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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza dez. 2010

 

RELATOS DE PESQUISA

 

Teatro e formação cultural: limites e possibilidades da arte da representação como testemunho do sofrimento

 

 

Cynthia Maria Jorge VianaI; Kety Valéria Simões FranciscattiII

IGraduação em Psicologia (UFSJ). Mestranda do Programa de Mestrado em Psicologia (PPGPSI/UFSJ). Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (LAPIP/UFSJ). Bolsista REUNI/CAPES. End.: R. Ver. Eli Araújo, 321, apt. 103, Fábricas. São João del-Rei-MG. CEP: 36301-202. Email: cynthiapsicol@gmail.com
IIDoutora em Psicologia: Psicologia Social (PUC/SP). Professora Adjunta do Departamento de Psicologia (DPSIC/UFSJ) e do Programa de Mestrado em Psicologia (PPGPSI/UFSJ). Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (LAPIP/UFSJ). End.: R. Imigrante Marcos Davin, 180. Colônia do Marçal/ Nascente do Sol. São João del-Rei-MG. CEP: 36.302-264. Email: kety.franciscatti@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir sobre a formação do indivíduo por meio do entrelaçamento entre o conhecimento científico e o artístico. A articulação e contraposição entre estes conhecimentos foram fundamentadas na investigação de grupos de teatro amador em que participavam universitários. Tendo como referencial a Teoria Crítica da Sociedade, investigaram-se as dimensões do processo de criação artístico da obra teatral e a importância dos microgrupos e de vínculos afetivos que resguardassem algo do movimento formativo. Além da sistematização do marco teórico e do referencial sobre a tradição teatral sanjoanense, foram escolhidos três grupos de teatro amador da cidade para acompanhamento dos ensaios e das apresentações. Durante este processo, realizaram-se entrevistas com diretores e atores universitários a partir de um roteiro pré-elaborado. O registro das observações foi feito em diários de campo. Com o acompanhamento dos grupos, foi possível perceber que eles se diferiram quanto às técnicas de representação, conteúdo dos espetáculos, dinâmica grupal e de criação artística. Quando privilegiavam o contato afetivo, proporcionavam - de algum modo - identificação e diferenciação e se tornavam espaços privilegiados à formação. Mas, ao abdicarem de sua função psicossocial - de propiciar momentos não ameaçadores relacionados à possibilidade de experiência -, tornavam-se reprodutores de sofrimentos. Resguardada a tensão forma e conteúdo, a arte revela sofrimentos desnecessários: mutilações que afligem a humanidade. Porém, se a forma aparece como conteúdo, mesmo quando algo da expressão salta, o potencial crítico da arte se reduz. Isto parece estar refletido de alguma maneira nos grupos observados, que imersos na ideologia da sociedade industrial, acabam traindo a fidelidade que a expressão mantém com a moção pulsional e reproduzindo aquilo que a arte poderia revelar como testemunho e negação da realidade.

Palavras-chave: Teoria crítica da sociedade. Indivíduo. Grupos. Expressão. Processo de criação artístico.


ABSTRACT

This research report aims at considering individual formation by means of intertwining scientific and artistic knowledge. Such thoughts have been both contrasted and articulated on the grounds of investigations carried out with amateur theatrical groups in which college students have taken part. Critical Theory of Society have served as a framework for investigating the dimensions of the process of artistic creation of theatrical performances and the importance of micro-groups and its affective associations related to development process. Besides carrying out systematic arrangements for the theoretical foundations and the main theme surrounding São João del-Rei's theatrical tradition, three amateur theatrical groups have been chosen to be observed during their rehearsals and performances. During this process, interviews have been conducted with directors and college actors based on a pre-developed script. Results from such observations were registered on field diaries. Through group observations, it has been possible to realize that they differed as for the techniques employed for playing, the content of the plays, the group dynamics and the artistic creation. When provided the privilege for affective contact, the groups - somehow - also provided identification and differentiation, which would then become privileged settings for cultural development. However, by abandoning their psychosocial role - of providing non-threatening moments related to the possibility of experience -, they would become reproducers of suffering. Once the tension between shape and content is properly kept, art reveals unnecessary sufferings: mutilations that inflict the mankind. On the other hand, if the shape appears as the content, even though part of the expression becomes outstanding, the critical potential of art gets reduced. That seems to be somehow reflected on the observed groups, that once immersed in the industrial society's ideology, end up betraying the fidelity held by expression with instinctual drive and reproduce what art could reveal as a denial and testimony for reality.

Keywords: Critical theory of society. Individual. Groups. Expression. Process of artistic creation.


 

 

O teatro, [...] é uma arte difícil. Não se exige de um teatro amador perfeição. Contudo, na medida em que tenha a veleidade de se dirigir a um público maior - que ultrapasse o círculo dos parentes e amigos -, impõe-se uma dedicação mais séria. Sem trabalho intenso, também devotado à ampliação cultural, mesmo se fosse apenas por razões de disciplina, sem esse empenho o espetáculo amador, destinado a apresentar peças de qualidade, geralmente colherá só o aplauso dos parentes e amigos e o silêncio cortês daqueles que amam o teatro (Anatol Rosenfeld).

 

Introdução

Este artigo, ao propor a articulação e a contraposição entre o conhecimento proporcionado pela ciência, em especial a psicologia, e o conhecimento proporcionado pela arte, discorre sobre alguns elementos acerca da formação cultural (individuação) tendo como foco investigativo a observação de grupos de teatro amador, da cidade de São João del-Rei/MG, selecionados mediante a participação de universitários em seu elenco1. Considera-se, com base na Teoria Crítica da Sociedade, que a articulação destes dois conhecimentos potencializa a psicologia em sua investigação sobre os impedimentos objetivos e subjetivos à constituição da subjetividade, uma vez que a arte é um conhecimento crítico da sociedade e traz à memória uma humanidade que, por não cumprir suas promessas de gratificação e de segurança, ainda não se realizou.

Neste sentido, diante das condições atuais, que na análise dos autores frankfurtianos está regulada pelo princípio da dominação e que culmina na intensificação da barbárie, a formação do indivíduo encontra-se cada vez mais obstada. Assim, a fim de investigar os possíveis danos à formação cultural, a pesquisa aqui relatada está circunscrita ao estudo de aspectos que perpassam a dinâmica grupal - com atenção a importância dos microgrupos e de vínculos afetivos que resguardem algo do movimento formativo - e a investigação dos elementos do processo de criação artístico da obra dramatúrgica possíveis de serem observados nos grupos selecionados.

Na discussão acerca da formação do indivíduo e da questão da participação da psicologia na efetivação desta, faz-se necessário mencionar que o conhecimento proporcionado por esta ciência e o advindo da Arte são diferenciados, mas mantêm pontos de contatos e trazem reflexões preciosas para problematizar o objeto por excelência da Psicologia: o indivíduo. Dessa maneira, a observação de alguns grupos de teatro amador da cidade de São João del-Rei contribui com o aprofundamento da reflexão sobre como, nos dias atuais, a (im)possibilidade de formação cultural vem se apresentando. Também com esta investigação, é possível perceber outros aspectos que perpassam o trabalho destes grupos que, além de reproduzirem algo da esfera do mundo do trabalho, interferem no processo de criação das peças.

 

A formação cultural e os microgrupos: aspectos acerca da (de)formação

Os autores frankfurtianos, Horkheimer e Adorno (1956/1973a), no livro Temas básicos da sociologia, quando discutem o conceito de indivíduo, revelam que o estudo da relação entre indivíduo e sociedade é visto a partir do entendimento da vida humana como convivência. Para eles,

[...] a mera existência natural do indivíduo já está mediatizada pelo gênero humano e, por conseguinte, pela sociedade; mas 'stricto sensu', 'indivíduo' significa algo que não é apenas, a rigor, a entidade biológica. O indivíduo surge, de certo modo, quando estabelece o seu eu e eleva o seu ser-para-si, a sua unicidade, à categoria de verdadeira determinação. [...] Só é indivíduo aquele que se diferencia a si mesmo dos interesses e pontos de vista dos outros, faz-se substância de si mesmo, estabelece como norma a autopreservação e o desenvolvimento próprio. (p. 51-52; grifos no original).

