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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.9 n.1 Fortaleza mar. 2009

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Que política é possível com o pensamento deleuziano?

 

What politic it is possible with deleuzian thought?

 

 

Daniel Dutra TrindadeI; Tania Mara Galli FonsecaII

IMestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). End.: Av. Venâncio Aires, 101, apt. 405. Cidade baixa. Porto alegre, RS. CEP: 90040-191 E-mail: ddtpsi@yahoo.com.br
IIProfessora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e de Informática Educativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). End.: R. Campos Salles, 262, Boa Vista. Porto Alegre, RS. CEP: 90480-030. E-mail: tfonseca@via-rs.net

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende discutir a possibilidade de uma política na esteira do pensamento de Gilles Deleuze, levando em consideração a tensão existente entre as concepções de macro e micropolítica e a sua relevância diante de uma filosofia que preza, em última instância, pela diferença pura, o puro devir. O trabalho não pretende descrever o que é a política segundo Deleuze, mas como uma política pode servir de matéria para crítica e para o pensamento segundo o movimento filosófico de suas idéias. O que resulta desse trabalho não é um dado, mas uma interpretação que intenta ser justa com uma filosofia que em todo o seu corpus adensa a crítica do sujeito moderno, identitário e substancial. Essa justiça levada a cabo implica duas conseqüências: arrefece as pretensões humanistas e voluntaristas cujo fundamento está num sujeito capaz de, através da tomada de consciência de suas circunstâncias, mudar os rumos da história e da sociedade - um sujeito compreendido como causa de sua própria humanidade; e liberta o devir, como ser livre, de suas amarras humanas, demasiado humanas, mostrando que existe vida além do homem como medida de todas as coisas. Essas duas conseqüências certamente trazem o desconforto de não mais sentir as rédeas da vida nas mãos, ainda mais se tratando de um tempo histórico onde a miséria humana é chocante. Deleuze, no entanto, não conforta; ele impõe desafios e instiga a criação de sentidos esgotando o possível até brilhar uma vida...

Palavras-chave: macropolítica, micropolítica, sujeito, estética, devir.


ABSTRACT

This work has the/ pretention to discuss the possibility of a politic in the wake of the thought of Gilles Deleuze, taking into account the tension between the concepts of macro and micropolitic and its relevance to a philosophy that values in last instance the pure difference, the pure becoming. This work is not intented to describe what is politics according to Deleuze, but how a politics can serve as a subject to critique and to tought in the philosophical moviment of his ideas. What results of this work is not a fact, but an interpretation that intents to be fair with a philosophy wich, in all of its corpus, makes the critique of the modern subject, subject conceived in identity and substance, denser. This fairness carried out implies two consequences: it cools the humanist and voluntarist pretensions, whose foundation is in a subject capable of, through taking awareness of his circumstances, change the direction of history and society - a subject understood as cause of his own humanity; and frees the devir, as a free being, of its human tethers, all too human, showing that there is life beyond man as a measure of all things. This two consequences certainly bring the discomfort of no longer feeling the life's reins in our own hands, specially considering our historical time where the human misery is shocking. Deleuze, however, does not comfort; he imposes challenges and provokes creation of senses, exhausting the possible until a life shines...

Keywords: macropolitic, micropolitic, subject, esthetic, becoming.


 

 

