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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.13 no.3-4 Fortaleza dez. 2013

 

ARTIGOS

 

Notas sobre "Um Discurso sem Palavras": a psicanálise na instituição de saúde1

 

Notes about "A Discourse without Words": the psychoanalysis on health institution

 

Notas sobre "Un Discurso sin Palabras": psicoanálisis en la institución de salud

 

Notes sur "Un Discours sans Paroles": le psychanalyse sur la sante l'établissemen

 

 

Danielle Carvalho RamosI; Roseane Freitas NicolauII

IPsicóloga. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (PPGP/UFPA). E-mail: ramos_danielle@ig.com.br
IIProfessora associada da Faculdade de Psicologia e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: rf-nicolau@uol.com.br

 

 


RESUMO

Ao exteriorizar seus anseios acerca do alcance da psicanálise para além dos limites do consultório particular, Freud já chamava nossa atenção para dirigirmos nosso olhar ao sujeito, ao seu sofrimento, não importando em que lugar ou condições ele pudesse se encontrar. Já indicava, assim, uma articulação possível entre a psicanálise e a instituição. Tratando-se, pois, do dispositivo analítico como aquele que não se restringe ao consultório, mas que se aplica a qualquer configuração analítica, o presente trabalho, fruto de questões articuladas no grupo de pesquisa "Psicanálise, sintoma e instituição", propõe discutir o fazer da psicanálise enquanto um saber fazer que propicia um lugar para o sujeito, a despeito do local onde ela opere. Por conseguinte, entendemos que, na instituição de saúde, isso não se dê de modo diverso, porquanto, ainda que o contexto seja outro, a ética psicanalítica é a mesma. Se o sujeito tende a ser excluído na instituição regida pelo saber médico, o discurso psicanalítico, por sua vez, o inclui, na medida em que favorece o bem-dizer do desejo, logo, de um dizer que remete ao inconsciente. Para tecer algumas considerações acerca dessa temática, tomamos por fio condutor uma curiosa expressão proferida por Lacan: "um discurso sem palavras". Com ela, podemos pensar na psicanálise enquanto um lugar discursivo onde cabe um fazer diferente: o de possibilitar o pronunciamento do sujeito do inconsciente através da palavra, oferecendo-lhe a escuta e permitindo que apareça aquilo que é da subjetividade, propiciando ao sujeito um lugar no e pelo discurso.

Palavras-chave: psicanálise; sujeito; lugar discursivo; saber médico; instituição de saúde.


ABSTRACT

In externalizing their wishes about the scope of psychoanalysis beyond the limits of the private practice, Freud was calling our attention to direct our gaze to the subject and his suffering, no matter the places or conditions he could be found. At the time, Freud was already indicating a possible link between psychoanalysis and the institution. As the analytical device is one that is not restricted to the office, but that applies to any analytic setting, the present work is a result of issues articulated in the research group "Psychoanalysis, symptom and institution" and aims to discuss the doing of psychoanalysis as an expertise that provides a place for the subject, regardless of where it operates. Therefore, we believe that in health facilities it does not happen in a different way, because even though the context is different, the psychoanalytic ethics is the same. Else, if the subject tends to be excluded when in an institution governed by medical knowledge, the psychoanalytic discourse, in turn, includes the subject, as far as it favors the well-saying of desire, a discourse which refers to the unconscious. In addition, to make a few observations about this issue, we refer to a curious expression by Lacan: "a discourse without words". With it, we can think of psychoanalysis as a discursive place, that have a different doing which allows the pronouncement of the subject of the unconscious through the word, offering the listening and thus allowing the rise of the subjectivity, providing a place to the subject, on and by the discourse.

Keywords: psychoanalysis; subject; discursive place; medical knowledge; health institution.


