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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj vol.12 no.1-2 Fortaleza jun. 2012
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Considerações contemporâneas sobre a noção psicanalítica de diferença sexual
Contemporary considerations on the psychoanalytic notion of sexual difference
Consideraciones contemporáneas acerca de la noción psicoanalítica de la diferencia sexual
Considérations contemporains sur la notion psychanalythiques de la sifférence sexuelle
Marina SodréI; Márcia AránII
IMestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ. End.: R. Viúva Lacerda, 249, Bloco 2, apto 701. CEP: 22261-170 - Rio de Janeiro, RJ. E-mail: marinasodre@yahoo.com.br
IIIn memorian
RESUMO
A partir da interface entre psicanálise e cultura, este trabalho tem por objetivo levantar algumas considerações sobre o debate contemporâneo acerca da noção psicanalítica de diferença sexual introduzido pelos deslocamentos ocorridos no campo da sexualidade e pelos desafios que estes impõem ao campo psicanalítico. A partir do pano de fundo da nova cartografia da sexualidade, tomou-se como fio condutor o diálogo travado entre Judith Butler e Slavoj Žižek acerca do estatuto da noção de diferença sexual para a psicanálise, a fim de se considerar em que medida a psicanálise baseia a constituição da diferença no modelo binário e hierárquico da divisão sexual, contribuindo para a manutenção normativa do sistema sexo-gênero, ou em que medida a teoria psicanalítica proporciona um deslocamento do modelo dimórfico da diferença sexual para outra forma de pensar a diferença, contribuindo para a compreensão da alteridade enquanto indeterminação e contingência. Nesse percurso, explora-se as interpretações de Butler de alguns conceitos fundamentais da psicanálise freudiana e lacaniana, tal como o do complexo de Édipo, e as considerações de Žižek acerca da leitura de Butler. O intuito final deste estudo é o de valorizar o diálogo entre os autores contemporâneos para a realização de novas leituras psicanalíticas, demonstrando a possibilidade de a teoria psicanalítica ser repensada e reapresentada diante das novas questões sócio-históricas.
Palavras-chave: Psicanálise, cultura, sexualidade, diferença sexual, subjetividade.
ABSTRACT
From the interface between psychoanalysis and culture, this paper aims to raise some considerations about the contemporary debate of the psychoanalytic notion of sexual difference introduced by shifts in the field of sexuality and the challenges they impose on the psychoanalytic area. From the background of the new cartography of sexuality, uses, as main reference, the dialogue between Judith Butler and Slavoj Žižek on the status of the notion of sexual difference in psychoanalysis, in order to consider to what extent psychoanalysis bases the constitution of the difference on the binary model and the hierarchical gender division, contributing to the normative maintenance of the sex-gender system or, to what extent the psychoanalytic theory offers a shift from the dimorphic model of sexual difference to a distinct way of thinking the difference, contributing to the understanding of otherness while meaning indetermination and contingency. In this way, explores the interpretations of Butler about some fundamental concepts of Freudian and Lacanian psychoanalysis, as the Oedipus complex, and the Žižek's considerations about the reading of Butler. This study final aim is to enhance the dialogue between contemporary authors in order to conduct further psychoanalytic readings, demonstrating the possibility of the psychoanalytic theory of reconsidering and resubmitting in face of new socio-historical questions.
Keywords: Psychoanalysis, culture, sexuality, sexual difference, subjectivity.
RESUMEN
Desde la interface entre el psicoanálisis y la cultura, el presente trabajo tiene por interés plantear algunas consideraciones sobre el debate contemporáneo sobre la noción psicoanalítica de la diferencia sexual introducida por los cambios en el campo de la sexualidad y de los retos que suponen para el campo psicoanalítico. Desde el fondo de la nueva cartografía de la sexualidad, se tomó como hilo conductor, el diálogo entre Judith Butler y SlavojŽižek sobre el estado de la noción de la diferencia sexual en el psicoanálisis con el fin de tener en cuenta el grado en que el psicoanálisis se basa en la constitución de la diferencia en el modelo binario y jerárquica de la división sexual, lo que contribuye al mantenimiento del sistema normativo de sexo-género , o el grado en que la teoría psicoanalítica proporciona un desplazamiento del modelo dimórfico de la diferencia sexual a otra forma de pensar sobre la diferencia , lo que contribuye a la comprensión de la alteridad mientras que la indeterminación y contingencia. En el camino, se explorará la comprensión de Butler acerca de algunos conceptos fundamentales del psicoanálisis freudiano y lacaniano, como el complejo de Edipo , y las consideraciones de Žižek acerca de la lectura de Butler. El objetivo final de este estudio es mejorar el diálogo entre autores contemporáneos para emprender nuevas lecturas psicoanalíticas, lo que enseña la posibilidad de la teoría psicoanalítica ser reconsiderada y presentada ante las nuevas cuestiones socio - histórico.
Palabras-clave: El psicoanálisis , la cultura , la sexualidad, la diferencia sexual , la subjetividad.
RÉSUMÉ
À partir de la interface entre psychanalyse et culture, ce travaille vise présenter quelque considerations sur le débat contemporain sur le notion psychanalytiqué de la différence sexuelle introduit par les changements sur le terrain de la sexualité et pour les défis posent dans le domaine psychanalytique. À partir de le cadre de la nouveau cartographie de la sexualité, nous avons établi le dialogue entre Judith Butler et Slavoj Žižek sur le statut de la notion de la différence sexuelle pour la psychanalyse, avec le but de considérer comme la psychanalyse observe la constituition de la différence face à le modele binaire et hiérarchique de la division sexuelle, qui contribue à l'entretien de les règles du système sexe-genre, ou dans quelle mesure la théorie psychanalytique offre un déplacement du modele di-morphique da la différence sexuelle pour la autre forme de penser la différence, Il contribue pour la compréhension de l'alterité considéré comme indétermination et contingence. Cet itinéraire explore les interprétations de Butler de quelques concepts fondamentales de la psychanalyse freudienne e lacanienne, comme le complexe d'Edipe, et les considérations de Žižek sur la lecture de Butler. Le but finale de cet étude est valoriser le dialogue entre les auteurs contemporains pour la réalisation de nouvelles lectures psychanalythiques, qui démontrent la possibilite de la théorie psychanalythique être réexaminée et soumis à nouveau face à les nouvelles questions sócio-historiques.
Mots-clés: Psychanalyse, culture, sexualité, différence sexuelle, subjectivité.
Introdução
A partir da interface entre psicanálise e cultura, a reflexão que o presente artigo pretende trazer foi construída em torno da chamada nova cartografia da sexualidade (Arán, 2009) na época contemporânea. Mais especificamente, em torno daquilo que esta traz de discussão para as noções psicanalíticas de alteridade e diferença sexual, sendo a mesma disparadora de um campo de debate instigante para a psicanálise, pelos desafios que esta impõe à teoria: haveria na atualidade outra concepção de diferença, não mais restrita à descrição do feminino, realizada segundo a lógica do masculino? Entre os desdobramentos dessa nova cartografia, encontra-se espaço para pensar "diferentemente o diferente"1, reconhecendo de fato seu estatuto alteritário? De que forma a teoria psicanalítica se relaciona com as novas formas de manifestação da sexualidade e de subjetivação, e em que medida permite a incorporação de um novo modelo para pensar a diferença? Tais interrogações se tornam imprescindíveis na medida em que o estatuto transcendental da noção de diferença sexual pode funcionar como um obstáculo às novas (re)configurações das relações sociais e subjetivas (Arán, 2009).
Nos últimos cinquenta anos, deslocamentos significativos no campo da sexualidade vêm dando forma a uma nova cartografia da sexualidade. Os principais processos dessa mudança de cartografia seriam: (1) a escolarização das mulheres; (2) o fortalecimento da mulher no mercado de trabalho; (3) a separação entre sexualidade e reprodução; (4) a crise da forma burguesa da família nuclear; (5) uma política de visibilidade para a homossexualidade; (6) as modificações corporais realizadas por transgêneros, transexuais e intersexuais (Arán, 2009). Considerando-se as novidades do cenário contemporâneo no que tange à sexualidade, um campo de debate acerca do estatuto da noção de diferença sexual na teoria psicanalítica foi relançado, tendo em vista as repercussões dessas novidades no campo da cultura e, consequentemente, no interior do campo psicanalítico. As novas configurações da sexualidade acabam por interpelar velhos saberes, trazendo à tona impasses clínico/teóricos da psicanálise.