Introdução

O pensamento, desde muito tempo, vem sendo convocado pelo desespero de nossos dias, mas ele mesmo não pode desesperar. A urgência não pode ser razão do pensamento, sob pena de torná-lo imediatista. Isto não é uma proposição, esta é uma posição, uma perspectiva. E também é uma angústia a ser vivida. Se trouxermos a máxima cartesiana - penso, logo existo - para o âmbito mundano, e para muito aquém de suas reivindicações filosóficas, nos deparamos com uma contradição: pensar não é existir na imediatez dos instantes? Sim, todo esse jogo de palavras é retórico, abusamos da generalização dos termos pensar e ser ou estar no mundo. Mas esse jogo é útil para apresentar ou introduzir a percepção de uma tensão entre o pensamento (filosófico) e a ordem das coisas humanas dispostas sobre o "nosso mundo". Essa tensão é, por sua vez, acolhida no seio do que entendemos por território da política - aquele que se pretende a condição do encontro entre pensamento e um modo de ser no mundo. No entanto, este território está mais para o pensamento que para os modos de ser, pois é o pensamento que o reivindica a cada vez para insistir que é em si mesmo de natureza política, ou seja, a cada acontecimento seu ele está imediatamente ligado aos modos de ser e à práxis mundana. É assim que o pensamento quer para si que esse laço com o universo das coisas humanas o faça político. E é, talvez, das idéias a mais tacanha. A própria filosofia se responsabilizou pelos males do século XX (notadamente o regime nazista), e a partir de então, impõe a si mesmo um pathos político para afastar-se de uma vez por todas de sua alienação e consequente condescendência velada diante do mal. O pensamento, então, sucumbe à história, é politizado, condenado desde então a prestar contas ao que aí está. Abriu-se, diante da filosofia, duas alternativas apenas: ou ela está contra ou ela está a favor de um atual estado de coisas. O pensamento se transforma, assim, em diagnóstico, prescrição e prognóstico. Daí é certo que muitos devam lamentar a morte da filosofia, justamente porque não deixaram restar outra alternativa que a de se igualar a uma ciência, um tipo de conhecimento onde o primado é o do referente; neste caso, a filosofia estaria amarrada ao referente "nosso mundo", aquele consagrado pela história universal. E como esse "nosso mundo" espelha a precariedade e a miséria da humanidade, portanto, caberia à filosofia corrigir essa imagem, donde sua condição política de existência. Entretanto, vejamos.

A política foi, por muito tempo, o âmbito do "governo", onde as ações dos governantes assumiam um valor diante da sua incidência sobre as vidas alheias. Entretanto, nossa experiência modernista da política nos fez acreditar que o seu âmbito é aquele das atitudes e ações não mais relativas ao governo, apesar de estas também serem consideradas como políticas, mas relativas aos governados; a ação política se tornou uma questão relativa muito mais ao mau governo que ao bom governo. Da gama de reflexões sobre política que encontramos hoje em dia, pouquíssimas ou nenhuma explora a pertinência e a possibilidade do melhor governo, qual filosofia se atreveria a isso?, no entanto, encontra-se um número enorme de reflexões sobre qual governo não queremos mais, sobre as mazelas, o descrédito e o esgotamento de tal ou qual sistema político. A política se tornou, para nós, primordialmente, um dizer não ao governo; todavia, para não definhar numa atitude puramente negativa, imputa-se à política uma atitude afirmativa ao considerar cada novidade referente às práticas e discursos cotidianos como uma substância política. Dessa forma, toda ação humana se torna política, pois se ela desvia do sistema de governo ela é política por ser desviante, caso contrário ela também é política, posto que ela confirma o sistema. Assim, no círculo moderno da política uma tangente se torna impossível. E este círculo é, obviamente, o círculo do humanismo, o homem como centro da Terra e esta sob o reinado daquele; o homem tido como o grande transformador do universo, e não é este o sentido que toca o coração da política? - o homem sabendo como deve governar todas as coisas, porém, se este governo vai mal, cabe ao homem aprumar os rumos. Este "homem" tem outros nomes também: "sujeito", "ego", "consciência". De qualquer maneira, foram todos estes "nomes" os responsáveis, segundo os críticos da modernidade, pela progressiva decadência da civilização moderna. Não por que eles fossem as causas, mas porque eles estiveram no centro de toda essa "construção histórica". O "para-além-do-homem" se tornou praticamente uma exigência para a filosofia em nome da superação das grades de ferro do subjetivismo, nisso estão juntos alemães e franceses, não obstante a diversidade de suas construções filosóficas. O espectro dessas empresas críticas é muito vasto, as nuanças são várias, e as perspectivas estão, em muitas delas, em lados diametralmente opostos: derrubam-se os privilégios da "consciência" aqui, restaura-se este privilégio pela conversação lá; a crítica corrói a identidade e a interioridade do sujeito, mas a "liberdade do indivíduo" se mantém aqui e acolá. Poderíamos ainda dizer que parte da crítica filosófica tem como inimigo a pretensão humanista de universalidade, o imperialismo de um tipo-humano, por certo o homem de razão ocidental. Então, se abandonamos os universais podemos retomar o leme da vida num pequeno universo "particular" sem maiores pretensões. E se advém um abuso de poder no interior desse pequeno universo, certamente ele merecerá uma reviravolta "política", leia-se, as "individualidades livres" podendo transformar a situação. Finalmente, quando o controle vence qualquer "liberdade individual", a própria vida como fenômeno genérico se rebela, e a vida, essa potência subversiva e incontrolável por natureza, triunfa. O indivíduo, ao se identificar com o próprio fenômeno vida, colhe para si os louros dessa vitória; ele crê piamente que a liberdade da própria vida é a sua liberdade, e, portanto, a própria vida se torna um fenômeno essencialmente político - eis que surge uma biopolítica. O indivíduo, agora cúmplice da vida, certamente não usufrui de uma identidade, nem de uma interioridade fechada, nem mesmo de uma "individualidade", posto que a vida devém a todo instante uma outra natureza. A vida roubou a cena, mas não podemos ver quem dirige esta peça? Não pretendemos, nós, críticos da modernidade, dar voz aos "loucos", aos "criminosos", e a toda sorte de excluídos do monólogo da razão? Então, por que não ouvir a própria vida? Por acaso ela não diz "não queiram vocês serem o que eu sou, pois vocês já são e apenas eu posso querer, deixem de ser orgulhosos até no seu último instante"?