RESUMEN

Al exteriorizar sus preocupaciones sobre el alcance del psicoanálisis más allá de los límites de la práctica privada, Freud ya llamaba nuestra atención a dirigir nuestra mirada al sujeto y su sufrimiento, no importando en qué lugar o condiciones él estuviese. Por lo tanto, Freud ya indicaba una posible relación entre el psicoanálisis y la institución. Por lo tanto, no siendo el dispositivo analítico limitado a la oficina, pero que se aplica a cualquier ámbito de análisis, el presente trabajo, resultado de las discusiones enunciadas en el grupo de investigación "Psicoanálisis, síntoma y institución" tiene como objetivo discutir la hacer del psicoanálisis como un saber hacer que proporciona un lugar para el sujeto, independientemente del lugar en que ella opera. Por lo tanto, entendemos que en lá institución de salud no ocurre de manera diferente, porque aunque el contexto sea otro, la ética psicoanalítica es la misma. Y si el sujeto tiende a ser excluido cuando en la institución gobernada por el conocimiento médico, el discurso psicoanalítico, a su vez, o incluye, en la medida en que favorece el bien-decir del deseo, por lo que un decir que se refiere al inconsciente. Y para hacer algunas observaciones sobre este tema, tomamos como direccíon una expresión curiosa pronunciada por Lacan: "un discurso sin palabras". Con ella, podemos pensar en el psicoanálisis como un lugar discursivo que tiene un hacer diferente: permitir el pronunciamiento del sujeto del inconsciente através de la palabra, ofreciendo a escucharlo y por lo tanto permitiendo que la subjetividad aparezca, proporcionando para el sujeto un lugar en el discurso.

Palabras-clave: psicoanálisis; sujeto; lugar discursivo; conocimiento médico; institución de salud.


RÉSUMÉ

En externalisant leurs préoccupations quant à la portée de la psychanalyse au-delà des limites de la pratique privée, Freud a appelé notre attention pour diriger notre regard vers le sujet, sa souffrance, peu importe ce place ou les conditions qui pourraient être trouvés. Il indique donc un lien possible entre la psychanalyse et l'institution. Par conséquent, si le dispositif analytique ne se limite pas au bureau, mais 'applique à toute situation analytique, le présent travail, résultat de problèmes articulés dans le groupe de recherche "Psychanalyse, symptôme et institution", a pour but de discuter de la faire de la psychanalyse comme un savoir-faire qui donne une place pour le sujet, indépendamment du lieu où elle opère. De sorte, nous croyons que en l'établissement de santé ne se produit pas différemment, parce que même si le contexte est un autre psychanalytique éthique est la même. Et si le sujet peut être supprimé l'institution régie par les connaissances médicales, le discours psychanalytique, à son tour, comprend le sujet, dans la mesure où elle favorise le bien dit du désir, donc un disent qui fait référence à l'inconscient. Et pour faire quelques observations sur cette question, nous nous référons une expression curieuse dit par Lacan: "un discours sans paroles". Avec elle, nous pouvons penser de la psychanalyse comme une place discursive, celle qui correspond à un faire différent: permettre le prononcé du sujet de l'inconscient à travers la parole, offrant une écoute et permettant ainsi la subjectivité apparaît, donnant le sujet une place dans le discours et par le discours.

Mots-clés: psychanalyse; sujet; place discursive; connaissances médicales; sante l'établissement.


 

 

Introdução

Nenhuma verdade pode ser localizada a não ser no campo onde ela se enuncia - onde se enuncia como pode

(Seminário 17, Lacan, 1992)

Digo sempre a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras

(Lacan, 1993a)

Do que se trata o fazer da psicanálise quando, no lugar do chamado setting tradicional (ou, em outros termos, do consultório), há um contexto e um cenário diferentes, marcados por práticas discursivas diversas? O alcance da psicanálise para além dos limites do consultório particular é uma possibilidade aberta por Freud (1919[1918]/1996) em Linhas de progresso na terapia psicanalítica. Nesse texto, Freud exterioriza seus anseios acerca da inserção da psicanálise em espaços institucionais, afirmando que ela traria benefícios à população, uma vez que "as neuroses ameaçam a saúde pública" tanto quanto as doenças orgânicas (Freud, 1919[1918]/1996, p. 180). Desse modo, Freud nos convoca a dirigir nosso olhar ao sujeito, ao seu sofrimento, não importando em que lugar ou condições ele possa se encontrar. Ainda que naquele momento tal ideia parecesse "fantástica" - como ele mesmo diz -, já indicava uma articulação possível entre a psicanálise e a instituição.

