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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.13 no.3-4 Fortaleza dez. 2013

 

ARTIGOS

 

O Nome-do-Pai na contemporaneidade: a violência na relação do sujeito com a falta

 

The name of the father in the contemporary world: the violence in the relationship between the subject and the absence

 

El Nombre del padre en el mundo contemporáneo: la violencia de la relación del sujeto con la falta

 

Le nom du père dans le monde contemporain: la violence dans la relation du sujet à la faute

 

 

Glória Maria Monteiro de Carvalho

Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Professora e pesquisadora CNPq do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE e do Laboratório de Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP. E-mail: gmmcarvalho@uol.com.br

 

 


RESUMO

Partimos da proposta de que a constituição da subjetividade, para a perspectiva psicanalítica, consiste num ato de violência possuidor de uma dimensão histórico-social. De acordo com Freud, a verdade do homem é a verdade do pai e, na leitura lacaniana, as leis do pai são leis da linguagem: a metáfora e a metonímia. Trata-se, nesse sentido, de uma violência da linguagem sobre o ser humano, com efeitos histórico-sociais, admitindo-se, então, pelo menos três dimensões desse ato de violência da linguagem sobre o indivíduo na constituição de sua subjetividade. Nessa perspectiva, a primeira dimensão da violência seria a captura do corpo da criança pelo significante e a segunda consistiria na morte simbólica do pai. A criança necessita matar (simbolicamente) o pai para se confrontar com a falta estrutural, isto é, a terceira dimensão da violência, e com o Nome-do-Pai, que dá suporte ao sujeito em relação a essa falta. No mundo contemporâneo, o confronto com a falta parece cada vez mais difícil. Tal dificuldade pode ser devido à tecnologia fundamentada numa (suposta) certeza que se atribui ao discurso científico, destacando-se os efeitos sociais dessa crença na atualidade das relações humanas.

Palavras-chave: nome-do-pai; contemporaneidade; linguagem; violência; falta.


ABSTRACT

The starting point is the proposition that the constitution of subjectivity in psychoanalytic perspective is an act of violence that has a social-historical dimension. According to Freud, the truth of man is the father's truth and, in Lacanian reading, the father's laws are language laws: metaphor and metonymy. It is, accordingly, a violence of language on the human being, with historical and social effects. Thus one can admit at least three dimensions of such an act of violence of the signifier on the individual in the constitution of his/her subjectivity. From this perspective, the first dimension of violence would be the capture of the child's body by language and the second one would be the symbolic death of his father. The child need to kill (symbolically) the father, in order to confront the structural lack - that is, the third dimension of violence - and the Name of the Father, who supports the subject in relation to such a lack. In the contemporary world, the confrontation with the lack seems to be increasingly difficult. In turn, this difficulty could be due, for example, to the technology based on the belief attributed to the scientific discourse, highlighting the social effects of this belief in the actuality of human relations.

Keywords: name of the father, contemporaneity; language; violence; absence.


RESUMEN

Partimos de la premisa de que la constitución de la subjetividad en la perspectiva psicoanalítica, es un acto de violencia que tiene una dimensión histórica y social. De acuerdo con Freud, la verdad del hombre es la verdad de su padre y, en la lectura lacaniana, las leyes son las leyes de la lengua materna: la metáfora y la metonimia. Es, en este sentido, una violencia del lenguaje en los seres humanos, con efectos históricos y sociales. También se puede asumir, por lo menos, tres dimensiones de este acto de violencia en la constitución de la subjetividad. Desde esta perspectiva, la primera dimensión de la violencia del lenguaje sería la de capturar el cuerpo del niño y la segunda consiste en la muerte simbólica de su padre. El niño tiene que matar, (simbólicamente), el padre con el fin de hacer frente a la falta estructural - es decir, la tercera dimensión de la violencia - y al Nombre del Padre que apoya al sujeto en relación a esta falta. En el mundo actual, la confrontación con la falta cada vez parece más difícil. A su vez, esta dificultad podría deberse, por ejemplo, a la creencia en la certeza (supuesta) que se conecta al discurso científico, con énfasis en los efectos sociales de esta creencia en la actualidad de las relaciones humanas.

