tarefa interna pode vir a ser difícil. Na verdade, o desenvolvimento de uma inter-relação psicossomática adequada pode até se tornar impossível. Segundo Abram, com essa visão das coisas,
Winnicott se refere à completa identidade da mãe com o seu bebê, a qual é precisamente aquela que proporciona o ambiente perfeito. Isso significa que ela está apta para sustentar, manusear e cuidar da criança com preocupação, proteção e todos os componentes do amor, e se esse processo se passa de forma suficientemente boa nos estágios primários, proporciona-se ao bebê o sentimento de ser e self alojado em seu próprio corpo (Abram, 1997, p. 238).
Como vimos antes, em circunstâncias favoráveis, a pele se torna o limite entre o eu e o não-eu, a psique começa a viver no soma e uma vida psicossomática se inicia. No caso de algumas doenças psicossomáticas - tema que, como logo perceberemos, Winnicott só desenvolverá mais tarde - há, na sintomatologia, uma insistência na interação da psique com o soma. Isso pode ser mantido como defesa contra a ameaça de perda da união psicossomática ou contra alguma forma de despersonalização.
Em Provisão para a criança na saúde e na crise (1962/1983d), também publicado em 1962, o autor afirma mais uma vez que certas tendências no crescimento da personalidade podem ser verificadas desde o início do desenvolvimento, nunca chegando a se completar. Dentre elas, destacam-se a integração - incluindo integração no tempo; a "inserção" - termo pouco freqüente no vocabulário winnicottiano, mas que não é senão outra forma de descrever a conquista de um relacionamento íntimo e à vontade entre a psique e o corpo; e as relações com objetos. Em todos estes casos - quer se trate de uma criança normal, de um lactente, ou de um doente mental -, a provisão facilita a tendência inata de habitar o corpo apreciando suas funções, assim como a tendência de aceitar a limitação que a pele acarreta, separando o eu do não-eu.
No ano seguinte, o trabalho sobre Os doentes mentais na prática clínica, volta a abordar as relações entre o ambiente facilitador, a integração, a personalização e as relações objetais, recorrendo de passagem à teoria freudiana para sustentar o argumento:
Freud afirmou que o ego está essencialmente erigido sobre a base do funcionamento do corpo; o ego é essencialmente um ego corporal (isto é, não é uma questão de intelecto). No contexto atual estamos examinando a conquista de cada indivíduo da união da psique com o soma. A doença psicossomática é muitas vezes pouco mais que o reforço deste elo psicossomático em face da ameaça de rompimento do mesmo; esse rompimento resulta em vários quadros clínicos que recebem o nome de 'despersonalização'. Aí, de novo, o inverso do desenvolvimento que se observa no lactente dependente é um estado que reconhecemos como doença mental, especificamente, despersonalização, ou a doença psicossomática o ocultando (Winnicott, 1963/1983e, p. 201-02).
Em O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê, o autor nos mostra como o manuseio não apenas facilita a formação de uma parceria psicossomática na criança, mas também contribui para a formação de um sentimento do "real", o qual se opõe ao "irreal". Um manuseio deficiente "trabalha contra o desenvolvimento do tônus muscular e da chamada 'coordenação', e também contra a capacidade de a criança gozar a experiência do funcionamento corporal, e de ser" (Winnicott, 1964/2001b, p. 27).
O artigo sobre o Transtorno psicossomático, publicado já na segunda metade da década de sessenta, pode ser considerado o trabalho no qual Winnicott aborda a doença psicossomática de forma mais rigorosa, onde ele considera que esse tipo de enfermidade é o negativo de um positivo. Este último refere-se à tendência no sentido da integração em vários de seus significados, inclusive aquele relacionado à personalização, tal como mencionado acima. O positivo é a tendência herdada no sentido de construir, para além da unidade entre psique e soma, uma identidade experiencial do espírito, ou psique, e da totalidade do funcionamento físico. Uma tendência conduz a criança no sentido de um corpo que funciona, no qual, e a partir do qual, se desenvolve uma personalidade que também funciona e que se completa com defesas contra ansiedades de todos os graus e espécies. Na saúde, o self mantém essa aparente identidade com o corpo e seu funcionamento. A esse estágio no processo integrador o autor dá o nome de estágio do "Eu sou", e afirma que é justamente o significado de "eu" e "eu sou" que é alterado pela dissociação psicossomática.