Com base nesta perspectiva, o conceito de indivíduo só pode ser entendido como mediação social, o que significa dizer que a sua existência já está mediatizada pela objetividade. Assim, entender a sociedade e o indivíduo como categorias sobredeterminadas significa que tal processo deva ser pensado levando em consideração a relação existente entre natureza, cultura e homens. A natureza humana, pensada como algo constituído historicamente, mesmo sendo determinada por condições sociais objetivas, precisa superá-las para que a sua realização, ou seja, para que a formação do indivíduo realmente aconteça. Para que tal processo seja efetivado, faz-se necessário que os homens tenham possibilidades de conhecer as determinações sociais e históricas que os formam para que, assim, alcancem a autodeterminação: por meio dos processos de identificação e diferenciação, ser possível a cada um tomar a si próprio como objeto de reflexão. Neste sentido, Adorno (1959/1986) afirma que a formação cultural é a apropriação subjetiva da cultura e, é este movimento de tornar-se próprio por meio da introjeção da cultura e da aproximação e contato afetivo com pessoas insubstituíveis, que possibilita ir para além da simples adaptação à vida tal como ela se apresenta, aprisionada à autoconservação.

Porém, este autor destaca o duplo caráter da cultura: ao mesmo tempo em que esta remete à objetividade, intermedia e reforça a pseudoformação também chamada de semiformação. Em uma organização social que privilegia o todo em detrimento das partes, impedindo a elaboração do medo e do sofrimento e exigindo sacrifícios cada vez mais violentos que ratificam a dominação, torna-se mais correto falar de uma pseudoformação ou semiformação. Citando Adorno (1959/1986, p. 177-178): "quando o campo de forças a que chamamos formação se congela em categorias fixas, sejam elas do espírito ou da natureza, de transcendência ou de acomodação, cada uma delas, isolada, coloca-se em contradição com seu sentido, fortalece a ideologia e fomenta uma formação regressiva ou involução" 2. Como consequência do não cumprimento das promessas da cultura - gratificação e segurança -, a formação que diria respeito a um estado de homens livres e iguais, vem dando lugar ao progresso irrefreável da dominação enquanto dominação dos homens sobre a natureza interna, a natureza externa e sobre os outros homens. Tal progresso, segundo Franciscatti (2005), mantém e aprimora as formas de barbárie, dificulta o reconhecimento dos homens como mediação social e obstrui cada vez mais as possibilidades de individuação.

Para os autores frankfurtianos, estaria na possibilidade de autoreflexão crítica, vestígios para pensar as mutilações que se impõem aos homens e remetem às mazelas da vida em sociedade. A autoreflexão, ao resguardar indícios de liberdade e felicidade, aponta para capacidade do homem de ser objeto do seu próprio pensamento: "[...] o homem por ser sujeito deve voltar a si mesmo como objeto para conhecer e ir além de suas determinações". (Franciscatti, 2002, p. 132). Neste sentido, a ciência psicológica deveria se preocupar em ser esclarecedora e ter como meta indicar o que impede o processo de individuação, pois "se objetividade humana é a sua subjetividade, para permitir maior objetividade ao conhecimento a psicologia deve trazer como tarefa a reflexão sobre a subjetividade". (p. 132). Assim, pensar a subjetividade significa nomear o que impede, tanto subjetiva quanto objetivamente, a realização do indivíduo. Enquanto a psicologia tamponar o sofrimento e colocar em seu lugar uma falsa autonomia, continuará afirmando o indivíduo como caricatura. Diante deste estado de coisas, a ciência psicológica, em seu entrelaçamento com o conhecimento proveniente da arte, pode lançar luzes à compreensão da obra a ser realizada pela humanidade - uma vida justa e livre.

Desse modo, pensar os grupos como as instâncias de mediação entre a universalidade e a particularidade - no caso da pesquisa aqui relatada, grupos de teatro amador, o que ratifica a articulação entre psicologia e arte -, torna-se importante já que estes, além de ser foco privilegiado de investigação da Psicologia, sejam responsáveis pela introjeção da cultura e tenham a possibilidade de permitir a constituição de subjetividades diferenciadas. Horkheimer e Adorno (1956/1973b), quando examinam o conceito de grupo, definem os microgrupos como espaços em que o contato entre as pessoas ocorre de maneira direta e imediata, ou seja, aqueles grupos em que os indivíduos têm experiências de si por meio da proximidade com seus semelhantes. Estes grupos cumprem uma função psicossocial bastante específica quando privilegiam momentos afetivos e não ameaçadores que podem proporcionar a identificação e a diferenciação que, como exposto, são condições imprescindíveis à autoreflexão crítica. Nas palavras de Horkheimer e Adorno (1956/1973b, p. 71), "[...] nos microgrupos, os indivíduos podem ter experiências de si próprios como pessoas particulares, simultaneamente vinculadas a outras pessoas, mas insubstituíveis por estas". Esta discussão é fundamental para se pensar as mediações que estão presentes em um grupo de teatro amador: instâncias que podem apresentar características de um microgrupo ou reproduzir predominantemente a dinâmica de funcionamento de macrogrupos, principalmente aqueles ligados diretamente ao mundo do trabalho. Nos macrogrupos, "o ajustamento é frequentemente forçado, sem uma compensação que devolva ao indivíduo, no plano emocional, aquilo que ele dá. O vínculo do puro interesse prepondera sobre toda e qualquer outra emoção e dá ao grupo sua tônica". (p. 72).

Considerando a premência da autoconservação, pensa-se o quanto os grupos de teatro observados podem ceder à sua função e se transformarem em reprodutores de sofrimentos e da racionalidade tecnológica que mantém esta ordem social. Deste modo, mesmo estas instâncias de mediação podem ficar aquém quando repõem a dinâmica social e reforçam a passagem da mediação universal - que deveria ser baseada na troca - pela dominação imediata, símbolo máximo da eliminação do sujeito. Para Adorno (1951/1993, p. 132), "[...] através dessa dissolução no próprio indivíduo de todo elemento mediador, graças ao qual ele ainda era um pouco de sujeito social, ele se empobrece, se embrutece e regride ao estado de mero objeto social". O indivíduo, reflexo da lei social que remete à exploração, deve o seu fracasso enquanto (im)possibilidade de existência à decadência da própria cultura, que caminha sozinha, a passos largos, rumo ao seu fim. Porém, diante de todas as cicatrizes, àquele que ainda tiver fôlego para buscar sua emancipação - que é sentida na particularidade, mas só pode ser realizada no todo social - resta a certeza de que: "[...] não possui nenhum conteúdo que não seja socialmente constituído, nenhum impulso transcendendo a sociedade que não vise conseguir que a situação social transcenda a si própria". (p. 132).