Palabras-clave: nombre del padre; mundo contemporáneo; lenguaje; violencia; falta.


RÉSUMÉ

Nous partons de l'idée que la constitution de la subjectivité dans la perspective psychanalytique, est un acte de violence qui a une dimension sociale et historique. Selon Freud, la vérité de l'homme est la vérité de son père et, dans la lecture lacanienne, les lois sont des lois de la langue mère: la métaphore et la métonymie. C'est dans ce sens, une violence du langage sur les êtres humains, avec des effets historiques et sociaux, en supposant, puis au moins trois dimensions de cet acte de la violence du signifiant sur l'individu.au cours de la constitution de sa subjectivité. Dans cette perspective, la première dimension de la violence du langage serait de capturer le corps de l'enfant et le second consiste en la mort symbolique de son père. L'enfant a besoin de tuer, (symboliquement) le père pour faire face à la faute structurelle - qui est, la troisième dimension de la violence - ainsi que le nom du père qui soutient le sujet par rapport à cette faute. Dans le monde contemporain, la confrontation avec la faute semble plus difficile. À son tour, cette difficulté pourrait être due, par exemple, à une croyance dans la certitude (supposée) qui s'attache au discours scientifique, mettant l'accent sur les effets sociaux de cette croyance dans l'actualité des relations humaines.

Mots-clés: nom du père; monde contemporain; langue; violence; faute.


 

 

Introdução

Numa tarde, uma jovem mulher convence seu marido e seu filho a irem ver um jogo de futebol enquanto ela se encontra com seu amante, um repórter oportunista. Enquanto fazem amor, ela ouve uma reportagem na televisão sobre um bombista suicida que, a mando de Osama Bin Laden, fez-se explodir no estádio de futebol, provocando centenas de vítimas. A mulher fica em estado de choque quando se apercebe que seu marido e seu filho estão entre as vítimas. Consumida pela dor da perda e pela culpa, a jovem vivencia momentos de alucinação, sendo internada numa clínica duas vezes.

Numa dessas internações, a terapeuta sugeriu-lhe que escrevesse uma carta a Bin Laden, ao que ela retrucou, dizendo que não sabia seu endereço. Em sua narrativa, recorda que seu filho, num determinado momento em que passeava com o pai por uma rua de Londres, pergunta sobre uma placa que estava na frente dos dois. Na explicação dada pelo pai sobre a destruição dessa cidade durante a Segunda Guerra Mundial, representada naquela placa, destaca-se a seguinte afirmação: "E Londres queimou com um barulho e uma fúria incríveis."

Enquanto lida com a dor, lutando para recompor sua vida, a mulher resolve escrever a carta sugerida, a qual parece ser o ápice da narrativa. Dessa carta (fictícia) endereçada a Osama Bin Laden, recortaremos apenas alguns fragmentos, aos quais retornaremos no final deste artigo.

As pessoas pensaram que era o fim do mundo... Mas o mundo não acabou. Reconstruíram a cidade em três anos, maior e mais forte... Londres é uma cidade construída sobre os próprios escombros, Osama... Nem mesmo Hitler conseguiu acabar com ela... Eu sou esta cidade. Mate-me com bombas e eu ressurgirei mais forte... O amor não se entrega, Osama. O amor é furioso, é corajoso e estridente ... Aquele som é o mais furioso e estridente som da Terra. Ele ecoará até o fim dos tempos! É mais ensurdecedor do que bombas! Venha para mim e reconstruiremos o mundo com um barulho e uma fúria incríveis. (Maguire, 2008)

Optamos por iniciar este artigo com algumas passagens do filme Incendiary (Maguire, 2008), realizado por Sharon Maguire, protagonizado por Michelle Willian e lançado em Londres, em 2008. Sem entrarmos nos detalhes ou no mérito dele, queremos apenas antecipar que sua narrativa, no que concerne à carta mencionada, parece sustentar uma relação emblemática com a nossa proposta de discussão - relação que será explicitada ao final.