A cisão entre psique e soma é um fenômeno regressivo que recorre a resíduos arcaicos para o estabelecimento de uma organização defensiva. Contrastando com ela, a tendência no sentido da integração psicossomática faz parte do movimento para frente no processo de desenvolvimento. A cisão, aqui, pode ser tomada como um representante da repressão, termo apropriado no caso de organizações mais sofisticadas. A integração psicossomática, que também pode ser entendida como a conquista de uma morada da psique no soma, deve ser seguida pela fruição de uma unidade psicossomática na experiência de estar vivo no mundo.
No processo de integração, o bebê (no desenvolvimento sadio) ganha um ponto de apoio na posição "eu sou" do desenvolvimento emocional e, então, não apenas a fruição do funcionamento do corpo reforça o desenvolvimento do ego, mas este último também reforça o funcionamento do corpo. O fracasso do desenvolvimento nestes aspectos resulta na incerteza da morada, ou conduz à despersonalização, na medida em que a morada tornou-se um aspecto que pode ser perdido. O termo morada é utilizado aqui para descrever a residência da psique no soma pessoal, ou vice-versa (Winnicott, 1966/1994a, p. 89).
De acordo com Winnicott, a enfermidade psicossomática implica uma cisão na personalidade do indivíduo, a qual enfraquece o vínculo entre psique e soma, ou uma cisão organizada na mente, que se defende contra uma perseguição generalizada por parte do mundo repudiado, como pode ocorrer em casos de paranóia. No entanto, o autor faz questão de ressaltar que sempre permanece uma tendência individual a não perder inteiramente a vinculação psicossomática: este é o valor positivo do envolvimento somático. Essa valorização do potencial de permanência desse tipo de vínculo decorreria do fato de que a defesa não se organiza somente em termos de uma cisão que protege contra o aniquilamento. Ela também funcionaria como uma proteção do psique-soma quanto a uma fuga para uma existência intelectualizada ou espiritual, ou para façanhas sexuais compulsivas que ignorariam as demandas de uma psique construída e mantida com base no funcionamento somático. A enfermidade psicossomática possuiria, portanto, este aspecto esperançoso: o paciente ainda se encontraria em contato com a possibilidade de unidade psicossomática, personalização e dependência, apesar da cisão e de variadas dissociações.
A dimensão corpórea do self e a natureza humana: permanecendo no próprio ser
Sobre as bases para o self no corpo, do início dos anos setenta, pode ser considerado o segundo artigo seminal de Winnicott no que se refere às relações entre corpo e continuidade do ser. Nele, considerando o inter-relacionamento da criança em crescimento com seu corpo, o psicanalista inglês retoma o tema da personalização e volta a considerá-la, mais uma vez, como um tipo positivo de despersonalização. Esta, conforme já vimos, envolve a perda de contato da criança ou do paciente com o corpo, mas também implica na existência de algum outro aspecto da personalidade. Winnicott reafirma que, com o termo personalização, pretendeu chamar a atenção para o fato de que a morada desta outra parte da personalidade no corpo e o vínculo firme entre ela e a psique representam, em termos de desenvolvimento, uma conquista de saúde, ou seja, uma realização não-doentia estabelecida gradualmente. Com ela a criança deve poder usar relacionamentos nos quais há uma confiança máxima, e neles às vezes desintegrar-se, despersonalizar-se, e até mesmo, por um momento, abandonar a premência quase fundamental de existir e se sentir existindo.
No amadurecimento sadio as duas coisas andam juntas: o sentimento de segurança em uma relação - o qual mantém a oportunidade de uma anulação repousante dos processos integrativos, facilitando a tendência geral à integração e ao estabelecimento de uma morada no corpo herdada pela criança -, e o funcionamento corporal. "O desenvolvimento para frente se acha muitíssimo associado com a morada, tal como com outros aspectos da integração, mas ele é, sob todos os sentidos, assustador para o indivíduo interessado se não for deixado aberto o caminho de volta à dependência total" (Winnicott, 1970/1994b, p. 203-204).