 

Deleuze: re-introdução do problema

São estes ouvidos delicados que Gilles Deleuze (1925-1995) parece ter criado para si, é essa delicadeza filosófica que viemos brindar da maneira como nos é possível. Não podemos falar por ele, somente tentar ouvi-lo. Nossa intenção é fazer somente um percurso a mais pelas sendas do pensamento de Deleuze pois, antes de mais nada, não queremos ser definitivos nem conclusivos, quereríamos mais ser incisivos. Visar uma última palavra não condiz aos nossos objetivos, nem por uma veleidade autoritária qualquer, nem por algum critério hermenêutico: a melhor interpretação. A propósito, a melhor interpretação não existe, no sentido de uma precisão indefectível. Ela pode ser, no mais, o esvaziamento dos sentidos dados, o rompimento do consenso; e nem mesmo as idéias de Deleuze escaparam dos círculos consensuais, ao menos dois deles, o dos que o leram desde sempre reativamente, e o de todos aqueles que acreditam ter herdado o seu próprio pensar. Ambos os círculos representam o desleixo para com uma filosofia em "tempos difíceis", não vêem a riqueza das nuanças, as sutilezas da retórica e as estratégias significantes, daí o consenso que banaliza ou tiraniza um filósofo - confunde-se um "romance policial" com um "caderno diário de notícias" e quer-se tratar das ordens do dia, a condenação ou a panacéia, a alternativa basta.

No próprio seio de sentidos deleuzianos, queremos não mais que apontar para uma linha de atualização dentre toda a gama de virtuais que compõem sua filosofia, uma filosofia da e para a Diferença. Essa linha de atualização, ou matéria-fluxo, é a de uma política ainda indefinida em seus significados porque o seu próprio sentido é um foco problemático; isso quer dizer: a questão "que política é possível a partir do pensamento deleuziano?" ainda está carente de resposta; essa tensão problemática deve ser mantida num primeiro momento. Manutenção que já é um índice de uma esquiva a respostas prontas e de um desejo de imprevisto; não pretendemos ser cômodos nem incômodos com esse jogo, queremos apenas desviar os olhares e a espera do óbvio. Retomemos, agora, o teor das questões que até o momento nos entretinha.

