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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.9 n.2 Fortaleza jun. 2009

 

RESENHA

 

 

Tropa de Elite

 

 

Autor da resenha
Jardel Sander

Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professor adjunto III da PUC-MG, pesquisador em processos de subjetivação, movimento corporal e performance. Integrante do grupo Zona de Interferência. End.: R. Walter Ianini, 255, São Gabriel. Belo Horizonte, MG. CEP: 31950-640. Email: jardelss@gmail.com

 

 

 

Título Original: Tropa de Elite
Gênero: Ação
Tempo de Duração: 115 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2007

 

Tropa de quem?

Tropa de Elite não fala somente - talvez nem prioritariamente - do tráfico e do combate a este. Fala, sobretudo, da corrupção, e de uma intolerância absoluta a esta. Tão absoluta que beira o fascismo. Só não é o fascismo propriamente dito, porque cremos que aqui, em terras tropicais, esta modalidade de violência não grassa. Na verdade, temos uma violência tropical - um fascismo tropical? - que poderíamos caracterizar como "os excessos da malandragem". Mesmo porque não temos nada contra a malandragem; o problema são seus excessos. E é o combate aos excessos que o filme mostra. E como em nosso país o excesso da malandragem - cujo efeito é a corrupção - anda a mil, a tarefa é árdua. Portanto, poderíamos pensar que nada mais "compreensível" que um outro tipo de excesso para fazer jus a tamanho desafio. Logo, o que vemos é um excesso da violência enquanto produto de uma "indispensável" disciplina.

Reiteramos: o filme trata da corrupção. Trata também, de um modo de "enfraquecê-la", pô-la para fora, ou melhor, que ela peça "para sair"1. Contra a corrupção, a disciplina. Nosso país, sua malandragem, seus excessos: falta de disciplina! Ou melhor, para que a pequena malandragem possa sobreviver, temos que combater a grande malandragem, logo, a grande sacanagem, isto é, a corrupção.

Roberto DaMatta nos esclarece sobre a malandragem,

(...) que não é só um tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade, mas também, e sobretudo, é uma possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas, e - também - um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais. (DaMatta, 1991, p.103)

A malandragem parece ser um desses nossos produtos típicos, ao lado da feijoada, da cachaça e do samba. Inclusive, são eles ingredientes de um mesmo prato, compondo uma velha mitologia da favela, a vida no morro: pobre, colorida, sorridente, gingada e... cadenciada ora pelo pandeiro, ora pelos tiros. Claro que os ingredientes que temperam a malandragem brasileira não são exclusividade da favela, como somos muitas vezes (ingenuamente) levados a pensar; mas ao contrário, tal como evidencia Hélio Pellegrino, nos idos dos anos 1980, mas que mantém ainda sua atualidade: a corrupção permeia diversas relações da elite, neste caso econômica. Nas palavras do autor:

A criminalidade do povo pobre é, pelo menos, uma resposta desesperada, e se faz fora da lei - contra a lei. Pior que ela é a delinqüência institucionalizada dos ricos, dos banqueiros, dos que lucram 500 por cento ao ano, dos que se locupletam com a especulação desenfreada, dos que entregam a soberania nacional à voracidade predadora da finança internacional. (Pellegrino, 1987, p.204)

O que aparece no filme é uma delinquencia difusa, que é protagonizada por alguns "pobres", mas sustentada pela classe média, de alguma forma.

Mas devemos ir mais devagar, pois o filme não permite interpretações rápidas. De fato, ele afeta distintamente às diferentes pessoas que o assistem. O interessante é que foi um grande sucesso de público, tanto nas camadas de renda mais baixa da população, quanto na classe média. Outro fato curioso: o filme circulou antes do seu lançamento através da pirataria de DVDs. O que nos remete novamente ao que afirmávamos acima: a questão não é a malandragem, mas seu excesso...

Portanto, talvez devêssemos perguntar-nos, antes de mais nada, sobre o que ou em que este filme nos afeta. Mais especificamente: como este filme me afeta? O que ele me convoca? Qual desejo ele me desperta? Porque, afinal, não podemos negar: ele tem um efeito catártico. É uma purgação. Uma maneira, frequentemente explorada pelo cinema norte-americano, de purgarmos velhos fantasmas. E quais seriam os fantasmas que estamos querendo purgar? Não seria uma forma de purgar o velho fantasma da tortura, tão presente em nossos governos militares? Purgá-la, ao fazê-la retornar justificada, podendo finalmente ser mostrada, agora servindo a uma nova lei-e-ordem, desta vez perfeitamente "justa" - a tão combatida luta contra o tráfico? Afinal, traficantes não têm consciência política, não é mesmo? São cruéis, desumanos etc. Portanto, a tortura parece justificar-se aí, permitindo-nos engolir melhor aquela outra - a dos anos de chumbo2 - já tão criticada, se bem que insistentemente atenuada, em manobras que troçam da nossa inteligência.