 

O processo de criação artístico: a tensão forma e conteúdo e o conceito de expressão em Theodor W. Adorno

Em Teoria Estética, obra não totalmente sistematizada e publicada postumamente, Adorno (1970/1988) apresenta alguns aspectos importantes que elucidam as potencialidades da arte no estudo da subjetividade. Ao discutir a teoria kantiana e a teoria freudiana sobre arte e, em uma reflexão mais próxima às contribuições deste último, ele afirma "ser plausível extrair a definição do que é arte a partir de uma teoria do psiquismo". (p. 19). Sem desconsiderar a importância dos estudos freudianos sobre o simbolismo do sonho e da neurose - que na concepção adorniana é um estudo mais proveitoso no campo psicológico do que no campo da estética - para Adorno, torna-se necessário o entendimento das obras de arte para além das projeções e conflitos inconscientes daqueles que as produzem. Segundo este autor, a arte como "antítese social da sociedade" (p. 19) leva a considerar a precisa tensão entre os elementos objetivos - a realidade da qual a arte deduz - e os aspectos subjetivos, neste caso, o registro dos artistas, a maneira como introjetam a sociedade. Como momentos que constituem a arte, se tensionados, trazem o entendimento de que a arte, ao não se depreender imediatamente da sociedade e ao mesmo tempo dizer de modo contundente de suas irracionalidades, tem como um dos componentes a participação do artista, o que traz a necessidade de se considerar a apropriação subjetiva da objetividade - como exposto, a formação cultural. Desse modo, o processo de criação artístico se configura como uma possibilidade de contato e de reflexão sobre os danos à formação do indivíduo, por revelar, necessariamente, artistas - portadores da obra, representantes da universalidade (Adorno, 1953/2003) - que negam a realidade por meio de suas obras.

Diante deste entendimento, destaca-se que a arte se fundamenta em elementos expressivos e miméticos, objetivados por aqueles que representam o sofrimento de todos de modo peculiar. No texto O artista como representante, Adorno (1953/2003) escreve sobre Paul Valéry e destaca a objetividade de uma obra específica3 deste escritor. Ao apontar o caráter social e histórico presente na densa e estruturada obra de Valéry, Adorno ressalta uma precisa capacidade artística que faz justiça, tanto ao aspecto formal quanto ao elemento de interioridade. Para Adorno (1953/2003, p. 154), "essa capacidade [...] se alimenta de um incansável anseio de objetivação [...] que não tolera nada de obscuro, não clarificado, não resolvido; um impulso para o qual a transparência externa torna-se o parâmetro do êxito interior". Com base nestas considerações, pode-se dizer que essa é uma capacidade que se faz presente naqueles que demonstram uma extrema proximidade em relação ao objeto, o que só é possível num movimento mimético capaz de produzir com responsabilidade e rigorosidade uma obra que revela a universalidade. Segundo Adorno, este é o movimento do escritor Valéry: ele é alguém que sabe que sua obra o pertence muito pouco, já que sua liberdade criativa é o que menos pesa no fazer artístico. Desse modo, o processo criativo traz em si o desdobramento do conteúdo de verdade da obra de arte: se configura como um processo que traz a presença do homem como um todo - aquele cujas faculdades foram preservadas - bem como a imposição da coisa criada (primado do objeto). Sobre Valéry, Adorno (1953/2003) escreve:

[...] alguém que conhece a obra de arte por seu 'métier', entende a precisão do processo de trabalho artístico, mas ao mesmo tempo alguém no qual esse processo se reflete de modo tão feliz, que isso se reverte em intuição teórica, naquela boa universalidade que não abandona o particular, mas sim o preserva, levando-o a adquirir um caráter obrigatório, por força de sua própria dinâmica. Ele não filosofa sobre arte, mas sim rompe, na construção 'sem janelas' da própria configuração, a cegueira do artefato. (p. 155; grifos no original).

É devido à profundidade e precisão do movimento empreendido pelo artista no momento da criação e sua capacidade de dizer do seu sofrimento e de indicar as marcas deixadas por uma organização social opressiva que, com o seu trabalho, ele se torna um especialista do universal: alguém que em passiva atividade e, como testemunho, denuncia as mutilações provocadas pela intensificação da dominação.

Por outro lado, além da participação do artista, em outras palavras, além da participação subjetiva como um dos componentes do processo de criação de uma obra, torna-se importante trazer o conceito de forma para entender como esse processo se estabelece como crítica à esfera social. Segundo Adorno (1970/1988) é por meio da forma que a arte consegue participar da organização social e, ao mesmo tempo, denunciar a (ir)racionalidade em que esta se assenta. Na tensão com o conteúdo, categorias que não se dissociam, a forma é o elemento que faz a mediação entre a estrutura social - a qual critica - e a estrutura da obra, a que dá substância sendo, portanto, "(...) a coerência dos artefatos" (p. 163). Desse modo, ela condensa todos os elementos que dão à obra inteligibilidade: "a forma estética é a organização objetiva de tudo o que, no interior de uma obra de arte, aparece como linguagem coerente. É a síntese não violenta do disperso que ela, no entanto, conserva como aquilo que é, na sua divergência e nas suas contradições" (p. 165). Ao dar coerência ao que está presente na obra e por seu caráter de mediação, a forma torna a obra de arte capaz de participar da objetividade. Assim, ela participa da realidade objetiva dada sua estrutura, porém, ao participar, a arte, por meio da forma, contorna esta realidade e se faz como crítica às promessas não realizadas pela cultura. Dentro desta perspectiva, forma e crítica estão intrincadas, aparecem na obra como elementos que convergem, a fim de indicar o que traz sofrimento desmesurado.

Vale salientar que não se trata de considerar a obra de arte somente como produto da forma estética e sim de compreender que o processo de criação artístico revela o artista como ser social e historicamente determinado que, por meio do contato com as suas cicatrizes (sofrimentos que remetem à pseudoformação/semiformação), trabalha contra as exigências do próprio trabalho - a racionalidade tecnológica, o ritmo imposto pela sociedade industrial4. Este trabalho, produto de uma percepção diferenciada e, ao mesmo tempo, alienada da realidade "[...] já constituiria um objeto digno da psicologia da arte, que não teria de decifrar a obra de arte apenas como algo de semelhante ao artista, mas como alguma coisa de diferente, como trabalho em algo que resiste". (Adorno, 1970/1988, p. 20). É justamente da fúria de estar e se perceber tolhido que o artista, ao realizar uma obra, extrai dessa fúria o alimento contra o tolhimento que acomete a ele e a todos. (Adorno, 1951/1993).

Além da discussão sobre a tensão forma e conteúdo, o estudo do processo de criação artístico traz a necessidade de se refletir sobre o conceito de expressão, pois, segundo Duarte (2001), este surge na obra adorniana na tentativa de entender a relação entre o comportamento pulsional do criador no momento da sua criação e a sua precisão e responsabilidade com o conteúdo de verdade, que é objetivado na coisa criada. Ao discutir tal conceito, no aforismo O exibicionista do livro Minima Moralia, Adorno (1951/1993) afirma que os artistas jamais sublimam. Para o autor, seria ingênuo acreditar que eles transformam seus desejos em obras socialmente desejáveis. Ao problematizar o conceito de sublimação como precursor do processo criativo, Adorno propõe um conceito mais adequado, o conceito de expressão, que supera uma ideia essencialmente subjetivista por conter em si a mediação da objetividade, ou seja, por fazer menção, ainda que indireta "[...] ao precário estado das coisas do mundo presente". (Duarte, 2001, p. 99).

Por meio deste conceito, Adorno (1951/1993) ao discutir a capacidade artística contida no processo de criação revela que a moção pulsional presente na expressão não pode ser chamada de recalcada, pois mesmo impedida de ligar-se a um objeto de satisfação, não encontrado devido aos impedimentos sociais, organiza-se uma obra que se mantém fiel em sua renúncia. O movimento pulsional na expressão é tão forte

[...] que lhe sucede modificar-se em uma mera imagem - o preço da sobrevivência -, sem sofrer mutilação ao passar para o exterior. Ela substitui seu objetivo, assim como sua própria 'elaboração' pela censura subjetiva, por uma elaboração objetiva: sua revelação polêmica. Isso distingue-a da sublimação: toda expressão bem-sucedida do sujeito é, por assim dizer, um pequeno triunfo sobre o jogo de forças de sua própria psicologia. (Adorno, 1951/1993, p. 187; grifos no original).