Em relação à psicanálise, o debate contemporâneo se funda a partir de uma questão central: a diferença sexual é reconhecida pelas teorias freudiana e lacaniana como uma formulação histórico-contingente ou é compreendida a partir de um modelo transcendental de diferença? Essa problematização da noção psicanalítica de diferença sexual tem sido proposta por autores (Arán, 2002; Birman, 1999; Butler, 1997; Néri, 2005; Nunes, 2002) que têm discutido como, em alguma medida, as teses clássicas da psicanálise embaralham a noção de diferença ao dimorfismo sexual. Considera-se que as teorias psicanalíticas sobre a sexualidade feminina e masculina, concebidas por meio dos conceitos de complexo de Édipo e de castração, repetem um modelo binário e hierárquico tradicional, cuja matriz de sustentação é a heterossexualidade normativa e as normas de gênero típicas da modernidade. Em último plano, tais conceitos submeteriam a constituição do outro enquanto figura de alteridade ao encontro com diferença sexual binária e hierárquica, o que fundamentaria uma perspectiva patológica acerca das novas formas de subjetivação.
Autores demonstram, assim, que na história dos conceitos psicanalíticos, pode-se observar um entrelaçamento entre as noções de alteridade e diferença sexual, e entre o conceito de outro com a ideia do outro sexo, o feminino. Segundo Nunes (2000) e Arán (2006), a experiência do masculino é adotada como paradigma hegemônico da subjetividade, restringindo as outras formas de subjetivação a um lugar marginalizado, de não reconhecimento. Nesse contexto, a diferença sexual anatômica e/ou estrutural é promovida a modelo transcendental da diferença, ficando subentendido na vivência moderna que o encontro com o outro passa pela experiência do encontro com o outro sexo, sempre feminino. A diferença é determinada a priori como sendo o outro-feminino, numa repetição incessante da identidade do eu-masculino.
Por outro lado, pode-se dizer que também existe uma história do saber sobre a sexualidade mesmo no interior da psicanálise, o que faz com que esse tema seja objeto de leituras divergentes, conforme o referencial conceitual que se impõe. No caso de Freud, como se pretende demonstrar, a teoria da pulsão traz rupturas frente à tese da identificação, deslocamento que vem sendo enfatizado no debate atual acerca da noção de diferença sexual na psicanálise. Nessa direção, a ideia de corpo erógeno poderia contribuir para se pensar a alteridade sem atrelá-la a uma diferença anatômica - entre homem e mulher - ou mesmo estrutural - entre as posições masculina e feminina.
Arán (2006, 2008) reconhece a centralidade do Édipo e do complexo de castração para a primazia do falo e do recalque da feminilidade. No entanto, propõe uma releitura sobre o corpo erógeno com o objetivo de sinalizar, na obra freudiana, os momentos de abertura à alteridade, tese compartilhada por Birman (1999), Nunes (2000) e Néri (2005). A partir da positivação da feminilidade e do deslocamento teórico para a questão da singularidade, as concepções sobre formas de subjetivação prescindiriam de um modelo transcendental, universal e vertical para referir-se ao outro (Arán, 2006).
Dessa forma, a reflexão que aqui se propõe tem como objetivo se aproximar do debate contemporâneo acerca das noções psicanalíticas de alteridade e diferença sexual por meio do diálogo travado entre dois autores contemporâneos, Judith Butler e Slavoj Žižek. Deter-se-á sobre a produção desses dois autores por se entender que ambos se encontram envolvidos com os impasses contemporâneos que assolam a psicanálise e que, a partir dessa relação, oferecem importantes contribuições ao pensamento psicanalítico no sentido de apontar para a possibilidade de realização de um deslocamento no interior da própria psicanálise para pensar "diferentemente a diferença".
Judith Butler é uma linguista norte-americana e atualmente leciona Literatura Comparada e Retórica na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É reconhecida como teórica do poder, gênero, sexualidade e identidade. Segundo Femenías (2003), Butler, como feminista, polemiza tanto com o feminismo ilustrado quanto com o pós-moderno, criticando ambos os movimentos por terem mantido conceitos binários sem questioná-los. As influências teóricas de seu trabalho são variadas, tendo em vista que a autora se posiciona tanto na escola inglesa (Austin, Searle) como na francesa (Deleuze, Derrida); além disso, se vale das obras de Foucault e dos pós-estruturalistas franceses para completar a sua herança teórica. Recebe ainda alguma influência da fenomenologia existencialista (Merleau-Ponty, Sartre), no que diz respeito ao interesse por temas sobre o corpo.
A autora norte-americana, tomando a análise crítica como método de investigação, ocupa-se da relação entre a sexualidade e a constituição da "identidade de gênero", entendida como um construto social, assim como do reconhecimento cívico-político dos indivíduos enquanto seres binários e compulsoriamente sexuados. A seu ver, o paradigma sexista ocidental, baseado no dimorfismo sexual, tal como descrito por Laqueur (2001), prescreve ao sujeito uma identificação normativa com o "sexo" binário.
Segundo Laqueur (2001), o modelo dos dois sexos surge a partir do século XVIII, com o Iluminismo, para organizar a sociedade em torno das definições de homem-público e mulher-privado, rompendo com a concepção de sexo único que vigorou durante a Antiguidade até o século XVII. Baseado em um paradigma teológico metafísico, o modelo do sexo único compreendia o sexo feminino como homólogo ao masculino, só que imperfeito e inferior. A visão dominante era a de que a mulher possuía os mesmos órgãos que o homem, porém internos. Propunha-se, então, que se tratava de uma inversão, explicada pela tese de que a mulher possuía uma menor quantidade de calor corporal, sendo o corpo feminino, por esse mesmo motivo, uma versão mais distante da perfeição do que a versão masculina. O calor, portanto, era tido como o responsável pela diferença entre homens e mulheres, que, apesar disso, compartilhavam uma única essência.
Ainda de acordo com Laqueur (2001), a partir do modelo do dimorfismo sexual a modernidade inaugura a associação da distinção entre homens e mulheres com a diferença sexual. Baseado em um paradigma cientificista orgânico, o sexo anatômico e biológico passa a determinar a diferença entre uma essência natural do sexo masculino e outra do sexo feminino. Os novos ideais de feminilidade e masculinidade são sustentados a partir da transformação da antiga hierarquia entre os sexos em um discurso biológico e cientificamente fundado, tornando indistinguíveis a morfologia sexual e o gênero.
A partir da tentativa de deslocar as categorias com que geralmente se pensa e conceitua a identidade, Butler (2002) propõe que o que se entende por "sexo" é um construto ideal regulativo que se materializa com o tempo. A linguagem como criadora de identidades sexuais binárias, fixas e excludentes, ignora a fragmentação interna de classe, cor, idade, religião e opção sexual, criando a fantasia da estabilidade e da coerência, cuja finalidade recai sobre o disciplinamento social. Nesse sentido, a linguagem se inscreve como o "locus significado", histórico e socialmente contingente.
Butler (2003) procura demonstrar, então, que a noção moderna de sujeito está estreitamente vinculada ao sexo normativo. Nessa empreitada, encontra-se com a teoria psicanalítica e se debruça sobre ela, reconhecendo seu peso enquanto teoria do sujeito. Ao tomar a psicanálise como objeto de leitura e as teses foucaultianas como referencial teórico, a autora desconstrói conceitos caros à teoria da sexualidade, propondo que a noção de diferença sexual na psicanálise remete a um modelo binário e hierárquico tradicional, cuja matriz de sustentação é a heterossexualidade normativa e as normas de gênero típicas da modernidade. Por intermédio do mecanismo de transformar modelos histórico-contingentes da sexualidade em modelos universais ou transcendentais a partir de dois procedimentos fundamentais, a reiteração incessante das normas de gênero e a delimitação de fronteiras entre o inteligível e o não-inteligível, a teoria psicanalítica cumpriria, assim, uma função normativa. Nesse sentido, a psicanálise é compreendida como um dispositivo de poder2 reinstaurador do modelo essencialista da diferença sexual, tendo em vista que suas teses se configuram como um operador de poder que fomenta formas de sujeição segundo o estabelecimento de fronteiras entre "gêneros inteligíveis" e "não-inteligíveis"3. Relendo os conceitos de complexo de Édipo e de identificação em Freud, a autora procura evidenciar como as regulações de gênero estão presentes nestes, tornando universal a lógica binária e hierárquica dos sexos.