Em que sentido pensamos em uma política, comumente? No mínimo em dois, ação e organização, dois termos que carregam consigo, ainda mais em se tratando de política, uma conotação bastante voluntarista. Eis aqui um ponto problemático, mas o deixaremos em suspenso por ora. A estes dois termos aditam-se mais questões: se tratamos de ação, quem age?; se tratamos de organização, quem organiza?; se agimos ou organizamos, para quê?! Esses movimentos interrogativos pelos quais nos encontramos agora rodeados seriam facilmente sossegados se recorrêssemos à figura do Sujeito (figura, porque ela é intrinsecamente representativa). Porém, o Sujeito como unidade representativa é um alvo tão significativo para a filosofia da Diferença quanto fácil de acertá-lo e dissipá-lo; o Sujeito da representação não se mantém, sua fragilidade e imperfeição constituintes o subjugam e o ultrapassam, sem finalidade e sem sentido, sempre. A tríade que pretende definir o Sujeito (substância, representação, identidade) é paulatinamente diluída pela acidez do pensamento deleuziano ao longo de toda a sua vida filosófica. O Sujeito que representa e é representado não passa de um artifício, um artifício ruim. Mesmo a partir dessa desconstrução do "sujeito da representação" ainda nos restaria um "sujeito da ação", que poderia, de direito, abdicar, dos derivados da representação, o representante e o representado, e levar a cabo um "ativismo político", sob o qual a representação é sepultada, mas sobre o qual o sujeito permaneceria inteiro1. Nesse outro ponto a que chegamos, impõe-se outra questão: as ações de um sujeito definem-se desde o princípio como ações políticas? Parece óbvia que a resposta seja negativa, então, qual seria o elemento que nos permitiria definir as ações politicamente? Esse elemento parece ser a finalidade, com a condição de que essa finalidade intervenha num campo social; é o elemento da finalidade que define se uma ação é política ou não. Notemos, nesse entretempo, que ainda estamos tratando de uma política que não escapa do sujeito como referência (como um pólo lógico ou empírico). Qual seria, em última instância, a finalidade mais pertinente da atualidade quando colocados em relação o sujeito e a política, de um ponto de vista geral, evitando a abstração, senão a reivindicação de direitos individuais? (Poderíamos pensar em direitos de uma coletividade, mas quaisquer destes direitos só se efetivam se distribuídos individualmente). Com essa questão, nosso traçado crítico se configura da seguinte maneira: um encerramento da política entre os pólos do sujeito e da finalidade, que remonta ao sujeito, na forma de indivíduo. Essa é uma visão demasiado humana da política, nós sabemos; entretanto, haveria um outro sentido para a política que não este do interior de um confinamento subjetivo e teleológico? Essa questão nos leva certamente a um limite do significante político e são essas linhas limítrofes da política que pretendemos tornar mais claras.

 

A micropolítica: alguma impertinência

"Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica" (Deleuze, G., Guattari, F., 1996, p. 83).

Conceitualmente, essa proposição é um tanto precária, porque se tudo é político, logo, a política é tudo, e definir alguma coisa dessa maneira é absolutamente não defini-la, seria uma simples generalização, abstrata demais. A oração adversativa que segue essa definição é mais pertinente, todavia, ela inicia um campo polêmico que é o de uma micro-política, sendo que a polêmica estaria menos numa micrologia dos acontecimentos que no significante que lhe serve de companhia e de valor, a politização dessa lógica dos acontecimentos. De nossa perspectiva, o significante não tem qualquer relevância fundamental, bem como uma colcha de retalhos onde os retalhos são os significados, o significante é nada mais que as formas, as cores e as posições dos retalhos; se mudarmos os retalhos, a colcha não é mais a mesma. Assim, o que importa é que os significados sempre destituam os significantes, e que não permaneça, sob a invenção de uma micro-política, a sombra significante da macro-política, demasiado humana e avessa ao seu próprio estatuto de invenção (o preconceito do homem como ser político natural), ou ainda, uma política guiada pela fé de carvoeiro na liberdade da vontade do sujeito. No entanto, nos parece que em espaços e tempos dispersos (ou seja, ora aqui, ora acolá), é o próprio significante política que insiste em resistir à insurreição dos seus novos significados quando concernidos ao universo de um micro-logos, mantendo debaixo dessa sombra significante (ela é de fato uma sutileza) o bem-estar vicioso e viciante do círculo sujeito, finalidade, sujeito (indivíduo). Em suma, para que seja pensada uma micropolítica da imanência é preciso eliminar qualquer preeminência transcendente de um Sujeito, é preciso realçar a pureza da ação micropolítica (a-subjetiva). Essa precisão conceitual, que por si mesmo é crítica, nos permitiria escapar de um mal-entendimento das coisas desumanas que compoem esse nosso mundo e não tomar por micropolítico aquilo que é macropolítico. Não se trata de instaurar uma falsa polêmica, mas de desiludir os voluntaristas e reativos (para não dizer niilistas) de plantão que nos capturam como outros tantos "eus" que nos compõem, exatamente como Deleuze e Guattari alertavam para o microfascismo que se refugia em cada um de nós. Assim como o Bergsonismo a respeito do corpo, da matéria e da memória, podemos dizer que politicamente somos um misto mal analisado (Deleuze, 1999). Uma tarefa para a filosofia é justamente purificar essa mistura de naturezas distintas, a micro e a macropolítica, e privilegiar a parte boa, direita (qualquer alusão é uma falsa ironia). Esse percurso pode nos levar a um desenlace bastante radical, cujo signo poderia estar numa pergunta como esta: existiria uma política da Vida, dos Acontecimentos, da Diferença?