É verdadeiramente no início que a criança precisa ser aceita como tal e beneficiar-se de uma aceitação desse tipo. No entanto, a base para o que Winnicott chama de personalização, ou ausência de uma tendência especial para a despersonalização, começa antes mesmo do nascimento, e é certamente muitíssimo significativa. A criança tem que ser sustentada por pessoas cujo envolvimento emocional precisa ser levado em conta, sendo que aí estão incluídas, evidentemente, suas reações fisiológicas. O começo da personalização ou habitação da psique no soma, depende da capacidade que a figura materna tem de juntar o seu desenvolvimento emocional, que originalmente é físico ou fisiológico, ao daquele ser que é cuidado por ela.
Considerando esses aspectos, a integração no ser humano em desenvolvimento assume uma ampla variedade de formas, dentre as quais sobressai o desenvolvimento de um arranjo operacional satisfatório entre a psique e o soma. Winnicott chama a atenção para o fato de que tudo isto começa antes da época em que é necessário adicionar os conceitos de intelecto e verbalização. Assim, fica evidente, mais uma vez, que a base do self se forma sobre o corpo vivo com suas formas e funções.
Mesmo um bebê deformado pode crescer e transformar-se em um bebê sadio, com um self que não é deformado e um senso do self que se baseia na experiência de viver como uma pessoa aceita. Distorções do ego podem provir de distorções na atitude daqueles que cuidam da criança. Uma mãe com um bebê está constantemente apresentando e reapresentando o corpo e a psique do bebê um à outra, e pode-se facilmente ver que essa tarefa fácil, mas importante, torna-se difícil, se o bebê tem uma anormalidade que faz a mãe sentir-se envergonhada, culpada, assustada, excitada ou desesperançada. Em tais circunstancias, ela pode dar o melhor de si, e não mais que isso.
O corolário disso é que o psicoterapeuta não precisa dizer: "esta criança não pode ser ajudada por causa da anormalidade física". O self, o senso do self e a organização do ego da criança podem todos eles, estar intactos, por se basearem num corpo que era normal para a criança no período formativo (Winnicott, 1970/1994b, p. 210).
O self ou a pessoa que é um "eu", possui uma totalidade baseada no funcionamento maturacional. Ao mesmo tempo, o self é constituído de partes que se aglutinam do interior para o exterior no curso do processo de maturação, desde que ele seja ajudado maximamente no começo pelo ambiente humano que sustenta, maneja e facilita de maneira viva. Ainda que possa naturalmente se localizar no corpo, em certas circunstâncias, o self pode dissociar-se dele, e vice-versa. Podendo ser reconhecido essencialmente nos olhos e na expressão facial da mãe, ou mesmo no espelho que o seu rosto pode vir a representar, o self acaba estabelecendo uma relação significativa entre a criança e a soma daquelas identificações que se organizam sob a forma de uma realidade psíquica interna viva, após suficiente incorporação e introjeção das experiências mentais. Em geral, o suporte adequado é parte da técnica natural da mãe. Ela é capaz de proporcioná-lo ao bebê, de maneira que ele não precisa saber que é composto por uma coleção de partes. Todas essas partes são reunidas pela mãe que o acolhe, transformando-o em uma unidade. "Esta unidade, tão necessária para a integração do ego, é a base para a coordenação corporal e a harmonia, e para o prazer na atividade corporal onde o indivíduo é constantemente capaz de descobrir o eu" (Davis e Wallbridge, 1982, p.117-18).