De acordo com essa proposta, assumimos que a constituição da subjetividade, para a perspectiva psicanalítica, é um ato de violência que possui um caráter histórico-social. Por sua vez, esse ato de violência consiste num ato de linguagem, o qual se pode denominar violência estrutural (Lebrun, 2002), isto é, a violência simbólica que nos constitui como seres humanos, estruturalmente marcados pela falta ou pela falha. Destacamos, contudo, no ato estrutural de linguagem, três dimensões da violência enfrentada pelo sujeito, às quais ele responde também com violência, sendo uma dessas dimensões constituída pela inscrição do significante "Nome-do-Pai". Indicamos um deslocamento do Nome-do-Pai nos dias de hoje, provocado, sobretudo, pelo discurso da ciência, em conformidade com a posição assumida por Lebrun (2001, 2010).

Inicialmente, relembremos Freud (1939/1996b), que, no nível coletivo, apela para a produção de um mito: o do pai da horda primitiva. O sistema patriarcal, que dominava as relações entre os homens em suas hordas primitivas, teria terminado devido a uma rebelião por parte dos filhos, que se reuniram em bando contra o pai, mataram-no e o devoraram coletivamente. Em seguida, a horda paterna teria dado lugar ao clã fraterno totêmico, iniciando uma história de substituições nesse lugar de poder, inaugurado primevamente pelo pai.

No nível individual, Freud produz o Complexo de Édipo, afirmando que, para sair com êxito dessa aventura edipiana, é preciso um ato de violência dirigido ao pai, ou melhor, é preciso matar simbolicamente o pai.

Segundo Lebrun (2010), aquilo que é complexo para Freud, é estrutura para Lacan. É estrutural, portanto, inevitável à constituição do sujeito, que o pai seja morto, produzindo-se, então, um lugar vazio, a fim de que alguma entidade seja ali colocada. Essa entidade, por sua vez, deve estar investida da autoridade de legislar, isto é, de ordenar relações entre indivíduos, tanto no âmbito coletivo (por meio do poder atribuído ao totem nas religiões primitivas) quanto no individual (por meio do reconhecimento, pela criança, de uma autoridade do pai, com o qual se identifica).

A grande transformação operada pela leitura lacaniana na obra de Freud foi explicitar a questão da linguagem e tirar consequências disso. Assim, as leis do pai, ou daquele colocado nesse lugar paterno, seriam leis da linguagem, e o que se instalaria nesse lugar aberto pela morte do pai seria um significante: o significante "Nome-do-Pai".

A fim de podermos seguir adiante na proposta de discussão anunciada, abriremos espaço para algumas considerações sobre as leis da linguagem - a metáfora e a metonímia - na forma como foram tratadas por Lacan no Seminário As Psicoses (1992), a partir, sobretudo, de Jakobson (1971). Conforme foi indicado antes, faz-se também necessária uma abordagem tanto da violência da linguagem durante a trajetória de constituição do sujeito como de questões advindas da posição ocupada pela ciência na atualidade.

 

As Leis da Linguagem: Metáfora e Metonímia na Psicanálise Lacaniana

Lacan (1992) inicia uma discussão sobre as leis da linguagem com uma frase1 de Freud extraída das correspondências a Fliess (Moussaieff, 1986), a qual diz respeito a uma questão axial que perpassa toda a obra freudiana. O núcleo dessa questão concerne à interrogação obstinada, segundo a leitura lacaniana, ainda presente em Moisés e o Monoteísmo: "(...) é sempre de forma obstinada, quase desesperada que ele (Freud) se esforça por explicar como é possível que o homem, na própria posição de seu ser, seja tão dependente dessas coisas para as quais ele não é manifestamente feito. Isso é dito e nomeado - trata-se da verdade" (Lacan, 1992, p. 244).