 

Sem sujeito e sem finalidade: ainda uma política?

Voltemos aos acontecimentos de maio de 68, já que é um exemplo conhecido de acontecimento micro-político, aos olhos de Deleuze e Guattari. Naquele tempo, o que houve de mais significativo certamente não fora a reivindicação de sujeitos pelo poder nem por garantia de direitos (nos referimos aos direitos formalizados), mas agenciamentos coletivos de enunciação e agenciamentos maquínicos de desejo que se expressaram na vontade e na prática de conviverem de uma outra maneira, à imagem e semelhança de uma liberdade. Antes de qualquer pensamento, ação ou reflexão, era preciso que a sensibilidade fosse outra, e parece ter sido exatamente o que acontecera naquela ocasião e que, até hoje, nos inspira tanto: milhares de pessoas, cujos rumores desabafavam obstinados: - não queremos mais viver do mesmo modo, não queremos mais qualquer poder e sim o quanto for de prazer em vivermos juntos. Esse clamor é certamente um fluxo revolucionário (é possível uma revolução despolitizada!), mas qualquer atribuição de subjetividade ou finalidade a esse fluxo é mera ilusão de molaridade (curioso anagrama de moralidade). O sujeito, unidade molar, só pode dizer sim ao próprio movimento ou essência das coisas (do Ser), matéria intensiva em diferenciação, atualização sensível das intensidades - nietzschianamente: o Homem dizendo sim à própria Vida. A afirmação pelo sujeito da própria diferença e multiplicidade vitais: essa é a ética que nos reclama, mas podemos nos perguntar, o que tem de política essa ação? Onde estão aí sujeitos da ação, cuja finalidade retorna aos indivíduos? Ainda, essa ação não pertence a uma micro-política (quando Deleuze e Guattari montam um esquema binário) ou ainda, essa ação não é uma linha de fuga, um fluxo ou quanta (quando Deleuze e Guattari montam um esquema ternário), ou melhor, ela é uma ação eminentemente micro-política na mesma medida em que ela abandona as coerções de uma subjetividade. A expressão "afirmação pelo sujeito" não significa "afirmação cuja causa é o sujeito", mas "afirmação que atravessa o sujeito". Dizermos, por exemplo, que é preciso que tracemos cada vez mais linhas de fuga em nossos diagramas sociais não passa de uma incorreção, senão de uma trapaça teórica.

Quiçá afoitos demais, chegamos num ponto crítico, qual seja, o de se questionar por que uma política que é de outra natureza é ainda designada política, a não ser sob o risco de conotar e aludir à macro-política, cuja marca de expressão mais forte é a de uma revolta da consciência em relação a um estado de coisas. Poderiam nos objetar que a vida é política em si mesma, que em seu seio se desenreda nada mais que um irredutível jogo de forças e dominação. Desse modo, a vida politizada se apóia na seguinte cadeia significante: forças-disputa-dominação. Aqui, dormita um grande mal-entendido, aquele que pretendemos desfazer, quem sabe entre tantos outros esforços, o de que aqueles signos não são políticos, são signos estéticos porque a vida é um fenômeno estético. O sentido (dominação) de um jogo de forças é nada mais que o desejo afetando-se, é uma questão de encontros, que somente por uma sobrecodificação (a finalidade para o Sujeito) pode adquirir um caráter político. (Não é por acaso que Espinosa escreveu uma Ética, e não uma Política).

"Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra" (Deleuze, G., Guattari, F., 1997, p.18). São esses os significantes que devemos corromper a cada novo trabalho, são armas de uma guerra que não é santa, nem quente, nem morna, nem fria, essa guerra é uma guerra imaginária, mas não é impotente. Caso não tomemos esse cuidado, corremos o risco de, a cada enunciado, ressuscitar o velho monstro que habita a língua: o estereótipo: o signo do poder (Barthes, R., 2007).

 

A máquina de guerra: para além da síntese suplementar

Os problemas se apresentam sempre desse jeito. Boa ou má, a política e seus julgamentos são sempre molares, mas é o molecular, com suas apreciações, que a "faz" (Deleuze, G., Guattari, F.,1996, p. 94).