Muitas das hipóteses sobre o corpo mencionadas até aqui serão retomadas por Winnicott em Natureza Humana, obra que destacou de forma decisiva a dimensão vital da continuidade do ser. Publicada apenas após o seu falecimento, essa obra parece ter sido pacientemente trabalhada e retrabalhada pelo autor durante um longo período de sua vida. No ano de 1936, ele havia sido convidado por Susan Isaacs a ministrar um curso sobre crescimento e desenvolvimento humano para professores de primeiro grau na universidade de Londres. Em 1954, quando começou o livro, ele também vinha dando aulas para assistentes sociais na mesma universidade. Estas oportunidades de ensino prosseguiram até 1971, ano de sua morte. De acordo com Clare Winnicott, o propósito original do livro teria sido o de fornecer as anotações que os estudantes não conseguissem fazer, e colocá-las à disposição de qualquer estudioso da natureza humana. "Em sua primeira versão, o livro foi iniciado e concluído no verão de 1954, num período de tempo comparativamente curto. Desde então, até o momento de sua morte, Winnicott não cessou de revê-lo e revisá-lo" (Winnicott, C., 1990, p. 15). Segundo os seus editores "Winnicott preparou duas sinopses de seu livro sobre a Natureza Humana. A primeira é datada de agosto de 1954, época em que (...) a maior parte do livro foi escrita. A segunda foi realizada por volta de 1967" (Bollas, Davis e Shepherd, 1990, p. 17). Dada a importância histórica deste trabalho e dos vários argumentos a propósito das relações entre corpo e ser ali desenvolvidos pelo autor, vale a pena nos determos um pouco mais sobre ela.
Logo no início do livro, Winnicott diz que a saúde do corpo implica no funcionamento físico adequado à idade da criança, assim como na ausência de doenças. Nestes termos, ela deve ser entendida como um funcionamento corporal não perturbado por conflitos emocionais ou pelo surgimento de alguma emoção dolorosa. O autor volta a afirmar que a psique começa como uma elaboração imaginativa das funções somáticas, e acrescenta que ela tem como tarefa fundamental a interligação das experiências passadas com as potencialidades, a consciência do presente e as expectativas para o futuro. Só assim o self pode passar a existir.
Nestas condições, a natureza humana não seria uma questão de corpo e mente, mas de psique e soma inter-relacionados, os quais, em seu ponto culminante, apresentam um ornamento: a mente. Distúrbios do psicossoma seriam alterações do corpo ou do funcionamento corporal associadas a estados da psique.
As primeiras complicações a serem estudadas são aquelas mudanças fisiológicas que dizem respeito à atividade e ao repouso, e depois as mudanças referentes a excitações locais ou gerais. No estudo da excitação geral, os tecidos não podem ser estudados fora do contexto da psique total. Uma vez aceita a psique como um todo, então a fisiologia pode concentrar se nas mudanças específicas relativas ao desejo e à ira, e também ao amor afetuoso, ao medo, ao luto e outros afetos que representam facetas de sofisticadas fantasias, fantasias específicas ao indivíduo (Winnicott, 1990, p. 44-45).
Nota-se que, como atento estudioso do psicossoma, Winnicott também mostra certa preocupação com as fantasias conscientes e inconscientes. No entanto, a nosso ver, o que torna mais interessante o seu ponto de vista é que essas fantasias constituem o que ele chama de "histologia da psique", termo que mais uma vez denota a imanência do psíquico ao somático. À anatomia e à fisiologia da ação deveria ser acrescentado o significado da ação para o indivíduo. Nestas condições, a fisiologia funde-se suavemente à psicossomática, que inclui a fisiologia das mudanças somáticas associada às pressões e tensões da psique. A parte psíquica da pessoa se ocupa com os relacionamentos, tanto dentro do corpo quanto com ele, e com as relações mantidas com o mundo externo. Emergindo da elaboração imaginativa das mais diversas funções corporais, tal como a teoria winnicottiana não cessa de salientar, assim como do acúmulo de memórias, a psique liga o passado, o presente e o futuro, dando um sentido ao sentimento do eu. Com isso, ela justifica a percepção de que dentro de um determinado corpo exista um indivíduo. Certamente, por esse motivo, sempre que se estuda uma excitação instintiva, é preciso ter em conta a função corporal mais intensamente envolvida. A excitação pode ser local ou geral. De acordo com Winnicott, a excitação generalizada tanto pode contribuir para que o bebê se sinta um ser total, quanto pode advir do estágio de integração alcançado no decorrer do amadurecimento. Além disso, também é possível estabelecer uma relação bastante interessante entre as excitações instintivas e o brincar.