Com isso, a moção pulsional, enquanto expressão, estabelece um tipo de acordo diferenciado com a realidade, pois, dada a sua força, tem a capacidade de se modificar e contornar esta realidade ao mesmo tempo em que a desmascara. Sobre os artistas, Adorno (1951/1993, p. 186) revela que eles expressam e, ao expressar, manifestam sua insatisfação que colide, inevitavelmente, com a realidade. Estes "privilegiados filhos da renúncia" são precisos justamente por serem capazes de retirarem-se para a imaginação e, na primazia do objeto5, devolver à realidade o que lhe é devido. Ressalta-se que tal processo não se faz sem dor e, como a liberdade e a felicidade ainda não são possíveis, os que se embrenham nesta tarefa "têm, sem exceção, de pagar caro por isso enquanto indivíduos, permanecendo desamparados atrás de sua própria expressão, a qual escapou à sua psicologia". (p. 187). Segundo o autor, "os artistas manifestam instintos violentos [...], que eclodem livremente e, ao mesmo tempo, colidem com a realidade". (p. 186). Neste sentido, com base no conceito de expressão e à luz dos textos estudados, pensa-se este fazer artístico não como livre, e sim como cego, por ser justamente pela capacidade de produzir algo de modo estético ou fazer coisas das quais não se sabe o que são, que o artista revela polemicamente - em um contexto histórico específico - a desarmônica sociedade em que os homens tentam sobreviver. Para Adorno (1970/1988, p. 134; grifos no original), "[...] isto conduz a um paradoxo subjetivo da arte: produzir algo de cego - a expressão - a partir da reflexão e pela forma; não racionalizar o que é cego, mas produzi-lo primeiramente de modo estético; 'fazer coisas acerca das quais não sabemos o que são'".

Ressalta-se que neste processo o decisivo é a tensão entre a expressão e o aspecto formal; uma obra de arte que ressalta um elemento em detrimento do outro perde, necessariamente, a sua negatividade. É importante nomear a tendência a tal dicotomia, pois, segundo o autor, esta cisão não pode ser desconsiderada, por já ter estado presente na arte antiga, aquela que, pela sua estrutura, tinha a capacidade de oferecer refúgio às emoções. Desse modo, a dicotomia entre estes dois momentos - forma e expressão - é falsa, se for considerado que estes estão intimamente mediatizados. Como estão interrelacionados, obras que não são plenamente formadas perdem a radicalidade do movimento de aproximação e fidelidade ao objeto; já aquelas que se apresentam como forma pura, negam a expressão, elemento de interioridade que constitui a arte. Neste sentido, "na irracionalidade do momento expressivo, a arte tem o objetivo de toda racionalidade estética". (Adorno, 1970/1988, p. 135). Assim, obras que em sua constituição preservam tanto o aspecto formal quanto o momento expressivo, tornam-se rebeldes contra a aparência organizada do que existe, sendo este "o fenômeno negativo de sua verdade". (p. 150). Os artistas, na contenção do ódio, expressam algo que pode representar uma contradição lógica:

[...] disposição sobre o momento mimético que suscita, destrói e salva o seu caráter não-arbitrário. O arbitrário no não-arbitrário é o elemento vital da arte, a força para tal arbitrário é um critério fidedigno da aptidão artística, sem que fique oculta a fatalidade de semelhante movimento. Os artistas reconhecem nesta aptidão o seu sentimento formal. (Adorno, 1970/1988, p. 134)

Eles, os artistas, revelam por meio de suas obras uma insatisfação que, sendo de todos, mostra como são as coisas nesta organização social. Assim, considera-se a arte como expressão de dor e sofrimento, ou seja, aquela capaz de fornecer indícios para pensar o reflexo das imposições sociais aos homens. Pensar em uma já alcançada reconciliação entre sensibilidade e razão, nesta forma de sociedade em que as possibilidades de formação se encontram cada vez mais impedidas, é mascarar a miséria do que existe e negar o potencial crítico da arte.

 

Procedimentos metodológicos: o caminho empreendido na pesquisa

Na realização desta pesquisa, além de um contato ininterrupto com o referencial da Teoria Crítica da Sociedade6, foram desenvolvidas as seguintes atividades: entrevistas com pessoas ligadas às artes cênicas na cidade de São João del-Rei, com o objetivo de fazer um levantamento dos grupos de teatro amador existentes, além de conhecer a relação entre a cidade e esta modalidade de expressão artística; leituras sobre a tradição teatral da cidade; consultas a arquivos de grupos de estudos da UFSJ: Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro (GETEB) e Grupo de Pesquisa em Artes Cênicas (GPAC); consulta a arquivos pessoais de integrantes e ex-integrantes de grupos de teatro; contato com os representantes de três grupos de teatro amador da cidade selecionados por possuírem universitários em seu elenco, característica relevante para esta investigação: a relação entre conhecimento artístico e científico; acompanhamento dos trabalhos de produção e apresentação dos espetáculos destes grupos, a fim de conhecer a dinâmica de criação artística, os aspectos do processo grupal e a implicação dos atores neste; levantamento das peças encenadas, dos autores por eles escolhidos e das técnicas de representação utilizadas, para entender o porquê destas escolhas e o que elas suscitam; elaboração de roteiros de entrevista a serem aplicados nos diretores e atores universitários dos grupos; a partir do roteiro, realização de entrevistas com os três diretores e com os quatro atores universitários; e, sistematização e análise de alguns dos aspectos mais relevantes obtidos tanto no contato com os grupos quanto nas entrevistas realizadas. Além da transcrição destas e do material fotográfico, recorreu-se ao diário de campo como instrumento de registro das observações. Foram feitas as devolutivas aos grupos e nestas devolutivas - redigidas e entregues ao diretor, e expostas verbalmente ao maior número possível de integrantes - privilegiou-se os principais pontos analisados, que são peculiares a cada grupo.

O roteiro de entrevista privilegiou, primeiramente, questões comuns para diretores e atores universitários, a saber: "Formação profissional"; "Formação em teatro"; e, "Por que teatro?". Com estas questões a intenção era conhecer a história profissional dos entrevistados, bem como o seu contato com teatro e artes em geral. Para os diretores que também trabalham diretamente com o ensino do teatro foi perguntado o que é priorizado nas aulas, além do pedido para que descrevessem o histórico do grupo que dirigem, a composição do elenco e a formação dos integrantes, que tipo de peças são encenadas e o público mais frequente nas apresentações. Todas estas informações estão sistematizadas no item Resultados. As perguntas "Sabendo da consolidada relação entre a cidade de São João del-Rei e a música, como você define a relação desta cidade com o teatro?" e "Como você percebe o teatro em São João del-Rei atualmente?" foram elaboradas na tentativa de dar ao entrevistado a oportunidade de discorrer sobre o seu conhecimento a respeito da tradição teatral da cidade e como o teatro se mostra atualmente. Pretendeu-se investigar até que ponto as pessoas que trabalham com esta modalidade artística conhecem o que foi e vem sendo realizado na cidade em termos de teatro. Esta pergunta foi feita tanto para os diretores quanto para os atores.

As perguntas específicas para os atores universitários diziam respeito à relação deles com o seu personagem e com os integrantes do grupo, bem como o tema central da peça e o que ele pode suscitar no público. Buscou-se, dessa maneira, um possível esclarecimento sobre a relação ator-personagem-público e sobre os aspectos do processo grupal e sua influência no processo de criação dos espetáculos. A questão "Como você lida com os compromissos ligados à vida acadêmica e as atividades do teatro?" foi realizada no sentido de investigar como os atores lidam com estas duas esferas de sua vida: as pressões das tarefas relacionadas ao curso superior em que estão matriculados na Universidade e as atividades teatrais ou outras diretamente ligadas à arte. No decorrer destas entrevistas foram surgindo outros questionamentos como: cidade de origem, já que a maioria dos estudantes da UFSJ é natural de outras cidades; período que está cursando na Universidade; primeiro contato com teatro; envolvimento com outras modalidades de expressão artística, entre outros.