Mas a tortura que vemos como espectadores, fala-nos da nossa vontade. E o preocupante é se estamos sendo seduzidos e capturados por uma nossa faceta inconsciente e regressiva que o filme explora: nossa fantasia infantil de ver o mundo organizado entre O Bem versus O Mal, vê-los personalizados e identificados, e, por fim, vermos senão o bem vencer, pelo menos vê-lo forte, combativo, realista e tão efetivo quanto o Mal. Este filme nos convoca uma "esperança" para além das ingênuas ilusões do bem-vence-o-mal. Ativa nossa fantasia infantil, mas chega num realismo bem adulto, bem pé-no-chão.

Por isso, é preciso que fique bem claro: o filme não permite simplificações. Mesmo que seja maniqueísta, ele não executa uma simples divisão entre o bem e o mal. Ele efetiva uma clara distinção entre O Bem e O Mal, mas não simples. Ele integra, como falávamos acima, nossa conhecida malandragem, à perspectiva do policial, que não é ingênuo, que "saca" o que acontece na polícia, na favela, e na relação entre ambos. Mas ele não usa disso para o seu próprio proveito; mas para executar sua missão. Este é o ponto alto do filme. Não é um herói comum; tampouco um anti-herói (tão comum em terras tupiniquins). Ele é um justiceiro "malandro". Ou melhor, é um solucionador de problemas que age. Um homem de ação, não de palavras, que congrega a rigidez disciplinar do cumprimento de sua missão, com a percepção muito clara de "como que as coisas funcionam" - eis a sua malandragem.

Pois, seguindo a definição de DaMatta citada acima, podemos dizer que à polícia em nosso país cabe o cumprimento de uma ordem absurda, talvez mesmo impossível: o controle social, numa sociedade altamente injusta e desigual. Quem nos informa dessa tarefa é Hélio Luz, chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro em meados dos anos 1990, num documentário - Notícias de uma Guerra Particular - que serve como uma espécie de antítese3 ao Tropa de Elite. Em sua fala, como exemplo de extrema lucidez - lucidez esta que lhe custou o cargo - afirma com todas as letras: "A instituição que existe [polícia] foi criada para ser violenta e corrupta. (...) A polícia foi feita para fazer segurança de Estado, e segurança da elite." (in Lund e Salles, 1999)

Afinal como pensar em democracia numa sociedade cuja classe média deseja, segundo Milton Santos (2004), privilégios e não direitos? Ou ainda, na menção que Walter Salles (2006) faz à tese de Lester Thurow (economista do MIT), que afirma que nosso país não conta nem mesmo com uma elite, mas apenas com oligarquias?

Porém não devemos nos enganar, pois isso não apaga nosso senso de justiça, só nos turva um pouco a visão. E parece que ultimamente não estamos muito preocupados e dispostos a nos envolver com discussões sobre ética, queremos que "algo seja feito", queremos ação.

E talvez seja justamente por isso que Tropa de Elite tanto nos desperte: por ser um "filme de ação". Para além da mais imediata obviedade, devemos nos deter na própria idéia de ação. Aliás, não na idéia, mas no nosso anseio por ação. Afinal, o clima geral que se veicula na mídia - e isso já há muitos anos - é que, no cenário político-resolutivo, nosso país vive em pleno imobilismo. Nada se faz! Acreditamos nessa história, e pensamos que o Brasil é o país onde nada se faz. E então vamos ao cinema, assistir a um filme brasileiro, sobre duas das mais insolúveis questões nacionais - a criminalidade e a corrupção - e o que vemos lá? Um filme onde a ação impera.

Tropa nos traz a pura ação. Sem mediações, logo, sem reflexões. Capitão Nascimento - o protagonista - não é um homem dado a reflexões; mas sim a estratégias. Ele sabe exatamente o que deve fazer, não titubeia, não vacila, não tem falsas ilusões - diferentemente de um certo pensamento sociologicamente comprometido para com a população das favelas, que é criticado nas entrelinhas do filme. Capitão Nascimento, como exemplo paradigmático do BOPE, age. Em momento algum ele mergulha num questionamento sobre a situação que ele combate: o tráfico nas favelas do Rio de Janeiro, e as vidas aí envolvidas. Quando se aproxima, no único exemplo que aparece no filme - quando ouve a queixa da mãe que deseja enterrar o filho morto - é com uma sensação de vertigem, como se fosse desmoronar. A essa sensação responde, novamente, agindo: sobe o morro, tortura, procura o corpo.