A interlocução de Butler com a psicanálise se presentifica nos diálogos travados com Slavoj Žižek, sociólogo, filósofo e crítico cultural esloveno. Žižek é professor da European Graduate School e pesquisador sênior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É também professor visitante em várias universidades estadunidenses, entre as quais a Universidade de Columbia, Princeton, a New School for Social Research, de Nova Iorque, e a Universidade de Michigan. Sua obra gira em torno de temas como fundamentalismo, tolerância e subjetividades nos tempos pós-modernos.
A partir de seus estudos da obra lacaniana, discute as críticas de Butler à psicanálise, empenhando-se em clarear argumentos internos à própria teoria psicanalítica que sejam eficientes em distingui-la de um saber comprometido com a normatividade. Em contraposição às considerações de Butler (2002, 2003), Žižek (1999) defende que a teoria lacaniana da sexuação rompe com qualquer possibilidade de se conceber a sexualidade em termos normativos, tendo em vista que a relação do sujeito com seu próprio sexo e com o outro sexo é inserida no registro do real. O autor costura sua argumentação baseando-se no mapeamento do que entende ser uma "confusão teórica" de Butler, qual seja: a confusão entre os registros do imaginário, do simbólico e do real.
Žižek (1999) empenha-se em demonstrar que, para Lacan, o imaginário e o simbólico não recobrem toda a sexualidade, deixando um furo descoberto, nomeado de real. A seu ver, é nesse ponto, cuja condição é ser vazio de conteúdo, que se pode situar a diferença sexual. Tal tese sublinha a impossibilidade de se delimitar apenas simbólica e imaginariamente a diferença. A proposta de se compreender a diferença sexual como real valoriza a parte irrealizável de qualquer operação normativa, de forma que a constituição da alteridade permanece atrelada à diferença sexual, só que esta é tomada em sua vertente real, ou seja, enquanto diferença sem conteúdo ou, em outras palavras, enquanto encontro do sujeito com o limite do simbólico.
A fim de sistematizar melhor a apresentação do debate, discorre-se, primeiramente acerca das principais reflexões de Judith Butler sobre o dimorfismo sexual em Freud e sobre a diferença sexual no contexto do simbólico estrutural em Lacan, para, em seguida, se analisar o debate proposto por Zizek.
Sobre o Dimorfismo Sexual em Freud
Freud, em O Ego e o Id (1996d), relaciona as identificações que derivam da dissolução do complexo edípico à formação do núcleo do ideal do ego, estando todo esse percurso associado à consolidação da masculinidade ou da feminilidade no caráter da criança. Butler (2003) retomará o desenvolvimento teórico dessa proposta explicativa a fim de delimitar as contribuições da mesma para o entendimento da assunção daquilo que entende por gênero, mesmo que na psicanálise não haja tal categoria conceitual.
A revisão realizada por Butler (2003) das ideias freudianas perpassa pela tese do tabu do incesto, indicada pela autora nos textos de 1905, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, e 1913, Totem e Tabu. Designando uma lei que interdita a relação da criança com seu objeto de amor parental, ou seja, que recalca os prazeres pré-individuados associados ao corpo materno, o tabu aparece como elemento central tanto na constituição do sujeito quanto na fundação da civilização. Sob o ponto de vista da autora, ao ser elevada a pré-requisito imprescindível para a entrada do sujeito na cultura e para a formação da civilização, a interdição do incesto serviria à naturalização da distinção entre natureza e cultura, pois tem a função de limitar uma sexualidade dita "natural", "primitiva", e até mesmo "irrestrita" em prol de uma sexualidade "normal". Este dualismo remete a autora a outra polaridade hierárquica: a mãe a ser interditada fica associada à ideia de natureza, enquanto o pai, instrumento da interdição, relaciona-se à cultura. Para Butler (2003), trata-se de uma tese que prescreve a inferioridade do feminino frente ao masculino, já que descreve uma "superação", um "antes" e um "depois".
O estatuto de universalidade aplicado à proibição do incesto, a seu ver, confere inteligibilidade apenas a certo tipo de formação social. O tabu do incesto está inserido em uma concepção de lei autojustificativa, respaldada por uma narrativa sobre a origem "anterior" ao advento da lei que prescreve a sua necessidade e a sua inevitabilidade histórica, construção teórica que pretende universal uma configuração social histórica. No seu entender, o conceito de tabu do incesto indica a si mesmo como estrutura da fundação da civilização e da subjetividade, normatizando a polaridade hierárquica dos termos feminino-natureza / masculino-cultura.
O tabu do incesto, recolocado no âmbito do indivíduo, leva a autora a tomar a teoria do complexo de Édipo como objeto de análise. Em Problemas de Gênero (Butler, 2003), faz referência a dois textos freudianos, um de 1917, Luto e Melancolia (Freud, 1996c), e outro de 1923, O Ego e o Id (Freud, 1996d). O primeiro é caro à psicanálise no que concerne à elaboração feita sobre a questão da identificação e à introdução do conceito de ideal do ego. Apesar de o relato clínico sobre o homem dos Lobos, de 1918, apresentar o Édipo completo, com os sentimentos ambivalentes da criança frente aos dois genitores, é somente em 1923 que este é colocado em primeiro plano, articulando-se ao processo identificatório e à formação do núcleo do ideal do ego, instância da personalidade resultante da convergência dessas identificações e do narcisismo com os ideais coletivos (Laplanche & Pontalis, 2001). Se no primeiro texto citado por Butler (2003) Freud trabalha o processo melancólico como patológico, no segundo, o autor aponta para o fato de que este se faz tipicamente presente na formação das identificações originadas a partir da dissolução do complexo de Édipo. A compreensão do quadro clínico da melancolia oferece subsídios para o autor construir um sistema explicativo acerca do modo como os investimentos da criança em relação a seus pais são abandonados e substituídos por identificações que a estruturam psiquicamente. Revendo esses dois artigos de Freud, Butler (2003) articula a ideia de que o ideal do ego "visa o campo intersubjetivo e trabalha com modelos, normas e valores" (Mezan, 2006, p. 294) à concepção de gênero como norma. A partir dessa ponte, procura compreender de que forma as normas de gênero histórico-contingentes são transformadas em normas psíquicas.
A tese central de Freud em 1917 é a de que a identificação melancólica ocorre em consequência de uma perda objetal, em que a libido que esteve investida no objeto, a partir de sua perda, é retraída em direção ao ego. Trata-se de um mecanismo em que o objeto perdido é introjetado no próprio ego. Butler (2003) constrói sua descrição da psicanálise a partir do seguinte princípio: se a melancolia ocorre pela perda de um objeto de amor, então, é válida para pensar a formação de gênero, em que o objeto perdido coincide com o objeto interditado pelo tabu do incesto.
Em O Ego e o Id (1996d), o autor declara que o "caráter do ego é um precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém a história dessas escolhas de objeto" (Freud, 1996d, p. 42). Dessa forma, a introjeção no ego do objeto perdido aparece como um destino possível às escolhas de objeto edipianas recalcadas. Enquanto Freud restringe o alvo da interdição do incesto ao objeto de desejo (a pessoa amada), a autora sugere que, nessa teoria, encontra-se subentendido outro alvo: a modalidade de desejo homossexual. Incluir a proibição da modalidade de desejo homossexual na perda do objeto de mesmo sexo confere à libido o destino necessário da identificação melancólica. A partir do formato completo do Édipo, Butler (2003) pretende demonstrar o que entende ser uma distinção dos vínculos edípicos segundo seu cunho homo ou heterossexual, o que se evidencia nos desfechos destinados pela teoria a cada um destes. A autora oferece a seguinte leitura: a relação objetal cujo objetivo é heterossexual exige a repressão do objeto, que, desencadeando um processo de luto, desloca a libido para outros objetos que não o interditado, mas de mesmo sexo que este. Já a relação objetal cujo objetivo é homossexual exige a foraclusão do objetivo, o que é possível pelo desenvolvimento de uma identificação melancólica. A modalidade heterossexual consolidaria a identidade de gênero, permanecendo presente na formação do sujeito, só que deslocada para outros objetos, que não o progenitor. Ao contrário, no que se refere à modalidade de desejo homossexual, esta seria foracluída junto com o objeto do mesmo sexo. Em Cuerpos que importan, Butler (2002) observa que, anterior à repressão que incide sobre a criança e o genitor de sexo oposto estaria a necessidade de foraclusão da união com o objeto de mesmo sexo, que serve à negação de certas perdas, visto que designa uma privação que acontece fora do circuito autorreflexivo. Por entender que, dessa maneira, o gênero é fundado por meio da instituição de perdas que devem ser renegadas, a autora nomeia tal mecanismo com o termo "melancolia de gênero".