A despeito de Freud ter aberto tal possibilidade, os analistas que enveredam por esse caminho não o fazem sem dificuldades, pois o discurso que orienta as práticas nas instituições de saúde é o discurso médico, com seu saber e sua mestria sobre o doente e a doença. Esse saber, pautado na ciência, visa atender as exigências da objetivação e da universalização, contribuindo para a exclusão da subjetividade. Norteando-se pela ética do bem-dizer, a psicanálise, por seu turno, visa o sujeito que não pode ser tratado pelo saber médico, convidando-o a construir um saber a fim de lidar melhor com seu sintoma. Se o médico se dirige ao paciente com um saber previamente formulado, o analista se dirige ao sujeito a quem cabe formular um saber sobre a verdade de seu sintoma, deixando falar o doente para que este possa se implicar no processo saúde-doença. Há, nesses modos de operar com o saber, um descompasso gerador de tensões entre esses discursos, o que nos leva a interrogar: quais as possibilidades de fazer circular o discurso da psicanálise na instituição de saúde regida pelo saber médico, que tem como foco o adoecimento, enfatizando a dimensão biológica do doente? Como fazê-lo sem acirrar tensões discursivas e sem ceder da ética que rege a função do analista, que é a ética do desejo?

Essas são questões articuladas a partir de pesquisas institucionais desenvolvidas no grupo "Psicanálise, sintoma e instituição"2, às quais tentamos responder utilizando os avanços e as ferramentas conceituais - particularmente, os que se apoiam no ensino de Lacan - desenvolvidas por analistas inseridos nos serviços de atenção à saúde. Esses analistas vêm produzindo trabalhos que nos ajudam a pensar a prática da psicanálise nas instituições, a exemplo de Jorge (1997), Alberti (2000, 2010), Elia (2000, 2011), Altoé e Lima (2005), Rinaldi (2005), Dutra e Ferrari (2007), Cruz (2010), Hoyer (2010), entre outros.

A partir de suas perspectivas, o que tais autores guardam em comum é a sustentação da possibilidade de inserção da psicanálise nesses espaços pela via da construção de um saber próprio a cada contexto e à singularidade de cada caso. Essa premissa, na qual também apostamos, é o que delineia o campo específico da psicanálise nas instituições de saúde, onde se observa a centralidade do saber médico relativamente aos outros saberes que ali circulam. Conforme indica Cruz (2010, p. 74), "o saber médico, movido pela ética do bem-estar, propõe-se responder ao sintoma do doente através da sua exclusão", tendendo a desconsiderar a singularidade.

Nesta escrita, propomo-nos a tecer algumas considerações acerca do saber fazer da psicanálise na instituição de saúde, tomando por fio condutor a teoria dos discursos estabelecida por Lacan (1992) em O seminário, livro 17, no qual ele introduz a noção de "um discurso sem palavras", para pensar a possibilidade de fazer circular o discurso da psicanálise, o único que possibilita a emergência do sujeito na instituição. Seguimos Lacan em sua discussão tentando articular um modo de operar a inserção da psicanálise entre outros discursos.

 

A Teoria dos Discursos

Lacan (1992) nomeia quatro discursos (universitário, do mestre, da histérica e do analista), os quais, sob a forma de matemas, contêm quatro elementos ou termos (S1, S2, a, $) que se dispõem em diferentes lugares (agente, outro, verdade e produção), de acordo com cada discurso.