Ao fim do Tratado de nomadologia, Deleuze retoma uma proposição que já havia sido colocada em Micropolítica e segmentaridade, a de que a máquina de guerra não tem por objeto a guerra. Por que então essa máquina é de guerra? Ela se transforma em máquina de guerra em duas circunstâncias, quando ela é capturada pelo aparelho de Estado, e quando ela reage aos movimentos de captura do aparelho de Estado. Num caso, sua natureza é destorcida ou manipulada, no outro, sua natureza é negativa. Deste modo, quando a guerra se torna o objeto da máquina essa síntese é apenas complementar, ela é fortuita. Ora, ainda nos resta a melhor parte que é a positividade de qualquer natureza, aquilo que a movimenta como causa sui, no caso da máquina de guerra, é a própria produção de um espaço liso e a distribuição de uma quantidade numérica sobre ele, cujo fim é o privilégio dos fluxos e das velocidades absolutas sobre este espaço: o nômade não quer deixar o deserto (ele não é imigrante), ele apenas povoa e amplia esse topos. Qualquer império é apenas um obstáculo para o nômade, não a sua condição. Aqui, já não vemos mais onde está a guerra, mas ainda sentimos a máquina, e mais, ousaríamos numa direção incisiva em dizer que a máquina que encontramos como pura forma de exterioridade é uma máquina de diversões (devir-infância?) como efeito de uma substituição potencializante da máquina de guerra. Diversão é a consistência daquilo que diverte, divertir é verter-se numa outra direção, a máquina de diversões corresponde à produção maquínica de clinamens, produção heterogênea de desvios. A máquina de diversões é uma máquina clínica ou analítica. O que nos interessa é mostrar que essa máquina é puramente ativa ou resignativa (não no sentido de passividade, mas no sentido de ação mínima), quem habita o espaço liso produzido por essa máquina está mais para Bartleby2 que para o Nômade, não há resistência direta: entre lutar e render-se o Nômade reage escolhendo lutar, entre lutar ou render-se Bartleby age minimamente dizendo "prefiro não".

Cremos que as relações entre máquina de guerra e aparelho de Estado são muito mais complexas hoje do que foram a milhares de anos3. A própria exterioridade geográfica é um ponto notável; outrora, era o alargamento territorial dos Nômades ou do Estado (primitivo) que tinha por conseqüência o enfrentamento de ambos; hoje, já não experimentamos este tipo de exterioridade. Máquinas se constroem dentro do Estado, e o próprio Estado já se degenerou em suas aparelhagens, é o Capital quem cerceia e controla a despeito das fronteiras. Aqui, podemos ver a encruzilhada medonha em que se encontram os resistentes ao Capital, os que aderem ao Estado (qualquer tipo de estriagem ou organização, mesmo as de formação estratégica) ou os que esquecem a política. O que tentamos mostrar até aqui é justamente o impasse que permeia essa encruzilhada, ou uma micro-política ainda supõe um Estado (micro), ou simplesmente ela não é política, queremos dizer, em ultima instância a micro-política deve deixar de rebelar contra e divergir, ou tergiversar, ou ainda criar qualquer tangente para além do ressentimento e da reação. Caso contrário, morreremos tristes no cerne de uma batalha infindável, a da revolta contra o status quo. A micro-política que Deleuze nos faz ver parece estar para além de toda revolta (ainda imantada num Estado), para além da consciência (a melhor arma do insurreto), no entanto, até que ponto nossos olhos deixam ver?

Em matéria de método intuitivo, ou a diferença é uma diferença de grau ou é uma diferença de natureza. Entrementes, o fato intrigante é o desprestígio da diferença de grau quando esta se torna consciente. Afinal, qual é o problema dos sujeitos em agir com vistas a um fim que remonte a individualidade? Qual é o problema em lutar pelos direitos individuais? Qual é o problema em lutar pelas minorias? Qual é o problema de lutar contra a injustiça, contra a miséria, contra o abuso de poder, contra a corrupção? Qual é o problema de lutar para além da Representação, para além da Universalidade, para além da Identidade? A existência de uma sociedade sem uma macro-política nos parece impossível, não porque ela é uma condição essencial da sociedade, mas porque nós, modernos, somos impotentes para abandoná-la. Podemos dispensar a boa vontade dos sistemas representativos, esgotados e corrompidos, em nome de um ativismo cada vez mais intenso, desde que não beire o fanatismo. A condição e a fórmula dessa política pode ser esta: podemos ir a todos os lugares e lutar por quem quer que seja: sem-terras, minorias raciais, gays, palestinos, o povo de Oaxaca, os índios da Amazônia, os monges de Mianmar etecetera e tal. Ainda assim, nossa primeira questão continuaria em pé, com uma pequena variação provocante: é essa a política possível no pensamento deleuziano? É possível sim, desde que desfeitos os mal-entendidos a respeito do que é macro e do que é micro-político, para não cairmos numa trapaça. Porém, já demos algumas pistas de que não é essa política que encontramos em Deleuze e que motiva esse texto, e até mesmo de que a potência revolucionária e subversiva da sua filosofia das multiplicidades, a despeito da estereotipia dos termos, não se expressa numa política, não importam as dimensões, mas numa estética da Diferença e das multiplicidades, cuja beleza se encontra num pensamento sem imagem e numa lógica dos acontecimentos (a-subjetiva, pré-individual). Sentir e pensar: é como inventar uma nova vida, é como viver num outro mundo.