No caso de uma união heterossexual proibida, é o objeto que é negado, mas não a modalidade de desejo, de modo que o desejo é desviado desse objeto para outros objetos do sexo oposto. Mas no caso de uma união homossexual proibida, é claro que tanto o desejo como o objeto requerem uma renúncia e, assim, se tornam sujeitos às estratégias de internalização da melancolia (Butler, 2003, p. 93).
A articulação freudiana entre os complexos de Édipo e de castração é outro ponto de discussão de Butler (2003), que subentenderá na tese do "medo da castração" um "medo de castração". A sugestão da autora se inicia com a seguinte constatação: se Freud aponta que a criança será obrigada a fazer uma escolha entre dois tipos de objeto, ou mais precisamente, entre dois tipos de predisposições sexuais (masculina e feminina), também afirma ser mais comum a escolha heterossexual. Essa generalização é explicada pelo medo do menino frente à ameaça da perda do pênis infligida pelo pai, o que, para Butler (2003), recobre outra motivação: o medo de castração, isso é, o medo da "'feminização', associada à homossexualidade masculina nas culturais heterossexuais" (Butler, 2003, p. 94). Segundo a autora, a psicanálise manteria o feminino como impensável e inominável mesmo na masculinidade consolidada, o que reconhece como um processo de delimitação de fronteiras entre o aquilo que é inteligível e o que não o é. A "perda" e o "recalque" devem ser reiteradamente reforçados, excluindo uma vez mais o que já foi excluído.
Para Butler (2003), o motivo para que a psicanálise faça essa distinção entre o vínculo afetivo da criança com o genitor de mesmo sexo e aquele com o de sexo oposto é o que a liga a uma matriz heterossexista. No seu entender, a teoria acerca da identidade sexual em Freud não levaria em conta o fato de que a heterossexualidade e a dominação masculina são normas sociais e contingentes, vulneráveis ao campo histórico e passíveis de transformação. A crítica recai, assim, sobre a tendência da psicanálise a universalizar identidades sexuais, quando estas são contextuais.
Freud (1996d) reconhece o quanto é difícil obter uma inteligibilidade sobre as primitivas escolhas de objeto e identificações, atribuindo tal complicação à bissexualidade original e constitucional da criança e à conseqüente versão completa do Édipo. O autor se vê às voltas com a necessidade de explicar como as quatro tendências descritas pelo complexo se transformarão a ponto de produzir uma identificação paterna ou uma identificação materna, sendo que a primeira "preservará a relação de objeto com a mãe, que pertencia ao complexo positivo e, ao mesmo tempo, substituirá a relação de objeto com o pai, que pertencia ao complexo invertido; o mesmo será verdade, mutatis mutandis, quanto à identificação materna" (Freud, 1996d, p. 46). Nesse texto, o autor se refere à ideia de que uma das disposições sexuais prevalecerá em qualquer indivíduo, de forma que uma identificação se tornará mais intensa e consolidada.
Tal noção de bissexualidade chamará a atenção de Butler (2003) quanto à reprodução de uma suposta associação rígida e apriorística entre identidade e objetivo sexual, condicionando a disposição feminina a um objeto amoroso masculino e vice-versa. Nessa visão, Freud conceberia as disposições bissexuais como "a coincidência de dois desejos heterossexuais em um só psiquismo", o que implica a ideia pressuposta de que "só os opostos de atraem".
A conceituação da bissexualidade em termos de predisposições, feminina e masculina, que têm objetivos heterossexuais como seus correlatos intencionais sugere que, para Freud, a bissexualidade é a coincidência de dois desejos heterossexuais no interior de um só psiquismo. Com efeito, a predisposição masculina nunca se orienta para o pai como objeto de amor sexual, e tampouco se orienta para a mãe a predisposição feminina (a menina pode assim se orientar, mas isso antes de ter renunciado ao lado "masculino" da sua natureza disposicional). Ao repudiar a mãe como objeto do amor sexual, a menina repudia necessariamente sua masculinidade e "fixa" paradoxalmente sua feminilidade, como uma consequência. Assim, não há homossexualidade na tese de bissexualidade primária de Freud, e só os opostos se atraem [grifos da autora] (Butler, 2003, p. 96).
Outra objeção da autora em relação à tese da bissexualidade recai sobre os momentos em que Freud não abre mão da ideia de que existe uma "tendência" ou uma "predisposição" que acabará por provocar o recalque da bissexualidade primária em direção à consolidação identitária. Dessa maneira, a psicanálise freudiana estaria sugerindo a existência da bissexualidade apenas enquanto uma configuração sexual que deve ser superada pelo fortalecimento de uma sexualidade "secundária", limitando-se a uma interpretação hierárquica da identidade de gênero. A noção de bissexualidade primária é criticada por restritivamente referir-se a um "antes" e um "depois", servindo como uma construção teórica que naturaliza uma distinção entre a heterossexualidade legítima e a homossexualidade ilegítima.
Os conceitos de complexo de Édipo e de disposições bissexuais oferecem a Butler (2003) uma maneira de situar na teoria psicanalítica a construção primária de gênero. A contestação quanto à fixidez das posições masculina e feminina incide sobre a narrativa teórica freudiana que, a seu ver, se baseia no dimorfismo sexual para pensar a diferença e, consequentemente, acaba por cristalizar o outro em um modelo binário e hierárquico.
Butler não é a única autora a indagar o campo psicanalítico em relação à noção de diferença sexual. Antes dela, outras investigações levaram à associação da psicanálise ao paradigma binário e hierárquico da diferença sexual. E autores pós-freudianos já haviam produzido movimentos teóricos em relação aos conceitos fundamentais no que tange à sexualidade, como é o caso de Lacan, cuja obra é atravessada por algumas leituras do complexo de Édipo e que, por isso mesmo, é também um autor sobre o qual Butler se debruça.
A Diferença Sexual no Contexto do Simbólico Estrutural
No texto A Significação do Falo, Lacan (1998) procura compreender os efeitos sobre o sujeito do seu atravessamento pelas estruturas da linguagem, o que o leva a postular a função significante do falo. Sob seu ponto de vista, rompe-se, assim, com qualquer tentativa de se estabelecer a relação entre os sexos em termos biológicos ou sociológicos. A diferença sexual anatômica dá lugar a duas posições estruturais, originadas no interior mesmo da linguagem e que refletem dois modos de se relacionar com o falo: a de "ser" e a de "ter" o falo.
Apesar de reconhecer o mérito de Lacan por romper com visões essencialistas sobre o sujeito e, consequentemente, sobre homens e mulheres, Butler (2003) declara que o autor constrói outra ontologia do ser, já que insiste numa concepção de simbólico em que este é uma estrutura universal que precede a existência, pré-determinando-a. O raciocínio de que o "ser" é produzido pelas estruturas de significação, podendo denotar posições e funções variáveis, se faz plausível a partir do apelo a conceitos transcendentais, qualidade que a autora questiona, tendo em vista a sua anterioridade frente às subjetividades. Ao invés de conferir explicações, tais conceitos passam a fornecer e forçar as delimitações entre os campos do que é inteligível e do que não é. Dessa forma, se a diferença sexual, sob o ponto de vista da psicanálise lacaniana, não é anátomo-biológica, é, no entanto, restrita a apenas duas posições do interior da linguagem: a de "ser" e a de "ter" o falo.