Disso, depreende-se que os discursos estão formalizados a partir de uma sequência lógica, de modo que cada um deles deve ser lido em função dos outros. Isso porque tais discursos encadeiam-se dentro de uma lógica fundamentalmente determinada pelo jogo da letra.

Correspondendo ao significante unário, o S1 é o significante mestre ou primordial, ou seja, aquele que funda o sujeito; é o elemento que, na cadeia de significantes, representa um sujeito para outro significante. Assim sendo, como afirma Wainsztein (2001, p. 17), "não há sujeito que gere a si mesmo apesar do Ideal de autonomia do neurótico; surgidos, somos gerados no campo do Outro3 e devido ao campo do Outro".

O S2, por sua vez, é o significante no campo do Outro, ou o saber do Outro. Trata-se do significante que comporta todos os outros significantes provindos do Outro, distinguindo-se do significante mestre.

O sujeito da falta ou sujeito barrado ($) surge a partir da intervenção do S1 no campo já constituído de outros significantes, quer dizer, do S2. Dessa operação, produz-se uma perda, um resto que constitui o motor para o funcionamento de cada discurso representado por uma letra: o a.

Objeto a ou mais-gozar, objeto que insiste em se repetir. O sujeito neurótico resiste em perdê-lo e, por esse motivo, torna-se um "a mais", um excesso de gozo.

Tais elementos circulam nos quatro lugares fixos determinados por cada discurso. Essa disposição específica, além de denotar uma significação ao discurso que representa, indica que, na medida em que os elementos são sempre os mesmos - a despeito de não serem fixos, ou seja, há mobilidade possível dos termos -, a diferença entre os discursos concerne basicamente ao giro desses elementos na estrutura discursiva. Esse giro dos discursos trata-se, portanto, da passagem de um discurso a outro, fazendo circular os elementos no lugar de dominância e, com isso, mudando o discurso. Essa é a aposta do psicanalista.

Assim, o discurso se organiza em torno desses lugares, daquele que Lacan (1992) chama de agente e se dirige ao Outro. Isso faz com cada discurso aponte a relação do sujeito com o campo do Outro.

Mas se nos reportamos a uma teoria dos discursos, o que, conforme Lacan, vem a ser exatamente o discurso?

 

Sem Palavras, o Liame

Ao estabelecer os já referidos quatro discursos, Lacan (1992) introduz a noção de "um discurso sem palavras". A despeito da importância que confere à fala e à palavra, Lacan indica que, no discurso, há algo que se impõe como primordial, referindo-se a uma estrutura discursiva que prescinde das palavras e atribui importância ao lugar, à posição que se ocupa no discurso.

Conforme Lacan (1992, p. 11), sem as palavras, o discurso pode subsistir em determinadas relações fundamentais, as quais, contudo, "literalmente, não poderiam se manter sem a linguagem". É justamente através do instrumento da linguagem que há o estabelecimento de relações estáveis que extrapolam as enunciações efetivas, as quais não são necessárias "para que nossa conduta, nossos atos, eventualmente, se inscrevam no âmbito de certos enunciados primordiais" (Lacan, 1992, p. 11).

Fala de um aparelho que remete a estruturas discursivas, um aparelho que constitui os pilares do discurso, que o sustenta. Nesse sentido, não é possível nenhum diálogo, a não ser que se situe no nível do discurso, que é a articulação significante, e refere-se a este como estruturante, como aquilo que "estrutura o mundo real" (Lacan, 1992, p. 16). Segundo Lacan, o discurso "governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras", as quais nele alojam-se em seguida (Lacan, 1992, p. 177); e é a partir dele que se manifesta "algo de relações constantes" (Lacan, 1992, p. 13, grifo nosso). Trata-se, portanto, do discurso enquanto uma estrutura primordial que faz laço social; estrutura onde, em um tempo posterior qualquer, as palavras se acomodam. É o discurso que faz laço, sustentado por uma estrutura originalmente sem palavras, e é isso que Lacan parece enfatizar em seu seminário.