Durante este processo, após a leitura dos textos dos espetáculos apresentados pelos grupos e do contato com a produção das peças, acompanharam-se as apresentações, momento que se mostrou importante para que o grupo pudesse expor o que foi trabalhado durante os ensaios, sendo um contato de observação privilegiado no que diz respeito à exteriorização dos conflitos e percepção do envolvimento dos integrantes do grupo com o trabalho. Vale registrar que a realização desta pesquisa contou com a participação de outra aluna-pesquisadora (PIBIC/FAUF/UFSJ) e de estagiárias vinculadas à pesquisa Psicologia e Arte: reflexões acerca da subjetividade obstada. Estas participaram de todo o desenvolvimento do trabalho, elaborando diários de campo e relatórios. Ressalta-se que atuaram pelo menos duas estagiárias em cada grupo, o que tende a proporcionar mais de um relato sobre cada observação na tentativa de garantir maior riqueza e legitimidade a este material.

 

Resultados: alguns apontamentos sobre os grupos observados

Por meio do contato com algumas pessoas ligadas ao teatro na cidade de São João del-Rei e, a partir das entrevistas preliminares realizadas em dezembro de 2005, percebeu-se o quanto esta cidade e o teatro, enquanto expressão artística, têm uma relação de proximidade. Nesta primeira etapa foram entrevistadas seis pessoas: dois professores pesquisadores do Departamento de Letras, Artes e Cultura da UFSJ, que além de indicações de livros sobre teatro falaram a respeito do que priorizam em suas aulas e dos grupos de teatro que já coordenaram; o antigo diretor de um grupo de teatro da cidade que surgiu no final da década de 60 - o Tunis, Teatro Universitário Sanjoanense - e um ator que fez parte do elenco deste grupo; o professor de Artes Cênicas do Conservatório Estadual de Música Pe. José Maria Xavier e diretor de um dos grupos observados; e um diretor/ator de teatro que poderia relatar aspectos da vida teatral da cidade na atualidade por ter dirigido uma peça apresentada nos palcos sanjoanenses no ano anterior ao início da pesquisa. Com estas entrevistas foi possível maior contato com a vida artística da cidade e um levantamento preliminar dos grupos que estavam atuando no momento.

Além destas primeiras entrevistas, teve-se a oportunidade de contato com o arquivo pessoal de um ator, ex-integrante do Tunis, do qual se levantou alguns dados referentes à tradição teatral da cidade. Ainda no século XIX foram construídos sete (7) teatros, inclusive o Teatro Municipal de São João del-Rei, de 1893, reformado em 2003 e em funcionamento até hoje. Em 1905, surgiu um grupo que se tornou referência na história do teatro sanjoanense, o Clube Teatral Artur Azevedo, formado por atores da cidade, que fez grande sucesso durante a primeira metade do século passado, chegando mesmo a disputar o público com companhias teatrais que visitavam a cidade, e ganhá-lo. Vale salientar o grande envolvimento da comunidade daquela época com o grupo, tanto no acompanhamento de suas atividades como na construção de sua sede. Em 1968, surgiu o Tunis, um outro grupo de teatro amador que também teve muita relevância para a vida artística e cultural desta cidade. Este grupo participou de vários concursos de teatro amador - alguns deles de âmbito nacional - e recebeu premiações importantes, como o primeiro lugar no 1º Festival Brasileiro de Teatro Amador do Rio de Janeiro (1968) e no 2º Festival Brasileiro de Teatro de São Carlos/SP (1969). A história destes grupos reflete a história do teatro de um modo geral e a interrupção das atividades destes diz respeito também ao surgimento e expansão do cinema e, posteriormente, da televisão. O fechamento do Teatro Municipal para reformas na década de 80 parece trazer uma lacuna nas atividades teatrais na cidade, o que não significa dizer que outros grupos não tenham realizado atividades e/ou produzido espetáculos. Após a sua reabertura, em 2003, tem-se uma tentativa de reavivar o contato do público com este tipo de expressão artística, algo buscado também pelos grupos estudados, mesmo que de maneiras alternativas, como por meio do teatro de rua, opção de um dos grupos estudados.

Do levantamento que foi realizado, pode-se dizer que na época da realização da pesquisa existiam cerca de sete grupos de teatro: alguns ligados a grupos religiosos, outros que surgiram de oficinas teatrais e, ainda, aqueles que têm uma coordenação e direção mais organizada. Vale dizer que este número não é fixo, já que por se tratar de grupos de teatro amador e, considerando o próprio movimento do objeto, não é possível afirmá-los enquanto grupos que mantém atividades permanentes. Tal movimento dificulta um levantamento mais sistemático do número de grupos que atuam na cidade. Percebeu-se que o que acontece é a reunião de um determinado número de pessoas por um período de tempo para montarem um espetáculo. Após este período, o grupo se desfaz, o que provoca a vinculação dos atores a outros grupos. Sobre a discussão fazer teatro e montar um espetáculo, o ator Paulo José, diretor da peça Um homem é um homem - adaptação do texto de Bertolt Brecht -, um dos espetáculos do grupo de teatro mineiro Grupo Galpão, no DVD documentário sobre a história do grupo, destaca:

Fazer teatro é uma coisa, montar peça é outra [...]. Fazer teatro é um processo contínuo no qual a peça em cartaz é apenas um aspecto de um trabalho que vai resultar em outro espetáculo, em outro, em outro... desenvolvendo uma linguagem, uma temática, uma forma particular de fazer teatro. Montar uma peça é diferente, é um fato isolado, com elenco de várias procedências, difícil de harmonizar. Quando a temporada acaba, aquele elenco se desfaz, cada um vai para o seu lado, não sobra nada. Talvez sobre umas fotos, uns recortes de jornal, só. Eu costumo dizer que o teatro vivo só se realiza nos teatros de grupo. (Grupo Galpão, 2005).

Diante desta citação, cabe pensar se seria uma contradição própria desta pesquisa a busca por um fazer teatro em grupos que em si não são permanentes - dada a presença efêmera de universitários que, em sua maioria, estão na cidade para frequentar um curso superior -, o que se mostra como uma possibilidade de indicar os limites da pesquisa e pensar criticamente o objeto de estudo elegido. Desse modo, foi levada em consideração certa flexibilidade na discussão dos dados, sem desconsiderar a primazia e a rigorosidade requerida diante do objeto.

No que diz respeito aos grupos selecionados, como já foi relatado no item anterior, o ponto que os aproxima é o fato de possuírem universitários integrando o seu elenco, uma vez que esta investigação busca também refletir sobre a articulação entre arte e conhecimento científico. Considera-se que a ciência e a arte, em suas diferentes dimensões, por conterem em seu processo o primado do objeto, trazem o conhecimento da realidade social e histórica, ressaltando, porém, que o primado do objeto se estabelece de modo específico no conhecimento proporcionado pela arte. Por meio do contato com os três grupos selecionados7 percebeu-se que estes se diferiam quanto às técnicas de representação, formação do grupo e formação dos atores, conteúdo dos espetáculos, dinâmica grupal e de criação artística.