Na visão de Butler (2003), os mecanismos de diferenciação descritos por Lacan ficam sempre atrelados à figura do pai, enquanto à mãe é conferido o poder potencial de alienação e a consequente manutenção da indistinção entre ela e a criança. Se o Édipo prescreve duas funções, denotadas "paterna" e "materna", das quais o sujeito depende para a sua constituição e para a sua entrada no simbólico e na cultura, então, a lógica lacaniana normatizaria a dualidade mulher-natureza / homem-cultura. Tomar como um a priori transcendental a equação mãe-alienante / pai-separador faria da psicanálise um saber comprometido com as normas de gênero, tendo em vista que o simbólico e a diferença ficam localizados apenas no âmbito do "masculino", associado à função "paterna"; enquanto que a dimensão "feminina" e "materna" se restringiria ao domínio do "fora", ou ainda, daquilo que é "anterior" ao simbólico, à cultura e à civilização (Arán, 2008). Assim, Lacan evocaria coordenadas típicas de uma forma específica de subjetivação, respaldadas na experiência masculina e datadas de uma sociedade que exclui a alteridade em uma lógica de dominação, transformando-as em modelo único da constituição subjetiva.
No espaço em que Lacan propõe conceber a posição das mulheres como a de "ser o significante do desejo do Outro", Butler (2003) lê que o "ser" feminino é ser objeto de um desejo masculino heterossexualizado. Essa noção estrutural do feminino não confere ao mesmo uma dimensão alteritária, visto que é atravessada por uma interpretação masculina acerca das mulheres; uma autoelaboração dos homens que não compreende o outro em sua diferença, mas apenas em sua objetificação.
A autora chama a atenção ainda para a dialética conferida à identidade feminina: "ser" o falo e, ao mesmo tempo, ser seu Outro: a mulher, a quem falta o falo, é também quem o falo é. Sublinha esse paradoxo como o que condiciona as posições sexuadas a uma relação simultaneamente excludente e dependente, visto que "ser" o falo para quem o tem garante a ilusão do sujeito masculino de "ter" o falo. "Ter" o falo é ter a ilusão de uma autonomia, mascarada e desmascarada pela mulher a todo o momento. A mulher é fundamental para o estabelecimento e a manutenção da ilusória autonomia masculina, mas também pode revelar sua incoerência. No entender da autora, essa relação de dependência entre os sexos é negada e afirmada pela psicanálise em um movimento pendular ininterrupto: ora o sujeito deve ser afastado do corpo materno, recalcando os prazeres incestuosos, ora o corpo materno retorna em objetos substitutivos, como deslocado para o corpo da mulher-objeto de escolha.
Para Butler (2002), a tese lacaniana de que as posições sexuais são estruturadas pela linguagem e instituídas por demandas simbólicas por meio das relações constitutivas da vida cultural conferiria à identidade de gênero um aspecto fantasístico, visto que, identificar-se com uma posição simbólica implica jamais alcançá-la. "Ter" e "ser" o falo são, na verdade, posições idealizadas e impossíveis, estando fadadas ao fracasso no nível da experiência subjetiva. A seu ver, enquanto o simbólico é compreendido como invariavelmente fantasístico, não compartilhando medidas com a realidade, sua função é a de sustentar a "inevitabilidade" dessa distância entre identificação imaginária e posição simbólica, reforçando a importância de o sujeito se ajustar ao modelo.
No entendimento de Butler (2002), as chamadas "posições estruturais" carregam uma "promessa" que é a oferta reiterada de uma identidade fixa e invariável, cuja consolidação, na realidade, jamais alcançável, serve à prescrição de exclusões e de delimitações de fronteiras. Dessa forma, conclui que a ameaça de castração que acompanha a assunção do sexo na teoria psicanalítica é justamente o temor de ocupar as identidades não-inteligíveis. Enquanto um dispositivo de poder, a psicanálise organiza-se em torno de regimes de enunciação, distribuindo o visível e o invisível, o dizível e o indizível, de forma que a "assunção" de uma identidade necessariamente passa pela exclusão de outras.
Assim, verifica-se a impossibilidade necessária ou pressuposta de todo esforço para ocupar a posição de "ter" o Falo, com a consequência de que ambas as posições, a de "ter" ou a de "ser", devem ser entendidas nos termos de Lacan, como fracassos cômicos, todavia obrigados a articular e encenar essas impossibilidades repetidas (Butler, 2003, p. 77).
Em outro momento do seu percurso teórico, em que há um deslocamento da primazia do imaginário e do simbólico para a do real, Lacan propõe dois modos de gozo para indicar a constituição sexual do sujeito. Nessa ocasião, encontra-se às voltas com o impacto dos paradoxos constitutivos do que nomeou de "sexuação" e com a questão do gozo, mas do que com a do desejo, o que lhe permite construir as fórmulas da sexuação como uma tentativa de dar inteligibilidade aos modos de gozo dos sujeitos inseridos na linguagem. A novidade teórica das fórmulas frente às posições estruturais diz respeito ao reconhecimento de uma dimensão "para além da lógica fálica", relacionada ao modo feminino de gozar.
Nas fórmulas, o autor distribui os indivíduos em duas metades por meio do uso de funções proposicionais. Ser homem ou ser mulher é definido pela posição do sujeito em relação ao Outro e ao objeto, de modo que as fórmulas dizem respeito a formas particulares de viver a pulsão, cujo objeto, vale lembrar, é fundamentalmente assexuado. Isso significa dizer que, em sua origem, a sexualidade não está ligada a uma diferenciação dos sexos.
As fórmulas de sexuação, escritas por Lacan no seminário XX, Mais, ainda (1972-1973), são divididas em lado esquerdo, que seria o lado masculino, e lado direito, o feminino, cada um dos quais é designado por duas proposições, que estão escritas na parte de cima da tábua. Tem-se para a posição masculina: (1) que "existe um x tal que não PHI (x)" (David-Ménard, 1998, p. 97), ou seja, "existe ao menos um x tal que a função fálica não se aplica a x" (Grasseli, 2008, p. 13); e (2) "para todo x PHI (x)" (David-Ménard, 1998, p. 97), quer dizer, "para todo x é verdadeiro que a função fálica se aplica ao x" (Grasseli, 2008, p. 13). Assim, o lado esquerdo e masculino da fórmula considera, a partir da proposição na linha inferior, que todo homem está no âmbito da castração, mas que tal característica só se faz reconhecida pela existência de uma exceção, escrita na linha superior: pelo menos um não é castrado. Lacan, inspirado pela função de desvio do pai da horda do texto freudiano Totem e Tabu (Freud, 1996b), formula que essa exceção é justamente a função do pai, que subsistiria no inconsciente masculino, reiterando a confirmação da regra geral de que o que torna alguém homem é a marca da falta (David-Ménard, 1998).
Já para o lado feminino, pode-se ler: (1) "não existe x tal que não PHI (x)" (David-Ménard, 1998, p. 98); em outras palavras, "não existe ao menos um x tal que a função fálica não se aplica ao x" (Grasseli, 2008, p. 13); e (2) "não é para todo x que PHI (x)" (David-Ménard, 1998, p. 98), ou seja, "para não-todo x é verdadeiro que a função fálica se aplica ao x" (Grasseli, 2008, p.13). A fórmula indica que "não existe nenhuma mulher que não tenha relação com a lógica da castração" e, ainda, que "não é tudo, de uma mulher, que está ligado com esta função" (David-Ménard, 1998, p. 98-99). A primeira proposição, a de que todas as mulheres estão referidas à função fálica, é verdadeira porque é a "definição possível [...] para o que quer que se encontre na posição de habitar a linguagem" (Lacan, 1993, p. 107). Porém, tal função não esgota o destino feminino. Lacan fala em um "suplemento" de gozo, dimensão pela qual as mulheres se relacionam com o real, o que, por sua vez, os homens só estabelecem por meio da mediação da fantasia. Estar "não toda" na função fálica enuncia um "gozo a mais" para além do simbólico, denota aquilo que escapa ao discurso, mas que, ao mesmo tempo, se ancora nele, assim como se sustenta na falta que lhe é inerente.
O universal fundado a partir da referência ao falo inaugura a dissimetria entre os sexos, denotando que "homem" e "mulher" representam duas possibilidades do sujeito falante, duas vertentes da estrutura, não podendo ser entendidas como gênero. Lacan também pretende romper com qualquer tentativa de subentender uma essência masculina e feminina. A anatomia sexual pode estar implicada na questão do sexo frente ao "eu", enquanto síntese imaginária, porém, sob o ponto de vista do autor, o sexo é uma questão do sujeito, para quem a vivência empírica dos genitais não confere obrigatoriedade. Ao sujeito será imputado o significante "homem", caso se alinhe na função fálica, ou "mulher" caso se posicione "não toda" na mesma.