Os problemas dos períodos de excitação são claramente determinados pelos instintos e, muito daquilo que ocorre entre uma excitação e outra se refere ou à preparação para a satisfação do instinto, ou à tentativa de mantê-lo vivo de modo indireto através do brincar ou da dramatização de uma fantasia. No brincar, o corpo obtém satisfação ao participar da dramatização, e no fantasiar ele a obtém de forma secundária, pelo fato de no fantasiar ocorrerem excitações somáticas localizadas, assim como há fantasia junto com o funcionamento corporal (Winnicott, 1990, p. 72).
A elaboração imaginativa da corporeidade organiza-se em fantasias qualitativamente determinadas pela localização no corpo, as quais, no entanto, são específicas a cada indivíduo em razão da hereditariedade e da sua experiência. Se a psique se forma a partir do material fornecido por aquele tipo de elaboração, ela está fundamentalmente unida ao corpo através da relação que estabelece com suas diversas partes, e graças a novos relacionamentos produzidos pela fantasia e pela mente, consciente ou inconscientemente. O mundo interno é um mundo pessoal na medida em que é mantido na fantasia, no interior das fronteiras do ego e do corpo limitado pela pele. Essa é mais uma das razões pelas quais o sentimento de integridade do self remete ao corpo e à psique conjuntamente. A saúde do corpo, na medida em que é percebida ou notada, pode ser traduzida em termos de fantasia e, ao mesmo tempo, os fenômenos da fantasia também podem ser sentidos corporalmente. À título de exemplo, Winnicott se refere à possibilidade do vômito expressar um sentimento de culpa e poder ser sentido como uma ameaça de traição ao self secreto, a qual seria vivida como um desastre.
Excluindo-se a doença, a saúde corporal é ativamente reasseguradora para o bebê que está às voltas com dúvidas sobre a psique, e a saúde psíquica promove um saudável funcionamento corporal, garantindo a capacidade de ingerir, digerir e eliminar. Por esse motivo, a figura materna, que foi a responsável pelo ambiente no sentido físico do termo antes do nascimento, deve continuar a prover o cuidado físico após o nascimento. No princípio da vida, essa é a única expressão de amor que o bebê pode reconhecer. De acordo com Safra,
o encontro do corpo do bebê com o corpo da mãe devotada dá a ele condições de ter um repertório imaginativo que o capacitará a elaborar imaginativamente as funções corporais. Portanto, as diferentes funções corporais atualizam a qualidade dos encontros que o bebê teve com sua mãe. Trata-se de um repertório que é fruto da presença humanizadora do outro. A criança ganha unidade corporal por meio da e na presença do outro, surgindo paulatinamente um corpo psíquico: um corpo cujas funções foram elaboradas imaginativamente. Ocorre uma integração das diferentes experiências sensoriais (Safra, 2005, p. 79).
Não são poucos os que consideram óbvia a localização da psique no corpo, esquecendo que se trata de algo a ser alcançado. Quanto a isso, a psicanálise winnicottiana não cessa de nos advertir de que se trata de uma aquisição, e que ela de modo algum encontra-se ao alcance de todos. Mesmo aqueles que parecem viver em seu corpo podem desenvolver a idéia de que existem um pouco além da própria pele. Universalmente, a pele é de importância óbvia no processo de localização da psique exatamente no e dentro do corpo. Por esse motivo, o seu manuseio no cuidado com o bebê é um fator extremamente importante no estímulo a uma vida saudável dentro do corpo, da mesma forma como as diversas maneiras de segurar a criança auxiliam no processo de integração. Se, por um lado, o recurso a processos intelectuais pode criar obstáculos para a coexistência entre psique e soma, por outro, a experiência das funções e sensações da pele, assim como do erotismo muscular, fortalecem essa coexistência. Poderíamos dizer que boa parte dos seres humanos, em momentos de frustração instintiva, podem ser tomados por um sentimento de desesperança ou futilidade. Com isso, a fixação da psique no corpo enfraquece, e torna-se necessário tolerar um período de não relação entre psique e soma. Esse fenômeno pode se exacerbar em todos os graus possíveis de doença. A idéia de um fantasma, de um espírito desencarnado, derivaria daquela não-vinculação essencial entre o psíquico e o somático.