Essa verdade do homem é a verdade do pai. Nessa passagem, destaca-se uma desnaturalização da verdade, primeiramente, porque o homem não é manifestamente feito para a verdade e, em segundo lugar, porque ele se acomoda perfeitamente a não verdade, daí sua dimensão enigmática. Isso justifica a pergunta sobre a maneira como a verdade entra na vida do homem.

Nessa perspectiva, o pai é de uma realidade mais sagrada e mais espiritual que qualquer outra, na medida em que nada na realidade vivida indica, propriamente falando, sua função, sua presença, sua dominância.

Queremos, nesse ponto, chamar atenção para o texto freudiano Moisés e o Monoteísmo (Freud, 1939/1996b) e para a referência lacaniana à frase "aceitando a morte, ele (o homem) continua".

A questão central é, portanto, a morte, o assassinato simbólico do pai para que surja a verdade do pai, o pai simbólico, o significante "Nome-do-Pai".

Freud (1939/1996b) destaca, em relação ao surgimento das religiões, o destino do ser humano de ter que se livrar do pai, desde a religião mais primitiva (a totêmica), passando por várias outras formas de religião, até o cristianismo, que não escapou a esse destino.

Retomando o que foi posto antes, talvez dois pontos pudessem ser destacados:

1) A morte simbólica dá continuidade ao pai (à sua vontade, à sua autoridade), organiza o grupo, ordena e institui suas leis. Na horda primitiva, em Totem e Tabu (Freud, 1913/1996a), a colocação de um animal totêmico estabelece as leis que o grupo de irmãos deve seguir.

2) De acordo com a proposta freudiana, teria havido, no cristianismo, uma dupla morte: a do pai (o assassinato) e a do filho, que, admitindo e aceitando ter assassinado o pai - o que não aconteceu no judaísmo - sacrifica-se e, com seu sacrifício (sua morte), ocorre a expiação pelo crime cometido. Mas, ao tomar a expiação sobre si, torna-se um ao lado do pai - na realidade, fica no lugar deste.

A morte estaria, então, inexoravelmente implicada na dimensão de verdade do homem.

Parece que, no texto recortado, a grande batalha de Lacan - a qual ele trava com obstinação - teria sido dar visibilidade a essa relação do sujeito com a verdade, com o significante, com a morte.

Ele não cansa de preconizar a leitura da psicose nessa dimensão de verdade, na relação do sujeito com o seu delírio, isto é, a leitura do delírio a partir da relação do sujeito com o significante. Este, à medida que vai perdendo o significado, fica cada vez mais pleno de investimento libidinal. Não é uma leitura fácil, como mostra o autor ao tratar da questão da metáfora, pois implica um deslocamento radical do nível do significado e das significações para o nível do significante, não apenas por parte de quem escuta/lê o delírio, mas também por parte de quem o produz. Podemos dizer que é uma batalha do autor mostrar como se manter nesse nível.

Lacan (1992) afirma que a metáfora não é coisa das mais fáceis de se falar, abordando essa figura de linguagem não como um conceito pacífico, como é tratada por vários linguistas, mas como uma questão.

Antes de prosseguirmos, parece importante abordarmos, do ponto de vista linguístico, essas figuras de linguagem. Fazendo apelo a Jakobson (1971), podemos iniciar pelo tratamento que ele dá às afasias. Segundo sua abordagem, quando há, no afásico, uma deterioração da capacidade de combinar entidades linguísticas mais simples em unidades mais complexas, prevalecendo as substituições de palavras por similaridade (metáfora), ocorre a afasia designada como distúrbio de contiguidade. Por sua vez, quando a capacidade de seleção de uma entidade linguística é fortemente afetada e o poder de combinação dessas entidades é, pelo menos, parcialmente preservado, a contiguidade (metonímia) determina todo o comportamento do afásico. Esse tipo de afasia pode ser denominado distúrbio de similaridade, que é o oposto do anterior.