Não é a lógica fálica em si que faz a diferença entre os sujeitos, mas a posição subjetiva pela qual os sujeitos se colocam submetidos a ela. Para os falantes, não se trata tanto de identidades sexuadas, mas de posições, como Lacan pôde valorizar cada vez mais ao longo de seu ensino. Cada uma das posições subjetivas é determinada no próprio discurso do sujeito, podendo ir contra a sua própria anatomia. Isso porque, nesse contexto teórico, não há relação a priori entre um sexo biológico e uma posição sexuada.
Arán (2006) chama a atenção para o fato de que postular um "para além" da lógica fálica implica reconhecer a sua limitação. A construção sobre o feminino pela negativa - não toda na lógica fálica -, se levada a radicalidade, subverteria a lógica da primazia do falo e do simbólico, pois demonstraria seu ponto de basta e sua insuficiência para a reflexão acerca das mulheres. Dessa forma, inscrever o feminino como "não todo" na lógica fálica significa transgredir o "monismo fálico" e demonstrar sua falência. Afinal, se a mulher é não-representável pela lógica fálica, isso exigiria o reconhecimento de outras lógicas alteritárias à fálica.
Há que se supor a existência do lado feminino, que não pode ser definido apenas como negativo. A positivação do feminino exigiria pressupor não apenas um além do falo, mas, antes de tudo, uma outra forma de erotismo, que não tenha no falo a sua referência (Arán, 2006, p. 137).
No entanto, a autora sugere que Lacan não teria seguido esse mesmo raciocínio, pois ficou preso à ideia de que não há representação positiva que conceba a mulher. A declaração lacaniana de que "a mulher não existe" retrata que as sentenças negativas ("não toda", "não existe") permanecem sendo o único recurso para se descrevê-la, atrelando-a à ideia de "falha" ou "falta". Nesse sentido, Lacan não levaria a potencialidade subversiva de sua tese adiante e abandonaria qualquer possibilidade de reconhecimento da alteridade, dando, ao contrário, continuidade a uma concepção masculina do feminino, em que este é visto como misterioso e inacessível. Para David-Ménard, o gozo feminino "só parece aos homens tão misterioso porque não tem como alavanca o único gozo representável para eles, do qual seu sexo é o emblema" (David-Ménard, 1998, p. 107).
Em contraposição, comentadores de Lacan argumentam que a lógica do gozo "a mais" não desconsidera as mulheres, posto que lhes confere um gozo suplementar. Enquanto o sujeito do gozo fálico se sente frustrado, pode-se dizer que uma mulher "goza dela mesma enquanto Outra a ela mesma" (André, 1998, p. 224). Autores indicam ainda que, sob a ótica do gozo, o sujeito se distancia da materialidade de seu sexo, pois as fórmulas se referem a dois modos a partir dos quais os sujeitos falantes se inserem na função fálica. Não é a função em si que os faz diferentes; a diferença está na posição subjetiva por meio da qual os sujeitos se anunciam submetidos à lógica fálica. Dessa forma, os lados das fórmulas não correspondem a priori a nenhum sexo anatômico; tanto homens quanto mulheres podem se posicionar de um lado ou de outro.
Ainda assim, as fórmulas da sexuação são problematizadas quanto a seu caráter categórico, qual seja, a imposição de que o ser humano deve se determinar masculino ou feminino, mesmo que essa determinação independa de sua anatomia sexual. Apesar de Lacan não associar as mulheres ao lado direito da fórmula e os homens ao lado esquerdo, restaria ainda uma imposição: um lado ou outro. Nessa leitura, a sexuação descrita pelas fórmulas, sendo restrita a apenas duas posições, não faz jus à sua intenção de demonstrar os paradoxos da constituição sexual. A repartição em dois aparece para os críticos de Lacan (Arán, 2006; Butler, 2002) como uma necessidade da teoria, uma necessidade pressuposta e imperativa, típica de um dispositivo de poder. Outras sexualidades, que não se enquadram nessa ordem, trazem à tona a artificialidade das categorias binárias, caso, para Butler (2002, 2003), das ditas "perversões", como a homossexualidade e o fetichismo. A existência dessas sexualidades apesar da heterossexualidade indica o status de resistência das primeiras frente à hegemonia da última. Se onde há resistência há poder, então, as sexualidades "perversas" provam o fracasso da diferença sexual binária enquanto injunção social normativa. O que a autora pretende sinalizar por intermédio dessa observação da "falha" da heterossexualidade é que esta corresponde a uma construção histórico-contingente que foi transformada em norma pelo exercício repetitivo do poder disciplinar. A autora pretende demonstrar, assim, que o gênero é uma categoria suscetível a modificações, sendo sua constituição influenciada pelas contingências sócio-históricas.
Do Debate aos Deslocamentos
Em alusão aos "corpos que não se enquadram" e ao sofrimento de sujeitos frente às normas hegemônicas de gênero, Butler, Laclau e Žižek (2000) convocam o campo psicanalítico ao debate quando defendem que a noção psicanalítica de diferença sexual permanece atrelada até hoje ao paradigma moderno, binário e hierárquico. A interlocução entre sua teoria e a psicanálise se presentifica nos diálogos travados com o sociólogo, filósofo e crítico cultural esloveno, Slavoj Žižek, mais precisamente no livro Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left, publicado em 2000.
A partir das leituras de Butler sobre Freud e Lacan, Žižek (1999) constrói uma defesa das fórmulas da sexuação frente às críticas quanto ao seu caráter normativo, baseando-se no mapeamento do que entende ser uma "confusão teórica" da autora, entre os registros do imaginário, do simbólico e do real. Empenha-se, assim, em clarear argumentos internos à própria teoria psicanalítica que sejam eficientes em distingui-la de um saber comprometido com a normatividade. Numa tentativa de ir além da face conflitiva do debate, pode-se indagar se Žižek se restringe a mapear o que seria a "confusão" de Butler ou se, para além disso, o autor põe em movimento a teoria psicanalítica, oferecendo algumas saídas para os impasses desta frente à nova cartografia da sexualidade. O que interessa nesse campo de contraposições entre os dois autores é dar espaço aos efeitos frutíferos do desencontro teórico, é a possibilidade de a psicanálise deslocar-se desses lugares intocáveis, sejam eles os de algoz ou de vítima.
Diante da leitura que Butler realiza de Freud e Lacan, Žižek (1999) costura uma argumentação teórica a partir da distinção entre os registros do simbólico, do imaginário e do real, no que tange à sexualidade. A teoria de Lacan, assim como a de Butler, compreende a ideia de que há uma alienação fundamental do sujeito ao campo sócio-simbólico, ao qual sua existência está condicionada. No entanto, o que Žižek parece sublinhar em relação à teoria lacaniana da sexualidade é justamente o fato de que, ao deslocar a problemática da identidade sexual para a da sexuação, ela insiste na existência de uma brecha, um furo, um mau êxito em qualquer regulação normativa. A noção de sexuação compreende a existência de algo que sempre falha em se inscrever, tanto imaginária quanto simbolicamente, e que corresponde ao real da diferença sexual.
De acordo com essa tese, sempre existe uma lacuna entre o real da diferença sexual e as formas simbólicas da sexualidade, sejam essas heterossexuais ou não. Toda e qualquer identidade simbólica é determinada historicamente e depende de um contexto ideológico específico. Ao mesmo tempo, toda e qualquer formulação sexual simbólica não dá conta de simbolizar o real da diferença sexual, pois este não é passível de simbolização. Falar de diferença sexual produz sempre um resto inominável, um "miolo" que resiste à simbolização e que é concebido por Lacan como um limite inerente à linguagem.
Žižek (1999) empenha-se, então, em distinguir a diferença sexual como real e a heterossexualidade como simbólica. A psicanálise lacaniana anuncia a diferença sexual como real no sentido de que esta nunca pode ser toda simbolizada, não é passível de ser transposta para normas simbólicas, como, por exemplo, para a divisão de gênero masculino/feminino. Trata-se, então, de uma diferença da ordem do inominável, que o inconsciente tentará delimitar por meio da cadeia significante, tal como se rodeia a margem de um furo. O estatuto real da diferença sexual confere a esta a impossibilidade de se enquadrar em normas simbólicas quaisquer. A noção de diferença sexual assim entendida não pode ser vista como uma função normativa, justamente porque se refere a um limite da articulação simbólica.