Aqui há uma aplicação direta da teoria, não só ao estudo e tratamento clínico das doenças de pele, como também aos conhecimentos sobre grande parte dos problemas psicossomáticos. Os distúrbios psicossomáticos são determinados por muitos fatores, mas aquele geralmente omitido é talvez o mais importante. É muito comum assistirmos a uma discussão sobre a psicologia de um distúrbio psicossomático sem que se faça nenhuma menção ao valor positivo que existe para o paciente na vinculação entre algum aspecto da psique e alguma parte do corpo. Existem ansiedades psicóticas subjacentes às perturbações psicossomáticas, ainda que, em muitos casos, em níveis mais superficiais, possam ser percebidos claramente fatores hipocondríacos ou neuróticos (Winnicott, 1990, p.144).
Conforme já foi possível notar até aqui, muito daquilo que Winnicott pensa a respeito da integração também pode ser aplicado à localização da psique no corpo. As experiências tranqüilas e excitadas dão cada qual a sua própria contribuição. O processo de localização da psique no corpo, como também tivemos a oportunidade de ver, se produz a partir de duas direções, a pessoal e a ambiental: isso implica a experiência pessoal de impulsos e sensações da pele, o erotismo muscular e os instintos, envolvendo a excitação do indivíduo como um todo, mas também tudo aquilo que se refere aos cuidados do corpo e à satisfação das exigências instintivas que possibilitam a gratificação. Quando a experiência instintiva é deflagrada em vão, o vínculo entre a psique e o corpo pode se afrouxar ou mesmo perder-se. No entanto, esse relacionamento pode vir a se restabelecer com o tempo, desde que haja uma boa fase de manejo tranqüilo do bebê. No desenvolvimento normal, portanto, a integração e a coexistência entre psique e soma dependem tanto de fatores pessoais referentes à vivência das experiências funcionais, quanto do cuidado fornecido pelo ambiente. A ênfase recai algumas vezes sobre o primeiro elemento, e em outras sobre o último. Pode-se presumir ainda que, mesmo antes do parto, o bebê já seja capaz de reter memórias corporais, pois existem certas evidências de que a partir de uma data anterior ao nascimento, nada daquilo que um ser humano vivencia é perdido.
Partindo desse ponto de vista, Winnicott pode então postular de maneira mais definitiva um estado de ser contínuo que é um fato no bebê normal, antes do nascimento e logo depois. A continuidade do ser, segundo o autor, significa, antes de tudo, saúde. Para explicitar melhor seu argumento, o autor recorre a um exemplo:
Se tomarmos como analogia uma bolha, podemos dizer que quando a pressão externa está adaptada à pressão interna, a bolha pode seguir existindo. Se estivéssemos falando de um bebê humano, diríamos "sendo". Se, por outro lado, a pressão no exterior da bolha for maior ou menor que aquela em seu interior, a bolha passará a reagir à intrusão. Ela se modifica como reação a uma mudança no ambiente, e não a partir de um impulso próprio. Em termos do animal humano, isso significa uma interrupção no ser, substituída pela reação à intrusão. Cessada a intrusão, a reação também desaparece, e pode haver, então, um retorno ao ser. Parece-me que essa é uma descrição capaz não apenas de nos levar até a vida intra-uterina sem um grande esforço de imaginação, mas também de ser levada para frente, podendo ser aplicada de modo útil como simplificação extrema dos processos muitíssimo mais complexos da vida posterior, em qualquer idade (Winnicott, 1990, p.148, grifado no original).