No entanto, se nos remetermos ao primeiro seminário de Lacan (1993b, p. 64, grifo nosso), já encontraremos o seguinte: "é sempre num certo nível, num certo estilo da relação ao outro, que se projeta o ato da palavra". Assim, é possível perceber que, desde O seminário, livro 1, Lacan aponta para algo da relação, anterior mesmo à palavra. Afirma, ainda, que o contexto da análise implica "reconhecer que função assume o sujeito na ordem das relações simbólicas que cobre todo o campo das relações humanas" (Lacan, 1993b, p. 83).

Quase vinte anos depois dessas considerações, em O seminário, livro 20, ele diz que o discurso é um modo de funcionamento, é um uso da linguagem como liame entre os seres falantes:

No fim das contas, há apenas isto, o liame social. Eu o designo com o termo discurso, por que não há outro meio de designá-lo, uma vez que se percebeu que o liame social só se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime, se situa sobre aquilo que formiga, isto é, o ser falante. (Lacan, 2008, p. 60, grifo do autor)

O ser falante, mesmo que não profira uma palavra sequer, é governado pela linguagem e, sendo assim, porta a potência do discurso. Desse modo, a teoria dos discursos, tal como afirma Alberti (2010), é uma possibilidade de articulação da clínica psicanalítica com o campo social.

Isso, decerto, torna menos opacos os caminhos possíveis que nos conduzem e nos evidenciam o saber fazer da psicanálise enquanto dispositivo analítico, assim como suas possibilidades de operação em configurações institucionais.

Destarte, vemos que, no discurso, há outra formulação, para além das palavras - ou melhor, anterior a elas -, governada pela articulação significante, uma vez que, nesse "discurso sem palavras", o que importa na relação com o Outro é aquilo que está encoberto, recalcado (inconsciente). O que de fato é relevante no discurso, no liame social, é esse posicionamento do sujeito frente ao Outro.

 

O Sujeito e o Lugar Discursivo

Como, então, articular essa noção do discurso sem palavras com o fazer da psicanálise na instituição de saúde enquanto um dispositivo analítico? De que modo a estrutura discursiva possibilita a emergência do sujeito desejante que a psicanálise visa?

Antes de responder, vejamos de que sujeito fala a psicanálise.

No texto A ciência e a verdade, Lacan (1998a), referindo-se ao sujeito da ciência (o sujeito do cogito, de Descartes; logo, o sujeito do pensamento, da dúvida), afirma que, embora pareça paradoxal, esse é o sujeito da psicanálise, de sua práxis. Contudo, Lacan (1998a) enfatiza que o saber do inconsciente é estranho ao discurso da ciência, e que, na forma lógica do saber da ciência, há uma modalidade de comunicação que sutura o sujeito nele implicado. Assim, o saber da ciência se comunica e se difunde, mas exclui de seu discurso o sujeito, a dinâmica da verdade. Sendo a psicanálise aquela que "essencialmente [...] reintroduz na consideração científica o Nome-do-Pai" (Lacan, 1998a, p. 889), a partir dela, é possível fazer um furo nesse saber que se pretende totalizante, sem falta, somente faltando-lhe, por um movimento próprio de exclusão, o que lhe é essencial e mais precioso: o sujeito.

Acerca disso, Alberti (2000, p. 55) argumenta que, se, para a ciência, o sujeito é apenas uma variável que pode ser mensurada, "o sujeito da psicanálise é o sujeito da fala, sempre cindido, sempre da paixão (do pathos, ele sofre)". Diferentemente da ciência, é ao impensável, ao impossível de conceituar - ao real do sujeito, portanto - que a psicanálise se dirige.

Sendo aquela que preserva o indizível, e já que, a partir dela, o que se escuta é por ouvir - e aquilo que se ouve, lembra Lacan (1998b, p. 623), "não deixa de ser um discurso, mesmo que tão pouco discursivo quanto uma interjeição" -, podemos também apreender o fazer da psicanálise como aquele que implica ouvir o indizível, deixar falar o real.