It thus seems more productive to posit as the central enigma that of sexual difference - not as the already established symbolic difference (heterosexual normativity) but, precisely, as that which forever eludes the grasp of normative symbolization (Žižek, 1999, p. 271)4.
Os efeitos do real na sexuação são indicados, sob a ótica psicanalítica, mediante um paradoxo: perder o próprio sexo, para sê-lo. Isso significa que para tornar-se mulher não se renuncia à masculinidade, mas sim à feminilidade enquanto algo que se completa. O que se perde no "tornar-se mulher" é a própria possibilidade de tornar-se verdadeiramente mulher, fato que a figura da "mascarada"5 representa, ao mascarar a falha em ser mulher. Com o homem não seria diferente. Em Lacan, a ênfase recai no embaraço do sujeito com o seu próprio sexo, compreendendo que a constituição sexual não se dá sem certa inquietação.
A fim de exemplificação, Žižek (1999) utiliza-se de uma máxima lacaniana, segundo a qual "o louco não é apenas o indigente que pensa ser rei, mas também o rei que pensa ser rei" (Lacan, citado por Žižek, 1999, p. 247). Isso significa dizer que é "louco" quem percebe seu mandato simbólico como diretamente baseado no real do seu corpo, e quem acaba por confundir a distinção entre o vazio simbólico e a lacuna da realidade, a ordem das "palavras" e a ordem das "coisas". O enunciado lacaniano é de grande utilidade para trabalhar o paradoxo dialético do que Lacan denominou de "castração simbólica", o fato de que uma entidade torna-se X apenas quando renuncia a ser X. Existe uma lacuna entre o lugar simbólico e o elemento que o preenche, de forma que se ocupa um lugar exatamente quando não se é esse lugar.
A castração se dá pelo fato de que, estando-se sujeito à ordem simbólica, há uma distância intransponível entre o que se é no imediato e o título simbólico que se assume, o que revela a impossibilidade de o sujeito identificar-se completa e imediatamente com sua identidade simbólica. Privada de sua insígnia simbólica, a identidade "se derrite como un muñeco de nieve al sol" (Žižek, 2008, p. 44). Nesse sentido, a noção de "castração simbólica" refere-se a um corte cuja função é sustentar o domínio do que está "entre" o abismo intransponível que se faz entre o real e as simbolizações, a partir do qual Lacan pensa a diferença sexual.
Dessa forma, a "castração simbólica" não é o nome do limite do simbólico no sentido daquilo que interrompe o fluxo das múltiplas simbolizações, mas é justamente o que sustenta um espaço para estas. O fato de que nenhum conteúdo simbólico preenche por completo o real é justamente o que impede que a corrente das simbolizações se interrompa.
In short: yes, of course, the way we symbolize sexuality is not determined by nature, it is the outcome of a complex and contingent socio-symbolic power struggle; however, this very space of contingent symbolization, this very gap between the Real and its symbolization, must be sustained by a cut, and "symbolic castration" is the lacanian name for this cut. So "symbolic castration" is not the ultimate point of symbolic reference which somehow limits the free flow of the multitude of symbolizations: on the contrary, it is the very gesture which sustains, keeps open, the space of contingent symbolizations (Žižek, 1999, p. 275)6.
A "castração simbólica" sustenta um aspecto de impossibilidade em qualquer identidade, lugar mesmo das contingências simbólicas. O que, como Žižek explica na observação que segue, submete os sexos a um antagonismo real entre eles, e não apenas a uma diferenciação simbólica em que um sexo se define em oposição ao outro. Um antagonismo real significa que o embaraço do sujeito na relação com o outro sexo não vem do outro sexo enquanto diferença, mas que a diferença do outro sexo vem exaltar o real do próprio sexo, ou a sua impossibilidade simbólica.
"There is no sexual relationship" not because the other sex is too far away, totally strange to me, but because it is too close to me, the foreign intruder at the very heart of my (impossible) identity (…) So when we claim that, in order to become a man, one must first lose oneself as man, this means that sexual difference is already inscribed into the very notion of "becoming a man"(Žižek, 1999, p. 272/273)7.
Žižek (1999) propõe, então, que a diferença sexual em Lacan deve ser lida como um "conceito vazio", um conceito que não pode ser todo recoberto por seu conteúdo, havendo sempre um "resto" irrepresentável. Trata-se de um termo que não representa nada, cujo vazio semântico é a oportunidade de uma série de investimentos fantasmáticos. A diferença sexual é justamente aquilo que escapa às imposições simbólicas e, ao mesmo tempo, é furo em torno do qual a prática de simbolização se torna possível. As articulações imaginárias e simbólicas, históricas e contingentes, não recobrem tudo da distinção dos sexos, produzindo sempre um resto de real. Essa dimensão da diferença sexual que escapa aos bordados simbólicos e imaginários é o que institui essa noção como um "conceito vazio".
Com Žižek, pode-se pensar que, se Lacan insiste em que os processos de socialização e individuação têm como eixo central a sexuação, não se trata da sexualidade como algo que ancora o sujeito no campo da natureza como plano positivo de doação de sentido, mas da sexualidade como o que coloca o sujeito diante do que há de absolutamente negativo e indeterminado no ser humano.
Considerações Finais: Da Diferença Sexual à Alteridade
O estatuto da noção de diferença sexual na teoria psicanalítica é problematizado por autores contemporâneos, psicanalíticos ou não, e ganha um vulto importante na atualidade, tendo em vista a sua relevância frente ao cenário da nova cartografia da sexualidade. Por intermédio das leituras de Judith Butler e Slavoj Žižek, percorreram-se pontos importantes desse campo de discussão que se constitui na interface entre psicanálise e cultura.
Para Butler (2002, 2004), toda proposição sobre a diferença sexual é baseada em normas de gênero histórico-contingentes, ou seja, em injunções sociais normativas. O que a autora compreende como um equívoco psicanalítico é que nem Freud e nem Lacan levaram em consideração a faceta histórico-contingente de suas próprias teorias, transformando certos modelos normativos em enquadres universais. Nesse sentido, não se trata apenas de um equívoco, pois, ao se limitarem a explicar a aquisição somente dos "gêneros inteligíveis", tais autores estariam cooperando para a manutenção da organização social baseada no binarismo hierárquico. Freud e Lacan não só recuariam diante da tarefa de analisar as relações de poder inseridas nas questões de gênero como, principalmente, recuariam diante da possibilidade de transformação social.
Para demonstrar sua tese de que a teoria psicanalítica contribui para que alguns gêneros não tenham inteligibilidade cultural e para que se tornem relegados à esfera da não-aceitação, Butler explora, na trama de alguns conceitos psicanalíticos, a expectativa da coerência entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. No entanto, apesar de a autora insistir na importância de a questão da diferença sexual permanecer em aberto, não resolvida, no capítulo "The End of Sexual Difference?", do livro Undoing Gender (2004), empenha-se em pensar, por meio do conceito psicanalítico de pulsão, uma forma de desatrelar a diferença sexual da normatividade heterossexual.
A aproximação da noção psicanalítica de pulsão é uma tentativa de ultrapassar a dificuldade de se determinar, em relação à diferença sexual, onde se inicia e termina o biológico, o psíquico e o social. Considerando-se a pulsão como uma noção para a qual converge aquilo que há entre a cultura e a biologia, porém, que se diferencia de ambas, tal conceito fundaria um campo de tematização daquilo que não é apreensível na sexualidade, e que provoca o fato de que as significações do corpo extrapolam as intenções do sujeito. A pulsão, assim, evidencia a dimensão corporal que não pode ser totalmente representada, mas que dirige todo sujeito sem que, no entanto, o mesmo possa conhecê-la.
O intuito de Butler é o de priorizar a possibilidade de transformação da pulsão, pois tendo em vista que esta se desloca e se transforma, pode-se apostar em uma pluralização da noção de diferença sexual (Porchat, 2007). A introdução do termo "diferenças sexuais" é uma tentativa de fazer jus à multiplicidade de identidades sexuais. Mais do que isso, trata-se de valorizar a flexibilidade de toda postulação identitária, cuja característica primordial é justamente a capacidade potencial de provocar deslocamentos biopolíticos.
A deixa de que da própria psicanálise freudiana produzir-se-ia um deslocamento da questão da diferença sexual para a de alteridade sublinha o reconhecimento de Butler de que a psicanálise é construída numa tensão, que permite uma saída para se pensar a diferença desatrelada do dimorfismo sexual: a noção de alteridade pulsional.