 

Conclusão: para terminar num começo

Tornar-se um território propício ao desfile dos devires nos parece, sem dúvida, um fenômeno estético, e nos parece também que esse é um objetivo essencial da filosofia deleuziana, talvez o mais importante e notável; neste trabalho, esse objetivo é nossa linha mestra. É certo que esse objetivo, o de se tornar um território fértil, deva ser pensado como uma colocação subjetiva ou individual, talvez este seja o derradeiro ato político que aparece em Deleuze, não o ato, como se este fosse a apoteose de sua filosofia, mas uma discrição, um devir ou uma virtualidade. Sabemos que todas as partículas em velocidade, consideradas sob um desenvolvimento normal, em algum momento hão de precipitar, talvez esse seja um momento análogo àquele em que tantas possibilidades de um pensamento precipitam-se num uso dominante: a reivindicação do pensamento deleuziano pelos movimentos políticos, seja de um grupo ou de um pensador, parece corresponder exatamente ao momento precipitante. Entendemos as urgências sociais e planetárias, a calamidade que se exibe no abismo existente entre um miserável que se alimenta de papelão e um milionário que coleciona lipoaspirações; imaginamos o quanto um profissional da psicologia social não deve ter chegado até essa especialidade senão por um viés crítico e humanitário (esqueçamos qualquer sentido pejorativo desse adjetivo, pois sabemos muito bem o que sentimos diante da decrepitude humana, para o bem ou para o mal); compreendemos o sentimento de revolta que todo aquele que, por uma benção ou fatalidade, alguma vez nessa vida tomou consciência da condição e circunstâncias humanas. Como num momento delicado, no qual a gagueira precede a notícia, não sabemos muito bem por onde começarmos. Certamente não diríamos que o pensamento de Deleuze não serve à consciência insurreta, nem que essa não é o melhor acolhimento das suas idéias, mas estamos tentados a usar, pela primeira vez, um artigo definido e dizer que no (e não num dos) pico mais intenso da sua filosofia, onde ferve o afecto mais perturbador da sua arte, o presente desfere um golpe mortal no seu passado, o esquecimento consome o destino daquele que desfrutava de um rosto, o emprego, o próprio nome, a mágoa e a esperança, qualquer horizonte, a vida ordinária, tudo isso se esvai. Um brutal acontecimento. Não há restituição ulterior possível. Ele nos colocou nalgum instante na corredeira da vida. Não é possível nos tornarmos reformadores, o que nos cabe é transformar, transfigurar; não podemos mais criar um partido, mas podemos agregar amigos; não podemos mais convencer os mais fortes de sua fraqueza e tampouco os mais fracos de sua força, nos foi roubado o fundamento, o argumento, o julgamento, o ressentimento, a redenção. Desapegamos de nós mesmos e nos apaixonamos pelo que acontece, desperdiçamos nossa vontade e mergulhamos no desejo, nos matam a cada dia e no dia seguinte renascemos em todo lugar, nos tornamos a vida e a vida não morre. Eis a nossa beleza, eis a nossa alienação; ainda nos resta sentir, ainda nos resta pensar, ainda nos resta sonhar. Não temos nem habitamos alguma polis, nos falta o sujeito e a alteridade, nos falta a comunicação, somos ninguém fitando os olhos de outrem, fabulando a imagem de um mundo deserto, a espera do povo porvir... somos solidão... povoada. Morreremos sentados4, mas sorrindo!