Para Jakobson (1971), um discurso pode se desenvolver de duas formas: por contiguidade ou similaridade, sendo mais adequado chamar o primeiro de processo metonímico e o segundo, de processo metafórico, pois encontram sua expressão mais condensada na metonímia e na metáfora, respectivamente. O processo metafórico seria a substituição de uma palavra por outra, em virtude de uma similaridade entre elas, enquanto o processo metonímico seria a combinação, por contiguidade, de entidades linguísticas. Destaca o autor: "No comportamento verbal normal, ambos os processos estão constantemente em ação, mas uma observação atenta mostra que sob a influência dos modelos culturais, da personalidade e do estilo verbal, ora um, ora outro goza de preferência." (Jakobson, 1971, p. 56, grifo nosso). Como se pode notar, o linguista coloca no mesmo nível a metáfora e a metonímia, não havendo primazia de uma sobre a outra.

Serve como exemplo de abordagem lacaniana da metáfora um verso de Victor Hugo: "Seu feixe não era avaro nem odiento", extraído do poema "Booz endormi", que faz parte da obra La légende des siècles (Hugo, 1859-1983/2006). Esse poema baseia-se numa narrativa do Antigo Testamento, em que Booz, rico camponês, casa-se com Ruth e tem com ela um filho.

Na perspectiva lacaniana, no enunciado/verso "Seu feixe não era avaro nem odiento", há uma identificação entre "feixe" e Booz. É pela similaridade de posição que o sujeito "feixe" é idêntico ao sujeito Booz, trazendo, como efeito, uma transferência de significado. Desse modo, sem a estrutura predicativa, isto é, sem a distância mantida entre o sujeito e seus atributos, não se poderia qualificar o feixe de avaro nem de odiento. Nesse sentido, a abordagem lacaniana das figuras de linguagem traz a primazia do significante sobre o significado, sendo a articulação entre significantes (a metonímia) a condição para que haja transferência de significados (na metáfora). Em outras palavras, a dimensão ou a transferência do significado, na metáfora, não está no mesmo nível da similaridade posicional, mas consiste num efeito dessa similaridade posicional, a qual, em última análise, depende da estruturação significante. Segundo Lacan, o significado é geralmente colocado no primeiro plano, porque é aquilo que há de mais sedutor e em cuja armadilha os linguistas, até certo ponto, são aprisionados.

Retomando a questão da verdade do pai, podemos dizer que é preciso matá-lo simbolicamente para que o filho ocupe sua posição, em virtude de uma similaridade de posições, isto é, de uma identificação com um significante (Nome-do-Pai) que poderá sustentá-lo nesse lugar vago deixado pelo pai morto. Como efeito de colocar-se na posição do pai, ocorre uma transferência (metafórica) de significado. Assim, a metáfora paterna, através de um efeito de transferência de significado, ou através de uma significação, conteria/barraria o encadeamento, ou melhor, o deslizamento metonímico de significantes.

É nesse sentido, portanto, que as leis do pai, na leitura lacaniana de Freud, são leis da linguagem.

 

Atos de Violência na Trajetória de Constituição da Subjetividade

Podemos especificar um pouco mais nossa proposta relembrando que o ato de violência produtor do sujeito é um ato de linguagem que torna visível sua dimensão histórico-social. Pelo menos três dimensões da violência operada pela linguagem devem ser confrontadas pelo ser humano em seu percurso de constituição subjetiva. Ao abordarmos a primeira dimensão da violência da linguagem sobre a criança, podemos invocar Lemos (2008). Destacamos, então, a resistência que a criança concebida como corpo pulsional opõe à sua captura pelo significante. Segundo essa autora, tal captura não é pacífica, pois implica conflito entre corpo e linguagem.