O Grupo 1 era composto por duas universitárias, uma do curso de Filosofia e outra do curso de História da UFSJ; uma atriz que possuía nível médio de formação e o diretor, também universitário, que já fez cursos no Teatro Universitário da UFMG e estudou no Pólo de Cinema e Vídeo Grande Otelo e na Escola Estadual de Teatro Martins Pena, onde se profissionalizou como ator. A peça por eles encenada foi uma adaptação do texto Entre quatro paredes, do filósofo Jean Paul Sartre. A apresentação foi no Teatro Municipal de São João del-Rei e contou como atividade acadêmica, já que autor do texto - Sartre - estava sendo estudado pelo diretor e uma das atrizes no curso de Filosofia da UFSJ. Nesta adaptação o ponto central foi a repressão sexual, ressaltada com a inserção de adereços cênicos que faziam menção à sexualidade. No decorrer do espetáculo foram feitas referências por meio das falas dos personagens a um objeto que, logo na primeira cena, foi levado coberto ao palco em uma bandeja e lá permaneceu durante toda a peça; tal recurso pode ter causado certa expectativa no público. Ao final da peça revela-se que o objeto, descrito na peça como o "órgão", era um pênis de borracha, tomado como um ponto de convergência para as mulheres da peça. Além dos adereços, também ao fim do espetáculo, foi apresentada uma gravação de voz em que o diretor dizia um texto que parecia ser uma explicação para o fato daquele elemento (o órgão) ter sido destacado nesta adaptação.

O Grupo 2 tinha seu elenco constituído por adolescentes, dois universitários e alguns jovens que vinham realizando a sua formação teatral na prática (inclusive o diretor, que não possui formação teatral acadêmica e trabalha com teatro há dez anos), ou seja, por meio de montagens e apresentações de espetáculos. O grupo monta vários tipos de peças, inclusive com temas ligados a empresas, na área de segurança do trabalho. A peça Mendigos, encenada por eles também no Teatro Municipal, é de autoria do próprio diretor e, segundo ele, faz referência aos aspectos da condição humana que está sempre mendigando algo e/ou alguma coisa. Esta peça, cujo texto e o elenco já sofreram várias alterações, é representada em quadros que são perpassados por este mesmo conteúdo, articulados com música e poesia. Tais quadros envolvem personagens como: um músico que não consegue obter sucesso e acaba na sarjeta; um jogador de futebol que após ter conhecido a infância pobre, transforma-se em um grande jogador do país, mas acaba sendo esquecido após perder um pênalti importante; cenas entre palhaços caracterizados como um triste, um alegre e um doente; e, duelos entre anjos e demônios.

Já o Grupo 3, que trabalha com espetáculos de rua, contava com quatro integrantes na faixa etária acima dos 20 anos, sendo: um estudante de História, que também cursava Canto com formação técnica; um artista plástico; uma professora; e o diretor, que é graduado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto/UFOP. Além destes componentes, alguns atores foram convidados para participarem da peça Auto da Paixão. Este espetáculo, encenado na Semana Santa, nas ruas e praças da cidade, trata da traição de Judas e da crucificação de Cristo, porém com elementos clownescos, texto em poema de cordel, atores caracterizados (figurino e maquiagem coloridos) e cortejo musical. Todo o figurino foi confeccionado pelo grupo, que o fez para a primeira apresentação, em abril de 2005, ano em que a peça foi montada.

Tanto no Grupo 2 quanto no Grupo 3 os diretores também atuam nos espetáculos. Deve-se salientar que, segundo relato destes no período das observações, os dois grupos estavam ligados a projetos sociais: o Grupo 2 realizava oficinas de teatro em escolas públicas e o Grupo 3 desenvolvia atividades lúdicas e teatrais em bairros mais afastadas do pólo cultural da cidade.

Em relação às entrevistas realizadas, no que diz respeito aos dados obtidos junto aos diretores, tem-se as seguintes informações. Na questão referente à formação profissional e formação em teatro, dos três diretores dois estudaram teatro, sendo que um deles se formou em Artes Cênicas. Já o terceiro tem sua formação realizada na prática em que atua há dez anos. Quando questionados sobre a tradição teatral da cidade, somente um dos diretores, ainda que de maneira imprecisa, relatou algo que remetesse à história do teatro em São João del-Rei. Todos mencionaram as questões atuais e as dificuldades que encontram para realizarem seus trabalhos. Cabe pensar, o quanto seria importante que as pessoas que trabalham direta ou indiretamente com teatro conhecessem o movimento histórico do seu objeto, já que este é histórico. Isto proporcionaria uma melhor compreensão dos seus determinantes atuais.

Quanto às entrevistas com os universitários, percebeu-se que estes estavam entre o segundo e oitavo período da graduação quando foram entrevistados e nenhum deles tinha outra ocupação profissional além dos estudos na Universidade e das atividades ligadas à arte. Todos já tinham contato com teatro e outras modalidades de expressão artística antes de participarem dos grupos observados. A formação teatral destes atores vem se concretizando através de oficinas e participações em montagens em grupos variados. Alguns deles se envolvem com outras atividades artísticas, como literatura e música, sendo que um dos universitários estava em um curso técnico profissionalizante de Canto.

Com relação à pergunta "Por que teatro?" os atores responderam que sempre gostaram de teatro. Nada mais consistente foi dito a este respeito, a não ser o fato de um deles destacar que, primeiramente pensou em fazer teatro para perder a timidez e falar em público. Porém, este ator relata que foi conhecendo e se aproximando desta modalidade artística e "tomando gosto pela coisa". No que se refere à relação personagem-ator, os atores destacaram alguns aspectos que permeiam esta relação: a proximidade entre as características pessoais do ator e as do personagem, a fantasia que a construção do personagem pode trazer, a surpresa com a reação do público em algumas cenas, a emoção que o personagem pode refletir não só no ator que o representa como também no público, entre outros.

A pergunta "Como você lida com os compromissos ligados à vida acadêmica e às atividades do teatro?" foi respondida por todos praticamente no mesmo sentido. Os atores relataram dificuldades em conciliar os compromissos acadêmicos e as atividades do teatro. Por vezes, são obrigados a se ausentarem de uma esfera ou de outra, o que provoca, no teatro, uma participação menos efetiva nos ensaios e em todo o trabalho. Tal fato, muitas vezes, traz críticas e cobranças por parte não só dos diretores como também dos demais integrantes do grupo. Ficou claro que, apesar dos impedimentos, todos buscam não se distanciarem da esfera artística e, alguns comentaram que se sentiriam frustrados se tivessem que largar estas atividades: nas palavras de um deles, "o esforço compensa".

Sobre o relacionamento entre os integrantes do grupo, percebeu-se que este se faz de maneira diferente nos três grupos, segundo a percepção dos atores. Um deles relatou que a relação é de troca, companheirismo e amizade; outro ator disse que alguns momentos no grupo são difíceis, mas contornáveis e, para um terceiro, a relação é estritamente profissional. Para um ator "uma das amizades mais legais que existe é dentro de um grupo de teatro". Todos estes elementos, contidos nas falas dos atores foram importantes no apontamento de alguns aspectos da dinâmica grupal.