O Capitão sabe das causas, mas na exata medida em que lhe serve para agir: sabe da engrenagem das polícias (comum e especial), sabe da dinâmica da favela, da relação com a vida civil e suas complicações. O capitão não questiona; ele age. Ele conhece a corrupção, mas isso não é um impedidor da ação; mas um chamado a novas estratégias. Entrar no sistema, usar dele, para que ele sirva.

Perfeito, não? Aliás, aparentemente sintônico com a idéia de estratégia de Michel Foucault, que inclusive é citado no filme, numa aula de faculdade, dentro do mundo daqueles que não agem, ou melhor, que nada mudam: a juventude de classe média, que figura no longa de Padilha como confortável consumidora das drogas que criminalizam as populações das favelas.

No entanto, este universo onde as coisas funcionam, onde a justiça parece se impor através da ação, tem um problema: ele lembra a alguns um modo de agir que já é nosso velho conhecido no Brasil, bem como em toda a América Latina: a tortura. O filme embaça um pouco nossa visão, pois o torturador é um sujeito aparentemente ético, marido, pai de família, que está cumprindo sua missão. No entanto, ele é um torturador. E é talvez aí que nosso sonho infantil de ver O Bem e O Mal distinguidos e claramente visíveis se esvai, cai por terra. Ou melhor, cai na real! Afinal, o torturador não é O Mal? E a tortura, de que nos serve? E o mais incrível é que temos prática: devemos ser o país da América Latina que foi melhor treinado, na época da ditadura militar (anos 1960-1970), a torturar. E o BOPE talvez seja um herdeiro dessas técnicas - uma polícia especial criada, no DF em 1971, e no RJ em 1978.

Será isso o que queremos: identificar o mal e fazê-lo falar? Mas, mesmo considerando essa horrorosa estratégia, será que conseguiremos ouvir? Será que podemos entender? Ou só sabemos agir?

Poderíamos finalizar questionando o puro ímpeto de ação, em detrimento da reflexão, mas creio que isso não "cola" mais. Os jornais televisivos, os folhetins sanguinolentos nos desautorizam a esse luxo - se bem que seja imprescindível. Por isso, gostaríamos de deixar uma outra provocação: esta tropa serve a que? Melhor: esta tropa serve a quem? Qual o benefício que traz, e quem se beneficia dele? É uma tropa de elite ou uma tropa da elite? Afinal, o problema está na não execução da tarefa, ou na própria natureza dela - controle e manutenção de uma sociedade brutalmente desigual?

"Polícia para quem precisa...", cantam os Titãs. Quem precisa e de qual polícia? Como precisamos da polícia? A quem ela deve servir?

Pensemos um pouco antes de agir. Ainda é possível. Talvez, então, possamos agir melhor.

 

Notas

1. A frase utilizada no filme é: "Pede para sair!". Frequentemente utilizada na parte da história que trata do treinamento de novos aspirantes ao BOPE, e refere-se a uma pressão que os instrutores impunham a estes aspirantes, com o que visavam "separar o joio do trigo".

2. A expressão "anos de chumbo", no Brasil, refere-se ao período mais duro da ditadura militar, sobretudo do final de 1968 ao término do governo Médici (1974), época em que a tortura era prática largamente utilizada, em nosso país, nos interrogatórios a membros de oposição ao regime. No entanto, sabe-se hoje que a tortura marcou todo o governo militar, desde sua implantação, em 1964, até pelo menos a anistia, em 1979. Cf. Arns, Dom Paulo E. (1996) Brasil nunca mais. 36.ed. Petrópolis: Vozes.

3. Interessante notar que Notícias de uma Guerra Particular, documentário de João Salles, de 1999, traz justamente o depoimento de Rodrigo Pimentel, na época policial do BOPE, que posteriormente saiu da corporação, sendo co-autor de um livro - Elite da Tropa -, que serviu de base para o filme de Padilha (Tropa de Elite).

 

Referências

Arns, Dom Paulo E. (1996). Brasil nunca mais (36a ed.) Petrópolis, RJ: Vozes.        [ Links ]

DaMatta, Roberto. (1991). O que faz o brasil, Brasil? (4a ed.). Rio de Janeiro: Rocco.        [ Links ]

Lund, K., & Salles, J. (Diretores). (1999). Notícias de uma guerra particular [Filme-vídeo]. Brasil: Videofilmes.        [ Links ]

Pellegrino, H. (1987). Pacto edípico e pacto social. In L. A. Py (Org.), Grupo sobre grupo (pp.195-205). Rio de Janeiro: Rocco.        [ Links ]

Salles, W. (2006, 9 fevereiro) Os Idiotas. Folha de São Paulo,Caderno Tendências e Debates.        [ Links ]

Santos, M. (2004, setembro). Entrevista Milton Santos. Revista Fórum (19).        [ Links ]

 

 

Recebido em 06 de março de 2009
Aceito em 17 de março de 2009
Revisado em 22 de abril de 2009

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