O corpo da criança resiste à sua captura simbólica e essa resistência pode ser indicada através daquilo que escapa à captura ou falha, como é o caso dos vários obstáculos que se interpõem à aquisição da linguagem - por exemplo, os chamados atrasos de linguagem. Esses entraves que se colocam na trajetória linguística da criança indicariam, de algum modo, o conflito - e a angústia dele resultante - entre um corpo e o significante. Nessa proposta que assumimos, os obstáculos mencionados são concebidos como movimentos singulares de resistência na dialética da alienação ao Outro. A esse respeito, podemos pensar, com fundamento em Leite (2003), que o funcionamento da linguagem como estrutura consiste numa rede de inibições e, acrescentaríamos, numa rede de inibições implantada (não sem violência) em um corpo. Inicialmente, trata-se de uma metonímia do desejo materno, ou melhor, trata-se de uma inscrição de significantes da fala materna no corpo da criança, operada pelo Outro Primordial.

No entanto, a fala materna tem que ser suportada pelos significantes paternos, os quais, embora se situem numa posição aparentemente periférica, são fundamentais. Tal suporte dá lugar, posteriormente, ao reconhecimento, pela criança, desses significantes paternos na fala da mãe, constituindo, assim, de acordo com o pensamento lacaniano, o primeiro momento do Édipo, na sua leitura estrutural do complexo edipiano. No segundo momento do Édipo, que consiste também no segundo passo da violência, o pai - não necessariamente o biológico - deve ser, de algum modo, corporificado e morto (simbolicamente) pela criança, que passará ao terceiro momento do Édipo. Dessa morte resultará a falta simbólica e o Nome-do-Pai, o qual sustentará o sujeito nesse buraco, nessa falta, desde que ele não seja psicótico.

No que concerne ao Nome-do-Pai, é importante lembrar que, a partir da formulação do nó borromeano, Lacan refere o Nome-do-Pai ao real, ao simbólico e ao imaginário, assumindo, portanto, uma pluralização: os Nomes-do-Pai. A esse respeito, diz Porge (2006):

Assim, o problema da articulação entre o Nome-do-Pai e o RSI, estabelecida depois da introdução desses termos, resolve-se em 1975 com o laço borromeano. O Nome-do-Pai articula-se com RSI de um modo tal que se distingue do ternário, permitindo distinguir os elementos deste, e, como quarto elemento enodado borromeanamente, obedece aos mesmos princípios de ligação a que outros elementos obedecem. O nó borromeano permite manter uma identidade de ligação entre os termos, e uma diferença entre os termos de ligação. O plural os nomes do pai, ao qual são identificados real, simbólico e imaginário, significa essa conjunção, da qual o Nome-do-Pai é o operador. (Porge, 2006, p. 176)

Tratar-se-ia, portanto, do Nome-do-Pai implicado no nó real/simbólico/imaginário ou enlaçando-se ao real, ao simbólico e ao imaginário. Poderíamos dizer, ainda, que se trataria de um Nome-do-Pai com suas dimensões de real simbólico e imaginário submetidas a diferentes arranjos, dos quais decorreria a singularidade do sujeito (de um grupo, de uma época). Em outras palavras, em diferentes momentos (ou em diferentes sujeitos), esse arranjo daria maior visibilidade a um dos elos do nó borromeano, o qual, entretanto, conviveria com os outros elos, através do Nome-do-Pai.

Destacamos, para finalizar este item, que é também com violência que ocorre o confronto do sujeito com a falta. Para visualizarmos melhor a violência implicada nesse confronto, tentaremos exemplificar com base no discurso da ciência na contemporaneidade.

 

Efeitos Provocados pelo Discurso da Ciência sobre o Confronto do Sujeito com a Falta

Lebrun (2001) faz uma diferença, com fundamento na proposta lacaniana, entre a ciência e o discurso da ciência. A investigação científica praticada pelo cientista, que levou a humanidade a muitas conquistas e progressos em vários âmbitos da vida, não se confunde com o discurso da ciência, o qual produz laço social, ou melhor, produz efeitos histórico-sociais. Esse discurso, com o caráter de (suposta) certeza que o sustenta, ratifica muitas ações e atitudes humanas, mesmo que essa ratificação, em alguns casos, não seja legítima.