É, então, ao sujeito do pathos que a psicanálise oferece sua escuta e seu fazer. É por esse sujeito cindido, faltoso, muitas vezes contraditório, atravessado pelo real, que, paciente e atentamente, ela espera e possibilita emergir. Sujeito do inconsciente, do desejo e da paixão.

Segundo Elia (2000, 2011), o trabalho da psicanálise se dá, portanto, a partir da inclusão do sujeito cuja raiz mítica é excluída, decepada pela ciência, e essa inclusão ocorre pela via do inconsciente, na medida em que o sujeito é posto em questão. O autor refere-se ao saber do inconsciente como aquilo que "se recoloca a cada vez, inédito, único e singular", não coincidente com o "saber universal e genérico da ciência clássica" (Elia, 2000, p. 23). Ele refere-se ao dispositivo analítico como "toda configuração particular ou circunstancial que se queira analítica: consultório, ambulatório, enfermaria ou qualquer outra configuração institucional" (Elia, 2000, p. 29).

Então, não é da caracterização do espaço físico que se trata quando intentamos delinear um fazer da psicanálise. Ainda que, certamente, em algum espaço opere, seu saber fazer transcende o ambiente do qual faz uso. O que é da ordem da configuração analítica está para muito além de um espaço, na medida em que sua operatividade e seus efeitos têm como condição primeira uma ética que não é uma ética qualquer, mas que implica um saber inconsciente, um saber que não se sabe (que sabe).

Contrariamente à ética da psicanálise, a política de saúde é regida pela ética do cuidado, da universalidade científica, e opera com um saber constituído, da ordem do conhecimento organizado e acumulado para intervir sobre o usuário, colocando-o no lugar de depositário do saber.

Segundo Cruz (2010, p. 73), "em nome do bem-estar, [o médico] apresenta, em seu discurso, significantes singulares como proteção, assistência e prevenção e acaba por se colocar como agente do saber que move a verdade". Acerca disso, Hoyer (2010, p. 106) lembra que "a instituição é estruturada por um significante mestre, S1, que está no lugar do ideal do Outro, ideal do eu", a qual acaba por recusar a singularidade do sujeito. Contudo, Altoé (2010) adverte-nos justamente do efeito catastrófico que tende a advir de uma instituição cujo funcionamento se dá à custa de ideais, ignorando toda singularidade.

Se a medicina tem um lugar central em cuja direção giram todos os outros serviços, o único discurso válido sobre a doença torna-se a categórica palavra do médico, o qual detém o saber sobre o processo de adoecimento. Como efeito desse saber, ancorado em uma ciência positivista, Cruz (2010) se refere a um "despedaçamento" daquele que, em uma posição passiva na relação com o médico, acaba por ocupar o lugar de objeto.

A oferta de amparo e proteção aos sofredores e necessitados certamente fascina, pois confere poder àqueles que se colocam na posição de detentores do saber sobre a doença e sobre o doente. Isso impede, contudo, que um saber próprio, singular a cada sujeito, possa emergir, petrificando-o, portanto, no lugar de objeto a ser gozado pelo Outro institucional. Trata-se, como afirma Cruz (2010, p. 75), de "uma destituição selvagem do sujeito".

Por isso, cabe uma prática pautada na ética da psicanálise, que tem como função justamente descompletar, barrar essa figura. Conforme Dutra e Ferrari (2007, p. 279), "procedendo dessa forma, torna-se possível a desmedicalização da demanda, de modo que ela se torne tratável pela psicanálise".

É, então, na contramão da ética do bem-estar do discurso médico que a psicanálise opera. É norteado pela ética do bem-dizer que "o discurso psicanalítico propõe que o sintoma passe do nível de resposta para o de questão, implicando o sujeito no mal-estar do qual se queixa" (Cruz, 2010, p. 74).