 

Segunda conclusão: para não parecer que o começo é um fim

Nossa interpretação dos movimentos e idéias deleuzianas não quer acomodar os ânimos. Cremos ter deixado isso bem claro desde o início. O desconcerto que o filosofar deleuziano suscita e as possibilidades que ele prenuncia na maior parte das vezes assustam, outras vezes irritam, outras ainda comovem, e outras tantas consolam. Mas esse não é o sentimento daquele que escuta "não seja mais o mesmo, não queira mudar o mundo, e não diga que viver não vale a pena"? Vivemos desde há muito tempo sob o conforto das certezas, principalmente aquela que guarda o porquê das nossas vidas. Deleuze não foi apenas mais um a dizer "que razão queremos para viver, se já temos a melhor de todas em estarmos vivos"? Esse é, certamente, um pensamento dos mais singulares, dos mais profundos, e por que não dos mais horríveis. Não é esse o abismo que separa o pensamento filosófico das coisas demasiado humanas, e no qual as cruzadas políticas que intentam amarrar os nós de um lado e do outro são engolidas? Sabemos que a questão é delicada, e aprendemos a temer o tirano que pode estar por detrás de "pensamentos profundos e horríveis", mas não podemos descuidar, o consenso contra o "mal" também tiraniza. O ser humano sempre foi um pescador de ilusões até que um dia lhe disseram uma coisa dessas, "deus e o homem estão mortos", e tudo isso justamente para lhe devolver a inocência. Mas, desde então, vivemos num embaraço, numa espécie de delírio, por vezes muito desiludidos e cansados, por outras vivazes e desejantes. Deveríamos estar felizes, porque Nietzsche (1944-1900) jogou todas as fichas e ganhou; nós podemos ser, depois de tantas cargas e lutas, uma criança novamente. No entanto, bem como uma criança, estamos ou estupefatos ou distraídos demais para agradecer o presente que nos foi dado; não nos atiramos ainda à experiência dessa nova vida, que é a da reinvenção da brincadeira com as ilusões. A "verdade" de que não estamos no comando do barco da vida e de que o oceano é o grande senhor não impede que imaginemos nossas aventuras: temos ainda terras a serem descobertas, tesouros escondidos, inimigos para guerrear, amigos para conquistar e, acima de tudo, o contentamento de sentir o vento e a liberdade de horizontes sempre à espera. As "grandes verdades" destroem apenas as "grandes mentiras", mas não as grandes ilusões, estas são as maiores riquezas e brindes dessa nossa vida. Se existe um grande desafio ao nosso tempo, deve ser o de reinventar as ilusões sem a má companhia das mentiras, deve ser o de achar que realmente transformamos a realidade, que nossos fracassos e sucessos realmente existem, que somos torpes nalgum momento e sublimes num outro. Ser humano é poder iludir-se e o niilismo moderno é a diminuição dessa potência, cujo sintoma é a busca de uma certeza, ou seja, a maior das mentiras. Se a clareza nos foi permitida pelas armadilhas da linguagem é possível compreender que Deleuze foi mais um a nos presentear com "verdades" e não com certezas, e cabe a nós continuar a mais séria das brincadeiras - ser humano.

 

Notas

1. Ver Revisitando os intelectuais e o poder, Renato Janine Ribeiro em Gilles Deleuze: uma vida filosófica.

2. Personagem de Herman Melville em Bartleby, o escriturário: uma história de wall street.

3. Ver Post scriptum: sociedades de controle em Conversações, Gilles Deleuze.

4. "Morrer sentado" é uma alusão ao esgotamento beckettiano em L'èpuisé, Gilles Deleuze.

 

Referências

Alliez, E. (2000). Gilles Deleuze: Uma vida filosófica. Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]

Barthes, R. (2007). Aula. São Paulo: Cultrix        [ Links ]

Deleuze, G. (1992a). Conversações. Rio de Janeiro. Editora 34.        [ Links ]

Deleuze, G.(1992b). L'épuisé. In S. Beckett, Quad et autre pièces pour la télévision (pp. 55-112). Paris: Editions de Minuit.        [ Links ]

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Deleuze, G. (1999). Bergsonismo. Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari. F. (1996). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia (5ª ed., Vol. 3). Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari. F. (1997). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). Rio de Janeiro: Editora 34.        [ Links ]

 

 

Recebido em 3 de janeiro de 2008
Aceito em 1º de outubro de 2008
Revisado em 15 de outubro de 2008

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