Invocamos, a esse respeito, as palavras de Lacan (1998): "Dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência, talvez passe por um paradoxo." (Lacan, 1998, p. 873). E, mais adiante, o autor coloca: "(...) reconhecemos que a psicanálise é essencialmente o que reintroduz, na consideração científica, o Nome-do-Pai..." (Lacan, 1998, p. 889), indicando a necessidade dessa reintrodução, ainda que seja através de um aparente impasse. Seria, então, a falta como um instante lógico, como um momento de suspensão do qual se produz um saber, evocando a expressão lacaniana "um saber que emerge do engano".

As palavras de Lacan (1998) estariam indicando, assim, a necessidade, ou mesmo a urgência, de integrar a falta e a falha nos procedimentos do investigador de nossa época, como um meio de modificar, em algum ponto, o discurso da (certeza) da ciência, provocando alguma mudança em seus efeitos sociais.

Um dos efeitos sociais da (suposta) certeza do discurso científico na contemporaneidade consiste numa certa torção do significante. Tentando explicar um pouco melhor, o significante, que deveria ocupar o lugar aberto pelo Nome-do-Pai, coloca-se com uma pretensão de anular ou recobrir a falta através da tecnologia.

A esse respeito, Lebrun (2001) indica como uma das marcas - talvez a mais forte - do discurso da ciência a ampliação dos limites do impossível. Nos dias atuais, entretanto, não ocorre apenas uma ampliação, e sim uma (pretensa) anulação ou negação desses limites, sendo produzida, segundo esse autor, a crença de que tudo é possível. Essa crença, por sua vez, estaria fundamentando a violência que visa à dissolução ou destruição (do outro e/ou de si mesmo) e que está implicada nas guerras, por meio das quais se tenta impor um regime totalitário em nome de uma ideologia ou religião. Seria, portanto, diferente da violência estrutural que nos humaniza pela instauração da falta. Pode-se dizer que o sujeito, não podendo eliminar a falta, em virtude de sua condição estrutural, lançaria mão de uma forma de violência destrutiva, ancorada na crença de que tudo é possível, como uma maneira de evitar o confronto com essa condição.

Convém notar que essa pretensão, diversas vezes, implica o corpo do sujeito, como é o caso dos homens-bomba. Os atentados terroristas substituíram, de algum modo e em alguns países, as guerras do passado. Mesmo com uma conotação ideológico-religiosa, destaca-se a sofisticação do artefato e das estratégias utilizadas. Esses homens transformam-se em instrumentos de destruição, assumindo que tudo é possível.

Outro exemplo seriam as drogas, que tanto vêm penetrando o discurso da clínica contemporânea, aparecendo também como um significante, numa tentativa desesperada e frustrada de preencher a falta, atendendo à crença de que é possível dissolver os limites do gozo, ou melhor, é possível atingir o gozo pleno, ilimitado.

Podemos falar, ainda, nas extremas modificações corporais, como mostram os discursos dos sujeitos nos estudos sobre body modification, de Pinheiro (2011). Esses discursos indicam uma busca de plenitude ("Isto me fez sentir completo...") e uma tentativa de encobrir o corpo ("Isto cobriu a minha nudez..."), ancoradas num saber especializado: "Eu quero encontrar um artista perfeito para me ajudar...".

Esses são apenas alguns exemplos que selecionamos a título de ilustração da questão discutida, embora existam outros, também ilustrativos, na contemporaneidade.