Com o acompanhamento dos grupos e a sistematização das anotações registradas nos diários de campo e nas entrevistas, foi possível destacar um aspecto específico em relação à dinâmica grupal, que diz respeito à participação dos membros do grupo na montagem do espetáculo. Enquanto em dois grupos existia uma abertura maior para que todos contribuíssem para este processo, em outro, no Grupo 2, esta abertura era dada apenas a alguns, o que legitimava o medo e, por vezes, a violência. Ressaltam-se, neste grupo, momentos nos ensaios em que não fica claro se o diretor lançava mão de técnicas teatrais para orientar o seu trabalho ou se havia uma mistura entre diretor/ator e personagem. Isto pôde ser percebido quando cenas sensuais pareciam ser usadas como justificativa para uma aproximação física e visivelmente constrangedora entre os atores ou quando havia uma diferenciação no tratamento entre os membros do grupo baseada ameaça, ou seja, quando era dada pelo diretor, a alguns atores, uma espécie de liderança secundária que, num primeiro, não fica clara uma justificação. Outro ponto de destaque era a preocupação excessiva do diretor com a profissionalização dos atores8 e, mais ainda, com a aprovação do público e o reconhecimento do trabalho na cidade, elementos constantemente presentes em sua fala (registrada nos diários de campo e na entrevista) e que pareciam ser o principal objetivo do grupo ao montar um espetáculo. A preocupação com a profissionalização dos atores é importante se pensada como algo que pressupõe dedicação e responsabilidade em relação ao trabalho que realizam. Como alguns integrantes do grupo também ministravam oficinas em escolas da cidade, esta ideia é válida no sentido de que com a profissionalização daqueles que exerciam esta tarefa, pressupõe-se também uma necessidade de aperfeiçoamento.

Porém, esta preocupação exacerbada permite tecer considerações sobre a rigorosidade e respeito diante do objeto (primazia do objeto), a obra teatral, que pede uma precisa tensão entre forma e conteúdo e forma e expressão, sendo um grupo de teatro um dos lugares apropriados para tal. Sobre esta discussão e ressaltando a preocupação com a aprovação do público, com a profissionalização dos atores e em passar uma "mensagem" ao público, que se mostrou de maneira mais excessiva no Grupo 2, pensa-se o quanto estes elementos podem se configurar como uma perda desta tensão. Tal perda resultaria no rebaixamento do conteúdo de verdade da arte; seu fenômeno de negação perante o caráter afirmativo da realidade. Forma e conteúdo, se tencionados, poderiam revelar aspectos que atuam na arte, ou seja, suscitar tanto a crítica social quanto a construção de um mundo melhor. Cabe ressaltar que, na realização deste intento há algo de cego, não passível de ser racionalizado, e que, mesmo sendo o que os grupos de teatro anseiam, e talvez por isso mesmo, nem sempre é efetivado. É justamente por conter algo que escapa e está para além de uma intencionalidade, que uma obra de arte que faça justiça à sua estrutura é capaz de se manter crítica ao existente.

Com relação ao Grupo 3, não foi possível acompanhar diretamente o processo de criação de seu espetáculo pois, como já foi dito, no momento em que o grupo foi observado, estava ensaiando uma peça que já havia sido montada e apresentada. Dessa maneira, não se observou elementos mais específicos sobre a criação. Vale salientar que o grupo, geralmente, lança mão de alguns aspectos presentes na técnica de clown. Segundo Burnier (2001, p. 205) a palavra clown vem de cold que, etimologicamente, se liga ao termo inglês "camponês" e ao seu meio. Já a palavra palhaço vem do italiano paglia e significa "material usado no revestimento de colchões, porque a primitiva roupa desse cômico era feita do mesmo pano dos colchões". Para este ator e pesquisador, palhaço e clown são termos distintos que designam a mesma coisa, diferenciando-se quanto às linhas de trabalho, ou seja, algumas tendências se preocupam mais com o que o clown faz enquanto outras enfatizam o como eles fazem. Palhaço ou clown tem suas raízes na baixa comédia grega e romana e nas apresentações da Commedia Dell'Arte ou comédia de máscara, típica forma de teatro do Renascimento italiano.

No que diz respeito às observações deste grupo, registradas nos diários de campo, e à entrevista realizada com o diretor, destaca-se a sua preocupação com a identidade do grupo e a percepção do teatro como um espaço para a formação - em suas palavras, afetiva e social construída dentro de uma relação saudável e aberta -, além de uma possível clareza do estado do grupo, como grupo de teatro amador. Estes aspectos foram, de certa maneira, percebidos quando a participação dos membros do grupo na montagem do espetáculo era respeitada, aparentemente sem simulação de consenso, ou quando haviam momentos em que relações eram aparentemente tranquilas e descontraídas, o que perpassou todo trabalho. É importante destacar, também, que a entrada de novos participantes se mostrou, ao mesmo tempo, necessária e bem-vinda pelo grupo. Isto pôde ser observado, principalmente, em relação aos músicos, que foram recebidos cuidadosamente, o que demonstra, novamente, uma preocupação com a questão da identidade do grupo e com momentos que possam resguardar algo do movimento formativo.

Já o Grupo 1, que tentou trazer de maneira mais evidente a questão da sexualidade por meio de adereços cênicos, ao tomar tal atitude, parece perder a tensão forma e conteúdo. Isto se evidencia na forma como o grupo realizou a montagem da peça, em outras palavras, apesar da ideia de trazer a questão da repressão sexual como um possível conteúdo ser válida, já que esta se mostra como um dos impedimentos a uma vida satisfatória - vida na qual a vinculação aos objetos de amor aliado à ternura é realmente possível -, deve-se pensar na forma como isso foi realizado pelo grupo. Em uma discussão9 sobre o espetáculo no dia seguinte à apresentação, a adaptação do texto de Sartre e o "órgão", adereço cênico utilizado pelo grupo na tentativa de provocar reação no público, aparecem como dois momentos que não se entrelaçam. Se por um lado, tem-se a exacerbação da forma, feita por meio deste e de outros objetos, por outro, tem-se o conteúdo que não se comunica e não se articula à forma: aparecem como dois momentos, revelam uma cisão que parece indicar que forma e conteúdo não estão confrontados, e assim, não conseguem trazer de maneira contundente o caráter de verdade da arte. Desse modo, também como foi sistematizado por Oliveira, Viana e Franciscatti (2006), se algo da forma aparece meramente como conteúdo, mesmo quando vestígios da expressão saltam, o potencial crítico da arte se reduz. Assim, com base nestes breves apontamentos, pode-se dizer que a racionalidade tecnológica que impõe a todos as configurações psicológicas que ratificam essa ordem social está presente também naqueles que se confrontam com a possibilidade de fazer arte. Isto parece estar refletido, de alguma maneira, em alguns grupos de teatro amador de São João del-Rei que, imersos na ideologia da sociedade industrial, acabam reproduzindo aquilo que a arte poderia revelar como testemunho do sofrimento e negação da realidade.

 

Considerações Finais

A partir do que foi exposto, algumas considerações podem ser pensadas, destacando-se, aqui, o entrelaçamento dos aspectos relacionados ao processo grupal com os que compõem o processo de criação artístico. No que diz respeito ao processo de criação artístico, pode-se dizer que todos os aspectos sistematizados nos resultados perpassam a dinâmica de criação e acabam interferindo na maneira como os grupos investigados se pensam enquanto grupo de teatro amador e, consequentemente, como tratam o seu objeto: a obra teatral.

Quanto aos aspectos do processo grupal, percebeu-se que os grupos de teatro amador observados, instâncias de mediação entre a particularidade e a universalidade, podem ser espaços em que as possibilidades de individuação estejam resguardadas, desde que o medo não esteja presente. Quando ocorrem momentos de contato afetivo (mútuo), não ameaçadores e peculiares, estes podem proporcionar a identificação e a diferenciação e, neste caso, fundamentar um entendimento sensível constituído entre o conhecimento artístico e o científico. Como espaço de expressão da arte dramática os grupos investigados estabelecem, de algum modo, condições para que estes momentos aconteçam. Porém, quando o que perpassa os grupos é a ameaça e o medo não elaborado - o que em alguns momentos foi recorrente no Grupo 2 -, estes, mesmo contra sua intenção, transformam-se em meros reprodutores da mesma lógica que rege o mundo do trabalho.