O conceito de pulsão tem ocupado um lugar especial em algumas releituras da psicanálise realizadas no interior do campo psicanalítico por autores como Birman (1999), David-Ménard (2001) e Arán (2006), que reconhecem a necessidade de se repensar a associação teórica e histórica entre a noção de diferença e de diferença sexual e a associação desta última ao modelo sexual binário e hierárquico. O objetivo, ou antes, a necessidade clínico/teórica, seria o de construir outro espaço sócio-simbólico para a alteridade, diferente daquele designado pelo paradigma moderno.
O termo pulsão é introduzido por Freud em 1905 no texto Três Ensaios sobre a Teoria da sexualidade (Freud, 1996e), designando um conceito-limite entre o psiquismo e o somático. Tendo como pretensão distanciar a ideia de pulsão da de instinto, Freud trabalha as noções de fonte, objeto e meta, tornando a dimensão pulsional uma chave fundamental na explicação da sexualidade humana. Nessa teoria, "a ênfase se coloca menos numa finalidade definida do que numa orientação geral, e sublinha o caráter irreprimível da pressão mais do que a fixidez da meta e do objeto" (Laplanche & Pontalis, 2001, p. 394). Se na concepção popular o instinto teria meta e objeto específicos, localizando-se principalmente no funcionamento do aparelho genital, Freud enfatiza o caráter variável e contingente do objeto pulsional, relacionando-o com a história do sujeito.
Em princípio associada à sexualidade das primeiras fases do desenvolvimento individual, a chamada por Freud "sexualidade infantil" deixa de ser compreendida como uma fase da organização libidinal a ser superada, tal qual em uma escala evolutiva. A partir da ideia de corpo erógeno, o adjetivo "infantil" passa a definir o próprio ser sexual do humano enquanto ser falante. O empenho freudiano nesse momento é o de separar a sexualidade das suas significações imaginárias, o que a atrelaria a uma concepção vigente do sexual, como por exemplo, àquela proferida pelas teses orgânicas do funcionamento natural.
O conceito de pulsão e a teoria que o sustenta são reconhecidos por autores contemporâneos, tais como Birman (1999), David-Ménard (2001) e Arán (2006), como a principal via em Freud para se pensar a questão da alteridade, pois possibilitam o entendimento de que a diferença se apresenta na singularidade do encontro com o outro e também diz respeito à marca do outro dentro de si. A psicanálise freudiana postula que o fato de o indivíduo humano nascer entre sujeitos traz consequências importantes para a constituição da sua subjetividade e sexualidade, pois se torna claro que o corpo erógeno não é dado a priori, mas se constitui a partir das incidências sexuais que recaem sobre si advindas do campo "outro". O desamparo do bebê humano diante de sua sobrevivência fisiológica influenciaria a emergência do sujeito no sentido de que essa só pode ocorrer frente a outro semelhante, mas principalmente, frente a uma alteridade radical: a pulsão que vem do outro.
Para Birman (1999), é no Projeto para uma Psicologia Científica (Freud, 1996a) que se pode localizar uma das primeiras aparições da noção de alteridade na obra freudiana. Nesse projeto, escrito em 1895, mas publicado em 1950, o autor enuncia algumas teses acerca do aparelho psíquico a partir de uma linguagem quantitativa, mediante uma espécie de economia de forças nervosas. Essa configuração neurológica do psiquismo leva Freud a reconhecer um estágio do desenvolvimento humano, o originário, em que é imprescindível a existência de um outro ser humano para a sobrevivência do indivíduo.
Em 1926, no texto intitulado Inibição, Sintoma e Angústia, Freud (1996f) postula que a quantidade de excitação vinda de ambas as fontes "internas" e "externas" do psiquismo deve, no momento de desamparo inicial do ser humano, sofrer interferências de um outro para que o bebê possa sobreviver. Freud convoca a perceber que para além do desamparo biológico há um desamparo psíquico, de forma que esse outro sujeito é o polo investidor que permitirá não apenas a sobrevivência do indivíduo enquanto ser vivo, mas também possibilitará a emergência do sujeito. Freud começa a delinear um corpo atravessado por diferentes forças pulsionais, cuja tendência a descarregar sublinha a necessidade de que esse movimento originário seja acolhido por outro. Nessa direção, marcas de satisfação e dor impressas por esse outro constituem uma constelação pulsional que confere ao sujeito signos de percepção. Na medida em que esse outro comporta a alteridade, torna o tempo do prazer e do desprazer "inadequado", "estranho" ao próprio sujeito, contribuindo para aquilo que caracteriza a sexualidade humana, o caráter temporalmente desigual e simbólico de seus objetos (David-Ménard, 2001).
Dessa forma, o que Freud (1996a) chamou de "pessoa ao lado" no Projeto para uma Psicologia Científica não é o outro próximo e semelhante do Cristianismo, mas a pessoa que, ao mesmo tempo em que constitui o sujeito, dele escapa. Trata-se de um outro "estranho - familiar", perspectiva que permite à psicanálise insistir na tese de que a distinção entre um "exterior-irredutível" e um "interior - pulsional" é sempre provisória, sendo a alteridade tudo aquilo que abala as fronteiras do eu numa mescla pulsional (Arán, 2006).
Assim, a experiência alteritária pode ser concebida tanto no domínio do encontro do sujeito com o "outro fora de si" quanto no do "outro dentro de si", de forma que a diferença deve ser pensada em sua relação paradoxal com a singularidade. A relevância dessa leitura encontra-se na impossibilidade de se construir um modelo universal da diferença, em que o outro é determinado a priori, pois essa proposta afirma que a constituição do outro se dá concomitantemente à constituição do sujeito. Em direção contrária à prescrição de modelos universais, transcendentais e hierárquicos para a diferença, as revisões contemporâneas da teoria psicanalítica alcançam a ideia de que o encontro com a alteridade, interna ou externa ao sujeito, é o encontro com a indeterminação e com a contingência.
A relevância da interlocução entre Butler e Žižek acerca da noção psicanalítica de diferença sexual para a questão do reconhecimento da alteridade traz à tona a interface entre a psicanálise e a cultura, e o aspecto flexível da própria teoria psicanalítica. Dessa forma, o objetivo deste trabalho foi o de realizar uma aproximação do debate entre os autores, suscitado pelos impasses que a psicanálise encontra na atualidade, investindo no movimento teórico e de redescrição da psicanálise.
Referências
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Recebido em 17 de junho de 2010
Aceito em 17 de maio de 2011
Revisado em 04 de janeiro de 2012
1 Expressão utilizada por Arán (2009) a partir de sugestão de Foucault.
2 No presente artigo, o termo "dispositivo de poder" se refere ao conceito foucaultiano.
3 Butler (2002) não se restringe à questão da desigualdade entre os gêneros, incluindo em seu trabalho a problemática da não-inteligibilidade cultural a qual alguns gêneros estão submetidos.
4 O trecho correspondente na tradução é: "Parece muito mais produtivo posicionar como o enigma central da diferença sexual - não como a já estabelecida diferença simbólica (normatividade heterossexual), mas, precisamente, como aquilo que para sempre evita a compreensão da simbolização normativa".
5 Lacan realiza uma discussão sobre a mascarada, conceito retomado de Joan Riviere (1929), como designação da feminilidade, tendo em vista a sua proposição de que a mulher é a falta que encarna o falo.
6 O trecho correspondente na tradução é: "Em resumo: sim, claro, a maneira como simbolizamos a sexualidade não é determinada pela natureza, ela é o resultado de um complexo e contingente sócio-simbólico poderoso estrangulamento; no entanto, esse mesmo espaço de simbolização contingente, essa brecha entre o Real e suas simbolizações, deve ser sustentado por um corte, e 'castração simbólica' é o nome lacaniano para esse corte. Então, 'castração simbólica' não é o ponto final da referência simbólica que de certa forma limita o livre curso da multidão de simbolizações: pelo contrário, é o gesto que sustenta, mantém aberto, o espaço das simbolizações contingentes".
7 O trecho correspondente na tradução é: "'Não há relação sexual' não porque o outro sexo está muito longe, totalmente estranho a mim, mas porque ele está muito perto de mim, o estrangeiro intruso no coração da minha (impossível) identidade".