 

Mais Algumas Palavras

Com base em nossa proposta, seriam três as dimensões da violência da linguagem enfrentada pelo sujeito e à qual ele também responde com violência. Na constituição da subjetividade, a terceira dimensão, isto é, o confronto com a falta simbólica, parece cada vez mais difícil na contemporaneidade. Essa dificuldade pode ser devido à suposta certeza do discurso científico, ou melhor, aos efeitos sociais desse discurso na atualidade das relações humanas, ao fundamentar a crença de que tudo é possível.

Nesse sentido, afirmamos, com base no que foi discutido antes, que não há propriamente uma falência do Nome-do-Pai no atual momento, como denominam alguns autores, e sim um engano do Nome-do-Pai. Conforme já foi colocado, o Nome-do-Pai é inscrito como um significante que apenas suporta o ser na falta, no furo estrutural inevitável à subjetividade. O engano consiste em assumir o Nome-do-Pai como algo, como o significante de uma busca na direção de anular, recobrir ou preencher a falta vivida pelo ser humano.

Assim, diversas atualizações da tecnociência - embora deem visibilidade, ora à face de real, ora à face de simbólico, ora à face de imaginário - funcionam, juntamente com o refinamento das estratégias utilizadas, como se fossem significantes "Nome-do-Pai", que, de forma equivocada, seriam colocados no lugar do pai - ou seja, no lugar aberto por uma função paterna -, a fim de preenchê-lo, como seriam os casos do homem-bomba, do usuário de drogas e daquele que impõe a seu corpo uma modificação extrema. Não parece demais repetir que esse lugar aberto deveria ser ocupado por um significante que sustentasse o sujeito na falta, no vazio, na sua condição inarredável de ser para a morte.

Retomemos, então, as passagens do filme transcritas no início, especificamente, os fragmentos recortados da carta (fictícia) escrita pela protagonista a Osama Bin Laden. Para o executor do atentado terrorista - o homem-bomba -, a crença segundo a qual não há limites para o uso do próprio corpo parece guiada pela proposição de que tudo é possível. O atentado, planejado de maneira sórdida e executado num estádio de futebol durante a realização de um jogo em que estava presente uma multidão de homens, mulheres e crianças, representaria uma atualização do tudo é possível, por meio de uma forma extrema de violência destrutiva, que já havia ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial e estava expressa na afirmação contida numa placa de uma das ruas da cidade: "E Londres queimou com um barulho e uma fúria incríveis."

No entanto, o que nos pareceu emblemático está contido na carta (fictícia) em que a protagonista indica a destruição e a constituição do sujeito e do mundo como sendo dois movimentos distintos - ou duas faces - da violência: "Nem mesmo Hitler conseguiu acabar com ela... Eu sou esta cidade. Mate-me com bombas e eu ressurgirei mais forte." Essas palavras, ao que parece, estariam também representando o engano implicado no tudo é possível, ou melhor, o engano implicado na pretensão de anular a falta constitutiva, na medida em que aponta para a impossibilidade de destruição total e definitiva da cidade. Dizendo de outro modo, seria o engano de tentar eliminar ou recobrir a falta estrutural/constitutiva do sujeito por meio da violência destrutiva. Nessa perspectiva, o apelo da protagonista a Bin Laden - "O amor é furioso, é corajoso e estridente (...) Venha para mim e reconstruiremos o mundo com um barulho e uma fúria incríveis" - dá visibilidade à violência em sua face constitutiva do ser humano e do mundo. Por sua vez, podemos ler, nesse trecho da carta, que tal constituição somente seria possível por meio da violência, do ruído, da fúria que, em sua intensidade, isto é, na economia de sua força, seria a mesma implicada no ato terrorista, do qual se diferenciaria, contudo, em virtude de sua face de amor, diríamos, de sua face de desejo que, sendo regido pela linguagem, impõe sua dimensão indestrutível de falta.

 

Referências

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Recebido em 21 de setembro de 2011
Aceito em 13 de agosto de 2012
Revisado em 16 de Janeiro de 2013

 

 

1 Sie lieben also den Wahn wie sich selbst das ist das Geheimnis. (Lacan, 1992, p. 244)

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