Assim sendo, poderíamos dizer que há, pelo menos, dois posicionamentos distintos nessa articulação de saberes na instituição de saúde:

1. O sujeito tende a ser excluído na instituição regida pelo saber médico quando reduzido a uma doença ou a uma série de sintomas e quadros clínicos, quando apreendido enquanto generalidade (mais um corpo que padece e que deve tornar-se são novamente), quando não considerado em sua subjetividade (na mera ausculta, não há escuta daquilo que remete ao particular, ao singular). Nesse ponto, como não associarmos o saber médico ao saber do mestre - referente àquele que Lacan denominou de o discurso do mestre4? Segundo Lacan (1992), esse é um discurso de dominação que nada mais quer senão amestrar e que mascara a divisão do sujeito, na medida em que há uma barreira entre o sujeito dividido ($) e a causa de desejo (a).

No discurso do mestre, temos: no lugar do agente, o significante mestre (S1); no lugar da verdade, o sujeito barrado ($); no lugar do Outro, o saber (S2); e no lugar do produto, o objeto a. O significante mestre no lugar do agente submete o outro a seu discurso. Está, pois, no lugar de comando. O discurso médico, identificado ao que Lacan denomina discurso do mestre, proferido desde um lugar em que a vontade de dominação (ainda que inconfessa) está arraigada, tende, portanto, a um silenciar do sujeito5.

2. Pelo discurso psicanalítico, o sujeito é incluído na cena discursiva, na medida em que há o favorecimento do bem-dizer do desejo, logo, de um dizer que remete ao inconsciente, propiciando a produção de um saber singular e único que diverge de um saber que se pretende totalizante e se desencontra de um saber genérico e universal (im)posto pelo Outro institucional.

No discurso do analista, que tem o agente ocupado pelo objeto a, há a provocação da divisão do sujeito, instaurando o saber de uma verdade recalcada. Esse discurso se dirige a um saber inconsciente sobre o $. O saber, S2, está no lugar da verdade de um semidizer, uma verdade não-toda, produzindo, assim, o significante-mestre, S1 - ou seja, o analista, na posição de a, implica o sujeito em fazer emergir seus significantes-mestres que se encontram recalcados. Portanto, o discurso do analista é aquele que, como causa de desejo, visa o sujeito e lhe concede o lugar de sujeito. Visa o avesso, a verdade, que, sempre não-toda, é semidita, enigma, inseparável do inconsciente, escondendo a castração, o desejo da falta.

Portanto, de um lado, há o discurso do analista que se endereça ao sujeito dividido e, do outro, o discurso do mestre que, inflado de um saber absoluto, dirige-se ao Outro enquanto objeto. Como afirma Lacan (1992), o discurso analítico aparece, então, como o contraponto do discurso do mestre - e, por que não, do discurso médico6.

Se o discurso médico, na maioria das vezes, tende a uma abordagem universalizante, regida pela ética do cuidado da política de saúde, fazendo do usuário um depositário do saber, cujo corpo adoecido é objetalizado pelo olhar esquadrinhador da instituição de saúde, à psicanálise, por seu turno, cabe um fazer diferente, o de possibilitar o pronunciamento do sujeito do inconsciente através da palavra e a ela, tomando o caminho do ouvir, oferecer sua escuta - e não a ausculta, como nos previne Lacan (1998b) -, permitindo que apareça aquilo que é da singularidade, da subjetividade. Um saber fazer que não visa um locus em especial. Seja na clínica ou na instituição, no consultório ou no ambulatório, no divã ou no leito, independentemente do lugar onde ela opere, a despeito das condições que ora encontre, seu foco, de modo invariável, é nada menos que o sujeito, seu sofrimento, seu desejo, sua verdade. Eis o que há de sui generis nessa modalidade discursiva: a radical sustentação da dimensão inconsciente.