Caso a adaptação ativa seja quase perfeita, o movimento do próprio indivíduo descobre o ambiente. Em casos menos felizes, o padrão de relacionamento se baseia no movimento do ambiente, o que deve ser entendido como uma intrusão. Por não ter relação alguma com o processo vital do próprio indivíduo, essa intrusão é imprevisível, e exige reação. Se este mecanismo reativo tiver que ser ativado repetidas vezes, ele pode se transformar num padrão de relacionamento, o que ocasiona um resultado bastante diferente. Enquanto no primeiro caso o acúmulo de experiências parece fazer parte da vida, de uma vida digna de ser vivida e, portanto, real, no segundo, a reação à intrusão reduz o sentimento de um viver verdadeiro, que só pode ser recuperado através do retorno ao isolamento, na quietude. Por meio dessa representação esquemática aparentemente simples, Winnicott supõe que é possível mostrar que a influência ambiental pode começar numa etapa muitíssimo precoce, determinando se a pessoa, ao buscar uma confirmação de que a vida vale a pena, irá à procura de experiências no mundo, ou se retrairá, fugindo dele. A rigidez ou falta de adaptação da figura materna (devidas à angústia ou a um estado depressivo) podem, portanto, tornar-se evidentes para o bebê antes mesmo do seu nascimento.
Argumentando a partir deste postulado do ser, da sua continuidade e da interrupção dessa pelas reações à intrusão e o posterior retorno ao ser, o psicanalista inglês arrisca uma afirmação adicional: a de que, a partir de um determinado momento, anterior ao nascimento, o bebê passe a se habituar às interrupções da continuidade, tornando-se capaz de admiti-las, desde que elas não sejam excessivamente intensas ou prolongadas. Em termos somáticos, isto significa que o bebê não apenas passou por experiências de mudança de pressão, temperatura e outros fatores ambientais simples, mas também foi capaz de reconhecê-las e começar a organizar um modo de lidar com elas. Deste ponto de vista, o ambiente é tão importante quando há uma simples continuidade do ser, quanto no momento em que provoca uma intrusão, e a continuidade é interrompida de forma reativa. Para o bebê, entretanto, não há qualquer motivo para tomar conhecimento de um ambiente bom o suficiente, pois, em tal caso, ele pode simplesmente existir e continuar existindo.
Como mostramos ao longo deste artigo, no início há o soma. Logo em seguida, na saúde, a psique vai gradualmente ancorando-se a ele. Cedo ou tarde aparece um terceiro fenômeno, chamado intelecto ou mente. Por essa razão, a melhor abordagem para o estudo da mente na natureza humana é aquela que parte da base mais simples oferecida pelo psico-soma, havendo um ambiente suficientemente bom. Este foi o esquema mínimo formulado pela teoria winnicottiana para situar o corpo como base para a continuidade do ser, no contexto de uma vida digna de ser vivida. Dada a importância fundamental atribuída por ele ao corpo, diríamos que, para além de qualquer utilização instrumental da corporeidade, Winnicott, na tradição de Espinosa e Nietzsche, talvez tenha sido o psicanalista que mais contribuiu para reverter as pretensões dos desprezadores do corpo no meio psicanalítico. Por essa razão, gostaríamos de fechar o nosso trabalho lembrando uma breve passagem do Zaratustra de Nietzsche, grande crítico de todo pensamento que despreza a vida: "Quero dizer a minha palavra aos desprezadores do corpo. Não devem, a meu ver, mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao corpo - e destarte, emudecer" (Nietzsche, 1885/1983, p. 51).
Referências
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Recebido em 8 de fevereiro de 2008
Aceito em 3 de novembro de 2008
Revisado em 10 de novembro de 2008
Notas
1. "Relacionamento paterno-infantil" é o resultado da tradução para o português da expressão inglesa "parent-infant relationship". A nosso ver, essa tradução é problemática e a expressão ficaria melhor traduzida como "relacionamento parental-infantil". Dado que estamos utilizando edições brasileiras da obra de Winnicott, neste caso, do livro O ambiente e os processos de maturação, manteremos o termo "paterno-infantil", deixando aqui essa sugestão para uma tradução mais rigorosa.