Neste sentido, torna-se interessante refletir também sobre a questão do espaço privilegiado do teatro amador em contraposição ao dos grupos de teatro profissionais. Pensa-se que este último pode ceder mais facilmente às exigências do mercado por trazer, em suas amarras, a lógica do mercado, ou seja, por estar permeado de maneira mais efetiva pela necessidade de sobrevivência. Em grupos de teatro amador tal fato perpassaria de maneira mais sutil e mais estrita, já que a questão da subsistência por meio do teatro não se apresentaria de forma tão direta no exercício das atividades do grupo, mas sim em relação ao entorno das atividades realizadas pelos seus membros em outras esferas da sociedade (o fato de tentar conciliar as atividades do teatro amador e outras de subsistência financeira). Assim, estes grupos poderiam resguardar algo do movimento formativo e permitir a elaboração da dinâmica social repressiva que repõe sofrimentos desnecessários. Desse modo, desde que cada integrante tenha a possibilidade de se manifestar dentro de um grupo, este pode tornar-se privilegiado no que diz respeito às condições que proporcionam contatos afetivos recíprocos com pessoas insubstituíveis, além de uma possível elaboração dos elementos que perpassam a esfera do trabalho. É importante discutir sobre isto tendo em vista os vários compromissos e atividades de alguns integrantes do grupo, tais como estudos e trabalho, que poderiam ser elaborados dentro do grupo e permitir um gradativo desenvolvimento da capacidade de reflexão sobre a sociedade e sobre a vida. Esta é uma atividade que está implícita no fazer artístico, aquele que mantém o primado do objeto na tensão entre conteúdo e forma estética. Uma obra de arte criada na primazia do objeto, ou seja, realizada com dedicação séria e trabalho intenso, é capaz de revelar as (de)formações a que a humanidade vem estando submetida. Os grupos de teatro, em trabalho amador, quando aderem à reprodutibilidade e não conseguem pensar o seu próprio fazer, falseiam o contato com o teatro enquanto expressão artística potencialmente capaz de proporcionar a seus integrantes algo que remeteria ao processo de individuação e, consequentemente, à reflexão dos limites e das possibilidades de uma vida justa e livre.

Em relação ao tópico que discute a presença de universitários em grupos ligados a expressões artísticas, pensa-se os grupos de teatro como possíveis espaços para aqueles - os artistas - que por meio de suas obras, tentam denunciar a violência e a pseudoformação a que todos estão submetidos. Refletindo sobre as entrevistas com os atores universitários, discute-se a respeito de que, mesmo diante dos compromissos da vida acadêmica, conciliar a esta, atividades ligadas à arte, se mostra como algo inevitável e complementar à formação destes entrevistados. Percebeu-se que a pressão da vida universitária e seus compromissos inadiáveis acabam, por vezes, atrapalhando a dedicação destes ao grupo, fazendo com que se ausente tanto de uma esfera quanto de outra. Por outro lado, talvez seja a possibilidade do entrelaçamento destas esferas que perpassa de modo subliminar a busca e a insistência em ter dois registros: o conhecimento proporcionado pela arte e o conhecimento sistemático da ciência.

Vale ressaltar que por se tratar de teatro, em que se exige um contato com o próprio corpo e o do outro, já que um dos instrumentos de trabalho do ator é o corpo, reflete-se sobre este processo como algo que deva ser realizado de maneira cuidadosa. Não se tematiza, neste momento, as técnicas teatrais que possam ser utilizadas no trabalho com o corpo do ator, o foco dessa discussão privilegia o que é necessário e pontual como técnica, sem ser violento, em contraposição ao que somente reproduz aspectos desnecessários e cruéis da vida em sociedade, elementos que violentam e escravizam o corpo. Este apontamento surgiu das observações de um dos grupos, mas pode ser estendido às instâncias que direta ou indiretamente lidam com o corpo e o fazem refém da ordem societária.

Para finalizar, diante do que foi exposto, cabe pensar na articulação e contraposição da teoria com a práxis, o que revela a importância de trazer à reflexão a arte, mais especificamente, a arte da representação, como possibilidade de testemunhar e de desvelar o sofrimento dos homens. Porém, na adesão extremada ao aspecto formal aprisionado à racionalidade operante que prepondera nesta forma de organização social, aqueles que se dedicam à arte teatral traem a fidelidade que a expressão mantém com a moção pulsional, traindo também aquilo que a arte poderia revelar: as mutilações e as cicatrizes que afligem a humanidade.

 

Notas

1. Investigação realizada como parte da pesquisa Psicologia e Arte: reflexões acerca da subjetividade obstada, intitulada Formação e Criação Artística: um estudo sobre a arte da representação em grupos de teatro de São João del-Rei - desenvolvida com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (PIBIC/FAPEMIG/UFSJ), entre março de 2006 a fevereiro de 2007.

2. Tradução do espanhol cotejada com a tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu, com revisão definitiva feita pelo mesmo grupo e colaboração de Paula Ramos de Oliveira. Texto publicado na Revista Educação e Sociedade n.56, ano XVII, dezembro de 1996, p. 388-411; o trecho citado se encontra na página 390.

3. "O livro a que me refiro é de fácil acesso. Foi publicado na coleção 'Bibliothek Suhrkamp' com o título de 'Tanz, Ziechnung und Degas'. A tradução é de Werner Zemp. Ela é adequada, ainda que nem sempre consiga reproduzir com toda sutileza a graça própria ao texto de Valéry, uma graça conseguida com imenso esforço" (Adorno, 1953/2003, p. 153) - livro escrito por Valéry sobre o pintor impressionista Edgar Degas.

4. Sobre esta discussão Horkheimer e Adorno (1944/1985, p. 119) escrevem no texto A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas: "a violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho".

5. "O objeto na arte e o objeto na realidade empírica são algo de inteiramente diferente. O objeto da arte é a obra por ela produzida, que contém em si os elementos da realidade empírica, da mesma maneira que os transpõe, decompõe e reconstrói, segundo a sua própria lei. Só através de semelhante transformação, e não mediante uma fotografia de qualquer forma sempre deformadora, é que a arte confere à realidade empírica o que lhe pertence, a epifania da sua essência oculta e o justo estremecimento perante ela enquanto monstruosidade. O primado do objeto só se afirma esteticamente no caráter da arte como historiografia inconsciente, anamnese do subterrâneo, do recalcado e do talvez possível. O primado do objeto, enquanto liberdade potencial do que é emancipação da dominação, manifesta-se na arte como sua liberdade relativamente aos objetos. Se está em seu poder apreender o seu conteúdo no seu 'outro', só numa relação de imanência lhe cabe ao mesmo tempo em sorte esta 'outro'; não lhe deve ser imputado. A arte nega a negatividade do primado do objeto, o seu elemento irreconciliado e heterônomo, que faz aparecer pela aparência de reconciliação das suas obras". (Adorno, 1970/1988, p. 289; grifos no original).

6. Os estudos teóricos que embasam as reflexões aqui expostas partem de alguns textos de Theodor W. Adorno a respeito da arte, de autores com quem ele dialogou, principalmente Freud, e autores que, de certa maneira, trabalham com Teoria Crítica da Sociedade e desenvolvem conceitos considerados fundamentais para a discussão do material pesquisado. Além dos textos básicos que estavam previstos desde o início da pesquisa, outros foram estudados e iluminaram as questões suscitadas no contato com os grupos de teatro no que diz respeito à criação dos espetáculos.

7. A partir deste momento, os grupos serão nomeados de Grupo 1, Grupo 2 e Grupo 3, como procedimento ético, a fim de resguardar a identidade dos mesmos.

8. O diretor parece incentivar os atores a obterem o Atestado de Capacitação Profissional, que é retirado no SATED - Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões, para que sejam habilitados como atores profissionais.

9. Discussão em uma disciplina obrigatória do curso de Filosofia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).

 

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Recebido em 27 de agosto de 2010
Aceito em 22 de setembro de 2010
Revisado em 5 de outubro de 2010

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