Com a noção de "um discurso sem palavras", em sua aparente antinomia, o que se destaca é a prevalência de um discurso que faz laço, liame social, e que não somente antecede, mas condiciona toda palavra. A partir dessa expressão, entendemos que, mais do que a fala, no que tange à operação da psicanálise, trata-se, prioritariamente, de um posicionar-se que leva em conta o desejo, a condição desejante. Trata-se não de um enunciado, mas de um singular modo de enunciar, de um lugar no discurso que ultrapassa as palavras. Um lugar para além do espaço físico, concreto - um lugar discursivo, na linguagem.

 

Considerações Finais

Uma das maiores contribuições da psicanálise no hospital é justamente a de lembrar à medicina que os pacientes ali não se reduzem a meros objetos de intervenção clínica. São sujeitos, com toda a divisão que esse termo comporta em psicanálise. Fazer circular o discurso da psicanálise tem, fundamentalmente, relação com o desejo.

Pensar, pois, nas possibilidades para o saber fazer da psicanálise na instituição de saúde, na sua inserção e articulação com um saber já posto e fortemente instituído como o saber médico, de modo algum deve implicar um distanciamento do que é o cerne da ética psicanalítica - o voltar-se, a priori, para o sujeito. Assim, entendemos que a psicanálise, operando desde um lugar discursivo, possibilita o advento de um sujeito do discurso, enquanto aquele que localiza seu desejo ante o Outro. É esse o sujeito ao qual o analista, no liame, dirige-se.

Não é, portanto, onde a psicanálise opera, mas de onde ela opera que de fato importa. Na instituição de saúde, isso não deve, em absoluto, ocorrer de modo diverso, mesmo que frente a diferentes discursos, ainda que ali se eleve algum discurso em potência. A tensão discursiva diante da centralidade do saber médico não subsume e não deve subsumir a especificidade do discurso analítico que incide nos meandros da linguagem, propiciando um significante deslizamento. Trata-se de um lugar-outro, do lugar da psicanálise no discurso, e é exatamente isso que ela também possibilita ao sujeito: um lugar, um posicionamento, o estatuto de sujeito no e pelo discurso, ainda que "sem palavras". Afinal, estas sempre hão de faltar.

 

Referências

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Recebido em 16 de setembro de 2011
Aceito em 23 de fevereiro de 2012
Revisado em 17 de março 2013

 

 

1 Parte do que aqui é discutido foi apresentado enquanto comunicação científica no 7º CONPSI, Salvador-BA, 2011.
2 Grupo de pesquisa cujo foco de investigação reúne três aspetos do sujeito: o sintoma, o corpo e os laços sociais, abordados pela dimensão clínica institucional. Congrega vários projetos que partem da especificidade do saber e da práxis psicanalítica, visando forjar dispositivos clínico-institucionais de atendimento.
3 Este que não é o outro semelhante, mas aquilo que, apesar de anterior e exterior ao sujeito, o determina e do qual o sujeito depende (Chemama, 1995). É um lugar simbólico que, além de remeter à linguagem e ao inconsciente, também pode remeter à lei (Roudinesco & Plon, 1998).
4 Jorge (1997, p. 44, grifo do autor) fala dessa aproximação entre o discurso médico e o discurso do mestre, afirmando que, em nome de uma objetividade científica e enquanto um discurso totalitário, "o discurso médico prima por excluir a subjetividade tanto daquele que enuncia como daquele que o escuta".
5 Aí vige a ordem, a sanção terapêutica atrelada à "função silenciadora" do discurso médico - em oposição à função silenciosa do analista (Jorge, 1997).
6 Imprescindível pontuarmos que o discurso médico trata-se de um discurso não somente "proferido" pelo profissional da medicina - aliás, não esqueçamos que, no posicionamento de alguns destes, nem mesmo vislumbramos tal discurso. Assim como giram os quatro discursos da teoria lacaniana, o discurso médico, tão intimamente pareado ao discurso do mestre, circula nas instituições de saúde, nas distintas vozes dos profissionais das mais diferentes áreas. Estar atento a isso adverte-nos de que não estamos isentos de, repentinamente, por esse saber, por esse dizer, por esse posicionar-se, sermos também enlaçados.

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